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ALENCASTRO, Luiz Felipe de. As populações africanas no Brasil

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As Populações Africanas no Brasil1 
Luiz Felipe de Alencastro
O contato português com a África Negra antecedeu de meio século a 
descoberta do Brasil. Na Crônica de Guiné (1455), Gomes Eanes de Zurara 
descreve as primeiras atividades portuguesas na foz do rio Senegal. Um 
século mais tarde, ao lado de Sevilha, Lisboa era a cidade européia que 
possuía, a mais forte concentração de escravos negros nos anos 1550-1560. 
Dentre os cerca de 100.000 habitantes que contava Lisboa, havia perto de 
10.000 escravos negros ou mulatos. De maneira mais acentuada, as ilhas de 
Cabo Verde, São Tomé e de Madeira vêem se desenvolver, ao longo dos 
séculos XVI e XVII, uma cultura luso-africana que impregnava todos os 
aspectos da vida social. Desse modo, os colonos que chegavam no Brasil 
vindos da Madeira e de São Tomé, e muitos dos que vinham do próprio reino, 
já compartilhavam modos vida luso-africanos. 
No século XVI, os escravos especializados e os senhores que migravam 
de São Tomé ajudaram a implantar a cultura açucareira em Pernambuco e na 
Bahia. Conectado aos portos da Senegâmbia e do golfo da Guiné, o tráfico 
negreiro para o Brasil passa a se concentrar em Angola nas primeiras 
décadas do século XVII. Por volta de 1600, o total dos desembarques no 
Brasil completava 50.000 africanos. A partir desta época, os enclaves 
coloniais na América do Sul passaram a guardar uma feição marcadamente 
luso-africana. 
Ambrósio Fernandes Brandão, mercador em Goa e em Lisboa antes de 
se estabelecer como senhor de engenho da Paraíba, era um dos raros 
colonos do Brasil dotado de uma visão de conjunto do império português do 
Oriente e do Atlântico. No seu livro Diálogos das Grandezas do Brasil , de 
1618, escrito sob a forma clássica de diálogos, ele situa as particularidades 
da sociedade que se firmava na colônia sul-americana. Após uma digressão 
sobre a origem dos povos que habitam a África, um dos dialogadores faz a 
seguinte consideração : 
“Não cuido (penso) que nos desviamos de nossa prática, que é tratar 
sòmente das grandezas do Brasil, com nos meter em dar definição à matéria 
que tendes proposta (a origem dos povos negros). Porquanto neste Brasil se 
há criado um novo Guiné com a grande multidão de escravos vindos dela que 
1 . Texto redigido para o capítulo relativo às “Populações Africanas no Brasil que integrou o “Plano Nacional de Cultura”, 
apresentado ao Congresso em 15/12/2006 pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil
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nêle se acham. Em tanto que, em algumas capitanias, há mais dêles que dos 
naturais da terra, e todos os homens que nele vivem tem metida quase tôda 
sua fazenda em semelhante mercadoria. Pelo que, havendo no Brasil tanta 
gente desta côr preta e cabelo retorcido, não nos desviamos de nossa prática 
em tratar dela ». 
O Brasil é um novo Guiné. Esta afirmação explicita o processo de 
repovoamento colonial. Um novo contingente estrangeiro, os africanos, 
substitui progressivamente os índios nos enclaves coloniais para construir a 
nova sociedade que se formava no ultramar. De fato, embora submetidos à 
migração forçada e à escravidão, os africanos são co-participantes, ao lado 
dos portugueses, da colonização do Brasil. Desde 1700, quando 610.000 
escravos já haviam desembarcado na América portuguesa, os africanos e os 
negros em geral, fixados nas zonas de maior atividade ecônomica, 
sobrepujam em número os colonos europeus e seus descedentes, como 
também os índios aldeados (concentrados nos aldeamentos controlados 
pelas autoridades e os missionários).
Nas décadas seguintes, a emergência de um vasto polígono mineiro 
cobrindo o Mato Grosso, Goiás, Pernambuco (em território hoje pertencente 
à Bahia), e centrado em Minas Gerais, muda a geografia e a sociedade 
colonial. Todo este movimento de populações, de construção de caminhos e 
de novos pólos urbanos e sociais no interior do território, está vinculado às 
atividades de 1.700.000 africanos desembarcados na colônia ao longo do 
século XVIII. Atente-se para o fato de que o crescimento do polígono mineiro 
no interior e a manutenção das atividades agrícolas no litoral, só puderam ser 
levados a cabo simultâneamente por causa da intensificação do tráfico 
negreiro. Neste período, todas as regiões da América portuguesa, do Pará ao 
Rio Grande do Sul, estão conectadas ao comércio de escravos que envolve 
de novo a Guiné Bissau e se expande no gôlfo de Guiné e em Angola. 
Com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro e a aceleração do 
processo político que levaria o país à Independência, o tráfico negreiro 
assume outro patamar. Às zonas africanas citadas acima, junta-se também 
Moçambique, de onde saem 250.000 escravos que desembarcam sobretudo 
no Rio de Janeiro. Perto de 1.700.000 africanos são trazidos para o Brasil na 
primeira metade do século XIX. 
No total, mais de 4 milhões africanos foram deportados para o Brasil 
entre 1550 e 1850, tornando o Brasil o agregado político americano que 
recebeu a maior parte dos africanos desembarcados no Novo Mundo. Para se 
ter uma idéia, no período citado acima, o Brasil capta 43%, enquanto os 
Estados Unidos, de 1650 a 1808, recebem 5,5% dos africanos trazidos para 
as Américas. 
Outra característica da formação do Brasil terá sido o envolvimento 
direto de colonos do Brasil, numa primeira fase, e de brasileiros, depois de 
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1822, no comércio atlântico de africanos, e na pilhagem dos territórios 
africanos, principalmente no gôlfo do Benim e em Angola. 
Governadores de Angola, oriundos do Rio de Janeiro, de Pernambuco e 
da Paraíba, levaram para a África Central, na segunda metade do século XVII, 
associados, soldados e comerciantes que expandiram a ocupação 
portuguesa e o tráfico de angolanos para o Brasil.
De 1831 a 1850, 700.000 africanos entram no Brasil de maneira ilegal, 
num circuito de tráfico clandestino prescrito como pirataria pela legislação 
brasileira e pelo direito internacional. Ademais, a lei brasileira de 1831, 
proibindo a importação de africanos, declarava livres os indivíduos 
introduzidos ilegalmente. Em consequência, o artigo 179 do Código Penal 
considerava os proprietários destes escravos como sequestradores de 
pessoas livres ilegalmente mantidas em cativeiro. Posteriormente, em 1850 e 
1854, o governo anistiou os proprietários culpados deste crime. Mas ocultou-
se deliberadamente o fato que os 700.000 africanos chegados entre 1831 
e1850, e seus descendentes, continuaram sendo mantidos ilegalmente na 
escravidão. Tirante a ação de alguns advogados e magistrados 
abolicionistas, o assunto permanecerá encoberto na segunda metade do 
século XIX e será praticamente esquecido pelas gerações vindouras.
Resta que este « Grande Complô dos Sequestradores » guarda um 
significado dramático : a quase totalidade dos indivíduos escravizados a 
partir dos anos 1840-1850 foi ilegalmente mantida na escravidão até 1888. 
Moralmente ilegítima, a escravidão do Segundo Reinado se mantinha sob a 
cobertura do crime. 
As circunstâncias históricas que marcaram a deportação dos africanos 
e sua escravização, pesam no processo de integração dos afro-brasileiros à 
identidade nacional brasileira. Na verdade, os negros brasileiros estarão 
sempre reduzidos a se referir à identidade -, portentosa no seu conteúdo, 
mas angustiante na sua generalidade -, de sua origem africana. 
Carioca da gema e escritor maior da pátria, o afro-brasileiro Lima 
Barreto (1881-1922), na sua generosidade, deixou registrada no seu “Diário 
Íntimo”, uma nobreinterpretação sobre o desterro dos negros no Brasil. 
Escrevendo na época da imigração maciça de europeus para o Brasil, Lima 
Barreto concluía que os negros e os mulatos -, sendo os únicos brasileiros 
que não podiam se prevalecer da influência de suas pátrias de origem, pois 
não tinham para onde voltar porque não sabiam de onde vinham -, eram os 
únicos a unir totalmente o destino de sua comunidade ao destino do Brasil. 
A propósito da literatura de Lima Barreto, deve-se sublinhar a 
contribuição africana e afro-brasileira à formação de nossa língua nacional. 
Até 1850, na maior parte das regiões brasileiras, e nas cidades do Rio de 
Janeiro, Salvador, Niterói, Campos e muitas outras, a população africana ou 
afro-brasileira sobrepujava a população de origem européia ou indígena.
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Desse modo, a língua portuguesa do Brasil contém a presença 
marcante de várias línguas africanas, geralmente desprezadas ou ignoradas 
pelos dicionaristas. Diferentes dicionários, glossários, manuais e catecismos 
utilizados pela administração colonial e pelos missionários na África lusófona 
– elaborados e editados entre o século XVI e o século XX - contaram com a 
contribuição de africanos e afro-brasileiros, de moradores e missionários do 
Brasil, onde certas línguas africanas e, em particular, o quimbundo, língua da 
família banto muito falada em Angola, eram conhecidas e praticadas. Tal 
tradição lingüística torna-se essencial para o entendimento da evolução da 
língua portuguesa do Brasil e para o estudo da História da África, atualmente 
em desenvolvimento nas universidades brasileiras.
Sem abordar os numerosos estudos que descrevem e quantificam as 
desigualdades que vitimam a população afro-brasileira, convém lembrar os 
efeitos perversos e duradouros da proibição de voto dos analfabetos. 
Instaurada pela chamada Lei Saraiva em 1881 e mantida até 1985, a exclusão 
dos analfabetos adultos do processo eleitoral atingiu, certamente, a 
generalidade da população brasileira. No entanto, os estudos demonstram 
que a população negra, na qual a taxa de analfabetismo era maior, foi 
proporcionalmente mais vitimada do que a população branca pelo embargo 
de cidadania resultante desta legislação. 
Enfim e sobretudo, perfila-se uma evolução demográfica decisiva nos 
próximos anos. Como é sabido, observa-se um declínio geral das taxas de 
fecundida das mulheres brasileiras. Mas esta queda é mais lenta no 
contingente das mulheres negras (ai incluídas as “prêtas” e as “pardas”, na 
nomenclatura do IBGE). Isto significa que num momento mais ou menos 
próximo, o conjunto da população afro-brasileira, que já se avizinha da 
proporção representada pela população branca, passará a ser majoritário.
Em conclusão, voltaremos, nos próximos anos, a ser o que já fomos até 
1870, uma nação majoritariamente negra. A maior do mundo fora da África. 
Luiz Felipe de Alencastro 
Centre d’Etudes du Brésil et de l’Atlantique Sud
Université de Paris IV Sorbonne

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