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COLEÇÃO DIREITO AMBIENTAL EM DEBATE MARCELO DIAS VARELLA ANA FLÁVIO BARROS PLATIAU (Organizadores) Princípio da Precaução A numeração das páginas não corresponde à versão impressa Editora Del Rey e Escola Superior do Ministério Público da União Sumário Prefácio Marie-Angèle Hermitte Capítulo 1 - Os direitos e interesses das futuras gerações e o princípio da precaução Alexandre Kiss Capítulo 2 - O princípio da precaução Rüdiger Wolfrum Capítulo 3 - O princípio da precaução Philippe Sands Capítulo 4 – O Estatuto do Princípio da Precaução no Direito Internacional Nicolas de Sadeleer Capítulo 5 – Princípio de Precaução: uma nova postura face aos riscos e incertezas científicas Solange Teles da Silva Capítulo 6 - Avaliação dos riscos e princípio da precaução Marie-Angèle Hermitte e Virginie David Capítulo 7 – O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas sociais: Lições de método decorrentes do caso da vaca louca Olivier Godard Capítulo 8 – Implementando o Princípio da Precaução: Desafios e Oportunidades David Freestone e Helen Hey Capítulo 9 – Implementando Cautelosamente o Princípio da Precaução: A Abordagem Precautória no Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios David Freestone Capítulo 10 – Variações sobre um mesmo tema: O exemplo da implementação do princípio da precaução pela CIJ, OMC, CJCE e EUA Marcelo Dias Varella Capítulo 11 – A adoção do princípio da precaução pela OMC Hélène Ruiz Fabri Capítulo 12 – Princípio da precaução e Organização Mundial do Comércio: da oposição filosófica para os ajustes técnicos? Christine Noiville Capítulo 13 – Princípio da precaução no direito brasileiro e no direito internacional e comparado Paulo Afonso Leme Machado Capítulo 14 – O princípio da precaução e a sua aplicação na justiça brasileira: estudo de casos Aurélio Virgilio Veiga Rios Capítulo 15 – A legitimidade da governança global ambiental e o princípio da precaução Ana Flávia Barros Platiau Prefácio Marie-Angèle Hermitte O lançamento de uma coleção de direito ambiental, o projeto de ter a participação de juristas de língua francesa, assim como publicar a primeira obra que trata do princípio da precaução não foram decisões tomadas irrefletidamente. Não é fruto do acaso ou da conjuntura, mas a marca de um projeto intelectual dos diretores desta coleção. Antes de tudo, tem a ver com a escolha do direito ambiental; ao contrário do que crêem muitos juristas, este direito não pode reduzir-se a um ramo peculiar, mais ou menos limitado ao campo da proteção da natureza. Sua primeira função, certamente, é a de assegurar a proteção do meio ambiente, que é um objetivo político recente e de pouco consenso, politicamente falando; todavia, acumula muitas outras características importantes. Inicialmente, no plano teórico, observa-se que o direito ambiental está hoje voltado tanto para a saúde humana quanto para o meio ambiente stricto sensu; ora, a junção progressiva destes dois ramos do direito é a implementação jurídica de uma filosofia do homem moldado pelo ecossistema que está construindo, numa sucessão sem fim de causas e efeitos. É no direito ambiental que se observa a luta entre duas filosofias políticas: uma que fundamenta a vontade do homem em livrar-se cada vez mais das contingências naturais, por meio de uma moldagem tecnológica do meio ambiente; outra que reconhece a necessidade de uma congruência entre o homem e uma natureza que ele nunca poderá dominar totalmente, pois ela continua maltratando com suas reações inesperadas e naturalmente autônomas às modificações que lhe são impostas. Num plano mais prático, este amplo projeto de pesquisa da congruência conseguiu expressar-se no universo jurídico, mediante o princípio da integração. Assim, o direito ambiental tem por vocação a transformação de todos os outros ramos do direito: existindo para si mesmo, existirá cada vez mais para reconstruir os outros direitos, tendo em vista seus próprios objetivos. Todo direito aplicável à indústria e à agricultura terá de tolerar modificações para integrar objetivos ambientais e sanitários; então, mais que dele mesmo, o direito ambiental retira sua importância do conjunto da ordem jurídica. Enfim, observa-se que é um dos ramos mais inovadores do direito e inúmeras de suas inovações espalham-se no conjunto do sistema jurídico. É verdadeiro num nível técnico, em que novos princípios foram elaborados; mas é também verdadeiro num nível político, e a importância desta constatação é significativa. De fato, a característica do direito ambiental é de ter surgido em decorrência de uma demanda da sociedade civil, mais do que do universo político e, o que é muito importante, sua implementação ocorre sob o controle e, de certa forma, sob a pressão da sociedade civil, freqüentemente contra as autoridades do Estado, que são vistas como muito permissivas pelos vizinhos de uma fábrica ou de outro problema qualquer. É por isto que, antes de tudo, o direito ambiental é o molde em que se elabora o que se convencionou chamar de nova governança, que eu definiria como um modo de governar compartilhado entre as autoridades públicas tradicionais do modelo representativo e uma forma nova de democracia direta. Neste contexto, a escolha da primeira obra sobre o princípio da precaução é lógica. Mais uma vez, não é somente porque este princípio é novo, porque se elabora rapidamente e penetra o conjunto da ordem jurídica nacional e internacional. É também e sobretudo, por causa de sua importância para esta nova governança. De fato, insistindo sobre a necessidade de agir de forma racional durante as fases de incertezas cientificas e técnicas, até então reservadas à expectativa, o princípio da precaução tem por vocação reforçar a participação do público, dos leigos, no que concerne à decisão. Diante de uma situação de incerteza e de ignorância, o sistema abala as hierarquias tradicionais. Obviamente, os cientistas têm uma função peculiar, a de levar adiante as pesquisas que permitirão vencer essa ignorância; no entanto, eles se deparam com a necessidade de confessá-la, de deixar vir à tona suas controvérsias e suas hesitações muito mais que uma imagem fictícia de verdade e de saber; assim, cientistas e leigos estão ficando mais próximos uns dos outros. É evidente que serão as instituições tradicionais que tomarão formalmente as decisões. Todavia, num contexto de risco coletivo, de ignorância e de sacrifícios a serem consentidos, associar o público à decisão é um ato de prudência. Os princípios de informação e participação do público, que são os menos aplicados dos grandes princípios do direito ambiental, são também e talvez os mais importantes. Mostrando que as elites científicas e políticas estão desarmadas, a idéia da precaução está fundamentalmente ligada à renovação democrática que se tenta impor. Contudo, interessar-se pela doutrina francesa parecia menos evidente. Por sua posição geopolítica, seu tamanho, suas riquezas, a diversidade de sua população, o Brasil pode pretender tornar-se independente intelectualmente e, de resto, será logicamente atraído pela esfera americana, no sentido de um continente americano ainda por ser construído. É justamente no âmbito desta invenção do mundo que a doutrina francesa, restrita a uma audiênciabastante reduzida, em razão dos poucos conhecedores da língua francesa, pode apresentar interesse. Tradicionalmente ligada a inúmeros países do Sul, relativamente ignorante ou indiferente aos modismos intelectuais, para o melhor assim como para o pior, a doutrina francesa representa um pólo de diversidade cultural que pode ser útil de se conhecer para aumentar as possibilidades de escolhas políticas e jurídicas, com as quais o Brasil é confrontado. Trata-se de contrapeso, de contramoda, de incentivo à aliança. Que esta coleção provoque a aprendizagem recíproca de argumentações mais ricas e mais diversas. Estes são meus votos. Apresentação Este primeiro volume, entre três programados para a “Coleção direito ambiental em debate”, apresenta uma discussão sobre o princípio da precaução. A nossa maior intenção consiste em trazer para a literatura brasileira, grandes nomes do direito internacional, que atualmente são dificilmente acessíveis no Brasil. Este problema decorre de inúmeros fatores: em primeiro lugar, os leitores brasileiros não têm familiaridade com línguas estrangeiras, principalmente se não se tratar da língua inglesa, sobretudo em função da grande influência norte-americana sobre nossa doutrina. Este livro se focaliza sobretudo em grandes autores franceses, mas também alemães, holandeses e outros. O segundo objetivo é promover o diálogo entre os principais acadêmicos europeus e norte-americanos acerca da natureza do princípio da precaução e, principalmente, sobre os desafios de sua implementação, o que os professores David Freestone e Hellen Hey comentaram ser a “segunda geração” de estudos e pesquisas sobre o tema. O debate pretende ajudar a tecer uma malha teórica capaz de auxiliar, em grande medida, à parte do desenvolvimento da discussão sobre risco e precaução, a disseminar o tema e seus desafios decorrentes no Brasil. Tomamos a liberdade de convidar alguns autores brasileiros consagrados como o Paulo Affonso Leme Machado e outros que estão se destacando por seus estudos e atividades como Solange Teles da Silva e Aurélio Rios. Tais artigos tentam esboçar os contornos do princípio da precaução no ordenamento jurídico brasileiro, assim como suas formas de concretização. A disposição dos artigos ao longo do volume naturalmente respeitou uma seqüência baseada nos vieses dados por cada autor a temas ou questões específicas. O primeiro grupo de artigos, por exemplo, inclui os textos dos Professores Alexandre Kiss, Rüdiger Wolfrum, Philippe Sands, Solange Teles da Silva, Marie-‐Angèle Hermitte & Virginie David, e Nicolas de Sandeleer. Estes seis artigos possuem em comum o mesmo ponto de partida: a apresentação do estado do princípio da precaução no direito internacional. Entretanto, todos possuem metodologias distintas, apresentando o princípio da precaução a partir de diferentes roupagens. O professor Alexandre Kiss tem como principal alvo demonstrar a ligação entre equidade intergeracional e o princípio da precaução, tendo em vista a definição de o princípio do desenvolvimento sustentável. O artigo do professor Rüdiger Wolfrum, por sua vez, vele-‐se da riqueza dos instrumentos jurídicos internacionais para comentar a evolução da abordagem precautória, levantando importantes pontos para debate tal como a construção de políticas e a tomada de decisão em contextos de incerteza, em contraposição à necessidade de prova de impactos negativos sobre o meio ambiente. De forma análoga, Philippe Sands desenvolve uma apresentação do status do princípio da precaução, bem como uma discussão acerca de seu significado. Em outras palavras, Sands estuda o status da consolidação do princípio da precaução, essencialmente nas cortes regionais e foros internacionais. O professor Nicolas de Sadeleer assinala que apesar da dificuldade própria do direito internacional do meio ambiente, a fragmentação, é possível estabelecer um valor jurídico para o princípio da precaução a partir das fontes tradicionais do Direito Internacional, aprofundando-‐se nas raízes deste princípio, construindo sua tipologia jurídica e identificando de forma precisa seus contornos. A professora Solange Teles da Silva demonstra a ascensão do princípio da precaução no direito internacional. Finalmente, o texto da professora Marie-‐Angèle Hermitte e de Virginie David apresentam uma análise clara dos elementos de difícil análise em se tratando do princípio da precaução, demonstram suas origens e fecham com brilhantismo o bloco, abrindo os olhos do leitor para abordagens que devem ser dadas para a melhor compreensão do princípio da precuação. O segundo bloco de artigos, em contraste ao primeiro que tinha na definição e evolução do princípio da precaução seus focos, são construídos sob dilemas decorrentes da epistemologia, da aplicação, interpretação, percepção e extensão da precaução. Trata- se de um passo além, em consonância com o estado da arte do princípio no direito internacional. O artigo de Olivier Godard, em suas próprias palavras, propõe que “O dilema posto pela inscrição jurídica do princípio da precaução é de saber se ela será mais fiel à concepção apurada e reflexiva do princípio da precaução que as idéias brutas que levaram a sua aceitação pelo público.” Em seu texto, Godard utiliza o caso da vaca louca como ponto de partida para uma reflexão sobre o posicionamento a ser dado ao princípio da precaução. Já o texto de Freestone & Hey é construído sob o problema da incerteza versus impactos negativos significativos, quando da aplicação do princípio da precaução e revela bem uma visão setorial do princípio, em se tratando de direito marítimo. O artigo de David Freestone fundamenta-se na dicotomia interesses nacionais versus interesses comuns e transgeracionais, a partir de uma análise do Acordo sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios e da Convenção sobre o Direito do Mar, que foi um dos primeiros e mais importantes tratados internacionais a propor uma forma de concretização do princípio da precaução no direito internacional. O artigo subseqüente de Marcelo Varella, por sua vez, põe em contraste as diferentes abordagens para o princípio da precaução em diferentes organizações internacionais, demonstrando o como o princípio ou abordagem precautória é analisado em um mesmo momento por diferentes espaços de resolução de conflitos, e como elementos políticos são inerentes a esta análisee podem influenciar a avaliação do princípio da precaução. Os artigos de Hélène Ruiz Fabri e Christine Noiville encerram o segundo “bloco” com um interessante aprofundamento da discussão sobre a aplicação e evolução da consideração do princípio da precaução na Organização Mundial do Comércio (OMC). Finalmente, o terceiro bloco de artigos inicia-se com a apresentação dos artigos dos professores Paulo Afonso Leme Machado e Aurélio Virgilio Veiga Rios cuja ênfase é o estado e a implementação do princípio da precaução no ordenamento jurídico interno brasileiro. A professora Ana Flávia Platiau retoma em seu artigo o ponto dos professores Nicolas de Sandeleer e Olivier Godard para demonstrar, a partir do papel das comunidades epistêmicas e da sociedade civil global em questões vinculadas à biotecnologia, que os ordenamentos jurídico e político caminham em ritmos distintos. O método de construção da obra ocorreu de modo a torná-la um conjunto harmônico e integrado de textos. Os professores foram convidados a escrever artigos ou a indicar um dos seus melhores textos sobre o tema. Em seguida, os organizadores fizeram críticas e retornaram os textos para os autores, em conjunto com todos os outros textos da obra. Assim, foi possível cada autor conhecer e discutir os demais textos, alterando seus próprios trabalhos. A versão final, após novas discussões, foi traduzida para o português e revisada pelos organizadores e pelos autores. Uma nova revisão de português então foi realizada, por profissionais experientes e revisada novamente pelos organizadores. Assim, trata-se de uma obra cuja coerência aproxima-se mais a de livro do que de uma simples reunião coletânea de artigos. Para tornar a obra mais compreensível, os organizadores adicionaram algumas notas de rodapé, explicando certos termos técnicos que são raramente encontrados nos textos brasileiros. Acreditamos assim, trazer ao público brasileiro, alguns trabalhos de qualidade sobre o princípio da precaução. Gostaríamos de agradecer a todos que trabalharam para que esta empreeitada fosse possível, aos técnicos Rafael Schleicher, Maria Edevalcy Marinho e Liziane Paixão, pela uniformização de notas e estilos, e ajuda nesta apresentação e traduções; aos tradutor Bruno Guérard. As revisoras de portugues Sandra Jacovini e especialmente à professora Amabile, pela contribuição indispensável para a qualidade da obra. Enfim, aos editores dos textos originais pela permissão concedida para a tradução. Um agradecimento especial vai também a Sub-Procuradora Geral da República, Sandra Cureau, Presidente da Escola Superior do Ministério Público da União, aos Diplomatas Guillaume Ernst e Laetitia Daget, do Ministério das Relações Exteriores do Governo Francês e ao Procurador da República Antônio Fonseca, Presidente da Fundação Pedro Jorge, pelo apoio financeiro para a realização dos trabalhos. Ana Flávia Platiau Marcelo Dias Varella Capítulo 1 Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras e o Princípio da Precaução Alexandre Kiss* O título deste capítulo propõe a análise de três elementos separados: direitos e interesses, gerações futuras e princípio da precaução. Cada um dos elementos será examinado separadamente, antes de uma tentativa de síntese. De qualquer modo, para facilitar a análise, a ordem pela qual os três serão discutidos foi modificada no sentido de priorizar o conceito-chave de gerações futuras. 1. O que são gerações futuras? O conceito de eqüidade intergeracional surgiu nos anos 80. Sua origem está relacionada com a ansiedade desencadeada pelas mudanças globais que caracterizaram a segunda metade do século XX. O poder da humanidade de transformar as características físicas da Terra alcançou um nível que dificilmente poderia ser imaginado há um século. Ao mesmo tempo, a população mundial aumentou numa velocidade sem precedentes, dobrando em algumas décadas. Esse crescimento ocasionou aumento no uso dos recursos naturais e na conscientização sobre a escassez desses recursos.1 Como resultado, houve uma crescente conscientização de que as mudanças globais podem ter como efeito a redução da parte da riqueza global a que cada habitante do mundo tem acesso. A pergunta, então, é se a mudança global deve ser feita para provocar uma redução da parcela da riqueza global a que cada indivíduo tem direito - mesmo àqueles que vivem atualmente na Terra. Uma imagem impressionante dos anos 1970 - a Espaçonave Terra - ilustra tais apreensões: nós, toda a humanidade, estamos a bordo de um veículo viajando pelo espaço, a energia solar é o único recurso suplementar que teremos até o fim desconhecido * Professor Alexandre Kiss é diretor de pesquisas CNRS/França e professor emérito da Universidade de Estrasburgo, França. 1 Os recursos naturais aqui mencionados incluem não somente minerais, água e ar, mas também a diversidade biológica e o espaço. da viagem. Assim, devemos conservar nossos recursos de forma sábia e compartilhá-los, sem esquecer que os que ocuparem nossos lugares a bordo, no futuro, serão ainda mais numerosos que nós. Esses interesses são acompanhados e ampliados por uma crescente inquietude pela situação do meio ambiente. Essas preocupações têm também uma dimensão temporal embora não necessariamente coincidente. A preservação do meio ambiente está obrigatoriamente focalizada no futuro. Uma decisão consciente para evitar o esgotamento dos recursos naturais globais, em vez de nos beneficiarmos ao máximo das possibilidades que nos são dadas hoje, envolve necessariamente pensar sobre o futuro. Entretanto, o futuro pode ter uma dimensão de médio ou longo prazo, enquanto a preocupação relacionada ao interesse das gerações futuras é necessariamente de longo prazo e, sem dúvida, um compromisso vago. Um outro aspecto motiva a preocupação com as gerações futuras. Mesmo sendo verdade que, desde o início, a humanidade usou recursos naturais, algumas vezes chegando a sua extinção, também desenvolveu uma riqueza cultural espiritual própria. Como afirmou o pensador francês Paul Valéry: “Nós, civilizações, agora sabemos que somos mortais”.2 De fato, muitas civilizações e culturas locais desapareceram no decorrer da história da humanidade, mas nunca o ritmo de desaparecimento foi tão rápido como no século atual. Com isso, a mudança global que está ocorrendo no momento afeta não só os recursos naturais, mas também os recursos culturais humanos que foram acumulados durante milhares de anos. Esses recursos consistem, por exemplo, de conhecimentos de povos indígenas, de registros científicos ou até mesmo de películas que se deterioraram com o passar do tempo. Fatores psicológicos e éticos explicam nossas reações a tais questões. Nossa primeira reação pode ser genética, instintiva. Todas as espécies vivas procuram instintivamente assegurar sua reprodução, e os mais desenvolvidos entre elas também fazem a provisão para o futuro bem-estar de seus descendentes. A história humana é testemunha dos constantes esforços dos seres humanos para proteger não somente suas próprias vidas, mas também para garantir o bem-estar e melhorar as 2 VALÉRY, P.. Regards sur le monde actuel et autres essais, p. 121. oportunidades para sua prole. O cuidado instintivo com as crianças e netos faz parte da natureza humana. Considerações éticas reforçam e podem também expressar esses sentimentos instintivos. Como disse um escritor francês, nós não somos os herdeirosde nossos pais, mas os devedores de nossas crianças.3 Para haver justiça, a riqueza que nós herdamos das gerações precedentes não deve ser dissipada para nossa própria conveniência e prazer, mas passada adiante, na medida do possível, para aqueles que nos sucederão. Certamente, não há nenhuma justificativa moral em privar o outro de receber o que recebemossem esforço de nossa parte. O termo eqüidade intergeracional foi utilizado para representar este conceito.4 Expressa o reconhecimento do que devemos a nossos antepassados e nossa gratidão para com eles, assim como o que devemos à posteridade. Uma vez reconhecidas nossas obrigações quanto ao futuro, permanece ainda uma dificuldade maior – a definição do termo geração. Uma nota de advertência é necessária com relação ao que pode parecer simplesmente uma questão terminológica. O uso atual do termo geração serve freqüentemente para referir-se a uma série de produtos ou conceitos que, em razão dos desenvolvimentos tecnológicos, podem ser substituídos por novas séries de produtos ou conceitos. A implicação deste uso particular é que as gerações se substituem e a geração substituída se torna antiquada e, conseqüentemente, inútil. O uso do termo geração neste sentido, precisa ser tratado com cuidado. Por exemplo, na lei dos direitos humanos, os direitos civis e políticos são tratados freqüentemente como sendo direitos de primeira geração; os direitos sociais e econômicos, como direitos de segunda geração e o desenvolvimento e os direitos ambientais, como sendo direitos de terceira geração. Se o argumento anterior fosse aplicado à lei dos direitos humanos, implicaria que os direitos humanos de segunda geração tornariam obsoletos os direitos da primeira geração e a chamada terceira geração de direitos teria o mesmo efeito sobre a segunda geração. Isto seria obviamente absurdo e inaceitável. Com relação aos direitos das gerações futuras, não existe certamente nenhuma implicação de que, quando uma nova geração surgir, a existente deva desaparecer. De 3 SAINT-EXUPÉRY, A.. Vol de nuit, p. 29. 4 WEISS, E.. Fairness to Future Generations: International Law, Common Patrimony and Intergenerational Equity, p.17. qualquer modo, além dos problemas de terminologia, o conceito de geração é obscuro. Historicamente, considerando a variada expectativa de vida no passado, a duração de uma geração foi aceita com sendo de trinta anos. A relevância de tais estimativas, em vista de uma maior expectativa de vida no mundo desenvolvido e as grandes diferenças entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, é altamente questionável. De forma conceitual, o principal problema é que não há nenhuma geração distinta. Em cada duas centenas de seres humanos que nascem e morrem, mais de cinco bilhões de pessoas de todas as idades coexistem. Seria mais exato falar não de gerações, mas de um fluxo constante; a humanidade pode ser comparada a um enorme rio que flui constantemente, torna-se cada vez maior e nele nenhuma distinção pode ser feita entre as gotas de água que formam esse rio. A conseqüência lógica de tal aproximação seria reconhecer a futura humanidade como detentora de direitos. A compreensão de que a futura humanidade começa novamente a cada segundo conduziria assim ao reconhecimento da totalidade da humanidade, incluindo os membros atuais e futuros, como pessoa legal, sujeito de direito e portadora potencial de direitos e deveres. Alguma sustentação conceitual para tal enfoque pode ser encontrada no conceito legal existente de crimes contra a humanidade - no qual a humanidade por inteiro é protegida contra atentados à vida e à integridade de seus membros. Finalmente, admitir que as gerações futuras têm direitos poderia conduzir ao reconhecimento de que a humanidade, como tal, possui um status legal. Em princípio, esta compreensão poderia ser reconhecida nas leis do Direito Internacional.5 Os principais problemas a serem tratados estão relacionados ao estabelecimento de procedimentos legais adequados através dos quais a representação de direitos e interesses da humanidade seria assegurada.6 2. Os Direitos e Interesses das Gerações Futuras 5 No princípio do Direito Internacional, um dos principais direitos do Estado era a autopreservação que poderia ser interpretada como sendo uma forma de cuidado futuro. 6 WEISS, E. op. cit., p.148-152. (propondo a criação da Comissão sobre o Futuro do Planeta, com os seguintes membros: comissários, ombudsmen, um programa de monitoramento, uma unidade de aconselhamento técnico e uma unidade educacional). Os instrumentos legais internacionais freqüentemente fazem referência aos "direitos das gerações futuras". Com base na variedade de instrumentos, incluindo declarações e deliberações bem como cláusulas de tratados, é possível aceitar esses direitos como sendo os que cada geração tem em beneficiar-se e em desenvolver o patrimônio natural e cultural herdado das gerações precedentes, de tal forma que possa ser passado às gerações futuras em circunstâncias não piores do que as recebidas. Isto exige conservação e, onde for possível, melhoria da qualidade e da diversidade dessa herança e, especificamente, a conservação dos recursos renováveis, dos ecossistemas e dos processos de suporte à vida, assim como do conhecimento humano e da arte. Requer ainda que sejam evitadas ações com conseqüências desastrosas e irreversíveis para a herança natural e cultural, citadas em vários instrumentos internacionais.7 Diferentes expressões dos direitos das gerações futuras são encontradas em diferentes textos. De acordo com a Declaração de Estocolmo de 1972, a primeira a formular este princípio, encontramos: “O homem... tem a solene responsabilidade de proteger e melhorar o meio ambiente para a atual e as futuras gerações”.8 O mesmo princípio foi reafirmado por diversos tratados internacionais e por outros instrumentos.9 Particularmente significativo é o artigo 3(1) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Essa Convenção foi um dos principais resultados da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD): “As partes devem proteger o sistema climático para o benefício das atuais e futuras gerações da humanidade”.10 Essa Convenção é uma continuação de diversas deliberações da Assembléia Geral das Nações Unidas (AGNU), sendo a mais importante a que se refere à Proteção do 7 "Goa Guidelines on Intergenerational Equity", 15. 2. 1988, reproduzido por WEISS, op. cit., p. 293. 8 Princípio I, UN Conference A/Conf. 48/14/Rev. 1. 9 Princípio I, UN Conference A/Conf.48114/Rev 1. 9. Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora (CITES), Washington, March 3, 1973,993 UNTS 243; Convention for the Protection of the Mediterranean Sea Against Pollution, Barcelona, February 16, 1976, (1976) 15 ILM290; Convention on the Conservation of Nature in the South Pacific, Apia, June 12, 1976, UNEP, (1983) Selected Multilateral Treaties in the Field of the Environment, p. 463; Convention on the Prohibition of Military or Any Other Hostile Use of Environmental Modification Techniques, Geneva, May 18, 1977, (1977) 16 ILM 88; Kuwait Regional Convention for Cooperation in the Protection of the Marine Environment from Pollution, Kuwait, April 24, 1978, (1978) 17 ILM 511; Convention on the Conservation of Migratory Species of Wild Animals, Bonn, June 23, 1979, (1980) 19 ILM 15; Convention on the Conservation of European Wildlife and Natural Habitats, Bern, September 19, 1979, European Treaty Series, no 104; Conventionfor the Protection and Development of the Marine Environment of the Wider Caribbean Region, Cartagena de Indias, March 24, 1983, (1983) 22 ILM 227; ASEAN Agreement on the Conservation of Nature and Natural Resources, Kuala Lumpur, July 9, 1985, (1985) 15 EPL p. 64; Convention on the Transboundary Effects of Industrial Accidents, Helsinki, March 17, 1992, UN E/ECE/ 1268. 10 Nova Iorque, 9. 5.1992, (1992) 31 ILM 849. Clima Global para as Atuais e Futuras Gerações da Humanidade.11 Na Convenção sobre Diversidade Biológica, as partes contratantes apresentam sua decisão "para conservar e usar de forma sustentável a diversidade biológica para o benefício da geração atual e das gerações futuras".12 De acordo com o terceiro princípio da Declaração do Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio, “o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras”.13 A preocupação pelas gerações futuras também é inerente ao conceito de desenvolvimento sustentável. A Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento (WCED) define desenvolvimento sustentável como "a capacidade humana de assegurar que o desenvolvimento atenda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem a suas próprias necessidades".14 A Comissão, além disso, concordou que : o conceito de desenvolvimento sustentável implica limites, não absolutos, mas limites impostos pelo atual estado da tecnologia e da organização social, em recursos ambientais, e pela capacidade da biosfera de absorver os efeitos das atividades humanas.15 Se for admitido que o direito das gerações futuras ou da futura humanidade foi reconhecido como tal pela lei internacional costumeira, mediante tratados internacionais assim como mediante instrumentos de soft law, dois pontos emergem como significativos. O primeiro refere-se ao conteúdo desse direito e o segundo, a sua execução. O enfoque inicial do direito das gerações futuras levou à conclusão de que este direito buscou proteger as opções que temos atualmente e procurou transmiti-las às gerações futuras. Entretanto, essa abordagem não é necessariamente satisfatória porque coloca excessiva ênfase nos deveres da geração presente. Não considera o fato de que a própria natureza do conceito exige que seja aplicado através dos séculos. Como pode a 11 UNGA Res 43/53, 6. 12. 1988, UN Doc. A/Res/43/53. 12 Ultimo parágrafo do preâmbulo, Rio de Janeiro, 5.6. 1992, (1992) 31 ILM 818. 13 Rio de Janeiro, 14. 6. 1992, (1992) 31 ILM 874. 14 Our Common Future (1987), p. 43. 15 Ibid., p. 8. mesma quantidade de espaço, de regiões naturais, de água limpa, de animais selvagens ser garantida para infinitas gerações com número cada vez maior de indivíduos? Deve o mundo ser transformado em um museu ocupado sempre com maior número de monumentos, de artefatos e de locais históricos? Mesmo se a humanidade atual pudesse aceitar essa abordagem, não poderia ser aceitável para as gerações futuras. Como podemos saber as preferências das gerações futuras daqui a, por exemplo, cinqüenta ou cem anos? Uma relação mais concreta pode ser estabelecida com base no conceito de desenvolvimento sustentável, conforme aparece no relatório do WCED.16 Nesse relatório, desenvolvimento está ligado à obtenção de direitos econômicos, sociais e culturais. O desenvolvimento sustentável procura assegurar que tais direitos sejam obtidos no futuro, o que significa que as condições para sua obtenção também necessitam ser mantidas. Estas condições são a disponibilidade de recursos naturais adequados. O direito das gerações futuras pode conseqüentemente ser definido nos termos dos direitos aos recursos naturais necessários para garantir, por um período indeterminado, direitos econômicos, sociais e culturais básicos. Entretanto, tal enfoque é totalmente antropocêntrico. Certamente, o conceito dos direitos das gerações futuras ou da futura humanidade se refere somente aos seres humanos. Não obstante, os recursos naturais, que são necessários para assegurar a apreciação de direitos econômicos, sociais e culturais, incluem não somente recursos que são essenciais à sobrevivência da humanidade, tal como a água e o ar; recursos que servem para enriquecer a humanidade, como minerais, mas também ecossistemas e processos essenciais à vida assim como à diversidade biológica.17 A apreciação de direitos culturais inclui necessariamente a conservação de elementos básicos de nossa civilização. Estes elementos não são somente sintéticos, mas abrangem também a flora e fauna selvagem, tal como baleias, leões e serpentes, paisagens e locais naturais. É necessária uma interpretação mais ampla dos direitos humanos para refletir os interesses mais diversificados das gerações futuras. 16 Ibid., p. 8-9 e 43-66. 17 O rascunho da Declaração sobre os Princípios dos Direitos Humanos e o Meio Ambiente, incluídos no relatório final da Sra Fatma Zohra Ksentini, relatora especial da subcomissão de Prevenção contra a Discriminação e da Proteção de Minorias (06. 7. 1994)) declara em seu Artigo 6: “Todas pessoas têm o direito à proteção e preservação do ar, solo, água, geleiras, flora e fauna e aos processos essenciais e áreas necessárias para manutenção da diversidade biológica e de ecossistemas”. (UN, E/CN.4/Sub.2/1994/9, Annex I, p. 75). Assim, até onde se se refere ao direito das gerações futuras, aceita-se que ele inclua direitos econômicos, sociais e culturais e a conservação das condições, abrangendo a conservação da diversidade biológica, necessária para assegurar sua realização. Com relação à segunda questão, a implementação dos direitos das gerações futuras, os instrumentos internacionais fornecem pouca orientação. Contudo, alguns indicativos podem ser encontrados na prática de sistemas legais domésticos, particularmente em uma recente decisão da Suprema Corte da República das Filipinas e em um recente decreto adotado na França. O caso da Minors Oposa versus a Secretaria do Departamento de Meio Ambiente e de Recursos Naturais18, na Suprema Corte da República das Filipinas, ilustra como os direitos das gerações futuras podem ser protegidos. Nesse caso, trinta e cinco menores, representados por seus pais e por uma associação, a Rede Ecológica Filipina (Philippine Ecological Network), encaminharam uma intimação, exigindo que o governo interrompesse as licenças de exploração de madeira existentes e restringisse a emissão de novas licenças. Sua petição foi baseada na alegação de que os desflorestamentos resultavam em danos ambientais. O julgamento em primeira instância desqualificou o pedido, mas a Suprema Corte reverteu a decisão. Decidiu, entre outras coisas, que os requerentes tinham o direito de representar seus filhos ainda não nascidos e que tinham defendido adequadamente o direito deles a um meio ambiente equilibrado e saudável. Sobre o locus standi dos requerentes, a Corte determinou o seguinte: Os requerentes menores afirmam que representam sua geração assim como as gerações ainda não nascidas. Não encontramos nenhuma dificuldade em julgar que eles podem para si mesmos, para outros de sua geração e para as gerações futuras, impetrar um processo judicial. Sua capacidade para ingressar em juízo no interesse das sucessivas gerações pode ser fundamentada no conceito de responsabilidade intergeracional, assim como no direito a um meio ambiente sadio e equilibrado. A natureza significa o mundo em sua totalidade como foi criado. Tal ritmo e harmoniaincluem indispensavelmente, inter alia, a cuidadosa disposição, utilização, gestão, renovação e a conservação das florestas do país, dos minerais, da 18 (1994) 33 ILM 168. terra, das águas, das indústrias de pesca, da vida selvagem, das áreas costeiras e de outros recursos naturais a fim de que sua exploração, desenvolvimento e utilização sejam eqüitativamente acessíveis à geração presente, assim como às futuras gerações.19 Desnecessário dizer que cada geração tem como responsabilidade preservar para a geração futura o ritmo e a harmonia para um completo desfrute de uma ecologia equilibrada e saudável. De forma um pouco diferente, a assertiva dos menores terem direito a um ambiente em boas condições constitui ao mesmo tempo a concretização de sua obrigação em assegurar a proteção daquele direito para as gerações vindouras.20 Esta sentença é naturalmente fundamentada nos textos constitucionais e legislativos que são aplicáveis nas Filipinas.21 A petição inicial foi considerada válida e o direito de agir dos requerentes foi aceito pelo Tribunal, assim como o direito de defesa foi garantido aos beneficiários das licenças de exploração de madeira. A Corte Suprema não deu uma definição para o conceito gerações futuras. Entretanto, sua decisão foi claramente fundamentada neste conceito. Certamente a Corte poderia declarar que os menores, como os requerentes, poderiam somente reivindicar seus próprios interesses futuros. Ao contrário, a Corte preferiu adotar um enfoque mais abrangente e reconhecer os direitos dos menores em cumprir suas obrigações para as gerações ainda por virem. Na França, o direito das gerações futuras foi reconhecido de forma institucional. Em janeiro de 1993, um Conselho de Gerações Futuras foi estabelecido por decreto. 22 Esse órgão independente pode ser consultado sempre que for identificado um problema com impacto potencial sobre os direitos das gerações futuras. Está também autorizado, por sua própria iniciativa, a oferecer aconselhamento em tais questões. Esta iniciativa 19 Title (Environmental Natural Resources), Book IV of the Administrative Code of 1987, B.D. No 292". 20 WEISS, E. Op cit, n. 18, p. 185. 21 A seção 16, do artigo II da Constituição de 1987, indica explicitamente que "O Estado deverá proteger e garantir o direito do povo a uma ecologia equilibrada e saudável de acordo com o ritmo e harmonia da natureza". O ato de Reorganização do Departamento de Ambiente e Recursos Naturais, promulgado em 10. 6. 1987, OE nº 192, autorizou esse Departamento, em conformidade com a Constituição, a garantir uma eqüitativa divisão dos benefícios advindos dos recursos naturais "para o bem-estar das presentes e gerações futuras de filipinos”. Na seção 3, uma Declaração de Política do mesmo instrumento também menciona o uso eqüitativo dos recursos naturais do país, "não somente para a geração presente, mas também para as gerações futuras". Essa Declaração de Política está substancialmente reafirmada no Título XIV, Livro IV do Código Administrativo de 1987, Seção 1, EO No 292 (Ibid., p. 187 e 189). 22 Decreto n. 93-298, de 8. 3. 1993, Journal Officiel de La République Française. francesa oferece importante exemplo de como pode ser tratado um dos principais problemas que surgem com a implementação dos direitos das gerações futuras, ou seja, como a questão da representação pode ser solucionada. Resumindo, os direitos das gerações futuras, baseados na obtenção de direitos econômicos, sociais e culturais, incluindo a conservação da diversidade biológica, podem, ao menos em princípio, ser implementados por Cortes e por órgãos nacionais independentes. Entretanto, a história contemporânea ilustra a fragilidade de muitos Estados, alguns dos quais são incapazes de impor sua autoridade sobre a população. Assegurar a proteção dos direitos das futuras gerações supõe uma forma de continuidade que somente pode ser alcançada com a participação de instituições internacionais. Além disso, experiências com Estados totalitários demonstram também que o melhor estímulo para alcançar a proteção dos direitos humanos é a existência de instituições internacionais independentes, que podem avaliar sua efetiva implementação. Assegurar os direitos das gerações futuras é uma tarefa muito mais difícil do que assegurar o respeito pelos direitos humanos atuais. Isto deve ser outorgado a uma autoridade internacional, talvez a um Alto Comissariado ou a uma Comissão Mundial, como a Comissão Brundtland. 3. O princípio da precaução Como indicam os diversos autores, várias formulações diferentes foram usadas para definir ou descrever o princípio da precaução. Alguns consideraram que o princípio 15 da Declaração do Rio reflete o enfoque mais comumente aceito: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. O princípio da precaução pode ser considerado como a forma mais desenvolvida da regra geral, impondo uma obrigação para impedir danos ao meio ambiente. Ele constitui o ponto de partida para uma grande organização do direito ambiental e, em particular, para o direito ambiental internacional. Com exceção de uma série de tratados que tratam da compensação para os danos ambientais, a grande maioria das convenções internacionais é baseada no princípio de que a degradação ambiental deve ser impedida - evitando a poluição ou danos - em vez de se esperar que ela ocorra e, então, tentar neutralizar seus efeitos negativos. A diferença entre o princípio da prevenção e o princípio da precaução está na avaliação do risco que ameaça o meio ambiente. A precaução é considerada quando o risco é elevado - tão elevado que a total certeza científica não deve ser exigida antes de se adotar uma ação corretiva, devendo ser aplicado naqueles casos em que qualquer atividade possa resultar em danos duradouros ou irreversíveis ao meio ambiente, assim como naqueles casos em que o benefício derivado da atividade é completamente desproporcional ao impacto negativo que essa atividade pode causar no meio ambiente. Nestes casos, é necessário um cuidado especial a fim de preservar o ambiente para o futuro. Este é naturalmente o ponto comum entre os direitos das gerações futuras e o princípio da precaução. Em determinadas situações, a aplicação do princípio da precaução é uma condição fundamental para proteger os direitos das gerações futuras. Uma das principais características deste princípio é que, naqueles casos onde há uma incerteza científica, a obrigação real de tomar decisões passa dos cientistas para os políticos, para aqueles cuja tarefa é governar. Entretanto, não há uma identidade total entre os dois conceitos. O princípio da precaução foi adotado somente no campo da proteção ambiental. Outras áreas importantes que são abrangidas pelos direitos das gerações futuras - tais como a ciência, a arte e a preservação de monumentos históricos - não foram beneficiadas por qualquer obrigação internacional que imponha a aplicação do princípio da precaução. A Convenção da UNESCO para a Proteção da Herança Cultural e Natural do Mundo, de 23 de novembro de 1972, proclama o dever de cada Estado de assegurar “...a identificação, proteção, conservação, apresentação e transmissão às gerações futuras da herança cultural e natural referidas nos artigos 1 e 2 e situadasem seu território.” 24 Entretanto, o artigo 5 (c) dessa Convenção menciona somente a necessidade de estudos técnicos e científicos, de pesquisa e desenvolvimento dos meios pelos quais o Estado poderá neutralizar os perigos que ameaçam sua herança cultural e natural. Não há 24 Art. 4 (1972) 11 ILM 1358. nenhuma menção quanto à necessidade de se tomarem medidas em uma situação de incerteza científica. Neste sentido, o regime legal para a proteção do meio ambiente pode ser considerado como sendo mais avançado que o regime para a proteção da herança cultural, preservação que pode ser parte crucial dos direitos das gerações futuras. Um dos alvos no desenvolvimento do Direito Internacional deve ser a expansão dos campos de aplicação do princípio da precaução ao campo de proteção da herança cultural. Isto seria no sentido do interesse das gerações futuras ou, posto de maneira mais simples, da humanidade. Desta forma, seria um avanço primordial a uma interpretação mais abrangente dos conceitos de direitos humanos, para incluir direitos culturais assim como o direito à diversidade biológica, apoiada por estruturas institucionais para garantir sua aplicação. Referências bibliográficas VALÉRY, Paul. Regards sur le monde actuel et autres essais. Paris: Gallimard, 1945. SAINT-‐ EXUPÉRY, A. de. Vol de nuit. Paris: Gallimard,1948. WEISS, E. Brown. Fairness to Future Generations: International Law, Common Patrimony and Intergenerational Equity. New York: Transnational, 1989. Capítulo 2 O Princípio da Precaução Prof. Dr. Rüdiger Wolfrum* 1. Introdução Em novembro de 1990, o secretário-geral das Nações Unidas, em seu relatório sobre direito do mar, enfatizou a importância do princípio da precaução nas futuras abordagens para proteção do meio ambiente marinho e a conservação de recursos. Relatou também que o princípio foi endossado praticamente em todos os recentes fóruns internacionais.1 De fato, o princípio da precaução tornou-se uma parte intrínseca da política ambiental internacional, especialmente com sua adoção, em 1992, como princípio 15 da Declaração do Rio: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Apesar da redação cautelosa, o princípio foi incluído em muitos tratados internacionais ambientais, seja explícita ou implicitamente, como a Convenção sobre Diversidade Biológica, em 19922; a Convenção de Helsinque sobre Proteção da Área do Mar Báltico, em 19923; e a Convenção sobre a Proteção do Ambiente Marinho do Nordeste Atlântico.4 Durante muitos anos, o princípio da precaução pertenceu aos princípios do direito ambiental nacional; pois sua origem está no conceito alemão do Vorsorgeprinzip, como mencionado no artigo 5 da lei federal sobre o controle de * Professor Wolfrum leciona na Universidade de Heidelberg e pesquisador do Instituto Max Planck de Direito Público Comparado e Direito Internacional. Apresentação realizada no Conselho Europeu. Conferência sobre direito ambiental: “Novas tecnologias e direito do ambiente marinho”, Lisboa, 18 e 19 de setembro de 1998. 1 UN Doc. A/45/721, 19 de novembro de 1990, p. 20, parágrafo 60. 2 International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992: 42. 3 International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992: 28. 4 International Environmental Law. Multilateral Treaties, 992:71. emissões.5 Antes, havia apenas referências explícitas a certos instrumentos internacionais, já que o conteúdo do princípio estava consagrado em vários documentos de política internacional.6 Por exemplo, a Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano reconheceu a necessidade de salvaguardar os recursos naturais, por meio de um planejamento cauteloso e gerenciamento, para o benefício das futuras gerações.7 A Carta Mundial para a Natureza declarou que as atividades “que podem trazer um risco significativo à natureza” não deveriam continuar quando os “efeitos adversos potenciais não são totalmente compreendidos”.8 A primeira referência internacional explícita ao princípio da precaução está contida na Declaração Ministerial da Segunda Conferência Internacional sobre a Proteção do Mar do Norte, de novembro de 1984:9 (...) a fim de proteger o Mar do Norte de possíveis efeitos danosos da maioria das substâncias perigosas, uma abordagem de precaução é necessária, a qual pode exigir ação para controlar os insumos de tais substâncias mesmo antes que um nexo causal tenha sido estabelecido por evidência científica clara e absoluta.10 O princípio tem sido aplicado particularmente com respeito à poluição marítima11 e, recentemente, ele se expandiu à pesca. Levando em consideração que o princípio da 5 Gerd Winter (ed.), German Environmental Law, Basic Texts and Introduction, 1994, p. 143-153. 6 Warwick Gullett, “Environmental Protection and the ‘Precautionary Principle’, A Response to Scientific Uncertainty in Environmental Management, Environmental and Planning Law Journal, 1997, 52 (55). 7 Princípio 2. 8 Documento da ONU A/RES 37/7, 28 de Outubro de l982. 9 Declaração ministerial pedindo redução da poluição, 25 de novembro de 1987, International Legal Materials (ILM) 27, 1988, 835 (838). 10 A colocação foi reiterada na Declaração Final da Terceira Conferência Internacional sobre Proteção do Mar do Norte, 7-8 de março de 1990, Yearbook of International Environmental Law, 1990, n.1, p. 658 a 661. Lê-se: “Os participantes ...... continuarão a aplicar o princípio da precaução, isso é, agir para evitar impactos de danos potenciais de substâncias que são persistentes, tóxicas e passíveis de bioacumulação mesmo onde não haja prova científica para provar um vínculo causal entre emissões e efeito...”. Na realidade, a Declaração adotada na Primeira Conferência Internacional sobre Proteção do Mar do Norte, de 1984, referiu-se ao princípio da precaução uma vez que o texto alemão da Declaração falou de Vorsorgemassnahmen, uma noção que foi traduzida por “medidas preventivas oportunas”; veja David Freestone e Elen Hey, “Origins and Development of Precautionary Principle” in D. Freestone e E. Hey (eds.), The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996, p. 3 a 5. 11 A parte da Declarção de várias conferências internacionais sobre o Mar do Norte. Veja as Recomendações da Comissão de Partes 89/1 e 89/2, de 22 de junho de 1989, e a Decisão 89/1, de 14 de junho de 1989, da Comissão de Oslo. Referências adicionais ao princípio da precaução foram inseridas na Declaração 15/27, de 25 de maio de 1989, do Conselho Administrativo do PNUMA. precaução se desenvolveu a partir do direito ambiental nacional,12 parece ser apropriado identificar seu significado e suas implicações no direito nacional quando o conteúdo do princípio precaução é interpretado a partir do direito internacional ambiental. Alguns dos críticos13 deste princípio, em particular aqueles que defendem que a implementação do princípio da precaução será prejudicial aos futuros desenvolvimentos econômicos e tecnológicos, poderão descobrir, a partir da avaliação da experiência nacional com a aplicação do princípio da precaução, que nenhum dos efeitos negativos esperadosocorreram de fato. O princípio da precaução possui várias características substantivas e procedimentais. Estas devem ser consideradas como mecanismos para implementar as primeiras. O princípio da precaução não requer medidas reguladoras particulares; seu interesse está em quando as medidas conservadoras devem ser tomadas. No entanto, ao se fazer assim, muda-se significativamente a abordagem para as atividades com um impacto potencialmente negativo sobre o ambiente. Em vez de esperar até que haja prova de um impacto negativo sobre o meio ambiente, deve-se agir antes que tal impacto se materialize.14 Isso requer uma reconsideração de como as decisões políticas relativas ao meio ambiente são tomadas em caso de incerteza científica. 2. O Princípio da Precaução requer medidas preventivas em casos de incerteza científica. A segunda sentença do princípio 15 da Declaração do Rio tenta especificar um significado substantivo do princípio da precaução, embora combine aspectos substantivos e procedimentais, e evoque a abordagem precaucionária em vez do princípio da precaução. Do texto, é evidente que a implementação do princípio da precaução significa tomar medidas antes que os danos ambientais se materializem. Com respeito a isso, a introdução do princípio da precaução indica uma mudança substantiva da política no direito ambiental internacional, uma vez que este, até agora, concentrou-se na obrigação 12 Veja, com referência a J. Cameron e J. Abouchar, “The Status of the Precautionary Principle in International Law” in D. Freestone e E. Hey, (eds). The Precautionary Principle and International Law, The Challenge of Implementation, 1996, p. 29-38 e ss. 13 Veja, por exemplo, Frank B. Cross, “Paradoxal Perils of the Precautionary Principle”, Washington and Lee Law Review, 1996, n.53, p. 851 e ss. 14 Freestone e Hey , op. cit., p. 13. que os Estados têm de não causarem danos ambientais significativos, ou propiciar a restauração se tais danos ocorrerem. Observe-se então, que o texto do Princípio 15 contém duas premissas: o dano tem de ser irreversível e as medidas a serem tomadas devem ser economicamente viáveis. Além disso, a obrigação de os Estados aplicarem a abordagem precaucionária é apenas “de acordo com suas capacidades”. Isso quer dizer que as obrigações dispostas são de uma natureza relativa, uma vez que elas dependem das capacidades econômicas e financeiras do Estado em questão. Essas qualificações não são necessariamente partes da definição do Princípio da Precaução contido em outros instrumentos internacionais.15 Na medida em que a substância do princípio da precaução está em questão, o artigo 2, do parágrafo 2 (a) da Convenção para a Proteção do Ambiente Marítimo do Nordeste Atlântico é mais avançado. De acordo com ele: As partes contratantes aplicarão: (a) o princípio da precaução, em virtude de quais medidas preventivas devem ser tomadas quando há bases razoáveis para considerar que substâncias ou energias introduzidas, direta ou indiretamente, no ambiente marinho, possam trazer perigos à saúde humana, prejudicar os recursos vivos e ecossistemas marinhos, causar danos ou interferir em outros usos legítimos do mar, mesmo quando não haja prova conclusiva de relação causal entre os insumos e os efeitos Aqui, novamente, o texto normativo deixa muito claro que a implementação do princípio resultará em tomar medidas preventivas ou em levar a cabo atividades que possam ser consideradas perigosas. A redação desta medida indica que a tomada das medidas preventivas é obrigatória, enquanto o Princípio 15 fala somente que a abordagem precaucionária deve ser amplamente aplicada. Além disso, no artigo 2, parágrafo 2 da Convenção para Proteção do Ambiente Marinho do Nordeste Atlântico, as medidas preventivas devem ser tomadas se houver possibilidades de dano aos direitos ou interesses do homem, ou ao ambiente enquanto tal (ecossistema), resultado de um 15 Entretanto Alexandre Kiss, “Os direitos e os interesses das futuras gerações e o princípio da precaução”, neste livro, considera que a formulação do Princípio 15 reflete o princípio da precaução na sua abordagem mais amplamente aceita. impacto ao ambiente marinho, considerando que de acordo com o Princípio 15, o dano tem que ser irreversível. O Artigo 2, parágrafo 5 (a) da Convenção sobre a Proteção e Uso de Cursos d’Água Transfronteiriços e Lagos Internacionais, 1992, fornece uma outra definição do princípio de precaução. De acordo com ele, as partes deverão ser guiadas, entre outras coisas, pelo princípio da precaução: (...) em virtude do qual, a ação de evitar o potencial impacto transfronteiriço resultante da liberação de substâncias perigosas não deve ser postergada sob a alegação de que a pesquisa científica não provou totalmente um nexo causal entre essas substâncias, de um lado, e o potencial impacto transfronteiriço, de outro (...) Todas as três definições mencionadas exigem que certas atividades sejam controladas, ou não sejam realizadas, ainda que não exista evidência científica nítida de que tais atividades resultariam em danos ao meio ambiente. Em relação a isso, o princípio da precaução assemelha-se ao princípio da prevenção, o qual é bem estabelecido no direito internacional ambiental. No entanto, os dois princípios diferem significativamente, e isso constitui a natureza inovadora do princípio da precaução.16 O princípio da precaução impõe uma obrigação para os Estados, para que estes previnam danos ambientais conhecidos ou cientificamente previsíveis fora de seus territórios.17 Esta obrigação está contida em um grande número de tratados. Em comparação a isso, o princípio da precaução reflete o reconhecimento de que as atividades humanas tendo um impacto sobre o ambiente, muitas vezes têm conseqüências negativas que não podem ser completamente previsíveis ou verificáveis antes da ação. Em sua aplicação, o princípio da precaução requer que uma ação não deva ser executada se ela coloca um risco desconhecido de dano. Procedimentalmente, o princípio da precaução impõe, sobre aqueles que desejam empreender uma ação, o ônus da prova de que ela não prejudicará o ambiente. 16 Diferente de D.Freestone e Z. Makuch, “The New International Environmental Law of Fisheries: The 1995 United Nations Straddling Stocks Agreement”, Yearbook of International Environmental Law, 1996, v. 7 p. 3-13. 17 Por exemplo, artigo 194 da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (UNCLOS). Também a Resolução da Assembléia Geral 44/225, de 22 de dezembro de 1989, sobre pesca de arrasto em larga escala em mar aberto, e seu impacto sobre os recursos marinhos vivos, pode ser considerada uma aplicação do princípio da precaução.18 A Resolução solicita a todos aqueles envolvidos na pesca de arrasto em larga escala em mar aberto a cooperarem para o aumento da coleta e compartilhamento de dados científicos estatisticamente relevantes. Ela recomenda medidas para eliminar a prática de atos sem fundamentos científicos. A Resolução reflete o princípio da precaução, uma vez que ela restringe uma atividade ainda que sem dados científicos concretos sobre o impacto ambiental da atividade em questão. Além disso, ela inverte o ônus da prova, com respeito ao impacto desta atividade sobre outras que procuram dar continuidade à pesca. Finalmente, ela requer a intensificação das atividades de pesquisa a serem empreendidas e a respectiva cooperação entre os Estados interessados. Este último aspecto representa uma conseqüência lógica que flui do princípio da precaução.Da mesma forma, a Convenção sobre Conservação e Gestão dos Recursos de Bering, 1994,19 é baseada no princípio da precaução. Esta Convenção determina que os Estados-parte se encontrarão anualmente para decidir níveis de pesca permissíveis e estabelecer quotas. No entanto, a pesca não será permitida, a menos que a biomassa de pesca na bacia das ilhas Aleutas seja determinada para exceder 1,67 milhões de toneladas.* Os Estados Unidos e a Federação Russa parecem ter concordado que, se este limite não for alcançado, eles também suspenderão a pesca em suas próprias zonas econômicas exclusivas.20 A interpretação do princípio da precaução, como uma exigência de ação antes que a possibilidade de danos ambientais possa ser cientificamente estabelecida, levanta pelo menos duas questões, a saber, qual situação ou conjunto de fatos desencadeia o uso do princípio da precaução, e se a restrição de uma atividade, com base no princípio da precaução, garante que haverá posterior revisão de tal decisão. 18 A. Tahindro. “Conservation and Management of Transboundary Fish Stocks; Comments in the Light of the Adoption of the 1995 Agreement for the Conservation and Management of Straddling Fish Stocks and Highly Migratory Fish Stocks”, ODILA, 1997, n. 28, p. 14; D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 17. 19 Texto no Yearbook of International Environmental Law, 1994, 5, p. 821; para análise veja W.V. Dunlap, International Journal of Marine & Coastal Law, 1995, n. 10, p. 114; D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p.18. * O autor utiliza a expressão metric tons. [nota dos organizadores] 20 D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 18 com as respectivas referências. Qualquer atividade humana significante pode ter impacto sobre o meio ambiente. Contudo, deve haver algum mecanismo desencadeador para restringir ou até mesmo proibir uma dada atividade com base no princípio da precaução, caso contrário ele sufocaria qualquer nova atividade. Sugeriu-se que o princípio da precaução deveria ser aplicado apenas quando houver alguma prova de que a atividade considerada ameace causar danos ao meio ambiente e se tal dano for irreversível. Outros sustentaram que quanto mais sério for o dano, é provável que mais cedo o princípio da precaução tenha que ser invocado. O princípio 15 segue a primeira abordagem, e a Declaração sobre o Mar do Norte segue a última, enquanto o artigo 2 da Convenção do Nordeste Atlântico aplica mais amplamente o princípio da precaução. No entanto, para as três interpretações mencionadas deve haver pelo menos uma descoberta prima facie que uma dada atividade possa resultar em dano considerável ao ambiente marinho. Apesar disso, ainda permanece alguma incerteza de quando o princípio da precaução deve ser aplicado, de forma que aquele que visa empreender uma determinada atividade tem que provar seu impacto, ao contrário da visão na qual aquele que almeja restringir ou proibir aquela atividade tem que provar que ela resultará em dano ambiental. Se uma atividade foi proibida ou restrita com base no princípio da precaução, a incerteza sob a qual esta decisão foi tomada deve ser reanalisada em intervalos regulares. As novas descobertas, assim como os novos desenvolvimentos, devem ser levados em consideração. O Acordo das Nações Unidas sobre a Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais* e de Populações de Peixes Altamente Migratórios (artigo 6)21 fornece um procedimento que responde às duas perguntas levantadas. O Artigo 6 desta Convenção exige que os Estados-parte apliquem a abordagem precaucionária para conservação, gestão e exploração das populações de peixe tranzonais e de peixes altamente migratórios, com o objetivo de preservar o ambiente marinho e proteger os recursos marinhos vivos. Assim como em outros instrumentos internacionais já mencionados, o Artigo 6 da Convenção enfatiza que a ausência de informação científica * Trata-se de cardumes de peixes que se deslocam entre as zonas de exploração exclusiva dos Estados e as águas internacionais [nota dos organizadores]. 21 Uma avaliação das respectivas regras foi dada por Tahindro (nota 19), 1 (p. 12 e ss.); D. Freestone e Z. Makuch, op. cit., p. 26 et ss. adequada não deverá ser usada como razão para adiar ou deixar de tomar medidas de conservação e gerenciamento. Contudo, a Convenção não se satisfaz apenas com o estabelecimento deste princípio abstrato. O Artigo 6 da convenção exige que os Estados- parte tomem medidas específicas para implementar a abordagem precaucionária. Os Estados estão obrigados a melhorar o processo decisório sobre a pesca, especialmente compartilhando as melhores informações científicas disponíveis e implementando técnicas para lidar com os riscos e incertezas. Além disso, os Estados-partes usarão os guias de boa conduta para aplicação dos pontos de referência*, estabelecidos dentro de uma visão precaucionária para os padrões de conservação e gestão destes cardumes de peixes tranzonais e altamente migratórios, assim como a determinação de pontos de referência de determinados cardumes. Essas diretrizes estão especificadas no Anexo II do Acordo e incluem uma descrição detalhada das ações preventivas e das modalidades de aplicação de vários pontos de referência dentro do contexto das estratégias precaucionárias de gestão de pesca. O Artigo 6, parágrafo 3 (d) da Convenção, em conjunto com os guias de boas condutas, exige o estabelecimento de pontos de referência sobre a conservação ou limitação e gestão ou escolha dos cardumes. Tais pontos de referência precaucionários são específicos para cada população de peixes. Exige-se que os Estados-parte tomem medidas para evitar ultrapassar os pontos de referência para determinados cardumes que são objeto da Convenção e monitorem regularmente as populações em estágio crítico, objeto ou não do Tratado, associadas ou dependentes das espécies de que a Convenção cuida, a fim de rever o status desses cardumes ou espécies, assim como a eficiência das medidas de conservação e gestão adotadas. Enquanto os pontos de referência sobre limites podem ser abordados, eles não devem ser excedidos. Se forem excedidos, os Estados devem tomar ação imediata, de acordo com as diretrizes. Os Estados-parte também são instruídos a adotar medidas de conservação e de gestão baseadas na abordagem precaucionária para atividades de pesca novas ou exploratórias até que haja dados científicos suficientes para avaliar o impacto da pesca na sustentabilidade a longo prazo dos estoques. Finalmente, onde um fenômeno natural ou atividade de pesca tem um impacto adverso significativo sobre o status do cardume * Um ponto de referência de precaução é um valor estimado, calculado por meio de um procedimento científico acordado, correspondente ao estado do recurso e da pesca e que pode ser usado como guia para o ordenamento da pesca. [nota dos organizadores]. relacionado, solicita-se aos Estados-parte a adoção de medidas de conservação e gestão temporárias, em base emergencial, com o objetivo de assegurar que as atividades pesqueiras não intensifiquem tal efeito adverso. Tais medidas devem baseadas na melhor evidência disponível. 3. O Princípio da Precaução e a Obrigação de Usar a Melhor Tecnologia Disponível Como pode ser notado a partir da aplicação do princípio da precaução no direito nacional, exige-se o uso da melhor tecnologia disponível e das melhores práticas disponíveis. Assim, o princípio da precaução constitui um incentivo para o desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, sob o Princípio da Precaução há a obrigaçãode melhorar a tecnologia da pesca, para reduzir desperdícios ou reduzir as substâncias prejudiciais ao meio ambiente marinho durante a rota usual de um navio. Embora os acordos internacionais exijam que os Estados usem a melhor tecnologia disponível, a conexão com o princípio da precaução não está sempre evidente. Este conceito tem sido utilizado nos tratados sobre a poluição marítima e no regime de poluição aérea transfronteiriça.22 Exemplos pertinentes de aplicação do princípio da precaução, para o primeiro caso, que destaca a obrigação de usar a melhor tecnologia disponível, são a Convenção sobre a Proteção do Meio Ambiente Marinho da Área do Mar Báltico, de 1992,23 e a Convenção para a Proteção do Ambiente Marinho do Nordeste Atlântico, do mesmo ano.24 De acordo com o Apêndice 1 deste último, o conceito é definido como: “o último estágio do desenvolvimento (estado da arte) de processos, de recursos ou de métodos de operação que indicam adequação de uma medida particular para limitar depósitos, emissões e lixo. Ao determinar se um conjunto de processos, recursos e métodos de operação constituem a melhor tecnologia disponível em casos gerais ou individuais, será dada consideração especial para: 22 Artigo 6 da Convenção sobre Poluição Atmosférica de Longo Alcance, 1979; Artigo 2 parágrafo 2, parágrafo 3 do Protocolo de Nox, 1988: artigo 2, parágrafo 3 do Protocolo de VOC, 1991 e, ainda que de certa forma em redação diferente, no artigo 2, parágrafo 4 do Protocolo do Ácido Sulfúrico, 1994. Estes não contêm a definição da noção de melhor tecnologia disponível, mas se referem aos anexos dispondo diretrizes para concretização da noção. 23 Nota 3. 24 Nota 4. a) processos comparáveis, recursos ou métodos de operação que foram recentemente bem sucedidos; b) avanços tecnológicos e mudanças no conhecimento e entendimento científico; c) a viabilidade econômica de tais técnicas; d) limites de tempo para instalação tanto de fábricas novas como daquelas existentes; e) a natureza e volume das descargas e emissões em questão” (tradução não oficial). A noção da melhor tecnologia disponível possui diferentes facetas. Ela limita a margem de liberdade dos Estados-parte, com respeito à implementação das suas obrigações, sem aboli-las. Particularmente, a referência da viabilidade econômica contida na Convenção do Nordeste Atlântico, de 1992, e a Convenção sobre Proteção do Ambiente Marinho do Mar Báltico, de 1992, permite que os Estados-parte equilibrem suas obrigações ambientais com as prerrogativas econômicas. Se a comunidade de Estados desejar melhorar a tecnologia utilizada, existe a possibilidade de transferir tecnologias apropriadas de conservação ou prevenção a Estados que não teriam acesso a elas por questões econômicas. A noção da melhor tecnologia disponível requer também que se tomem ações para a proteção ambiental, com o uso dinâmico da tecnologia protetora moderna. No entanto, o padrão de proteção é indicado pelo desenvolvimento técnico, ao invés das necessidades ambientais, que podem ser melhor atingidos pela da proibição de certas atividades cujos efeitos negativos, do ponto de vista do meio ambiente, não podem ser tecnicamente mitigados.25 Da mesma forma, compreendido no âmbito da obrigação do uso da melhor prática ou tecnologia disponível, é a obrigação dos Estados de substituirem atividades ou substâncias prejudiciais por atividades ou substâncias menos poluentes.26 De acordo com 25 Um Crítico a esse respeito é Jonas Ebbesson, “Compatibility of International and National, Environmental Law, 1996”, p. 126. 26 Agenda 21, seção 19.44. a Agenda 21, este conceito constitui um dos vários elementos de boa prática ambiental, um conceito mencionado em vários tratados internacionais.27 Ocasionalmente, a tarefa de definir qual é a melhor prática ou tecnologia a ser utilizada não é deixada para cada Estado individualmente, mas para os Estados-parte de um determinado acordo ambiental internacional, instituições particulares estabelecidas sobre um determinado acordo internacional ambiental ou um grupo de especialistas. Nesses casos, o conceito de melhor tecnologia e práticas disponíveis tem a intenção de fornecer adaptações flexíveis de obrigações internacionais ambientais aos novos desenvolvimentos, tecnologias ou padrões. Isso serve para tornar os respectivos regimes mais efetivos. A Convenção para a Proteção do Nordeste Atlântico é um exemplo desta abordagem, na medida em que se prevêem emendas para os anexos técnicos. 4. O Princípio da Precaução e o Princípio do Desenvolvimento Sustentável Há uma ligação nítida entre o princípio da precaução e o princípio de que qualquer desenvolvimento que tem um impacto sobre o meio ambiente deve ser sustentável.28 A noção de desenvolvimento sustentável exige a perseguição de padrões de crescimento que assegurem as necessidades da geração atual e não comprometam a habilidade das gerações futuras em assegurar suas necessidades.29 O princípio da precaução reflete a tendência crescente no direito internacional ambiental, particularmente no tocante ao direito ambiental marítimo, de que o meio ambiente é melhor protegido por meio da prevenção do que pela obrigatoriedade de recuperação ou por meio medidas paliativas. Prevenir o dano ambiental ou a degradação, em si mesmo, é um elemento decisivo em qualquer regime construído sobre o princípio do desenvolvimento sustentável, uma vez que a sustentabilidade pressupõe o afastamento de danos irreversíveis ou degradação. Contudo, o princípio da precaução também desempenha um papel na definição de quando um desenvolvimento é sustentável. Esta visão pode ser encontrada no Projeto das Diretrizes para a Sustentabilidade Ecológica de Usos para Consumo e Não Consumo de 27 Convenção sobre o Nordeste Atlântico de 1992, Apêndice 1; Convenção sobre a Proteção do Ambiente Marinho da Área do Mar Báltico, de 1992, Anexo II, regulação 2. 28 Veja em particular Kiss, (neste livro), p. 27 e ss., e também sobre o princípio de desenvolvimento sustentável. 29 D. Dzidzornou, “Four Principles in Marine Environment Protection: A Comparative Analysis”, ODILA 29 (1991), p. 91-95; M. Young, “Inter-generational equity, the precautionary principle and ecologically sustainable development”, Nature and Resources, 1995, n. 31, p. 16 e ss. Espécies Selvagens, um projeto proposto durante a Assembléia Geral de 1994 da União Internacional para Conservação da Natureza em Buenos Aires. De acordo com essas diretrizes preliminares, é provável que o uso de espécies selvagens seja sustentável se certas pré-condições forem respeitadas ou certos procedimentos forem adotados, como o princípio da precaução. Ao aplicar o princípio da precaução sobre o conceito de uso sustentável, estas Diretrizes preliminares determinam que “o princípio da precaução requer a abordagem de questões de sustentabilidade do uso com o compromisso de agir de forma que prejudique o menos possível a viabilidade das espécies ou a integridade do ecossistema afetado.” Isso pode resultar em decisões de não usar as espécies ou o ecossistema. A este propósito, o princípio da precaução é especialmente importante quando se estimam os níveis de uso sustentáveis. A utilização dos pontos de referência para a gestão sustentável como estabelecidos na Convenção sobre Conservação e Ordenamento de Populações de Peixes Tranzonais e de Populações de Peixes Altamente Migratórios representa uma forma de implementação desta abordagem. 5. Conclusão O princípio da precaução, ou abordagem da
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