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�PAGE � �PAGE �6� Módulo Específico Apostila 7 – Métodos e Técnicas de Trabalho com Famílias � SUMÁRIO 3NEOLIBERalismo E polÍticas pÚblicas e sociais � 17POLÍTICAS DE EMANCIPAÇÃO NO ESTADO CAPITALISTA � 28GESTÃO DEMOCRÁTICA EM EDUCAÇÃO E SAÚDE � 41TERCEIRO SETOR NO BRASIL: QUESTÕES JURÍDICAS, ADMINISTRATIVAS E SOCIAIS � 50transformações na família: sua relação com o trabalho, a cultura e a sociedade � 58Trabalhando com Famílias em Saúde da Família � 67REFERÊNCIAS � � NEOLIBERalismo E polÍticas pÚblicas e sociais Para compreender as políticas públicas sociais praticadas por um governo (usualmente ligadas aos direitos de cidadania – previdência, saneamento, educação, saúde, habitação, etc.), os fatores são complexos, variados e exigem análise aprofundada. Devem-se analisar, para além de índices dos programas, as chamadas “questões de fundo”, as concepções de Estado e política social que sustentam suas ações. Elas informam escolhas e decisões, modelos de avaliação aplicados e métodos de implementação traçados nas estratégias de intervenção governamental. Visões diferentes de sociedade, Estado, saúde, educação, etc., geram projetos diferentes de intervenção. Além disso, as intervenções e políticas públicas são influenciadas pelo contexto geopolítico e econômico no qual se encontram, que co-geram uma conjuntura que se refere a um contorno de Estado. É preciso então distinguir Estado e governo, tomando o Estado como o conjunto de instituições permanentes, como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não necessariamente formam um bloco monolítico, mas possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que os atores do poder (políticos, técnicos, dispositivos da sociedade civil, etc.) propõem para a sociedade, constituindo uma orientação política que assume e desempenha funções do Estado por certo período. Políticas públicas podem ser entendidas como o "Estado em ação" (GOBERT, MULLER, 1987), na implantação de um projeto de governo, através de programas e ações. O Estado não deve ser reduzido à burocracia, a órgãos que conceberiam e implementariam políticas. Estas devem ser de responsabilidade do Estado, mas implantadas, implementadas e mantidas num processo de decisões que envolve, junto ao governo, diferentes organismos e agentes sociais a elas relacionados. Políticas públicas não devem ser reduzidas a políticas estatais, mas implicar no entrelaçamento entre Estado e sociedade. No delineamento das políticas públicas, é importante ressaltar o processo de diferenciação da área social. Muitas vezes, o “social” é entendido apenas como a parcela excluída da população, traçando-se uma diferença entre “social” e “sociedade”, na qual a sociedade representaria a parcela economicamente produtiva. Esta distinção é falaciosa e implica várias conseqüências. Inicialmente, ao considerar as políticas públicas como voltadas a um “social” excluído, perde-se seu caráter democratizante, reproduzindo a desigualdade: políticas de saúde, educação, previdência devem alcançar a todos e implicar a participação de todos, de modo que a própria gestão estatal possa adquirir um caráter democrático efetivo. Além disso, confundem-se estratégias de regulação da própria estrutura sócio-econômica, que atingem a vida pública e coletiva, com ações caritativas e assistencialistas. Políticas públicas não são “boas ações” do Estado, mas são garantias mínimas, financiadas com o dinheiro de impostos pagos por toda a população, contra a precarização das condições de vida da sociedade num contexto capitalista de exploração do trabalho e produção de desigualdades. Neste sentido, é preocupante o discurso emergente a partir dos anos 90 em relação ao trabalho voluntário e ao estímulo da substituição das ações de Estado pelas ações de Organizações Não-Governamentais, por conferir às ações sociais um cunho caritativo que obscurece sua real função e constituição histórica. As políticas sociais têm raízes nos movimentos populares do século XIX, vinculadas aos conflitos entre capital e trabalho surgidos nas primeiras revoluções industriais. As políticas sociais implicam ações voltadas para a redistribuição dos benefícios sociais, que determinam o nível de proteção social implementado pelo Estado, visando diminuir as desigualdades estruturais produzidas pelo incremento econômico do capital e se relacionam às próprias condições de manutenção do sistema capitalista. Um exemplo desta relação é a emergência do Estado de Bem-Estar social na Europa, fomentado economicamente no período pós-guerra como garantia de manutenção do capitalismo face à ampliação socialista no leste. Desse modo, pode-se, por exemplo, entender a educação como política pública social, cujas ações são informadas por uma acepção particular de Estado. Essas formas de interferência do Estado visam a manter as relações sociais de certa formação social. No caso brasileiro, muitas políticas de implementação de escolas técnicas, por exemplo, vinculam-se à concepção de uma formação pouco crítica e meramente instrumental voltada ao mercado de trabalho e dirigida à população de menor poder aquisitivo. Assim, a divisão de uma “formação para os ricos” e uma “formação para os pobres” consistiu numa política de reprodução de desigualdades sociais pela diferenciação de escolarização (PATTO, 2005). Offe (1984) ressalta que seria equivocado pensar nos objetivos da política educacional voltados apenas para a qualificação da força de trabalho conforme interesses de determinadas indústrias ou formas de emprego, afirmando que: (...) parece mais fecundo interpretar a política educacional estatal sob o ponto de vista estratégico de estabelecer um máximo de opções de troca para o capital e para a força de trabalho, de modo a maximizar a probabilidade de que membros de ambas as classes possam ingressar nas relações de produção capitalistas. (OFFE, 1984, p. 128). Assim, é possível analisar alguns aspectos de planejamento e concepção das políticas sociais e da política educacional no Estado Capitalista, focalizando, respectivamente, certas análises marxistas do sistema capitalista e a concepção e discurso neoliberal a respeito da sociedade, com a ressalva de não se pretender esgotar as interpretações e leituras, mas oferecer um arcabouço conceitual que permita compreender as políticas públicas no Estado brasileiro contemporâneo. Na análise marxista do sistema capitalista, considera-se que as ações estatais acabam garantindo, em última instância, a produção e reprodução das condições de acumulação do capital e de desenvolvimento do capitalismo. Assim, a autonomia estatal é constitutivamente comprometida, e a ação social do Estado capitalista ocorre como resposta a reivindicações e demandas dos trabalhadores e setores não beneficiados pelo desenvolvimento econômico. Nesse contexto, o Estado atua de uma maneira que concentra e manifesta as relações sociais de classe em que conflitos ocorrem, já que em seu interior estão presentes interesses referentes à acumulação do capital e às reivindicações dos trabalhadores. No pensamento contemporâneo, essa análise do Estado e das relações sociais contribui para compreender a dimensão política do Estado na fase atual do capitalismo, considerando suas funções no capitalismo neoliberal financeiro. Analisando as origens das políticas sociais traçadas pelo Estado Capitalista contemporâneo para a sociedade de classes, pode-se depreender que o Estado atua como regulador das relações sociais a serviço da manutenção das relações capitalistas em seu conjunto (OFFE, 1984) e não especificamente a serviço dos interesses do capital, a despeito de reconhecer a dominação deste nas relações de classe. No processo de acumulação capitalista e em suas crises, as formas de utilização da força de trabalho são deterioradas, transformadas ou destruídas, e escapa aos indivíduos decidir quanto à sua utilização. O sistema de acumulação capitalista engendraem seu desenvolvimento problemas estruturais referentes à constituição e reprodução contínua da força de trabalho e à sua socialização através do trabalho assalariado. Em períodos de profunda assimetria nas relações entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores, o Estado atua visando garantir a manutenção do conjunto de relações capitalistas. Assim, conforme Offe, "(...) a política social é a forma pela qual o Estado tenta resolver o problema da transformação duradoura de trabalho não assalariado em trabalho assalariado" (OFFE, 1984, p. 15). O Estado não só qualificaria continuamente mão-de-obra para o mercado, como ainda, através das políticas sociais, procuraria controlar parcelas da população excluídas do processo produtivo, assegurando condições materiais de reprodução da força de trabalho, inclusive visando uma adequação quantitativa entre a força de trabalho ativa e a força de trabalho passiva, e de reprodução da aceitação da condição de exploração. Estas podem ser consideradas funções últimas da política social, em que as diversas instituições sócio-políticas e estatais intervêm no jogo de forças entre segmentos sociais divergentes, gerando intervenções do Estado que atingem o todo da sociedade, equacionadas por referenciais que refletem o pensamento capitalista. Ressaltando a dinâmica própria do Estado nas sociedades capitalistas modernas, Offe (1984) relaciona as origens da política social à estratégia estatal de mediação entre interesses conflitivos: (...) para a explicação da trajetória evolutiva da política social, precisam ser levadas em conta como fatores causais concomitantes tanto exigências quanto necessidades, tanto problemas da integração social quanto problemas da integração sistêmica (...), tanto a elaboração política de conflitos de classe quanto a elaboração de crises do processo de acumulação. (OFFE, op. cit., p. 36) Assim, os modos de organização econômicos, políticos e sociais se realizam numa dinâmica que é instituída por relações de dominação e exploração em sua estrutura, e na qual, pressões e ações por mudanças sociais acabam por agir de modo compensatório. As ações perpetradas pelo Estado não se implementam automaticamente, mas num movimento que comporta conflitos e contradições, podendo gerar efeitos distintos dos esperados. Sobretudo por se referirem a grupos diferentes, as políticas sociais de Estado sofrem a influência de interesses diversos, expressos nas relações sociais de poder. Essa dinâmica de relações da sociedade capitalista é legitimada pelo discurso liberal sobre a sociedade e o Estado, de origem Iluminista, estabelecido no século XVIII, com A riqueza das nações, de Adam Smith (1776). O liberalismo se configura num contexto de luta política e econômica da burguesia nascente contra o Absolutismo e a nobreza do Antigo Regime. Buscando justificar o poder político e econômico da burguesia enquanto classe social, o liberalismo concebe como função do Estado apenas garantir direitos individuais, devendo não interferir nas relações econômicas. Entre estes direitos, destaca-se a "propriedade privada como direito natural" (LOCKE, 1632-1704), bem como o direito à vida e à liberdade de organização do mercado. Ao conceber a dinâmica sócio-econômia capitalista como ordem natural, o liberalismo iluminista “eximiu o burguês de justificar o fardo da desigualdade e da exploração” (BACHUR, 2006, p.170). Estas idéias baseavam-se numa teoria do progresso da história, na qual o próprio desenvolvimento do homem trataria de permitir, pelo uso da razão, a justiça social, presente no lema “liberdade, igualdade, fraternidade”, da Revolução Francesa (1789). O Estado, ao contrário do Antigo Regime, não deveria gerenciar nem conceder a propriedade privada, mas arbitrar conflitos surgidos numa sociedade pautada pela competição entre indivíduos, em que proprietários e trabalhadores disputam interesses, realizam contratos, etc. Adam Smith expressa essas idéias em A riqueza das nações: (...) deixe-se a cada qual, enquanto não violar as leis da justiça, perfeita liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e faça com que tanto seu trabalho como seu capital, concorram com os de qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua consideração por seus próprios interesses. Nós nos dirigimos não a sua humanidade, mas a seu auto-interesse (self-love), e nunca falamo-lhes de nossas próprias necessidades, mas de suas vantagens (SMITH, 1994, p. 20). Tendo por principais expoentes Hayek (1944:1977) e Friedman (1977), o neoliberalismo retoma e reorienta as idéias liberais numa perspectiva que rejeita o racionalismo estatal, pressupondo que as relações sociais são efeito apenas de ações individuais, nunca coletivas, e amplia a idéia de que conhecimento e justiça se fazem pela competitividade de mercado para além da economia, abarcando a competição e não-estruturação nas esferas política e social. O neoliberalismo abandona, assim, a concepção de progresso da história e enfatiza o discurso econômico de mercado como ordem espontânea e natural sobre todas as esferas da sociedade e o sobre próprio saber humano. Esse paradigma, absorvendo mudanças da história do capitalismo, ganhou força, sobretudo, a partir dos anos 80 e 90, após a dissolução dos governos socialistas na Alemanha e na União Soviética. Criticando o Estado de Bem-Estar Social de Keynes (1883-1946), oriundo de uma visão liberal originada no racionalismo francês, o neoliberalismo defende enfaticamente liberdades individuais, acredita nas virtudes reguladoras do mercado e critica a intervenção estatal, numa concepção individualista, utilitarista e competitiva da sociedade. A promoção e a proteção do indivíduo, dos interesses e das relações que individualmente se estabelecem e se equilibram naturalmente na sociedade são destacados por Friedman: (...) os valores de uma sociedade, sua cultura, suas convenções sociais, todos eles desenvolvem-se de idêntica maneira, através do intercâmbio voluntário, da cooperação espontânea, da evolução de uma estrutura complexa através de tentativas e erros... O neoliberalismo defende a iniciativa individual como base da atividade econômica, justificando o mercado como regulador da riqueza e da renda, com foco no capitalismo competitivo, organizado através de empresas privadas. Atribui ao Estado o papel de promotor de condições positivas à competitividade individual e aos contratos privados, e percebe qualquer outra ação estatal como coercitiva: (...) só há dois meios de coordenar as atividades de milhões. Um é a direção central, utilizando a coerção, a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno. O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos à técnica de mercado. (HAYEK, 1976, p. 53). Percebendo a economia de mercado como ordem reguladora da sociedade, Hayek (1976) a dissocia de um julgamento de justiça que caberia a condutas humanas, pois a considera como natural, um pressuposto da sociedade humana cujos resultados não podem assim ser julgados ou modificados: Tem-se que admitir claramente que a maneira pela qual os benefícios e encargos são distribuídos pelo mecanismo de mercado deveria ser considerada como muito injusta em várias instâncias se fosse o resultado de uma alocação deliberada a pessoas particulares. Mas não é esse o caso (HAYEK, 1976, p. 64). Os neoliberais consideram as políticas públicas sociais, ações do Estado para regular desequilíbrios gerados na acumulação capitalista, um dos maiores entraves ao desenvolvimento do capitalismo e co-responsáveis pela crise social. Assim, as políticas públicas são rejeitadas ou diminuídas como ameaças aos interesses e liberdades individuais, que inibem a concorrência privada, a livre iniciativa e o crescimento econômico, considerado como mecanismo do próprio mercado para restabelecer o equilíbrio social. Assim, o neoliberalismo cria uma preponderânciado discurso econômico sobre a sociedade e a política, tomando o crescimento do livre mercado como grande equalizador das oportunidades e condições de vida na sociedade, e desconsiderando sua organização estrutural como pautada por relações de exploração e dominação. Nesses postulados, os neoliberais criticam a responsabilidade do Estado quanto à oferta de direitos sociais, como saúde e educação pública universal a todo cidadão. Em relação à educação, por exemplo, consideram que um sistema estatal de oferta de escolarização compromete, em última instância, as possibilidades de escolha por parte dos pais em relação à educação desejada para seus filhos. Estendendo a lógica do mercado para esta política social, Friedman (1980) assinala que: (...) em escolarização, pais e filhos são os consumidores, e o mestre e o administrador da escola, os produtores. A centralização na escolaridade trouxe unidades maiores, redução da capacidade dos consumidores de escolher e aumento do poder dos produtores. (p.81). Os neoliberais propõem que o Estado divida ou transfira suas atribuições com o setor privado, para permitir às famílias o direito de livre escolha quanto ao tipo de educação desejada e estimular a competição entre os serviços oferecidos no mercado. A proposta de participação da verba pública para educação, primária e secundária, seria através de "cupons", oferecidos a quem os solicitasse, para "comprar" no mercado os serviços educacionais que mais se identificassem com suas expectativas e necessidades, arcando as famílias com o custo da diferença de preço, caso este seja superior ao cupom recebido. É nesse prisma que se constituem alguns programas recentes de ação pública, sobretudo em países subdesenvolvidos, que não possuem uma tradição de garantia de bem-estar social estabelecida, como os programas de financiamento público da educação em instituições privadas (no caso brasileiro, por exemplo, o Pro-uni), bem com os convênios com hospitais privados para atendimento público e a transmissão de ações sociais para Organizações Não-Governamentais, numa clara transferência de recursos do Estado ao setor privado. A estratégia de descentralização, que numa acepção democrática visa ampliar a participação das comunidades nas instituições públicas que passam a possuir maior autonomia, nesse contexto, tem relevância como possibilidade de ação a partir do núcleo de instituições privadas. A transposição, pelo Estado, da responsabilidade de executar políticas sociais às esferas menos amplas, além de contribuir para esses objetivos, é vista de modo empresarial como meio de aumentar a eficiência administrativa e reduzir custos. Embora tais procedimentos sejam justificados pelo livre mercado e pelo controle maior dos “consumidores” de serviços sociais, acabam fragilizando as políticas sociais, que passam a possuir menos recursos financeiros e menor relevância frente à hegemonia do discurso econômico. Ao tomar em termos de produtividade de mercado ações e dimensões da vida social que possuem vital relevância política e democrática, esses artifícios descaracterizam e desqualificam as ações sociais enquanto meio de constituição de um espaço público, coletivo e participativo. Como aponta Plastino (2005), Considerado isoladamente, o crescimento da produtividade é, sem dúvida, um fenômeno positivo. Entretanto, sob uma ótica humanista — isto é, que priorize o interesse humano — esse crescimento constitui apenas um instrumento que, no contexto predatório da sociedade de mercado, está se revelando um desastre para os interesses globais da Humanidade. (p.127) O processo de definição de políticas públicas para uma sociedade reflete os conflitos de interesses, arranjos feitos nas esferas de poder que perpassam as instituições do Estado e da sociedade como um todo. Um elemento importante neste processo na análise de políticas públicas refere-se a fatores sócio-históricos que vão tecendo discursos, representações e processos de legitimação, rejeição, transformação e incorporação sobre as ações, conquistas, lutas e participações sociais. Assiduamente, percebe-se nessa teia conjuntural as incongruências e conflitos de interesses sociais que permitem, impedem e direcionam as ações em políticas públicas. As formas de organização, o poder de pressão política, social e econômica e a articulação de diferentes grupos sociais no estabelecimento e reivindicação de demandas são fatores fundamentais na conquista ou retraimento de direitos sociais, incorporados ao exercício da cidadania. Num Estado de cunho neoliberal, ações e estratégias sociais de governo são minimizadas e várias vezes articuladas a iniciativas e interesses privados, enfraquecendo ou desvirtuando seu caráter público. Elas não permitem e, muitas vezes, não visam alterar as relações sociais estabelecidas. No Brasil, esse cenário teve ainda outra decorrência: ...o enfraquecimento das fronteiras entre o público e o privado, ou melhor, a mais completa subordinação do primeiro ao segundo, como resultado do núcleo da opção programática das políticas públicas, com a exaltação do privado e o aviltamento do que é público, convenientemente confundido com o que é estatal, ampliou o espaço para a corrupção. (GUIMARÃES, 2001, p.138). Além disso, o viés econômico na análise neoliberal das relações sociais tem ocultado dados ligados à real condição de vida da população. Por exemplo, mede-se a pobreza por diversos critérios que mostram seu agravamento, mas ela é desvinculada do exame de outros aspectos, utilizando-se como critério o dado macroeconômico do PIB per capita. Esse índice, porém, descreve apenas a esfera econômica e enxerga o conjunto pela média, cego à sua distribuição real, não considerando que, em países como o Brasil, tal média é permeada pelo contexto histórico de desigualdade econômico-social. O discurso neoliberal, que se dispõe como discurso único e verídico sobre as relações sociais e políticas, não pode ocultar as decorrências sociais e culturais que seu modelo e sua racionalidade geram, presentes na expansão do desemprego, na piora da condição de trabalho, na fragilização de vínculos trabalhistas, no aumento da violência, da miséria e da marginalização. Seus efeitos se notam ainda na constituição das subjetividades e das relações humanas, com influências na família, no trabalho, na escola e todos os espaços de socialização, trazendo para eles a lógica das relações humanas como mercadorias e do “lucro” social, subjetivo, educacional, político. Uma gestão pública informada por uma acepção crítica de Estado, que considere seu papel atender toda a sociedade, sem privilegiar interesses de grupos detentores do poder econômico, deve ter como prioritários programas de ação universalizantes, que compreendam as ações públicas sob uma lógica democrática e não sob uma lógica de mercado, e possibilitem o acesso e a participação eqüitativa nas conquistas sociais por todos os cidadãos, visando reverter o desequilíbrio social. Mais do que oferecer "serviços" sociais, as ações públicas articuladas com as demandas da sociedade, devem se voltar para a construção de direitos sociais. Neoliberalismo e políticas públicas no contexto brasileiro A concentração de renda na América Latina, que permeia a história dos países do continente e a torna a região mais desigual do planeta, cresceu ainda mais nos últimos 30 anos. A desigualdade na região, segundo relatório do Banco Mundial (1993), supera África, Ásia e Europa Central e acompanha o aumento da pobreza. Ambas se vinculam à sua estrutura econômico-social, que gera enormes diferenças na distribuição de renda e nas oportunidades de inclusão econômica e social. No contexto desses trinta anos, as concepções sobre a pobreza e sobre seu combate guardaram diferentes vínculos com o discurso ideológico liberal, por vezes estimulando políticas reformistas e compensatórias em detrimento de mudanças na estrutura social e favorecendo a reificação das relações de classe da sociedade capitalista. A idéia de pobreza como insuficiênciade emprego, em voga ao fim dos anos 60 e início dos 70, indicava o modelo de desenvolvimento econômico atado ao aumento da dívida externa e à ênfase no setor privado e nas multinacionais, privilegiado pelos países latino-americanos a partir dos anos 50. Tal modelo, pautado por uma relação colonialista com países desenvolvidos, não incorporou as massas urbanas, que permaneceram excluídas de direitos de cidadania, condições de trabalho e renda. Pautado no discurso liberal de justiça social pelo crescimento econômico, tal modelo gerou o aumento do subemprego, do setor informal e da marginalidade urbana, num processo de industrialização e crescimento econômico de caráter nitidamente excludente. A noção de pobreza como insuficiência de renda tomou corpo na primeira metade dos anos 70, supondo que os setores chamados modernos das estruturas produtivas crescem e se alimentam pela presença dos setores atrasados. Nessa vertente, pobreza e processo de exclusão social se verificariam no interior mesmo do núcleo moderno dessas sociedades, como resultado do próprio processo de modernização, sendo necessária a realização de políticas compensatórias que, no entanto, não modificariam a estrutura econômica. A idéia de pobreza como carências múltiplas, que define grupos mais sujeitos ao processo de exclusão social, se fortalece nos anos 80. Nesse quadro, crescem estudos sobre população idosa e juventude, por exemplo, e propostas de políticas emergenciais: para debelar a fome, conseguir o primeiro emprego ou uma renda familiar mínima. Fragmentando as dificuldades sociais, tal noção ofusca a dinâmica social produtora das desigualdades e verte o atendimento público a grupos miseráveis. Com o avanço dos efeitos da política neoliberal, inclusive em regiões de industrialização avançada, como América do Norte e Europa, o debate sobre a pobreza ressurge como contraponto às teses e políticas liberais. Vários analistas ressaltam o caráter massivo de fenômenos como o aumento da pobreza, do desemprego, da desigualdade e exclusão social e da violência, ligando-os às mudanças operadas na ordem político-econômica, por força de interconexões globais, metamorfoses no mercado de trabalho e da redução da proteção social. Na América Latina, a globalização e liberação dos mercados, priorizando a abertura comercial e financeira e a estratégia de integração à ALCA, a estabilidade econômica, a reforma do Estado pelas privatizações, aliadas à ausência de uma política industrial ativa, tiveram conseqüências destrutivas sobre o emprego e os direitos sociais. Durante as duas últimas décadas, os processos de globalização da economia e reestruturação produtiva tiveram alto impacto sobre os centros urbanos, gerando o aumento do déficit habitacional, a deterioração das condições ambientais, o encarecimento do solo urbano, o aumento do desemprego, do custo de vida e do subemprego, a intensificação de desigualdades sociais, da pobreza e da violência. No mesmo período, a maioria dos governos latino-americanos adotou reformas estruturais de caráter setorial, enquanto tomava medidas de ajuste fiscal na política macroeconômica. Tais reformas afetaram o mercado de trabalho, agravando o desemprego a partir da década de 90, diminuindo o padrão salarial e de renda e aumentando a participação dos trabalhadores no setor informal. Em políticas públicas na saúde, tem-se um exemplo desse processo: a dinâmica demográfica e a mudança na faixa etária da população, ligada à miséria e às más condições de vida nos bolsões populacionais, geraram a justaposição de perfis epidemiológicos em que coexistem problemas de higiene e saúde, fazendo ressurgir doenças que se pensava controladas. De outro lado, políticas cada vez mais voltadas a dispositivos privados fragilizaram a atenção pública em saúde, mormente em ocasiões de cunho epidemiológico, dificultando a redução de situações de vulnerabilidade e o atendimento aos mais excluídos. Ao considerar o avanço neoliberal nos países subdesenvolvidos, destaca-se a fragilidade dos organismos de justiça social e de representação política. Na Europa, onde a exploração de colônias nos séculos precedentes e a ascensão do Estado de Bem-Estar Social no pós-guerra, como contraposição ao avanço do socialismo, admitiram erigir uma forte estrutura econômico-social de proteção dos cidadãos, a fragilização das conquistas sociais e os efeitos colaterais da política econômica, como a violência e o desemprego, se dão de modo mais gradativo e menos impactante. Em revés, no cenário latino-americano, sobretudo brasileiro, séculos de dominação colonial, desigualdade social e governos autoritários levaram ao frágil estabelecimento de direitos sociais e da participação democrática, somente conquistados com alguma segurança nas lutas sociais após o período ditatorial, nos anos 80. Desse modo, a estrutura autoritária de governo e a pouca força política da participação social abriram terreno ao progressivo avanço neoliberal e às rápidas seqüelas sociais de suas ações. No caso brasileiro, a agenda neoliberal começou a se efetivar na década de 90, já que a ofensiva popular que acompanhou a redemocratização do país nos anos 80 adiou o domínio neoliberal. No entanto, a própria ideologia elitista dos governos autoritários anteriores favoreceu o posterior programa neoliberal no Brasil, que ultrapassou a reforma da gestão de Estado e incidiu na continuidade do autoritarismo político pelas alianças de elite formadas após a ditadura militar, sobre o vazio político da recém-constitucionalização, num contexto em que ainda não haviam sido implantadas as diretrizes da Constituição de 1988. Por exemplo, o governo Cardoso (1994-2002) deflagrou um uso exponencial de medidas provisórias, gerando reformas constitucionais seguidas, que significaram a revisão de vários de seus contratos básicos numa direção liberal, “com intensidade inédita na história republicana do século XX” (CODATO, 2005). Assim, a manutenção das relações autoritárias constituídas historicamente nas instituições brasileiras, inclusive com o dispositivo de subordinação do Congresso Nacional ao Executivo, favoreceu a implantação da política neoliberal a despeito da opinião popular. Uma dimensão importante da herança institucional da ditadura militar para os governos da década de noventa foi a permanência de núcleos de poder específicos no Estado (...), dotados de grande independência e nenhum controle político (i. e., parlamentar) ou social (i. e., público). Nos governos Cardoso (1995-1998; 1999-2002), para ficarmos no melhor exemplo (...) Na área econômica continuou vigorando, assim como no arranjo ditatorial, o esquema do "superministério", agora representado pela tríade Banco Central, Conselho de Política Monetária e Ministério da Fazenda (...) Por fim, na área "empresarial", i. e., naqueles aparelhos de Estado em que, por sua natureza ou competência, se administram os "interesses do mercado" (política de privatizações, política de transportes, de comércio exterior, de comunicações, de educação etc.), a regra foi o contato direto de representantes influentes do mundo dos grandes negócios com decisores estratégicos, mecanismo muito pouco transparente e que, a propósito do "regime autoritário", Cardoso (1975) conceituou como ‘anéis burocráticos’. (CODATO, 2005, p. 89). Nesse contexto, o Brasil tem assistido o sistemático avanço dos direitos do grande capital financeiro em detrimento da soberania nacional, com repactuação da dívida externa de modo desfavorável, abertura comercial, internacionalização e privatização de setores produtivos e financeiros-chave, muitas vezes precedida de sucateamento, desregulamentação do controle de fluxos de capitais e atrelamento dos gastos públicos a metas negociadas com o FMI, perdendo para os mercados financeiros, após a redemocratização, grande parte das deliberações sobre seu destino econômico (CODATO, 2005). O projeto neoliberal gerou, ainda, o retrocesso de direitos sociais indicados pela Constituição de 1988, incorporando um amploataque à lógica de direitos dos trabalhadores, rompendo o processo de inclusão no mercado formal de trabalho ocorrido desde a Era Vargas. De direção universalizante, as políticas sociais passaram a visar o padrão focal: a redução ao mínimo do papel do Estado em ações sociais, dirigindo o restante ao mercado e a políticas assistenciais voltadas localmente a grupos de extrema penúria (Vianna, 1998), com base nas idéias de carências múltiplas e população de risco. No projeto de redução do Estado, conforme Guimarães (2001), os impostos indiretos e a carga fiscal aumentaram muito para assalariados, mas os ganhos do capital foram protegidos de tributação e novos subsídios favoreceram grandes capitalistas, inclusive multinacionais e proprietários recentes de empresas estatais. Houve um deslocamento patrimonial do Estado estimado em 30% do PIB para grupos privados. Setores estratégicos da economia brasileira, vitais em qualquer plano de soberania econômica, foram vendidos de modo pouco claro. Esse projeto, cuja conjuntura atual é marcada pela crise, é palco de uma disputa política na qual a agenda neoliberal ainda possui hegemonia, mas encontra sólida oposição. Outrossim, o modelo de crescimento econômico como base da justiça social mostra sua falência, pois esse crescimento diminuiu, impedido pela própria dívida pública, pelo déficit externo e a desestruturação do setor produtivo estatal: 1,8% nos anos 90, cerca de um terço do obtido entre 1945 e 1980. No contexto desse desinvestimento, ocorrem crises em setores estratégicos, como no setor energético no governo Cardoso ou no aéreo no governo Lula. O plano neoliberal ampliou ainda a desigualdade, co-gerando a explosão da violência urbana. O caráter social da crise, em parte decorrente do fracasso econômico estratégico, é impulsionado pela grave deterioração do mercado de trabalho no país. O desemprego aberto saltou de 4,5 milhões para mais de 7,64 milhões em 1999, segundo o IBGE. A informalidade, segundo a mesma fonte, elevou-se de 51% em 1989 para 59% em 1999. O gasto nas áreas sociais recuou de 18,5% do PIB em 1995 para 14,5% em 2000. (GUIMARÃES, 2001 p.). � POLÍTICAS DE EMANCIPAÇÃO NO ESTADO CAPITALISTA Transferência de Renda No mundo, há vários mecanismos de garantia de renda mínima destinados a públicos diferentes e com objetivos e critérios diversos. O debate sobre renda mínima começou com o liberalismo no séc. XVIII, mas os programas iniciais de garantia de renda mínima (PGRM) surgiram em países desenvolvidos no século XX, atrelados à constituição do Estado de Bem-Estar-Social. Esses programas faziam parte de um projeto que se ampliou com a reconstrução da Europa no pós-guerra, financiado pelos Estados Unidos, contra a ascensão socialista, e pela garantia da força política do capitalismo. Sua meta era criar uma rede de proteção social para as populações mais pobres, pela transferência de renda. Um dos primeiros programas de transferência de renda foi instituído pelo governo britânico em 1908 e muitos países europeus entre os anos 1930 e 1940 passaram a adotar políticas de perfil redistributivo. A partir de 1975, quando o desemprego passou a afetar a Europa, os governos introduziram políticas compensatórias, como o salário-desemprego, e em 1986 fundou-se a Rede Européia da Renda Básica. No Brasil, a ascensão de movimentos sociais contribuiu para a aprovação do projeto de lei do senador Eduardo Suplicy (PT/SP) em 1991, instituindo o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM), no qual toda pessoa de 25 anos ou mais que não recebesse o equivalente ao salário mínimo teria direito de 30% a 50% da diferença entre esta quantia e sua renda. A elevada concentração de renda é marcante na sociedade brasileira, cujos índices de desigualdade estão entre os mais altos do mundo. Neste cenário, implantar a garantia de uma renda mínima – a transferência monetária para pessoas que não alçam um nível mínimo de renda – é uma das políticas compensatórias e meio de combate à miséria. Tais programas se ampliaram por municípios e estados: é criado em 1995 o PGRM de Campinas, (gestão Magalhães Teixeira) e o Bolsa-Escola, do Distrito Federal (gestão Cristovam Buarque). Os resultados positivos no Distrito Federal tornaram o programa Bolsa-Escola referência para vários países (VAN PARIJS, 2000). No nível federal, o Bolsa-Escola passou a vincular renda mínima e política educacional: a complementação busca elevar a renda de famílias pobres e ainda incentivar a escolarização de seus filhos, atendendo hoje 5% da população, em 5.531 municípios brasileiros dos 5.561 existentes. No programa federal, cada criança entre 6 e 15 anos, freqüentando regularmente escolas da rede pública, tem direito a R$ 15,00 mensais, até o máximo por família de R$ 45,00. O dinheiro é mensalmente sacado por cartão magnético pela mãe ou responsável legal, nas agências da Caixa Econômica. A escolha de favorecidos obedece a critérios legais e o pagamento é suspenso em caso de freqüência escolar mensal inferior a 85%, cujo controle é feito pelas prefeituras participantes do programa, trimestralmente. Em comparação às políticas sociais tradicionais no Brasil, os programas de transferência de renda avançam politicamente ao dispor metas sócio-educativas e explicitar a preocupação de articular políticas diversas. Assim, Van Parijs (2000) elogia o programa brasileiro como promotor da autonomia dos cidadãos. Há, porém barreiras para articular os diversos programas de política social, pois mesmo com a grande quantia de recursos envolvidos e pessoas atendidas nos programas nacionais, eles não conseguem formar em seu conjunto uma política nacional unificada. Assim, muitas vezes, programas de transferência monetária acabam atuando de modo isolado e regional, sem maior articulação a programas de educação, saúde, trabalho e outros. Seria preciso sua articulação às iniciativas em torno do desemprego do país, numa política nacional de cidadania instituída de modo descentralizado e coordenado. É preciso ainda lembrar que estas políticas não questionam modelo econômico de pobreza estrutural e podem não implicar participação popular, mostrando-se vulneráveis ao contexto político. Políticas de Microcrédito como estímulo ao desenvolvimento social No Brasil, 50% da população economicamente ativa trabalha em microempresas (até cinco empregados), mas apenas 4,8% delas obtém empréstimo, pois não há condições e aval para crédito bancário. Assim, há grande demanda por microcrédito, num mercado potencial de seis milhões de pessoas. Para atendê-la, foi criado o Banco do Povo, política pública baseada num programa de microcrédito que institui um vínculo entre credor e investidor que inclui consultoria técnica e acompanhamento. Também chamado crédito produtivo, tal crédito opera por agências financiadoras (bancos federais, governos estaduais e municipais, em parceria com empresários ou ONGs), e visa combater o desemprego e a pobreza, e auxiliar a sobrevivência econômica dos pequenos empresários frente ao grande capital. O Brasil foi um dos primeiros países a implantar um programa de microcrédito para o setor informal urbano, o União Nordestina de Assistência a Pequenas Organizações (UNO). Criado em 1973, em Salvador e Recife, era gerido por duas ONGs parceiras, uma de empresas e bancos e uma internacional, que após 18 meses suspendeu suas atividades. Em 1987, surge em Porto Alegre o Centro de Apoio aos Pequenos Empreendimentos Ana Terra (Ceape), ONG apoiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pela Inter-American Foundation (IAF). Hoje, a Rede Ceap é composta por 12 centros em vários estados. Em 1989, cria-se na Bahia o Banco da Mulher, que hoje possui filiais, com apoio do UNICEF e do BID e filiado ao Women's World Banking. Essas ações estavam relacionadas à luta pelos direitos sociais do fim da década de 70 e início da de 80, e ao movimento constituinte, de redemocratização e da reorganização do sistema público. Até 1994, havia poucas opções de microcrédito,em apenas 20 agências de financiamento popular. Em 1995, o Conselho Comunidade Solidária começou a discutir formas legais e apoios de organizações civis para expandir o microcrédito e em 1996, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) passou a apoiar iniciativas populares, criando o Programa de Crédito Produtivo Popular. Nos últimos sete anos, com o início das medidas para ampliar o microcrédito no Brasil, pequenos empreendedores do trabalho informal ou de microempresas passaram a obter investimentos de até 10 mil reais com juros baixos (que variam de 1% até 4% ao mês). Várias pesquisas indicam baixo índice de inadimplência em políticas de microcrédito (3% a 5% após 30 dias), relacionado-o à metodologia de capital social, em que a própria comunidade gerencia os financiamentos. Porém, seu crescimento no Brasil ainda é baixo e nem sempre garante acesso a crédito à população de baixa renda. Para Neri & Giovanni (2005, p.644), “o mercado de crédito brasileiro visa mais ao consumidor do que ao produtor. É mais de curto do que de longo prazo e atinge mais a alta do que a baixa renda”. Conforme a legislação, a estrutura do setor de microfinanças é formada por instituições chamadas de "primeira linha" (da sociedade civil, setor público e iniciativa privada) e "segunda linha" (BNDES, pelo Programa de Crédito Produtivo Popular - PCPP e SEBRAE, pelo Programa de Microcrédito). As instituições de "segunda linha" oferecem capacitação, apoio técnico e recursos financeiros para as instituições de "primeira linha", que atuam diretamente com o cliente. Em 2001 decretou-se a Medida Provisória 2.172-32, legalizando contratos de microcrédito com Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP’s. Antes disso, as iniciativas de ONGs, não sendo entidades financeiras e sem vinculação ao Banco Central, estavam sujeitas à Lei da Usura, que limita a cobrança de juros a 12% ao ano. Em 2001, também foi publicada a Lei 10.194, que permitiu a criação de Sociedades de Crédito ao Microempreendedor (SCM), liberando juridicamente a iniciativa privada a atuar como instituição de "primeira linha" em organizações de microcrédito. Há políticas de microcrédito a trabalhadores de baixa renda na maioria dos estados e em muitas prefeituras no Brasil, com poucas diferenças entre elas, a maioria de intervenção do governo e viabilizando pequenos empréstimos. Em Recife, o Banco do Povo dirigido pela prefeitura tem um programa de crédito voltado a microempresas e trabalhadores informais (sem registro no C.N.P.J.), que inclui análise de viabilidade do negócio, cursos e acompanhamento. Durante a análise, é definida a quantia a emprestar, com limite menor a trabalhadores informais e maior para formais, a ser retirada no Banco do Brasil ou Caixa Econômica Federal. O Banco do Povo de Juiz de Fora - MG, criado em 1997 numa parceria entre prefeitura e empresários que criaram uma OSCIP, tem linhas de microcrédito para capital de giro, de menor valor, e investimentos em equipamentos, de maior valor, com juros de 3,9% ao mês. Em casos de parceria público-privada, é preciso observar a idoneidade das iniciativas, que podem servir à atuação financeira lucrativa de entidades privadas com recursos públicos. Entre as dificuldades encontradas para o acesso a crédito aos pobres em programas de microcrédito está a dificuldade de provar garantias de pagamento, a lentidão da justiça, que dificulta a cobrança em caso de inadimplência, o excesso de burocracia e impostos, que dificulta o desenvolvimento de micronegócios e exige informação e acessoria ao empreendedor. Assim, a ampliação do microcrédito exige a reavaliação de medidas estruturais. Neri & Giovanni (2005) apontam que, embora em sua pesquisa, apenas 7% dos micronegócios tivessem obtido crédito, houve aumento de chances para aqueles ligados a entidades de classe (cooperativas, sindicatos, etc) e empresas com constituição jurídica, e ressaltam que o microcrédito se institui mais solidamente atrelado a um programa de crédito solidário, engajado na associação e na participação coletiva. A organização cooperativa como resposta ao desemprego Segundo Singer (2000), a organização econômica mais simples possível e por isso uma das mais antigas é a “produção simples de mercadorias”, na qual cada agente é possuidor individual de seus meios de produção e, portanto, dos produtos de sua atividade, que negocia diretamente nos mercados. O capitalismo surge deste tipo de produção e organização dos mercados, mas o nega quando separa posse e uso dos meios de produção. Essa divisão surge mais ou menos “naturalmente” do funcionamento dos mercados, pela apropriação, pelos que venceram no jogo econômico, dos meios de produção daqueles que o perderam. Os mercados, ao contrário do que consideram alguns teóricos, não tendem ao equilíbrio: a história demonstra que os mercados transitam de um desequilíbrio a outro, por fatores relativamente aleatórios: invenções, forças naturais (geadas, chuvas), mudanças econômicas, etc. Os perdedores da competição econômica, expropriados de meios de produção, se reintegram ao mercado na venda de sua força de trabalho a outros donos de meios de produção: o capitalismo é o modo de produção em que os meios de produção e distribuição, exceto a força de trabalho, se tornam mercadorias privadas. Assim, um traço central do capitalismo é a concentração da posse de meios de distribuição e produção de mercadorias, pelos que venceram o jogo de mercado, que se tornam capital centrado na posse de poucos, enquanto a maioria tem apenas sua força individual de trabalho, o que gera uma população denominada proletária, que vende seu trabalho no mercado. Assim, há divisão da posse dos meios de produção (do capitalista) e seu uso, atribuído aos trabalhadores. A concentração dos meios de produção permite investir na invenção de meios automáticos de produção, viabilizando o emprego de forças de trabalho que substituam a humana, como tração animal ou energia elétrica. Isso levou à expansão do capitalismo em detrimento da produção simples de mercadorias: pela concentração de capital houve as revoluções tecnológicas, das quais a Revolução Industrial é um ícone. Outro atributo central do Capitalismo é a perpetuação do “exército industrial de reserva”: uma massa trabalhadora que não consegue vender sua força de trabalho na empresa capitalista. Parte dessa população permanece à margem do mercado de trabalho, sustentada pelo seguro-desemprego, e parte tenta vender sua força de trabalho em outro mercado: marginalizada da organização maior dos mercados, se organiza em mercados paralelos, como o mercado informal, pela “produção simples de mercadorias”. Pelo fato de os trabalhadores terem se organizado relativamente cedo em sindicatos e por certas garantias trabalhistas terem se consolidado, seu salário é termômetro da economia capitalista, pois os sindicatos influem para monopolizar a oferta de trabalho e garantir um piso salarial. Igualmente, o desemprego tem função central no capitalismo: quando a economia tende ao pleno emprego, os preços sobem, ameaçando o valor “real” da riqueza, e a economia é freada antes que a espiral preços- salários leve a uma inflação exponencial. Esse desemprego estrutural leva trabalhadores desempregados ou ameaçados de desemprego a buscar alternativas de sobrevivência. Parte deles recorre ao seguro-desemprego e parte precisa vender a força de trabalho nalgum mercado, inchando a produção simples e empobrecendo seus integrantes, que atuam em mercados vulneráveis. As cooperativas surgem tanto como modo de produção e distribuição de mercadorias distinto do capitalismo quanto como um arranjo entre trabalhadores capazes de organizar produtos e serviços de forma a ter condições de competir com a empresa capitalista. A cooperativa não é uma construção teórica de um autor, embora haja estudos que buscam refletir sobre sua organização. Ela é um modo de organização surgido em vários períodos da história, criado e recriado pelos que estão marginaisao mercado de trabalho ou sofrem este risco, sempre que trabalhadores buscam alternativas à economia marginal que os habilitem para competir no mercado capitalista. Ela é uma organização surgida da prática, que casa a unidade posse-uso dos meios de produção, próprios da produção simples de mercadorias, com o princípio de socialização destes, isto é, de sistemas só utilizados por grande número de pessoas, próprios do capitalismo. Embora este sistema pareça um híbrido entre estes dois modos de operação da economia, ele é uma síntese que os supera. Há afinidade entre trabalhadores e a economia solidária porque, embora nem todos os trabalhadores se oponham ao capitalismo, a maioria deles o faz, e a economia solidária é também uma base ideológica dessa oposição. A economia solidária consiste, assim, numa criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo, que não o precede, mas o acompanha como uma sombra, condenando a ditadura do capital na empresa e o direito de propriedade do dono dos meios de produção, que gera desigualdade social e, sobretudo, uma associação de trabalhadores para produzir, distribuir, comercializar e comprar bens e serviços, em iniciativas não capitalistas. Há teorias que afirmam que as cooperativas não teriam condições de se estabilizar e desenvolver no seio do capitalismo, falindo ou tornando-se empresas capitalistas pelo fato de haver uma “cultura capitalista”: os trabalhadores não conseguiriam se organizar de forma solidária, pois adotam a lógica capitalista no arranjo cooperativo, e ficam na contradição de serem simultaneamente operário e capitalista. Outras teorias afirmam que as empresas capitalistas têm uma lógica de mercado em que é impossível à cooperativa instalar-se. Mas nenhuma delas se mostra verossímil ao se observar que algumas cooperativas se estabilizam e continuam operando como tal durante muito tempo. De fato, as cooperativas têm de enfrentar desafios para se estabilizar nos mercados, sendo preciso mudanças organizacionais em comparação ao sistema de produção capitalista. O desafio inicial se dá, então, na gestão da empresa solidária, pois se acredita que a administração é um saber científico, decorrendo daí que, se a maioria de trabalhadores ingressantes na cooperativa tem baixa escolaridade, não haveria subsídios para sua boa administração. Essa questão na verdade se desdobra em duas: primeiramente, em oposição à gestão capitalista, na qual o capitalista em geral contrata um técnico ou corpo técnico que administra a empresa, a gestão da empresa cooperativa é a um só tempo direito e tarefa de todos os cooperados, sendo esta lógica de gestão democrática uma das noções que a define. Há aí o embate ideológico de que, sendo a administração um saber técnico, haveria pessoas melhor ou pior instruídas para realizá-la e seria inviável a gestão coletiva não efetuada por um corpo técnico. Porém, deve-se ponderar que a administração, embora seja estudada ou aprimorada pela ciência, é uma arte que une experiência e conhecimento de uma pessoa ou grupo de pessoas na tomada de decisões, o que se nota ao verificar que as decisões na cooperativa, conquanto usualmente mais demoradas que na empresa capitalista, são também mais acertadas, pois incluem um conjunto mais abrangente de informações, advindas do conhecimento e da experiência de todos os cooperados. Assim, o problema que se coloca para a cooperativa não é a falta de capacidade para a gestão, mas o discurso dominante de que a administração só é viável por um discurso competente (CHAUÍ, 1984) de natureza técnico-científica. Isso não quer dizer que a cooperativa prescinda de informação técnico-científica. Ao contrário, ela é necessária e a cooperativa poderá incluir membros com saberes específicos da área em que atua ou contratar serviços de um grupo exterior. Nesse sentido, a cooperativa torna-se mais viável quando o “know-how” de que ela precisa pode viabilizar-se aos cooperados. Este é o segundo entrave, de cunho político: a falta de ação político-governamental para dar subsídios à formação e capacitação de cooperativas. No Brasil, esse problema é tratado, sobretudo, pelas universidades, através dos programas de incubadoras de cooperativas, mas não é considerado pelo governo como um todo, onde não há assessoria tecnológica para este fim. O problema da falta de políticas públicas que viabilizem cooperativas está presente ainda em outras áreas necessárias à sua estabilização, como o acesso a crédito, que é em geral menor para cooperativas em comparação às empresas capitalistas, a redes de comercialização, etc, havendo assim uma falta de garantia das bases de sustentação da economia solidária. Um exemplo é a legislação tributária brasileira: sendo os cooperados sócios da cooperativa, pagam impostos como tal, e sendo assalariados, também pagam os impostos referentes. Assim, devido à falta de legislação específica para empresas cooperativas, elas acabam por ser tributadas duas vezes. Isso ocorre também, além desses fatores, porque a maioria das unidades cooperativas atua isoladamente em mercados dominados por empresas capitalistas, sem haver uma rede de cooperativas que atue para minimizar esses problemas. No Brasil, as cooperativas surgem nos anos 1980, junto ao fortalecimento dos sindicatos e à redemocratização do país, e se ampliam na segunda metade da década de 90. Elas resultam de movimentos sociais que reagem à crise de desemprego iniciada em 1981 e agravada pela abertura do mercado para a importação nos anos 90, e se viabilizam pelo apoio de incubadoras tecnológicas de cooperativas nas universidades públicas. Mas seu desenvolvimento enfrenta, além dos problemas supracitados, a falta de fiscalização, que deixa uma brecha para que empresas capitalistas registrem-se como cooperativas, anulando direitos trabalhistas de seus funcionários e diminuindo de forma ilícita o preço de seus produtos para competir com as próprias cooperativas. Essa operação intensificou-se nas décadas de 1990 e 2000, tanto pelo aumento do nível de desemprego que levou à degradação das condições de trabalho quanto pela privatização da oferta de serviços sociais através de ONGs e parcerias público-privadas. Nestes casos, os contratos, desvinculando do Estado a responsabilidade social e a contratação de funcionários para oferecer serviços e implantar projetos sociais integrados a um plano de desenvolvimento social, abrem novas brechas para a fragilização dos vínculos trabalhistas pelo uso ilícito e falso da organização cooperativa. Programas de qualificação profissional no Estado neoliberal A década de 1990 assistiu à redução drástica no nível geral de emprego. Segundo Pochman (2002), só no município de São Paulo, de 1991 a 2000, os postos de trabalho reduziram em 11%, passando de 3,55 milhões em 1991 para 3,16 milhões no fim da década. A exigência de qualificação e a competitividade maior apresentam um lado "perverso", aponta o Relatório de Pesquisa do Dieese n.14. Com a pressão, sob os trabalhadores, do desemprego e da fragilização do trabalho, a requalificação profissional é cada vez mais necessária para manter o emprego. A formação profissional se torna um critério de seleção que transcende exigências concretas da vaga. Conforme Dedecca (2002), tem-se contratado pessoas de maior escolaridade para cargos de baixa qualificação, pois os quadros foram reduzidos na reestruturação produtiva neoliberal. Sendo restrito o número de vagas, seleciona-se um trabalhador mais escolarizado, independente de qual seja a qualificação necessária para o desempenho da tarefa. A premissa de que o trabalhador melhor qualificado obtém melhores vagas é uma avaliação que culpabiliza perversamente o desempregado pela exclusão do mercado, ocultando fatores estruturais geradores do desemprego. O próprio mecanismo de funcionamento e os preceitos do capitalismo se pautam pela ampliação da exploração do trabalho e pelo corte de gastos, visando aumentar a lucratividade e gerar a evolução tecnológica que substitui o trabalho humano.Compreendendo o homem como mero recurso, a administração capitalista não permite uma inclusão real: mesmo um crescimento econômico amplo é incapaz de garantir a participação de toda a sociedade nos processos de produção e desenvolvimento. Segundo Dedecca (1998), a qualificação dos trabalhadores no atual período do neoliberalismo não é responsável pela obtenção do emprego, que depende mais do cenário concorrencial e da realidade econômica. Nesse contexto, as ações de governo se direcionam mais a práticas condizentes com o discurso dominante da necessidade de qualificação do que à busca de soluções estruturais do sistema sócio-econômico brasileiro. Por exemplo, o Panfor (Plano Nacional de Educação Profissional), iniciado em 1995, que é um programa de política pública de trabalho e renda ligado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador do Ministério do Trabalho e Emprego (FAT-MTE). A verba é repassada aos estados ou parceiros nacionais e regionais por convênios que exigem contrapartida de 20% do valor conveniado em média, definida em lei para os estados. Segundo o MTE, a meta do Planfor é garantir a educação profissional permanente, auxiliando a reduzir o desemprego e o subemprego e elevar a qualidade e competitividade do setor produtivo. No médio prazo, pretende-se oferecer educação profissional suficiente para qualificar no mínimo 20% da População Economicamente Ativa (PEA) por ano. Embora a iniciativa de qualificar contribua para o acesso de trabalhadores à cultura e à educação, buscar a redução do desemprego e subemprego através desta política é desconhecer as reais causas destes fenômenos no quadro sócio-econômico. É preciso considerar, assim, que o Brasil trouxe ao século XXI as marcas centrais da situação que conheceu na segunda metade do século XX: uma das estruturas sociais mais desiguais do mundo e um sistema de proteção social frágil, incapaz de afetar significativa e positivamente a desigualdade e a exclusão social. GESTÃO DEMOCRÁTICA EM EDUCAÇÃO E SAÚDE Os rumos da gestão social têm sido historicamente traçados pela gerência de empresas, já que são adotados pressupostos empresariais de produtividade no desenvolvimento das ações. No Brasil, a gestão pública acaba se vinculando aos princípios empresariais, dada sua característica capitalista, em que os interesses do capital atuantes nas organizações se reproduzem nas relações políticas e sociais, que se adaptam a esse modelo hegemônico. Segundo Paro (1996), na sociedade capitalista "as regras capitalistas vigentes na estrutura econômica tendem a se propagar por toda a sociedade, perpassando as diversas instâncias do campo social" (p.48). Nesse contexto, supervisores de ensino, coordenadores de saúde ou diretores de escola passam a atuar compreendendo suas funções básicas como organizar e administrar num prisma produtivo e avaliando as ações em termos de eficácia, eficiência e produtividade em contextos em que seria mais próprio pensar em termos de pertinência, efetividade, cooperação e participação social. Assim, para entender os paradigmas presentes na gestão social pública, é preciso antes delinear historicamente os conceitos de administração na sociedade capitalista, que vêm condicionando a gestão em instituições e organizações. Hora (1997) demonstra que a teoria administrativa do século XX se desenvolveu em três escolas: a clássica, que tem como critério central a eficiência (capacidade real de produzir o máximo com o mínimo de recursos), representada pela teoria científica de Taylor, pela teoria de Administração Geral de Fayol e pela administração burocrática, concebida por alterações da teoria da racionalidade de Weber; a psicossocial, representada por Mayo e Dickson, que substitui o critério da eficiência pelo da eficácia, em que os objetivos a alcançar são intrínsecos ao sistema, e a contemporânea, que tem como critério a efetividade (capacidade de criar a resposta desejada). Embora com idéias distintas, as duas primeiras teorias têm como objetivo central obter lucro. Elas nortearam a organização institucional na sociedade capitalista, trazendo a noção de lucro ao interior das instituições, que passou a permear as relações humanas, com implicações sociais e políticas. Ao entender os recursos humanos não como recursos do homem (técnicas e procedimentos), e sim o homem como recurso (PARO, 2002), tais concepções desumanizam as relações humanas, pois deslocam o homem, de sujeito, a objeto do processo, desconsiderando que "o homem é meio, não fim" (PARO, 2002, p.25), e gerando relações de dominação. Na Administração capitalista, a produção, que visa lucro, "só se sustenta a partir da exploração do trabalho alheio" (Ibid., p.44). Paro (2002) aponta dois campos de administração: a "racionalização do trabalho", ligada à utilização dos recursos materiais e conceptuais, e a "coordenação", ou seja, o emprego do esforço humano coletivo. No modo de produção capitalista, a ‘racionalização do trabalho’ tem como preocupação central o aumento da eficiência e produtividade, visando lucro. "Tal objetivo é conseguido pela divisão pormenorizada do trabalho (...). Os chamados estudos da administração concentram-se (...) predominantemente nos problemas relacionados ao controle dos trabalhadores" pela "gerência, que constitui (...) a forma que assume a ‘coordenação’ sob esse modo de produção. A superação do desinteresse do trabalhador e a neutralização de suas resistências às condições de trabalho (...) são buscadas através da gerência (p. 59, 60). A divisão do trabalho entre manual e intelectual auxilia a desqualificação e o controle do trabalhador, separando planejamento e execução das atividades. “Ao arrebatar do trabalhador a função de concepção, pode-se determinar o método e retorno do trabalho mais adequados à eficiência capitalista" (PARO, p. 64). A administração assume a função de mediação entre capital e produção de lucro, a serviço do capital e justificando o lucro. Ela não visa o crescimento do homem, e representa apenas interesses de classe. No Brasil, noções mais democráticas da gestão pública, considerando a participação popular em contraponto à tecnocracia da produtividade, apenas se legitimaram na Constituição de 1988, co-gerada nos movimentos e lutas sociais pela abertura democrática. Nesse período, uma agenda democrática de reforma social orientou um movimento de mudanças, sob o duplo signo de democratização das políticas e melhoria da efetividade do gasto social. Nesse cenário, as lutas sociais visavam superar o autoritarismo e reordenar as políticas públicas. No sistema de proteção social, a demanda por redução das desigualdades, norteou uma melhora da efetividade das políticas e a afirmação dos direitos sociais orientou projetos de extensão da cobertura dos programas e universalidade das políticas, com leis asseguradas na nova Constituição. Assim, abordou-se a contradição entre o alto gasto social e os medíocres resultados alcançados. Institucionalmente, tais metas nortearam ações de descentralização, maior transparência nos processos decisórios e ampliação da participação social. Porém, após o processo constituinte, em seguida ao curso de implantação da nova legislação, as pressões do jogo de forças políticas não se dirigiram a esse olhar progressista. Mobilizações corporativistas e mecanismos clientelistas, quase sempre associados a práticas populistas dos governos, buscaram capturar as demandas e ensaios de reformas, impondo limites ao exercício democrático e à participação popular nas novas políticas públicas. Embora a constituição de 1988 fosse um avanço, essas ações tolheram a efetiva construção de uma opção democrática na modernização e reforma das políticas sociais ainda nos anos 80. Nos anos 90, os termos da reforma do sistema brasileiro de proteção social foram redefinidos. Compõe o cenário a maior estabilidade política e democrática, mas também de globalização econômica, avanço da hegemonia neoliberal e queda do Estado de bem-estar social. Assim, as políticaspúblicas e sociais são palco de lutas e jogos de forças entre discursos econômicos focados na redução do Estado e movimentos sociais e políticos que alertam para a situação ainda mais excludente e perversa delineada na terceira fase do capitalismo, buscando participação popular democrática e acesso a condições de desenvolvimento humano melhores. No quadro internacional, nota-se um novo jogo de forças entre Estado e mercado, em que organizações multinacionais e conglomerados empresariais, por seu poder econômico, acabam impondo acordos e exigências aos países, muitas vezes reivindicando a fragilização de condições de trabalho e menores dispêndios tributários e sociais, afetando conquistas sociais históricas. Nossos governos, sob forte pressão financeira internacional, teriam optado por um lado da balança - o do ajustamento econômico e fiscal. Para Narita (2004), A opção por um modelo neoliberal limita o papel do Estado que, por meio das políticas econômicas e sociais, não universaliza os direitos sociais à saúde e à educação. Isso porque o Estado - democrático e de direito - existe formalmente, mas de fato, grande parte da população vive sob a condição de não-cidadania, participando de um contrato social excludente, em um não-Estado de direito. E, com as reformas do Estado, de cunho neoliberal, torna-se mais difícil construir um Estado público, democrático e que assegure os direitos sociais e a cidadania plena a todos (p.26). No cenário brasileiro, onde os direitos sociais têm ainda cunho embrionário e cuja história é permeada por governos autoritários, essas conquistas são ainda mais ameaçadas pelo avanço neoliberal. Em uma década, o Brasil reduziu em cerca de um quinto a mortalidade infantil1 e o analfabetismo2, mas praticamente não obteve êxito nenhum na redução da desigualdade social. Em 1999, os 10% mais ricos da população possuíam renda média 19 vezes maior do que os 40% mais pobres, mesmo índice de 1992, atestando a permanência da desigualdade. Embora projetos mais voltados aos problemas sociais brasileiros e ao incentivo da participação coletiva em saúde e educação, até pela criação de órgãos geridos pela população, como Conselhos Tutelares e de Saúde, tenham tido êxito em certos aspectos, a estrutura geradora de más condições de desenvolvimento humano e a ação focal do Estado acabaram dificultando a reversão do quadro de miséria e exclusão da maioria da população. Desse modo, programas como os de Saúde da Família, de Agentes Comunitários, de Aleitamento Materno e Atenção Materno-Infantil favoreceram a redução da mortalidade infantil e programas de incentivo à permanência ou volta à escola, à educação de adultos, de Livro Didático e Merenda Escolar permitiram a redução do analfabetismo. Todavia, os índices de pobreza e desigualdade apontam para os limites das políticas sociais, enredadas em problemas estruturais de duração secular, agravados atualmente pelo desemprego, a instabilidade do trabalho e a redução da renda das famílias. Junto a essas questões, há a distorção dos mecanismos de participação conquistados na década de 80. Sobretudo nas políticas de educação, assistência social e saúde, os últimos quinze anos registram um elevado grau de alterações e inflexões nos programas, afetando desde concepções até financiamento, modo de operação, organização e estilo de gestão. Projetados para o conjunto das áreas sociais, os dados registram relevantes mudanças nas metas, orientações e eixos. Ainda assim, há ganhos para a gestão democrática, cujas diretrizes na Constituição permitiram a formação de conselhos populares e cuja execução em saúde e educação tem constituído os melhores resultados nestas áreas. Administração escolar democrática: questões e desafios em educação A escola serve ao Estado porque é organizada, controlada e fornecida por ele. Ela pode servir à população se desenvolve consciência crítica da realidade em que se insere, reconhecendo, refletindo e transformando os centros de poder e exploração no nível científico, cultural e tecnológico. Seria preciso repensar, assim, noções de gestão pública e de gestão escolar, construindo novas diretrizes para uma prática de gestão atenta à transformação social. O caráter conservador da teoria e prática da Administração Escolar no Brasil leva os estudos a proporem extremos: ou a defesa das condutas da empresa capitalista ou a negação da necessidade de administração escolar. O primeiro ponto de vista defende que diante da necessidade de se promoverem a eficiência e a produtividade na escola, não há razão para que esta, entendida também como organização, não possa pautar-se, na consecução de seus objetivos, por procedimentos administrativos análogos àqueles que com tanto êxito alcançam na situação empresarial (HORA, 1997, p.12,13). Já a segunda posição é contra qualquer tentativa de organização escolar burocrática, reagindo ao caráter autoritário das relações sociais contemporâneas, devido à histórica cultura empresarial em gestão, na qual a maioria dos estudos considera o modelo empresarial capitalista como ideal de gestão escolar. Paro (2002) aponta certas diferenças dessas instituições, mostrando que é impossível colocá-las no mesmo patamar. Quanto aos objetivos, a escola visa fins de difícil mensuração, enquanto a gerência capitalista visa produzir um bem ou serviço determinado. Além disso, a aula é uma atividade em que se buscam resultados contínuos: o educando apropria-se de um saber que o leva à sua transformação prolongada por toda vida. É inviável medir prontamente o alcance dos resultados, assim como não há um mecanismo de sanção efetivo, já que quem provê e regula a escola é o Estado e não se pode automatizar a educação para otimizar sua produção: a mão-de-obra na escola é item permanente. A escola é, ainda, uma instituição prestadora de serviço onde o aluno não é apenas beneficiário (como o cliente capitalista), mas também participante, sujeito e objeto da educação. Ele é a matéria prima (que se altera no processo), mas não pode ser selecionado como nas empresas. A aula é produzida e consumida ao mesmo tempo e as relações escolares, mesmo no trabalho de seus agentes, não se pautam pela produção de lucro. O trabalho pode ser produtivo para o empregador, mas não para o aluno. Hoje, também a gestão escolar é similar à gerência capitalista, referida ao comando administrado do trabalho alheio. A decisão final é do diretor, que está no topo da hierarquia, responsável pela supervisão das atividades, que têm funções específicas, facilitando seu controle. Além de pressões de órgãos superiores, todo o corpo escolar (professores, alunos, pais, funcionários) cobra do gestor, que tem de conciliar interesses de ambas as partes, inclusive naquilo que não tem domínio direto (recursos, por exemplo), e quando tais solicitações não são ouvidas, sua imagem se estigmatiza como autoritário. Nesse quadro, o diretor da escola passa a assumir duas ordens de funções, em princípio, inconciliáveis: como educador, ele precisa cuidar da busca dos objetivos educacionais da escola; como gerente e responsável último pela instituição escolar, tem de fazer cumprir as determinações emanadas dos órgãos superiores do sistema de ensino que (...) acabam por concorrer para a frustração de tais objetivos. Tais órgãos bombardeiam a unidade escolar com um número enorme de leis, pareceres, resoluções, portarias, regulamentos, etc. assoberbando as atividades do diretor, que se vê, assim, na contingência de dedicar parte considerável de seu tempo ao atendimento de formalidades burocráticas. Tais formalidades aparecem de forma ainda mais embaraçosa quando se interpõem como obstáculo à solução dos múltiplos problemas que o diretor deve enfrentar em seu dia-a-dia, principalmente daqueles relacionados à escassez de recursos de toda ordem (...). Envolvidos, assim, com inúmeros problemas da escola e enredado nas malhas burocráticas das determinações formais (...) o diretor se vê (...) tolhido em sua função de educador, já que pouco tempolhe resta para dedicar-se às atividades mais diretamente ligadas aos problemas pedagógicos no interior de sua escola (PARO, 1996 p. 133). Os percalços da gestão escolar por sua vinculação ao sistema capitalista promoveram críticas e questionamentos às formas como a gestão escolar vem se dando. Paro (2002) avalia essas duas posições extremadas como equivocadas por não analisarem os determinantes sociais e econômicos da gestão escolar, mostrando-se acríticas à realidade concreta. A primeira eleva à universalidade um tipo de gestão socialmente marcado e a segunda considera essa gestão geradora de todo autoritarismo. Esse debate trouxe questões acerca de uma gestão escolar democrática, ampliando noções sobre limites e aberturas da gestão participativa. Nesse sentido, pode-se resgatar a idéia de gestão que, se no capitalismo se liga à área econômica, tem de fato origem política e precisa ser compreendida nessa esfera. Arendt (2001) aponta como atributo central da esfera política a ação conjunta, que consiste no diálogo e no pensamento no plural. Nessa acepção, gestão refere-se à participação que atua em problemas da formulação de políticas públicas, em especial nas políticas sociais e de educação e saúde. Paro, por exemplo, propõe uma gestão escolar voltada a mudanças sociais. Para isso "nem a Administração será vista apenas enquanto conjunto de princípios, métodos e técnicas (...) nem a escola será tomada como entidade autônoma para o qual apenas se buscarão os procedimentos administrativos mais adequados" (1996, p.13). Assim, compreende-se que a transformação social inicia-se pela análise de antagonismos e desigualdades sociais, pela conquista de espaços mais amplos na sociedade civil, visando à transformação do Estado em prol de uma relação menos coercitiva e mais democrática e convergente com o interesse popular. A educação escolar pode servir de artifício em poder dos grupos sociais dominados, visando à autonomia, como aponta Freire (1993): a apropriação crítica do saber historicamente forjado leva à emancipação cultural, desconstruindo relações de opressão. Hoje, a educação atenta para os requisitos intelectuais ligados ao treino de funções de produção, em prejuízo da autonomia e do pensamento crítico, pois o saber veiculado é guiado por critérios econômicos de produção e consumo, não por metas de ascensão social coletiva. O papel do educador voltado a mudanças sociais é valorizar sua ação, questionando, pesquisando e refletindo a realidade para entendê-la e superá-la. Para mudanças efetivas na escola, deve-se incluir a produção pedagógica, além de uma gerência que explicite os alvos que deseja alcançar e perceba os reais interesses da população que atende. O gestor deve estar cônscio da ação tecnocrática de seus órgãos superiores, questionando a função de mero burocrata, obrigado a fazer cumprir programas educacionais que muitas vezes desconsideram a realidade e necessidades da comunidade escolar. O ideal de gestão que separa concepção e execução leva a ações centralizadoras e autoritárias, voltadas ao controle e inspeção de atividades. Isso gera uma ação fragmentada do professor, na qual ele efetua uma prática pedagógica planejada por especialistas incumbidos ainda do seu controle, cerceando o saber constituído nas relações forjadas em sala de aula e desvinculando sua própria habilidade de pensar e tecer relações favorecedoras da autonomia com os alunos. É preciso também reconhecer o hiato entre formulação de políticas sociais e sua implantação, vinculado tanto ao modo muitas vezes técnico de formulação das políticas, que desconsidera as experiências e relações concretas nas quais a ação ocorrerá, quanto à implantação das políticas, que amiúde desobedece à formulação, seja pela má gestão, por mudanças de governo ou pelo enfoque em índices quantitativos, desfavorecendo caminhos qualitativos de progresso social. Um exemplo é o sistema de progressão continuada, inserido no conjunto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. As mudanças centrais se dão na avaliação: criação da recuperação paralela ao ensino através de classes de aceleração; apoio a meios de avaliação diversificados e flexíveis; auto-avaliação. Tornar a avaliação "formativa" e "diagnóstica", focalizando o processo de ensino-aprendizagem e não apenas o produto final, é a intenção da proposta segundo o Conselho Estadual de Educação (CEE). As mudanças não se restringem à avaliação, mas envolvem uma "alteração radical" da organização da escola, da proposta pedagógica e da concepção de educação, segundo o CEE. Embora seja, sobretudo, uma diretriz pedagógica, baseada na idéia de ciclos da aprendizagem, que questiona o processo de ensino-aprendizagem tradicional, ela muitas vezes permite a promoção automática de alunos. Assim, o processo de implantação do sistema contraria seu conjunto de propostas, e problemas de aprendizagem são protelados para anos seguintes, maquiando estatísticas de repetência escolar para atender exigências das instituições internacionais. No processo de municipalização do ensino fundamental, intensificado pelo governo federal a partir da década de 1990 também há este problema. Tornando o ensino fundamental atribuição das prefeituras, e não mais do governo estadual, buscava-se aumentar a participação dos cidadãos na elaboração, implementação e avaliação do processo de ensino-aprendizagem. Na realocação do centro de poder para secretarias municipais, se permitiria que as negociações ocorressem diretamente, pois os integrantes do processo – professores, diretores, alunos e pais - estão mais próximos à administração municipal em comparação ao governo estadual. Mas essa política mostra também dificuldades em sua implementação, pois a municipalização criou uma instabilidade profissional para os professores: aqueles que reivindicam melhores salários correm o risco de serem transferidos para escolas distantes de suas residências ou serem demitidos. Outra diretriz referente à municipalização do ensino que apresenta obstáculos está no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), criado em 1998. Com esse fundo, o governo federal impeliu os municípios a se responsabilizar pelo ensino fundamental com liberação de recursos para a educação, mas não os obrigou a tal compromisso. O Ministério da Educação avaliava que o Fundef aumentaria o número de matrículas no ensino fundamental, os salários dos professores e a oferta de vagas, favoreceria os planos de carreira municipais e a capacitação de professores leigos presentes no sistema de ensino, auxiliando a meta da LDB de permitir que, até 2006, todos os professores tivessem formação média ou superior. Porém, houve resistência ao processo, pois a transferência do ensino se deu de modo hierarquizado, sem discussão ampla junto aos docentes e reorganização conjunta dos sistemas de ensino, criando conflitos e entraves. Além disso, nem sempre recursos materiais e humanos se fizeram presentes como deveriam, faltando profissionais preparados para fazer a capacitação de professores, por exemplo. Além disso, o Fundef se tornou atrativo para gestores municipais mais preocupados em receber recursos do que em investir na qualidade do ensino. Por lei, o município deve aplicar 25% da receita na educação, oriundos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), do Fundo de Participação dos Estados e dos Municípios, e de parte do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que devem ser gastos na manutenção e desenvolvimento do ensino público e na valorização do magistério. Essa dificuldade em implantar políticas vincula-se ao escasso diálogo entre legisladores, secretarias de ensino, professores, diretores e alunos. Na passagem da formulação à implantação, certas medidas tomadas no tocante ao sistema de progressão continuada pelas Secretarias e Conselhos de Educação acabam por tornar-se prescritivas e normatizadoras. A falta de participação na criação e viabilização das políticas educacionaistem levado ao desencontro entre a escola e a execução de diretrizes educacionais da legislação. As condições de trabalho dos professores - jornadas fragmentadas, contrato por hora aula, alta rotatividade e baixos salários – revelam falta de iniciativa para prestar condições de realização de um trabalho coletivo. Igualmente, políticas de capacitação para professores muitas vezes ocorrem prescrevendo inovações, relacionando competências que os educadores devem aprender e aplicando cursos de treinamento. Tais medidas, pautadas na racionalidade técnica e na lógica dedutiva que pressupõe que as normas criam a realidade social, desconsideram o que é criado e vivido na própria escola e buscam modificar a escola por meio de ações externas e alheias a seu contexto cultural. É preciso, ao contrário, ponderar os modos pelos quais, diante da legislação e das condições presentes, os professores têm pensado seu papel social e constituído suas práticas, considerando os sujeitos sociais integrantes do processo de produção de saberes, criação e transformação das práticas. Administração em Saúde: avanços e percalços A reforma do setor saúde esteve em voga no plano internacional na década de 90. Tendo como conjuntura o aumento do nível de gasto público em saúde, contrapondo-se às dificuldades decorrentes dos distintos ajustes nas economias nacionais na esteira da agenda neoliberal, que limitava a expansão destes gastos, consolidou-se um conjunto de pressões sobre os governos nacionais no sentido de alterar e o perfil das políticas públicas setoriais. No cenário comum aos países ocidentais, evidenciam-se ainda questões relativas a mudanças demográficas, em especial aquelas decorrentes do envelhecimento da população e do declínio imediato ou futuro da população economicamente ativa, levando a um aumento da demanda por serviços de maior complexidade e custo, que tornaria cada vez mais problemática a capacidade de resposta dos serviços (EUROSTAT, 2000). Estas questões tornam-se mais graves nos países situados na periferia do sistema financeiro e econômico-produtivo. Submetidos a um desastroso passado inflacionário, mesmo ao obter condições de estabilidade da moeda o fizeram por meio de estratégias macroeconômicas de subordinação ao capital internacional, endividamento e reforma neoliberal da estrutura sócio-econômica, dificultando um desenvolvimento econômico sustentado e meios de investimento público e social. No Brasil, antes da constituição de 1988, apenas aqueles com carteira de trabalho assinada, e assim associados ao antigo INPS, podiam utilizar a saúde pública. Esta conexão entre saúde e trabalho, regulada legalmente desde 1923 e que já exprimia uma resposta a movimentos populares urbanos, ligava-se à necessidade de, de um lado, garantir meios mínimos de sobrevivência aos trabalhadores e, de outro lado, discipliná-los frente a formas altamente predatórias de disposição do trabalho presentes na sociedade brasileira (MACEDO, 2005). Esse consistia num modelo de saúde e seguro social não-universalizante e assistencialista, voltado a grupos assalariados, de maior peso econômico e articulação política. Além disso, a visão centralizadora das políticas de saúde, justificada exatamente por entraves sociais e econômicos, reforçava a exclusão da população na tomada de decisões. Essa situação se alterou mais sensivelmente apenas nos anos 80, quando movimentos sociais emergentes no processo de redemocratização firmaram a luta política por soluções aos problemas sociais brasileiros. Isto levou à reorganização da gestão na saúde, pela Proposta de Emenda Constitucional da Saúde (PEC 29), que definiu a participação da União, Estados e Municípios no financiamento de ações e serviços públicos de saúde, através da aplicação mínima de recursos fixada por lei. A PEC 29 foi o passo inicial em direção ao Sistema Único de Saúde (SUS), que declarou a saúde “direito de todos e dever do Estado” por princípios de universalidade no atendimento, descentralização, participação da sociedade, eqüidade no custeio e uniformidade de benefícios. Essas diretrizes constitucionais permitiram maior participação popular, em níveis integrados e descentralizados nos municípios e estados e na regionalização do atendimento. Mas enquanto a concepção e criação do SUS se desenrolaram na conjuntura política favorável da redemocratização, sua regulamentação, em 1990, deu-se num período marcado pelo acirramento da crise fiscal e econômica e pelo avanço neoliberal mundial. O presidente Fernando Collor realizou vetos importantes na homologação das Leis Orgânicas de Saúde, mas foi possível, pela força do Movimento Sanitário, manter os Conselhos de Saúde, estabelecidos como órgãos colegiados de caráter permanente e deliberativo, compostos por representantes do governo, prestadores de serviços, trabalhadores da área de saúde e usuários, com representação paritária entre os grupos, devendo atuar na formulação de estratégias e no controle da execução das políticas de saúde, inclusive nos aspectos econômico e financeiro. Suas decisões são homologadas pelo chefe de poder legalmente constituído em cada esfera de governo. (MACEDO, p.36). Esse espaço, aliado às Conferências de Saúde convocadas periodicamente pelo governo para propor diretrizes na área, permitiu a inserção popular na gestão em saúde. No início dos anos 90, proliferaram-se Conselhos de Saúde no país, sendo criados dois mil entre 1991 e 1993 (MACEDO, 2005). Pela avaliação da descentralização do SUS, a IX Conferência Nacional de Saúde de 1992 buscou ampliar a descentralização para além do repasse de verbas pela gestão municipal da saúde, visando à participação social e o respeito a diferenças regionais. Assim, foi regulamentado um processo descentralizador que, pela variedade econômica, social e populacional dos municípios brasileiros, ocorreria em níveis de gestão (incipiente, parcial e semiplena), e apenas no semipleno os municípios teriam o encargo integral da gestão. Em 1998 foi criado o Piso de Atenção Básica (PAB), em que os recursos seriam proporcionais à população municipal, permitindo mais estabilidade na elaboração de ações locais de saúde. A descentralização ocorreu de modo negociado e gradual, atrelado à adesão dos municípios, gerando níveis de gestão heterogêneos, articulados por Comissões Ingestores Tripartites e Bipartites, com integrantes de distintas esferas de governo. O processo apenas se dinamizou com a X Conferência Nacional de Saúde, num cenário de negociações e conflitos entre gestores de várias esferas, que possibilitou que, em 2000, 98% dos municípios fossem cadastrados em algum nível de gestão. Isso permitiu a transferência automática de outros recursos além da assistência médica, como vigilância sanitária e epidemiológica e controle de doenças transmissíveis, bem como a inverter o modelo assistencialista, pela adoção de ações como o Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários (PACS). Estas propostas efetivam o princípio da participação e do controle social através do envolvimento da comunidade no processo de planejamento das Equipes de Saúde da Família e na programação local, fomentando o exercício da cidadania pela comunidade junto aos Conselhos Locais de Saúde (MACEDO, 2005, p.41). Todavia, embora a legislação afirme a inserção social, leis municipais que retiram o cunho deliberativo dos conselhos, a ausência de dotação orçamentária própria a estes e de informações sobre a gestão de governo os tornam órgãos de mero sentido formal ou consultivo, obstruindo a participação democrática de fato (FORTES,1997). Além disso, em municípios marcados pela desigualdade de acesso a recursos, ao poder e à informação, "a implementação da política de saúde do SUS é marcada por procedimentos clientelísticos, patrimonialistas, associados ao tráfico de influências no exercício da política pública e muito arraigados na cultura política e institucional" (GERSCHMAN, 2004, p.1677). Nesse quadro, o privilégio que alguns vereadores dão à suabase eleitoral e a escolha da pauta dos conselhos por secretários de saúde mostram que, em contextos altamente estratificados, apenas legislação e intervenção do poder público não podem garantir direitos básicos de cidadania. Nos municípios onde a participação popular se efetivou, como Londrina (LOPES & ALMEIDA, 2001), houve importantes avanços, inclusive com a injeção de recursos municipais para além das diretrizes estaduais e federais. Em outros, nota-se que a instituição de programas e práticas de saúde é formulada apenas no nível federal e efetuada pela gestão municipal apenas como "forma de injetar recursos externos, principalmente federais, no município" (GERSCHMAN, 2004). Em geral, notam-se dificuldades relacionadas à falta de estrutura dos conselhos com participação comunitária e à forte tradição de autoritarismo e centralização do poder no Brasil, fomentando situações em que o uso dos conselhos para fins eleitoreiros, o endosso de decisões governamentais não discutidas e a falta de clareza sobre participação social obstruem a gestão democrática. Assim, o controle social sobre as ações estatais deve decorrer de transformações nas relações entre Estado e sociedade, com a consciência de que estes espaços são palco de lutas políticas, de defesas dos direitos de cidadania e de garantia de idoneidade na gestão pública, permitindo que os movimentos sociais influenciem as políticas públicas para o atendimento de suas demandas. � TERCEIRO SETOR NO BRASIL: QUESTÕES JURÍDICAS, ADMINISTRATIVAS E SOCIAIS As pessoas jurídicas são criações do direito de Estado para sistematizar relações de natureza econômica ou social. O Estado constitui o primeiro setor, e lhe compete fazer vigorar Constituição Federal e realizar os direitos de cidadania, e pessoas jurídicas com fins econômicos integram o segundo setor. Compõem o terceiro setor pessoas jurídicas com fins não lucrativos, que podem empreender ações que beneficiam um círculo restrito de pessoas (um clube, por exemplo) ou empreender ações voltadas à comunidade. Integram o terceiro setor fundações, associações e organizações civis, que muitas vezes têm programas patrocinados por verbas públicas ou captadas junto a empresas. O termo foi traduzido do inglês “third sector”, oriundo dos EUA, como ainda a expressão “non profit organizations” (organizações sem fins lucrativos). Há 250 mil organizações da sociedade civil (OSC’s) no Brasil, que empregam cerca de 1,5 milhões de pessoas. Muitas de suas atividades se dão na área social: educação, meio ambiente, geração de emprego e renda, saúde, cultura, ciência e tecnologia, etc. As OSC’s mais antigas são de assistência social ligada à igreja católica, como os orfanatos do período colonial. A emergência do Terceiro Setor no Brasil é um fenômeno das últimas três décadas, sobretudo com as ONG’s a partir dos anos 1980. No panorama múltiplo que tais entidades hoje expressam, deve-se notar os frágeis limites entre o terceiro setor e os demais setores. Algumas entidades confundem-se com empresas privadas, ou se instituem pela pressão de empresas como meio de não contratar funcionários pela CLT, outras se confundem com o Estado, assumindo funções que concernem ao bem-estar social. Com afirma Lopes (2004) Um elemento característico das esferas públicas instituintes tem sido identificado nas ONG’s. Ocorre que esta esfera não é tão pública como parece, à primeira vista, visto que as ONG’s se articulam em torno de interesses públicos, mas regularmente se constituem em uma esfera privada, visando gerir necessidades públicas específicas ou atuar sobre elas utilizando recursos advindos geralmente da fonte pública (...). Trata-se de uma administração oficiosa de negócios públicos, sem mandato ou representação legal definidos na esfera pública (p. 59). O Estado, coerente à agenda neoliberal, atualmente delega grande parte da prestação direta dos serviços de interesse coletivo, efetuados por associações de usuários, fundações ou organizações não governamentais, sob financiamento estatal. Nessa conjuntura, o Estado atua como regulador e promotor apenas de serviços sociais considerados básicos e econômicos estratégicos. Busca-se uma ação apenas parcial, e gradualmente reduzida, na saúde e na educação, havendo inclusive o financiamento do Estado a entidades privadas, numa fragilização das relações e prestação de contas do estado com a população. Além disso, muitas vezes as ONG’s se voltam à preservação de interesses parciais, nem sempre da população de baixa renda. Lopes (2004) relata vários casos de ONG’S que se organizam para propor diretrizes políticas condizentes com interesses da classe média à qual seus integrantes pertencem, prejudicando interesses da população mais pobre. Essa difusão das políticas toma impulso pelas mudanças promovidas na economia neoliberal. Com a reforma do estado, torna-se freqüente a execução pelo terceiro setor de funções antes promovidas pelo Estado, muitas vezes com pagamento deste, instituindo relações de instabilidade econômica e dependência institucional nas organizações, que a despeito da expansão do setor em grande parte sofrem crise de recursos,agfinancica das organizaizaçõesa-se��������������������������������������������������������������������������������������������. Tais relações podem intervir na qualidade, reduzir ou fragilizar ações sociais, condições e vínculos de trabalho, contribuindo para compor a agenda neoliberal de enxugamento do Estado. Também a globalização da economia com a fragilização de vínculos trabalhistas e a crescente contratação de empregados como pessoas jurídicas ou associações profissionais leva ao uso dos dispositivos jurídicos do terceiro setor de modo desviado da função original. Numa conjuntura de organização recente e relações de dependência com empresas privadas e com o Estado numa sociedade capitalista como a brasileira, as OSC’s enfrentam dificuldades e ambigüidades no tocante à sua organização, profissionalização e seu papel social. Por um lado, a história de tais organizações, em grande parte vinculada ao voluntarismo e a instituições religiosas, dificulta a profissionalização e organização de informações. Por outro lado, o próprio quadro social, marcado pelo discurso econômico neoliberal e a organização empresarial capitalista, favorece a adoção deste modelo como modo hegemônico de formação das ONG’s. Cabe ressaltar, nesse contexto, a ligação entre o crescimento das ONG’s no Brasil e o período de redemocratização, quando diversas organizações civis se formaram na luta por direitos sociais, para resgatar o caráter político e vinculado à cidadania pelo qual a expansão de organizações civis se pautou. Desse modo, para permitir um arranjo coerente, sólido e profissional, é relevante delinear metas, meios e instrumentos das organizações civis, bem como definir o público alvo e a comunicação da organização com este e informar com qualidade potenciais financiadores: os próprios beneficiários, empresas, órgãos de governo ou fundações. Todavia, é preciso diferenciar a gestão civil da gestão empresarial e do pensamento em termos da ação como um "produto". O trânsito por várias linguagens e culturas de setores com que a organização se relaciona, como empresas financiadoras capitalistas, órgãos governamentais de cultura quantitativa, própria à escala de políticas públicas e usuários que podem cobrar serviços não pode obliterar uma gestão democrática. Responder a esses desafios implica clareza do papel da organização, pela definição da missão que orientará o planejamento de longo prazo, pelo estabelecimento coletivo de metas e meios de realização, de avaliação de atividades e arranjo da contabilidade e dos custos. Enfim, uma transformação das instituições, numa ação reflexiva que desenvolva alternativas de gestão vinculadas, de um lado, à cidadania e participação coletiva e, de outro lado à gestão profissional e social das ações. Certas caracterizações previstas em lei auxiliam à compreensão da função social do terceiro setor. Paraas ONG’s, há certificações que atuam com distintas regulamentações e níveis, nas esferas federal ou estadual. As certificações públicas conferidas pela lei apenas exprimem um atributo da instituição, não garantindo isenção tributária, que pode ser cassada por órgãos fiscalizadores diante de infrações às leis que concederam os benefícios fiscais. Os recursos de uma entidade beneficente provêm inicialmente de doações. Porém, a entidade poderá recorrer a recursos públicos, efetuando convênios, parcerias e solicitando auxílios e subvenções a governos municipal, estadual e federal, autarquias e sociedades de economia mista, além de crédito no BNDES, isenção de tributos, caso seja reconhecida por filantrópica, e recursos de órgãos internacionais. A entidade pode ainda agregar a seu quadro associativo um investidor para causas sociais que, embora seja uma opção para captação de recursos, leva à situação de fragilidade e submissão da instituição a interesses particulares. As empresas que financiam sociedades civis obtêm vantagens em sua imagem publicitária, propagando preocupação e envolvimento com questões sociais, bem como na isenção fiscal conferida pela lei de Responsabilidade Social Empresarial, pois a entidade que tem Certificação de Utilidade Pública Federal pode fornecer recibo autorizando a empresa a deduzir a doação como despesa operacional, até o limite de 2% do lucro operacional. Concessão de Títulos Jurídicos No Terceiro Setor: mecanismos de regulamentação na ação social O título não designa uma pessoa jurídica, mas uma qualificação que pode ser conferida, suspensa ou retirada. A concessão de títulos jurídicos a entidades do terceiro setor visa distinguir entidades qualificadas em comparação às comuns, inserindo as primeiras num regime jurídico de vantagens frente ao Estado. Busca-se ainda padronizar o tratamento jurídico de entidades que apresentem atributos comuns e orientar o controle das atividades das entidades, tanto pela concessão do título quanto pela suspensão e cancelamento. Essa organização, em princípio, pode ser vantajosa, pois entidades que recebem o título e passam a possuir certificação de idoneidade têm benefícios garantidos em lei e recebem enquadre jurídico distinto do comum. A titulação evita ainda que se criem vantagens isoladas em favor de entidades que visem o interesse coletivo. Mas existem desvantagens nessa concessão de títulos jurídicos, como na certificação indevida, por falta de critérios, favorecimento político ou fraude. Há também desvantagem na insegurança jurídica que acompanha a concessão, pois a manutenção do título se condiciona ao cumprimento de exigências aferidas periodicamente pelo governo, e este mecanismo de controle gerencial não possui previsão jurídica clara nem normas que assegurem às entidades garantias contra o exercício abusivo do controle. A entidade qualificada está então sujeita a desvios, inclusive pela corrupção. Algumas dessas desvantagens se observam em situações relativas ao título de utilidade pública. Crise do título de utilidade pública Entidades do terceiro setor obtêm o título de utilidade pública, um dos mais antigos da legislação, para efetuar ações de fim público como parceiras do Estado. Devido à formulação antiga, por um lado, a maioria das leis que regulam parcerias entre Estado e terceiro setor têm este título como referência, e por outro suas normas, dispostas na Lei n. 91, de 1935, e pouco alteradas ao longo do tempo, tornaram-se antiquadas, havendo críticas sobre sua utilidade, atualidade e pertinência. No quadro neoliberal, com aumento de entes "públicos não-estatais". (CUNIL GRAU, 1996; PEREIRA, 1996; 1997), pelo cumprimento de requisitos que visam, porém muitas vezes não garantem a salvaguarda do interesse público, a cooperação é lícita e mesmo estimulada na Constituição (MODESTO, 1997), levando à preocupação ainda maior com a gerência do Estado quanto às parcerias com entidades privadas. Agravando a situação, transparência e clareza de propósitos na relação entre Estado e organizações nem sempre encontram ressonância na legislação. As leis federais sobre utilidade pública, deficientes e lacônicas, têm facilitado o desvirtuamento do terceiro setor no país, pois deixam vários temas sem cobertura e sob o comando de autoridades administrativas, favorecendo a proliferação de entidades inautênticas e de fachada, atadas a interesses econômicos, políticos ou de grupos restritos ou ainda de processos de corrupção no setor público. A ausência de distinção clara entre entidades de fins ou favorecimento mútuo (que beneficiam um círculo restrito de sócios, inclusive pela cobrança de contribuição em dinheiro) e entidades de fins comunitários, fins públicos ou solidariedade social (voltadas à comunidade em geral, sem perfilar vínculos jurídicos especiais) agrava ainda mais tal situação, qualificando de igual modo creches, clubes, escolas comunitárias e privadas, etc. Pelo título Utilidade Pública, a lei autoriza aos dois tipos de entidade um tratamento de renúncia fiscal, previsão de subvenções sociais, contratação direta etc., e deixa de prever formas de controle além da exibição periódica de documentos. Esse cunho indiferenciado e a debilidade do sistema de controle facilitam abusos, como no "escândalo do orçamento", esquema de corrupção descoberto por acaso, no qual parlamentares utilizavam entidades filantrópicas de fachada, que recebiam recursos públicos por sua ação parlamentar sem nenhum compromisso com ações sociais. Entidades como estas já foram inclusive chamadas por Leite (1997) como "pilantrópicas". Este contexto levou a discussões dentro e fora do Estado, propondo formas de reconfigurar o título de utilidade pública. Recentemente, duas propostas tornaram-se leis (Lei n. 9.637/98 - Organizações Sociais; Lei n. 9.790/99 - Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), criando novos títulos jurídicos. O título de entidade filantrópica Uma entidade filantrópica é uma sociedade sem fins lucrativos (associação ou fundação), criada com propósitos como: assistir à família, à velhice, à infância, à maternidade, à habilitação e reabilitação de portadores de deficiência, etc. Para ser reconhecida legalmente como filantrópica, a entidade precisa comprovar uma atuação voltada aos mais desprovidos por no mínimo de três anos, sem distribuir lucros nem remunerar seus dirigentes. Deverá possuir os títulos de Declaração de Utilidade Pública e o título de Entidade Beneficente de Assistência Social, do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Obtendo o título de entidade filantrópica, esta pode receber isenção tributária após preencher outros requisitos da Lei, em especial aplicar ao menos 20% de sua receita em obras sociais. A entidade, tendo utilizado recurso público, passa a possuir compromisso com o erário, ou seja, passa a ter interesse público e a obrigação de destinação comunitária do recurso público. Assim, caso encerre as atividades, deve reverter o patrimônio a uma instituição congênere, senão irá caracterizar enriquecimento ilícito. Pelo decreto nº. 3.048/99, entidades filantrópicas devem ainda entregar no INSS anualmente um relatório, o Plano de Ação, que visa informar o órgão sobre os projetos sociais a serem efetuados, bem como dois outros relatórios sobre as atividades sociais efetuadas no ano anterior, chamados Relatório de Atividades. A não entrega dos relatórios no INSS e no Ministério da Justiça implica sanção à entidade, como multas e a perda da isenção fiscal e da Certificação de Utilidade Pública Federal e do Certificado de Filantropia. O título de organização social (OS) A Lei n. 9.637/98 criou título Organização Social (OS) como uma resposta à crise do título de utilidade pública. A denominação organização social designa um título conferido a entidades sem fins lucrativos que atendem requisitos de constituição e atuação que visam assegurar o interesse público e fixar garantias para uma relação de confiança e parceria entre a entidade e o Poder Público.Embora tanto o título de Utilidade Pública quanto o de Organização Social (OS) afiancem benefícios e controles inexistentes a outras pessoas jurídicas privadas (como vantagens tributárias e fiscalização pelo Ministério Público), o título de OS confere vantagens e sujeições inexistentes para entidades de Utilidade Pública. Entre estas está a publicação no Diário Oficial da União do relatório de execução do contrato de gestão, o uso de bens materiais e recursos humanos de órgãos extintos do Estado, e a absorção de suas atividades, contratos e seus símbolos designativos, seguidos do símbolo OS. O título de organização social busca corrigir desvios do título de utilidade pública, restringindo a cessão a entidades de fins comunitários, evitando certificar entidades de favorecimento mútuo. Assim, a lei dispõe regras para compras e salários; exige um colegiado superior composto por fundadores, representantes da comunidade e do Estado; prevê auditorias; exige para fomento público um contrato de gestão com o Estado, que define tarefas a cumprir; responsabiliza os dirigentes pelo mau uso de recursos públicos, entre outros critérios ausentes no título de utilidade pública. Mas isso não significa que a legislação de OS seja imune a desvios: este título foi concedido a apenas duas entidades no nível da União e, em ambas, a qualificação foi precedida da extinção de entidade ou órgão público, recaindo em entidades com pouco tempo de existência, sem ações comprovadas nem capital próprio, salvo o capital humano. Assim, o título acabou atuando como meio de enxugamento do Estado, com favorecimento privado. Essa situação revela lacunas na lei, como falta de exigência das entidades candidatas de um tempo mínimo de atuação comprovada em sua área de ação. Em leis estaduais sobre o título de OS, essa exigência tem sido incluída (v.g, Lei Complementar n. 846/98, do Estado de São Paulo, exige atuação de mais de cinco anos). Há ainda lacunas na não exigência de patrimônio ou qualificação técnica e na não exigência de contraprestação por um percentual de serviços gratuitos diretamente voltados ao cidadão nos contratos entre Estado e OS. O Título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) A lei sobre o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP – Lei n. 9.790/99) concede isenção fiscal a entidades de confirmada ação social e transparência. A entidade sem fins lucrativos deve preencher requisitos como: promover a cultura, educação, segurança alimentar, meio ambiente, saúde, combate à pobreza, etc., e manter uma gestão de transparência financeira. O Ministério da Justiça avalia os requisitos, reconhece e expede o título de OSCIP. A lei permite pagamento aos dirigentes e prioriza a OSCIP como parceira de ações efetuadas pelo Estado. Criada na reformulação da lei de utilidade pública, a lei tem alguns itens semelhantes à lei de Organizações Sociais (OS): restringir a distribuição de lucros pela entidade, exigir identificação de áreas sociais de ação e um conselho fiscal para os gestores, exigir o caráter público de documentos, realizar auditorias externas, etc. Prevê pagamento restrito a salários do mercado e responsabilização dos dirigentes e desqualificação da entidade em caso de fraude ou atuação ilícita. O título inova no aval do cunho social da entidade, com exigências nas quais a lei identifica aquelas que não devem receber o título, exige especificação dos candidatos potenciais e observância de condutas das Normas Brasileiras de Contabilidade. Em educação e saúde, exige prestação de serviços gratuitos e proíbe a participação em campanhas político-partidárias ou eleitorais. A lei exige atuação por pelo menos um exercício financeiro, por documentos como o balanço patrimonial e demonstrativo do resultado do exercício. O novo título, porém, admite por apenas dois anos a cumulação do título de OSCIP com outros títulos jurídicos para entidades do terceiro setor, após o que a entidade deve renunciar outras qualificações para manter o título de OSCIP. Como a maioria dos benefícios para entidades do terceiro setor supõe o título de utilidade pública, pode-se afastar deste título entidades idôneas, pouco dispostas a perder vantagens atuais por benefícios incertos, mantendo o financiamento nas bases menos claras do título de Utilidade Pública. A lei cria ainda um paradoxo: nos dois anos iniciais, entidades duplamente qualificadas (Utilidade Pública e OSCIP) têm mais vantagens que entidades qualificadas há mais tempo como OSCIP. Evitando tais lacunas, a lei de organizações sociais é exigente ao qualificar entidades novas, mas não exige perda de benefícios, pois entidades que obtêm o título OS têm também o título Utilidade Pública, tornando o título OS um atributo adicional. Há um cuidado nas novas leis para reduzir a margem de manobra de autoridades administrativas na cessão do título, alçando um antigo problema do título Utilidade Pública. Mas as leis deixam brechas relevantes, como a falta de disciplina mais detalhada do processo de cassação do título, omissões sobre a liberação financeira dos recursos públicos vinculados às parcerias em ambas as leis. No geral, deve-se avaliar que a concessão de títulos, embora vise à idoneidade das entidades, participa de relações público-privadas passíveis do prejuízo público, e não foram instituídas no quadro de um plano articulado e democrático de atenção social do Estado. Nesse sentido, Oliveira & Haddad (2001) lembram que: No Brasil, a legislação que regula as OSC’s é um cipoal de normas construído a partir do Código Civil de 1916, ao sabor das circunstâncias políticas e lobbies setoriais. Não existe uma tipologia das entidades sem fins lucrativos, mas frouxas categorias criadas por leis sucessivas para atribuir privilégios a grupos bem articulados de organizações (...) também vem crescendo o interesse de parte dos grupos empresariais e do capital, em geral, nos rumos e no controle das orientações e do atendimento educacionais. Há uma proliferação de institutos e fundações de empresas privadas, constituídas muitas delas com base nas isenções fiscais, quase todas mantendo a educação como uma das suas atividades principais. A forte presença do capital no plano das ações sociais e da educação, em particular, demonstra (...) um compromisso social de parte do capital (...). Mas, ao mesmo tempo, aponta para um crescente descomprometimento do setor público com a educação, correndo-se o risco de rompimento de um dos aspectos mais importantes na construção da democracia social brasileira. (p. 81). transformações na família: sua relação com o trabalho, a cultura e a sociedade O estudo da relação família-trabalho aborda o conjunto das influências recíprocas da dinâmica das atividades produtivas e da dinâmica das famílias, buscando conhecer de que maneira as transformações e criações de novas atividades econômicas e novas formas de produção e gestão que afetaram as oportunidades de emprego de homens e de mulheres, bem como sua atuação no mercado de trabalho, influenciam e se manifestam na unidade familiar. No Brasil, os períodos de transformação do mercado de trabalho afetaram profundamente a organização da família. O período do final dos anos 70 e início da década de 80 é marcado pela crise econômica e a acentuação da entrada da mulher no mercado de trabalho, tanto cônjuges como filhas, que conhece nova ascensão no início da década de 90. Essa inserção acompanha as próprias restrições colocadas pelo mercado, quando cresce o desemprego masculino, indicando rupturas na possibilidade concreta de realização do padrão de família mantido pelo chefe provedor, especialmente nas conjunturas recessivas (MONTALI, 2003), e pode expressar transformações nas relações internas de hierarquia e de poder. Na década de 90, as mudanças na relação família-trabalho ocorrem sob o impacto da desconcentração industrial, do desenvolvimento do terciário e da reestruturação produtiva. O intenso processo de inovações organizacionaise produtivas acentuou a deterioração das relações de trabalho e o desemprego, gerando novas estratégias de vinculação das famílias ao mercado de trabalho. No final dos anos 90, há um discreto recrudescimento do desemprego, que, todavia, é acompanhado pela queda da renda dos ocupados e da renda familiar per capita, gerando rearranjos de inserção no mercado de trabalho. Percorre toda a década de 90 o maior compartilhamento ou deslocamento da responsabilidade financeira dos principais mantenedores tradicionais para outros componentes da família, em especial para a mulher-cônjuge. Essa tendência se delineia face à redução de postos de trabalho, sobretudo para ocupações predominantemente masculinas, e às maiores dificuldades de absorção vividas pelos jovens a partir de 1992, que resultaram em crescente desemprego dos principais mantenedores das famílias até então (chefes e filhos masculinos e filhas maiores de 18 anos). Destacam-se nesse contexto duas importantes tendências. A primeira, no caso de famílias estruturadas em torno do casal, refere-se à participação crescente da mulher-cônjuge entre os ocupados da família, à redução do peso do chefe masculino entre estes e à diminuição da participação dos filhos. Uma exceção entre famílias conjugais é encontrada naquelas cujos casais têm mais de 50 anos e há filhos residentes, em que cresceu a participação do chefe masculino entre os ocupados da família de forma concomitante à redução da participação dos filhos adultos, afetados pelo desemprego. A segunda tendência refere-se às famílias com chefia feminina sem cônjuge, nas quais a participação da chefe entre os ocupados da família aumenta devido à menor absorção de filhos e parentes jovens pelo mercado de trabalho. Até o final da década de 90, há a continuidade progressiva destes rearranjos familiares de inserção no mercado de trabalho. Essas alterações afetaram a relação família/trabalho, por exemplo, pela exigência de escolarização, usualmente maior entre mulheres, e geraram mudanças das relações hierárquicas na família, como diferenças nas relações de gênero ou idade em seu interior. Mudanças nas vagas, vínculos trabalhistas e padrões de contratação, entre outros, tais como o aumento do desemprego e de vínculos flexíveis que não consideram a legislação trabalhista também afetaram diferentemente os componentes familiares. Sob o aspecto social, transformações na posição da mulher no círculo familiar, com sua inserção no mercado de trabalho e um acesso à escolarização que muitas vezes supera os homens geraram transformações na imagem representada de paternidade e maternidade. Nesse sentido, constituíram-se novas formas de articulação entre conjugalidade e paternidade, já bem estabelecidas nos anos 90. As transformações nas práticas e representações da paternidade estão vinculadas às alterações concomitantes na conjugalidade. Assim, pesquisas referem uma memória da corte mais velha sobre seus próprios pais que, a despeito de diferentes nuances, é construída à imagem e semelhança de um austero e respeitável “homem de família” provedor, casado e pai. As tensões introduzidas na relação conjugal ao longo das duas gerações – pelo trabalho remunerado das mulheres e por suas reivindicações de equidade, pelos novos padrões de consumo familiar, pela mobilidade social e por projetos de vida crescentemente mais individualistas – e a fragmentação observada na imagem do homem de família, constituem um campo para a coexistência de distintas experiências de vivência parental, com uma crise desta figura paterna tradicional, sem a consolidação de um modelo que a substitua. Assim, pesquisas relatam dificuldades de consagração dessa imagem em contextos de baixa renda, em que os homens se encontram distanciados do modelo central da masculinidade. Nesse contexto, as redes de relações e as estratégias comunitárias de sobrevivência preponderam e, paradoxalmente, há dificuldade para construir lugares masculinos que não sejam o de provedor, chefe e pai. As ações dos trabalhadores para aproximá-los do modelo partilhado idealmente vinculam-se a situações que inviabilizam a efetivação desta demanda, pois os trabalhadores são marcados por períodos de desemprego e constroem argumentos para legitimar sua condição de desempregados. Nessa conjuntura, há uma dificuldade de continuar a reivindicar o lugar tradicional de homem devido a períodos de sustento financeiro pela esposa, a mãe ou outro membro da família e novas relações de gênero caminham ambiguamente ao lado de múltiplas situações de providência financeira. Por isso, trabalhar a dimensão da família brasileira sob a ótica da chefia familiar representa ainda uma delicada questão epistemológica, na medida em que a maioria dos estudos sobre família tende a incorporar a perspectiva de gênero como um problema unicamente feminino. Dados estatísticos sobre o perfil de homens e mulheres chefes de família permitem mostrar a permanência de diferenciais em termos educacionais e de acesso aos serviços e bens de consumo coletivos bem como ao mercado de trabalho. Esses dados mostram também que, embora entrando no mercado de trabalho com desvantagens no tocante ao vínculo trabalhista mais frágil, as mulheres acabam desenvolvendo alguma vantagem em relação à manutenção do posto de trabalho. Observa-se ainda a alteração de relações, ou constituição de novas relações de família como, por exemplo, o crescente afastamento da tradicional imagem de dependente do idoso e sua relativa substituição pela de contribuinte ou até esteio do grupo familiar. Além disso, vêm se ampliando os interesses e horizontes sociais dos idosos no que se refere a outros grupos e relações, principalmente por espaços sociabilizadores nos programas de lazer e cultura para a “terceira idade”, embora seja mantida a importância da família. Outro fator para a análise das relações familiares é a transformação, ao longo das últimas décadas, na compreensão da homossexualidade, alavancada pela exposição do preconceito com o fenômeno da AIDS. A crescente organização civil em torno do respeito à homossexualidade, as resoluções de diversos conselhos profissionais na área da saúde proibindo sua avaliação como doença e o número crescente de mortos que deixavam parceiros legalmente sem direitos sobre o patrimônio muitas vezes construído em conjunto contribuiu para que, nos anos 80 e 90, vários países da Europa legalizassem a união entre pessoas do mesmo sexo. Se a crise da família vem sendo anunciada há alguns anos, a reivindicação do direito a ser pai e mãe feita por homossexuais, visto como desdobramento desse novo conjunto familiar, oferece novos matizes à discussão, referindo o surgimento de novas organizações familiares que fogem ao padrão tradicional, tal como ocorreu a trinta anos em relação ao divórcio. No contexto das transformações na formação, estruturação e dinâmica da família, permanece seu papel central de “amortecedor’ social. Frente aos baixos salários, à carência de serviços públicos e a outros fatores desfavoráveis, o grupo familiar se viabiliza “em decorrência de uma lógica de solidariedade e de um conjunto de práticas no campo de ação de grupos domésticos, que atuam como unidades de formação de renda e de consumo, procurando maximizar os recursos à sua disposição” (CARVALHO e ALMEIDA, 2003, p. ). Assim, a família mantém sua importância como espaço de sociabilidade e de socialização, e mudanças em seu entorno refere-se mais à sua grande capacidade de adaptação frente às transformações econômicas, sociais e culturais do que a uma pretensa ameaça de dissolução. Por isto, a família tem sido considerada foco central das políticas sociais, constituindo o eixo sobre o qual os programas e ações podem possuir maior efetividade e pertinência. Família e Políticas Sociais Nesse capítulo, serão discutidas algumas abordagens no trabalho com famílias, visando apresentar certos modos de compreensão e organização da ação clínica em saúde em alguns contextos do atendimento público. Essas ações contextualizadasnão visam abranger todo o espectro do cuidado bio-psico-social em políticas de assistência pública, mas apenas oferecer referências para refletir sobre modos de ação diferenciados conforme o contexto e demanda em questão. Desse modo, a compreensão da assistência em políticas públicas se remete à compreensão de ações de cuidado como clínicas, que em seu sentido etimológico refere-se ao cuidado e atenção a outro. De acordo com Lévy (2001), clínica refere-se à palavra grega kline, e tem o sentido de atenção e cuidado a uma demanda. Esse modo de compreender a clínica possibilita articular o atendimento multidisciplinar enquanto múltipla atenção em diferentes direitos da cidadania, tais como saúde, educação, moradia, etc. Os problemas relacionados a demandas a múltiplos profissionais – médico, assistente social, psicólogo, educador, terapeuta ocupacional, agente de saúde, entre outros – estão geralmente associados a uma variada e imbricada gama de aspectos e problemas na situação de vida da população, tais como doenças, crises repentinas que rompem a dinâmica familiar estabelecida, dificuldades de apropriação e pertencimento aos espaços já instituídos de socialização ou cuidado público (escolas, dispositivos de saúde, associações de bairro, etc.), o contato cotidiano com problemas da realidade social, tais como o tráfico, situações de violência, desemprego, miséria, etc. Assim, apresentar-se-á alguns trabalhos no âmbito da saúde e assistência social que usualmente possuem abordagem interdisciplinar. Reintegração Familiar O trabalho de reintegração familiar se origina na determinação judicial para a reintegração à família de uma criança residindo em abrigo. Para efetuar tal ação, é preciso analisar meios pertinentes para alcançar tais objetivos, atentando para as situações específicas de cada família e constituindo elos de referência por meio dos quais a família possa sustentar social, econômica, psicológica e institucionalmente, a situação de reintegração. Nesse processo, é importante analisar o desejo da criança e da família, e buscando evitar sofrimentos para ambos, numa atitude de escuta atenta e compreensiva, analítica e avaliativa. Além disso, para implementar encaminhamentos e intervenções, o técnico deverá estar atento a suas próprias questões valorativas, visando compreender, de forma não preconceituosa, as diferenças de articulação e estruturação da família, sobretudo quando escapam ao modelo de família tradicional. Isso porque vários fatores interagem nesse momento, alguns de ordem prática, como a possibilidade de que o retorno da criança onere o orçamento familiar, outros de ordem subjetiva, como o reordenamento de papéis exercidos na dinâmica familiar. Anteriormente à reintegração, deve-se investigar alguns aspectos para possibilitar a cesura de um tecido relacional no qual a criança possa se inserir. Primeiramente, é preciso avaliar a motivação da família na desinstitucionalização. A origem da proposta de desligamento da criança (a família, o abrigo, o Juizado ou uma ONG) indica possíveis dificuldades, sobretudo quando tal iniciativa não parte da família, requerendo um apoio sistemático, a médio e longo prazo. Em segundo lugar, é necessário conhecer a história de vida da família – sua constituição, a rede social intra e extrafamiliar, sua dinâmica e interação – e as razões da institucionalização, do ponto de vista da família. Por meio da percepção dos aspectos sócio-psicológicos e jurídicos que possam estar dificultando o acolhimento familiar, é possível articular estratégias contextualizadas de intervenção. Identificar, na história familiar, os fatores significativos – violência doméstica, rejeição mútua ou unilateral, doença mental, drogadicção, desemprego, etc. – que possam sinalizar a pertinência ou contra-indicação da reintegração naquele momento. Ao longo desse processo, visitas domiciliares à família, entrevistas biográficas, de anamnese, e entrevistas familiares sistêmicas, realização de grupo de pais (espaço social); investigação da rede social de contatos (espaço social) são importantes instrumentos que possibilitam o enfoque em aspectos fundamentais, tais como: a investigação da dinâmica e rede social familiar; o papel da criança a ser reintegrada nessa dinâmica, com a investigação de hipóteses e de informações sobre as relações; a história do afastamento da criança, com o questionamento dos fatos ocorridos; a análise do ciclo de vida da família; a rede social da família e o contexto cultural. Quando há negativa da família para a reintegração, pode-se buscar alternativas junto a parentes afins. Muitas vezes, a família afirma desejar o retorno da criança, mas não se mobiliza para efetivar sua saída do abrigo, sendo importante criar ações que favoreçam a convivência familiar da criança e evitar que ela permaneça definitivamente institucionalizada. A negativa da criança pode sinalizar a vivência de algum tipo de violência, como vitimização psicológica, abusos ou violência física, que em geral está ligada ao próprio abrigramento e precede o encaminhamento efetuado pelo Conselho Tutelar, pelo Juizado da Infância e da Juventude ou por familiares. Quando a família toma a iniciativa para abrigamento, pode haver uma situação de violência camuflada, sendo relevante investigar as representações e referências que a criança possui de sua família. No contexto de investigação das inter-relações nas quais se dará a reintegração da criança, é preciso analisar junto a ela quais vínculos lhe são mais significativos, suas motivações e modos de constituição, bem como os fatores que dificultaram a manutenção dos vínculos entre ela e a família (visitas esporádicas ou inexistentes, embargo jurídico e outros). Do mesmo modo, a investigação de suas expectativas e referências de família, de abrigo, de futuro para a sua vida, bem como os sentimentos com relação ao abandono (como o viveu, e como o vê no momento) alicerça o desenvolvimento de ações de preparação gradativa para o desligamento do abrigo, visando tornar essa passagem a menos traumática possível. Por outro lado, o conhecimento da dinâmica da instituição auxilia a compreender os aspectos que podem influenciar na manutenção ou não dos vínculos familiares nela (pouca flexibilidade nos horários reservados para as visitas, por exemplo), bem como observar quais são os vínculos existentes entre a criança e o abrigo em sua interface com a família (a criança pode tecer relações no abrigo que lhe garantam uma rede de significação com a qual compara a dinâmica familiar, por exemplo). Nesse contexto, é necessário o estabelecimento de um contrato de consenso sobre os objetivos da reintegração. Após o desligamento, é necessário um trabalho de acompanhamento, que avalie os modos da criança e da família de lidar com a reintegração, investigando os meios de “reorganização” e tecitura de vínculos colocados em prática para o acolhimento efetivo, as mudanças na dinâmica familiar para viabilizar a permanência da criança no lar, bem como a necessidade de suportes sócio-econômicos de apoio à família, que devem ser procurados, entre os recursos da rede social (rede de serviços), dentro da pertinência de cada caso. Durante o trabalho, é importante refletir junto à família a dicotomia entre FAMÍLIA e ABRIGO, preparando-a para eventuais exigências da criança/adolescente, bem como fortalecê-la no enfrentamento das dificuldades que poderão ocorrer na adaptação da criança/adolescente, suas idealizações e expectativas diante da mudança de realidade. É importante também atentar para as formulações do estatuto da criança e do adolescente nesse sentido, que afirma em seu artigo 19 que “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes’’. Assim, os abrigos devem ser um recurso provisório, visando sempre a reintegração familiar, quando possível.Quanto maior o tempo de permanência da criança no abrigo, maior será o desapego com relação à família (principalmente quando a instituição não favorece esse contato), o que torna mais difícil reatar os vínculos. (VASCONCELOS, 1985). Trabalhando com Famílias em Saúde da Família No trabalho em saúde da família, é preciso refletir e construir metodologias de interação com a comunidade, analisando suas demandas, para a implantação de um programa eficiente de atenção primária em saúde, em etapas progressivas para o acompanhamento familiar de longo prazo, fomentando o auto cuidado e práticas de vida comprometidas com a saúde. O trabalho com famílias possui uma perspectiva própria e dever ser distinto da terapia familiar: enquanto o primeiro é um acompanhamento multidisciplinar com múltiplas intervenções e ações que se valem das estruturas da família, o segundo propõe uma intervenção especializada, que busca modificar a dinâmica de relações familiares. O trabalho com famílias se desenvolve pela compreensão sistêmica, tanto da dinâmica familiar quanto de suas interações no contexto social e econômico mais amplo: redes de relações e apoio fora do âmbito familiar, relações de trabalho de membros da família, outras instituições que participam de seu cotidiano (escola, creche, associações de bairro e instituições de saúde), etc. A relação deve ser construída ao longo das ações de saúde, explorando as estruturas da família a partir das brechas para, compreendendo-a, preparar uma estratégia pertinente a cada conjunto familiar. A ocasião de cadastro das famílias, as mudanças de fase do ciclo de vida destas, o surgimento de doenças crônicas ou agudas de maior impacto são momentos-chave que devem ser explorados. Estas situações permitem que o profissional de cuidados primários crie um vínculo pertinente com membros da família, pois atua no momento de emergência de uma demanda familiar. O trabalho na atenção primária em saúde da família deve considerá-la como lócus central de atuação e basear-se na realidade local, construindo um fazer consistente que parta dos recursos comunitários para a melhoria dos indicadores de saúde. Nesse sentido, é fundamental a constituição de estratégias de investigação e conhecimento da comunidade, que podem se dar em conjunto com a intervenção. O processo junto às famílias deve considerar diferentes etapas de trabalho, favorecendo a aderência e a efetividade do serviço de atenção primária. Assim, o trabalho pode ser dividido didaticamente em diferentes etapas – Associação, Avaliação, Educação em Saúde, Facilitação e Referência – para melhor explicação e compreensão. A utilização destas etapas depende da situação dada e das necessidades de cada família atendida. Associação Associar-se ao paciente e sua família é fundamental para a construção do processo de promoção do cuidado em saúde. A associação se inicia no momento em que um paciente traz ao profissional uma situação em que a família (ou o grupo com o qual interage) interfere direta ou indiretamente no processo. Muitas vezes, o desenvolvimento do processo terapêutico do paciente fica comprometido por dificuldades familiares, necessitando de uma intervenção clínica ou social, sendo este um momento muito rico para se estabelecer parceria com o grupo. Para uma boa interação, o profissional deve respeitar a realidade e crenças do grupo, o que pode ser difícil. A realidade de vida das pessoas é diversificada e exige do profissional uma observação atenta para não recair em atitudes centradas em seu próprio modo de compreender e em soluções baseadas no seu próprio núcleo de conhecimentos, que podem levar ao confronto e mesmo ao rompimento da relação com o paciente e sua família. Partindo da concepção de Paulo Freire acerca da necessidade de se perceber as experiências pessoais na construção de uma comunicação efetiva, deve-se considerar que, para que esta comunicação ocorra, é preciso que ela se baseie na realidade vivida e constitua uma complexidade de sentidos pertinente à pessoa que se pretende atingir. Assim, o trabalho de associação com os pacientes e famílias abrange o encontro com grupos familiares e a busca de compreensão dos sentimentos e vivências de cada paciente. Nessa aproximação, é importante a atenção e o cuidado aos momentos de contato, às crenças, relações e hierarquias familiares. Deve-se ainda considerar os obstáculos possíveis, tanto de ordem profissional (como a falta de clareza dos motivos e direções da entrevista familiar), quanto do paciente (como o temor de perder seu status perante o profissional na escuta dos demais membros da família) e as armadilhas neste tipo de intervenção que podem expor o profissional (como a lateralização da comunicação com um dos membros da família, uso de linguagem inapropriada para aquele grupo familiar, etc.). A associação ao paciente e sua família possibilita a efetiva inserção dos cuidados primários de saúde para uma melhoria da qualidade de vida da comunidade. Avaliação Uma vez construída a associação com a família, é importante perceber sua dinâmica, por meio de instrumentos mais objetivos de análise. Essas ferramentas buscam explicitar as linhas de poder e decisão da família, seu modo de perceber o processo de saúde e doença, seus recursos concretos e simbólicos e seus apoios internos e comunitários. A partir desta análise de conjuntura se constituirá o projeto de intervenção, reconhecendo a crença da família no processo de adoecer e acordando com ela um plano de ação que respeite o seu modo de vida. A análise clínica do grupo familiar permite entender os caminhos pelos quais surgem as diferentes situações de agravo à saúde, como os motivos da grande incidência familiar do alcoolismo, ou das dificuldades de um paciente hipertenso em controlar sua hipertensão. Minuchin & Colapinto, por exemplo, descrevem a situação de gêmeas idênticas portadoras de diabete que mostravam controle desigual da moléstia. Ao analisar as relações familiares destas meninas, constataram que a que possuía mau controle da doença manifestava-a como sintoma devido aos problemas de relacionamento dos pais – sempre que estes brigavam, ela apresentava uma crise na diabete. Assim, além da eficácia das medicações e da pertinência das orientações profissionais, é necessária uma compreensão das situações de saúde e doença no conjunto de fatos e relações no cotidiano do sujeito e da família, para prevenir doenças e suas conseqüências. A avaliação adequada do papel da pessoa portadora de qualquer agravo em sua estrutura familiar (como esta doença é percebida pelos membros do grupo, em que coisas eles acreditam ou gostam de fazer), possibilita a efetividade e aumenta a resolutividade das intervenções e ações em saúde. Por exemplo, uso de álcool em tradições familiares e em momentos de comemoração da família dificulta sua percepção como risco à saúde ou a compreensão da situação de consumo freqüente como um passo inicial para a dependência. Intervenções que proponham enfrentar o alcoolismo devem considerar seu significado para o grupo alvo e usar as representações deste nas ações em saúde, para melhorar os resultados na prevenção e tratamento. Já o enfrentamento de doenças crônicas deve investigar como o paciente e sua família entendem a doença, ampliando seu conhecimento através de orientações em linguagem apropriada à compreensão, sobretudo no tocante à influência da modificação de hábitos na prevenção ou no retardo da evolução de doenças. Essas negociações só são possíveis pela efetuação satisfatória do processo de associação e avaliação, permitindo resultados mais consistentes e duradouros no acompanhamento do paciente. Dentre as ferramentas de avaliação disponíveis em atenção primária, há algumas particularmente úteis, como o Genograma, um instrumento de identificação de padrões de repetição de patologias que permite uma visualização rápida das ações a serem desenvolvidas pela família em estudo. O Ciclo de Vida das Famílias é outra ferramenta relevante,pois identifica as situações mais freqüentes de surgimento de disfunções. Percebe-se, por exemplo, que o surgimento de doenças aumenta nas fases de transição e estresse, em que a família é desafiada a se reestruturar. A análise do Ciclo de Vida permite auxiliar a família a compreender e construir modos de atravessamento dessas transições. Um terceiro instrumento é a Rede Social, que permite vislumbrar os apoios e crenças da família, identificando pessoas-chave para a busca de amparo e compreendendo as bases culturais de interação familiar. Os contatos e estruturas da comunidade permitem buscar soluções a partir do próprio núcleo, criando alicerces para o auto cuidado. A cartografia (MORATO, 1999) da comunidade e do núcleo familiar também constitui um importante método clínico, que permite reconhecer relações, compreensões e percepções da família, buscando vias de passagem e construção de soluções. Pode-se, assim, partindo da intervenção e escuta clínica dos problemas relativos a certo tema, resgatar recursos negados socialmente (SZYMANSKI, 2004). A enquete clínica (LEVY, 2001), por sua vez, permite conhecer profundamente vivências e representações sociais de grupos e indivíduos, sendo útil na investigação de obstáculos, facilitações e motivações da família para a aderência às ações em saúde. Para um aprofundamento dos instrumentos de avaliação pertinentes a intervenções em atenção primária, pode ser encontrado material adequado nas referências bibliográficas. Educação em Saúde A constituição de um processo de educação em saúde deve favorecer o desenvolvimento do auto cuidado e de hábitos de vida saudáveis, antecipando situações que permitam às famílias e pacientes compreender o processo de adoecer e como ele pode impor alterações e restrições a suas vidas. Um dos momentos mais pertinentes para abrir espaços para a educação em saúde é quando a família ou o paciente procura a equipe de saúde para resolver um problema, pois permite uma discussão sobre o processo de adoecer que deu origem à demanda que encontra maior receptividade do paciente. Nessa fase, é mister lembrar que o viver e o fazer da população possibilitam novos modos de construção de caminhos, de produção de cultura e de criação de soluções, e que considerar os recursos e discursos da família e da comunidade é a melhor maneira de promover ações em saúde, bem como de criar novas ações pertinentes ao contexto. As possibilidades são dadas pela própria comunidade, que tem parâmetros e crenças, sobre os quais deve trabalhar o profissional, no diálogo entre suas informações e as percepções dos clientes. Muitas vezes, os pacientes não seguem orientações do profissional de saúde porque essas foram elaboradas sem atentar para a contextualização e o sentido das informações e ações junto à história, experiência e possibilidades da comunidade em questão. Para possibilitar a discussão e transformação de hábitos perante situações tratamento e prevenção de doenças, a educação em saúde deve considerar as informações que a comunidade traz, valorizando as "dicas" expressas de modo velado e respeitando os caminhos e soluções da comunidade. Muitas vezes, alguns procedimentos não são possíveis por falta de possibilidades financeiras, por inadequação às circunstâncias familiares ou outras razões, e será preciso buscar soluções alternativas. A discussão e percepção de valores, referências e relações, bem como a abertura de espaços de expressão dos clientes, permite encontrar recursos pertinentes, que muitas vezes não são reconhecidos por não serem os tradicionais. Não perceber o modo como as pessoas vêem e lidam com questões de saúde pode levar à oposição perante as propostas apresentadas. Facilitação Outra tarefa importante em saúde primária é facilitar a comunicação entre os membros da família. Para isso, é preciso uma compreensão das inter-relações no interior da família e do modo de se comunicar que ela apresenta. Segundo a teoria sistêmica, as pessoas tendem a manter, por meio de mecanismos de controle negativo, as regras e as posições que ocupam na estrutura. Isto gera, com freqüência, bloqueios de comunicação, que configuram situações de crise e conflito, podendo desencadear o processo de adoecer. O profissional de cuidados primários, por sua posição na comunidade, pode abordar estes bloqueios e, por meio de ações programadas, favorecer uma troca de informações e sentimentos que facilite a manutenção e recuperação da saúde da família em estudo. Uma das grandes chaves para o sucesso da facilitação da comunicação é perceber a dinâmica de relações da família, nas suas interfaces de discursos, poderes, fazeres, práticas e afetos. Na compreensão dessa teia de relações, é possível interpor e ressaltar caminhos e questionamentos frente aos favorecimentos e desfavorecimentos para a fluência da comunicação e para o engendramento de práticas promoção de saúde e doença. Desse modo, pode-se entretecer redes de significados e sentidos participando dos anéis de comunicação da família, discutindo os processos e meios de vida do grupo familiar e fazendo um arco de reflexão sobre sua origem, seu percurso, seu momento e seus projetos. Esse arco de comunicação permite que a família reconfigure seu senso de união e de direção, interpondo a equipe de saúde como elo de fomentação do crescimento familiar e da promoção de saúde. O diálogo em situações de doença ou conflito exige atenção do profissional de cuidados primários para perceber sentimentos e articulações de sentido que o grupo manifesta. Situações de doença grave ou óbito iminente podem representar na família um momento de crise, uma perda de referências desalojante, na qual os recursos e referências já constituídos não contemplam a experiência que se desenrola, nem orientam um caminho a seguir. (BRAGA, 2005). Por isso, a comunicação tende a se dar de modo entrecortado e permeado por silêncios, culpas, angústias. A facilitação do diálogo permite às pessoas explorar seus sentimentos e esclarecer suas dúvidas, evocando uma abertura para a expressão de afetos, não-ditos e interditos que podem acompanhar situações de doença. A construção dessa proposta passa pela discussão do quadro, com respeito às hierarquias e linhas de comunicação da família, considerando sua perspectiva sobre as questões que se fizerem e esclarecendo e discutindo o processo e seus agentes causais. Pessoas importantes na estrutura familiar, mesmo que não pertencentes ao agrupamento, devem ser convidadas a participar do processo para que a comunicação atinja o nível desejado de troca. Isto evita a permanência de sombras na comunicação, o que pode torná-la menos satisfatória. A atitude do profissional durante estes encontros familiares deve ser de estímulo à troca de sentimentos e de expectativas entre os componentes, de modo a facilitar a interação, e de esclarecimento das dúvidas que existam sobre a patologia e sua progressão, e das alternativas de tratamento disponíveis para o caso. Referência Nos casos em que é preciso referir a família ou seu paciente a outros serviços, o trabalho com famílias deve ocorrer de modo interativo, discutindo com a família as razões e os resultados esperados do encaminhamento e os modos locais mais pertinentes para atendimento. O encaminhamento deve ser acompanhado, fazendo-se contato com o profissional referenciado de modo e realizando-se ao menos uma entrevista de retorno com o paciente para discutir o atendimento junto a este e dar subsídios tanto sobre a situação experienciada pela família durante o adoecimento quanto sobre o atendimento a ser realizado junto ao paciente. Este processo de comunicação aumenta a satisfação com o encaminhamento, além de permitir resultados mais efetivos, pois garante informações à família e ao profissional de referência, permitindo acompanhar eventuais problemas e complicações e evitando o abandono do cuidado de saúde e possíveis agravamentos de problemas não tratados. Desse modo, a perspectiva preventiva pode continuar a atuar naassistência. Conclusão A atenção à família em cuidados primários de saúde redireciona o enfoque do atendimento exclusivo ao doente - visão tradicional da atenção à saúde no Brasil – envolvendo a comunidade nas políticas de saúde, contrapondo-se à prática meramente criadora e executora de políticas de prevenção. A partir das habilidades clínicas do profissional a execução das ações preventivas se apresenta como intervenção�, entrelaçamento de recursos e ofícios entre rede de saúde e grupos familiares, visando políticas contextualizadas que possam repercutir nas comunidades onde atuam. Desenvolvê-las implica compreender ações clínicas e educativas no contexto de uma abordagem dialógica e cartográfica, na qual as ações se constituem no próprio contato e investigação junto à comunidade. Assim, as práticas clínicas e educativas devem considerar os objetivos das famílias, entrelaçando-os às atividades educativas da equipe de saúde. Perceber os modos de se relacionar da população, sua epidemiologia e seus credos exige a presença da equipe na comunidade, compreendendo e respeitando suas representações, concepções, anseios e práticas. A construção das ações de saúde e educação deve levar em conta estas prioridades locais, de modo que, ao se introduzir um conceito ou propor uma ação, eles possam ser legitimados dentro da comunidade como coadunados aos seus interesses. Muitas das ações propostas pelas equipes de saúde são embasadas em saberes que a população pode dominar, porém pode não conseguir incorporar a seu cotidiano. Assim, as ações em saúde lidarão com os sistemas de vida e suas correlações e é nesta direção que se mostra a necessidade de um sentido prático para ações conectadas com o pensamento local, constituído e analisado pela investigação clínica e interventiva dos modos de sentir, pensar, dizer se relacionar das famílias, favorecendo a eficiência na implantação de um estilo de vida mais saudável, com intervenções e resultados em longo prazo. Outro relevante aspecto da atenção primária em saúde é o trabalho em equipe multidisciplinar. A visão de vários profissionais sobre uma situação permite uma percepção ampliada de seus múltiplos aspectos, possibilitando maiores interconexões e construção de caminhos no sentido da aproximação das aspirações da comunidade. Olhares compartilhados vislumbram as várias faces do caleidoscópio familiar em sua inter-relação com a ação clínica, facilitando a compreensão do processo de adoecer e a identificação dos recursos comunitários para apoiar o caso em questão. � REFERÊNCIAS Neoliberalismo e Políticas Públicas OFFE, C. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. Emancipação e gestão democrática em políticas públicas sociais NARITA, S. Os direitos sociais à educação e à saúde na América Latina (Brasil e México): políticas públicas, democracia e cidadania sob o estado neoliberal. Tese (Doutorado) São Paulo: FFLCHUSP, 2004. POLÍTICAS PÚBLICAS E TERCEIRO SETOR LOPES, J. R. Terceiro setor: a organização das políticas sociais e a nova esfera pública. São Paulo em Perspectiva, Julho/Setembro. 2004, vol.18, nº. 3, p.57-66. Transformações sociais na família: trabalho com famílias em instituições LÉVY, A. Ciências clínicas e organizações sociais. 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Assinale a alternativa que contém as principais estratégiasde ação do estado capitalista para este equilíbrio: O Estado capitalista atua principalmente em momentos de equilíbrio, em que a diminuição das tensões sociais favorece a implantação de ações coletivas e democráticas, visando a redistribuição de recursos econômicos e do próprio poder de atuação e decisão coletiva para toda a população. O Estado capitalista atua principalmente em momentos de assimetria, quando as tensões sociais se tornam mais intensas e é necessária uma intervenção, sempre realizada a favor da classe dominante, legitimando as relações de dominação constituídas na estrutura capitalista. Um exemplo são as ações em educação, que servem à qualificação meramente técnica de operários, sendo a produção e reflexão sobre o conhecimento reservada à classe dominante. Atuando na continuidade do processo social, o Estado capitalista planeja suas ações no longo prazo, visando a distribuição da riqueza gerada com o crescimento econômico para toda a população, de modo que o país se desenvolva de maneira relativamente homogênea. Assim, o Estado obriga as empresas capitalistas a reverterem um excedente de riqueza produzido em prol do bem social, através de impostos apenas cobrados das empresas. Atuando principalmente em momentos de profunda assimetria, o Estado qualificaria mão-de-obra para o mercado, como ainda, através das políticas sociais, procuraria controlar parcelas da população excluídas do processo produtivo, assegurando condições materiais de reprodução da força de trabalho, inclusive visando uma adequação quantitativa entre a força de trabalho ativa e a força de trabalho passiva, e de reprodução da aceitação da condição de exploração. QUESTÃO 02 O liberalismo se configura num contexto de luta política da burguesia nascente contra o Absolutismo e a nobreza do Antigo Regime, buscando justificar o poder político e econômico da burguesia como de ordem natural, o liberalismo concebe como função do Estado apenas garantir direitos individuais, como o direito à propriedade privada, o direito à vida e à liberdade de organização do mercado. O Estado, ao contrário do Antigo Regime, não deveria interferir nas relações econômicas, mas arbitrar conflitos surgidos numa sociedade pautada pela competição entre indivíduos, onde proprietários e trabalhadores disputam interesses, realizam contratos, etc. Tendo por principais expoentes HAYEK (1944:1977) e FRIEDMAN (1977), o neoliberalismo retoma e reorienta as idéias liberais. Quais os principais paradigmas do discurso neoliberal e quais as principais críticas a este discurso? O paradigma neoliberal da organização social a partir do mercado ganhou força a partir dos anos 90, criticando o Estado de Bem-Estar Social após a dissolução dos governos socialistas na Alemanha e na União Soviética. Os neoliberais consideram as políticas públicas sociais um entrave ao desenvolvimento do capitalismo, diminuindo-as como ameaças aos interesses e liberdades individuais, pois inibiriam a concorrência privada, a livre iniciativa e o crescimento econômico, considerado o mecanismo do próprio mercado para restabelecer o equilíbrio social. Assim, o neoliberalismo é criticado por desconsiderar o discurso econômico, ressaltando apenas as questões que envolvem a sociedade e a política, preocupando-se demasiadamente com as relações de exploração que pautam a estrutura social. O neoliberalismo rejeita a centralização econômica e social do Estado e pressupõe que as relações sociais são efeito apenas de ações individuais, nunca coletivas, numa concepção individualista, utilitarista e competitiva da sociedade. Por isso, o neoliberalismo é criticado em sua profunda desconsideração pela esfera pública e social, alçando para a lógica de mercado ações humanas de construção da sociedade que situadas em outros âmbitos. Frente a esta crítica, o neoliberalismo propõe ações sociais desvinculadas do Estado, como aquelas presentes nas parcerias público-privadas, de modo a estimular uma organização social democrática. O neoliberalismo abandona a noção liberal de progresso da história e enfatiza o discurso econômico de mercado como ordem natural sobre todas as esferas da sociedade. Ressalta as virtudes reguladoras do mercado e critica a intervenção estatal, defendendo a iniciativa individual como base da atividade econômica e justificando o mercado como regulador da riqueza e da renda, com foco no capitalismo competitivo, organizado através de empresas privadas. Atribui ao Estado o papel de promotor de condições positivas à competitividade individual e aos contratos privados, e percebe qualquer outra ação estatal como coercitiva. O neoliberalismo é criticado por desconsiderar a injustiça social estrutural perpetrada pelo sistema capitalista e a função política de representação democrática e condução social coletiva do Estado e por tratar questões que estão na esfera da política e da organização social com a lógica econômica, criando uma hegemonia do discurso de mercado. O neoliberalismo ressalta as ações coletivas da sociedade, compreendendo as junções e articulações entre grupos e empresas como importantes para a concorrência de mercado e para as aos que visem justiça social. Por compreenderem a ação dos grupos sociais como mais importante que o Estado, os neoliberais acabam fragilizando as políticas sociais, que passam a possuir menos recursos financeiros e menor relevância frente à hegemonia do discurso econômico. Ao tomar em termos de produtividade de mercado ações e dimensões da vida social que possuem vital relevância política e democrática, estes artifícios descaracterizam e desqualificam as ações sociais enquanto meio de constituição de um espaço público, coletivo e participativo. QUESTÃO 03 Assinale os instrumentos de ação social mais importantes no Estado. Empresas Privadas. Organizações Não Governamentais, Associações e outras entidades privadas sem fins lucrativos. Órgãos de Educação e Saúde e OSCIP's. Todas as alternativas estão incorretas. QUESTÃO 04 As políticas sociais se referem a ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais visando à diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico capitalista. As políticas sociais que visam garantir direitos e assistência mínima à população como um todo são usualmente vinculadas aos direitos de cidadania, como assistência social, saúde, educação, previdência, habitação, renda mínima, entre outras. Tais políticas vinculam-se também a uma concepção de Estado na qual este possui um importante papel no sentido de promover a igualdade social. Assinale a alternativa que descreve as transformações no cenário político-econômico, na concepção de Estado e nas políticas sociais no período de redemocratização (final dos anos 70 e início dos 80) e no avanço neoliberal nos anos 90 no Brasil. Na década de 80, foram instituídas algumas conquistas em termos de políticas sociais, como a universalização da saúde e da educação, a instituição de conselhos democráticos em diferentes esferas dos órgãos de estado e a universalização da previdência, sob a pressão do movimento pela redemocratização do país A década de 90 foi marcada pela prioridade do discurso econômico neoliberal, com o avanço da abertura comercial e financeira dos mercados e a estratégia de priorizar integração à ALCA e de estabilidade econômica. No campo das políticas sociais, a reforma do Estado pelas privatizações, a reestruturação produtiva das empresas, com múltiplas demissões, e o abandono de funções sociais por parte do Estado em prol de entidades privadas, com o fortalecimento de parcerias público-privadas e de entidades do terceiro setor nem sempre idôneas, tiveram conseqüências destrutivas sobre o emprego e os direitos sociais. O Estado de Bem Estar social surgiu no contexto da formação dos blocos comunista e capitalista, após a segunda guerra mundial. Neste contexto, o Estado perpetra açõespara regular os desequilíbrios gerados na acumulação capitalista, redistribuindo a riqueza e garantindo benefícios sociais mínimos. Durante a década de 80, o avanço das conquistas sociais no sentido do Estado de Bem Estar Social foi pequeno, dada a grande influência do período ditatorial anterior, não sendo possível instituir na constituição níveis de participação democrática. Num Estado de cunho neoliberal, ações e estratégias sociais de governo são minimizadas e várias vezes articuladas a iniciativas e interesses privados, enfraquecendo ou desvirtuando seu caráter público. Elas não permitem e, muitas vezes, não visam alterar as relações sociais estabelecidas. Por isso, foi no período neoliberal, a partir do governo Cardoso (1994-2002), que os programas sociais passaram a se desenvolver, financiados pelas verbas das privatizações realizadas neste período. O Estado de Bem Estar Social, tal como erigido na Europa, nunca chegou a se consolidar no Brasil, sendo ainda incipiente na década de 80, quando houve avanços importantes no bojo do movimento de redemocratização. Na década de 90, o avanço da globalização e abertura comercial e financeira dos mercados e a estratégia de priorizar integração à ALCA tiveram graves conseqüências sobre os índices de desemprego. O projeto neoliberal no Brasil ultrapassou a reforma da gestão de Estado e incidiu na continuidade do autoritarismo político pelas alianças de elite formadas após a ditadura militar, num contexto em que ainda não haviam sido implantadas as diretrizes da Constituição de 1988. Assim, os agentes que acabaram por melhor garantir a justiça social foram as empresas multinacionais e as ONG's de empresários, por meio das parcerias público-privadas, que não recebem nenhum tipo de benefício por tais ações. As políticas sociais da década de 80 tiveram influência tanto dos movimentos sociais na esfera interna quanto do Estado de Bem-Estar Social que havia se erigido na Europa para manter o domínio capitalista frente ao avanço socialista no leste no pós-guerra. Com o fim da Guerra Fria e o avanço neoliberal, os governos eleitos passaram a se posicionar a favor do Estado de Bem Estar Social, impedindo as privatizações, e a abertura desregulada da economia ao capital externo, bem como exigindo garantias trabalhistas e tributárias das empresas que se instalassem no país, o que evitou o aumento do desemprego e a fragilização dos vínculos trabalhistas. QUESTÃO 05 No Brasil, os programas de transferência de renda e microcrédito se iniciaram na década de 1990. A transferência de renda foi posteriormente vinculada à freqüência escolar, quando o programa Bolsa-Escola foi estendido ao nível nacional. Já os programas de microcrédito têm como foco micro e pequenas empresas, aliando o financiamento a consultorias e análises de mercado para o desenvolvimento da empresa. Assinale a alternativa que descreve corretamente as principais características das políticas de renda mínima e microcrédito frente à realidade brasileira: Os programas de renda mínima atuam principalmente com foco nas pequenas e médias empresas, garantindo um investimento mínimo do estado na parcela do mercado que mais emprega, já que estas empresas são responsáveis por até metade da empregabilidade da população economicamente ativa. Os programas de microcrédito atuam, por outro lado, voltados à população mais pobre, garantindo recursos para o combate à miséria. Há, porém barreiras para articular os diversos programas de política social, pois eles não conseguem formar em seu conjunto uma política nacional de cidadania. A implantação de uma garantia de renda mínima pela transferência monetária atua como política compensatória de combate à miséria, frente à alta concentração de renda da sociedade brasileira. Em comparação às políticas sociais tradicionais no Brasil, estes programas avançam politicamente ao dispor metas sócio-educativas e explicitar a preocupação de articular políticas diversas. Já os programas de microcrédito atuam no sentido de combater o desemprego e a pobreza, auxiliando a sobrevivência econômica dos pequenos empresários frente ao grande capital, considerando-se que metade dos trabalhadores brasileiros atua nestas empresas e poucas delas obtêm empréstimos junto ao mercado. Porém, as dificuldades ainda existentes apontam para a necessidade de articular estes programas à associação e participação coletiva como modo de fortalecimento das iniciativas individuais. A meta dos programas de transferência de renda é criar uma rede de proteção social, pela transferência monetária, para as populações mais pobres. Na sociedade brasileira, cujos índices de desigualdade estão entre os mais altos do mundo, tais programas atuam não apenas uma política compensatória, porém podem representar a solução para o problema da desigualdade. Quanto às políticas de microcrédito, conta a seu favor o fato de, no Brasil, 50% da população economicamente ativa trabalhar em microempresas (até cinco empregados), mas apenas 4,8% delas obter empréstimo. Assim, o microcrédito garante com absoluta segurança o desenvolvimento do microempreendedor frente ao grande capital. Alguns problemas dos programas de transferência monetária são: eles acabam atuando de modo isolado e regional, sem maior articulação a programas de educação, saúde, trabalho e outros, eles não questionam modelo econômico de pobreza estrutural, eles podem não implicar participação popular, mostrando-se vulneráveis ao contexto político e eles não estão vinculados a nenhum programa educacional no Brasil. Já o microcrédito é também chamado crédito produtivo, por sua vinculação ao desenvolvimento econômico e social, existe desde o período militar no Brasil e garante crédito a todas as pequenas e microempresas brasileiras, a juros baixos e com uma consultoria de avaliação do empreendimento. QUESTÃO 06 As cooperativas surgem tanto como modo de produção e distribuição de mercadorias distinto do capitalismo quanto como um arranjo entre trabalhadores capaz de organizar produtos e serviços de forma a ter condições de competir com a empresa capitalista. A cooperativa é um modo de organização surgido em vários períodos da história, criado e recriado pelos que estão marginais ao mercado de trabalho ou sofrem este risco, sempre que trabalhadores buscam alternativas à economia marginal que os habilitem para competir no mercado capitalista. Quais são os principais desafios que as cooperativas precisam enfrentar para se estabilizar na organização econômica capitalista? O desafio inicial se dá na gestão da empresa solidária, pois a administração é um saber científico, decorrendo daí que, se a maioria de trabalhadores ingressantes na cooperativa tem baixa escolaridade, não há subsídios para sua boa administração, sendo necessário um corpo técnico para realizá-la, como nas empresas capitalistas. Os outros desafios provêm desta má administração: dificuldades na formação, capacitação e acessória tecnológica de cooperativas, de acesso a crédito, que é em geral menor para cooperativas em comparação às empresas capitalistas, a falta de redes de comercialização, entre outros. O primeiro desafio encontra-se na gestão da empresa solidária, pois se encontra aí o embate ideológico de que, se considera o discurso dominante de que a administração é um saber técnico e a maioria de trabalhadores ingressantes na cooperativa tem baixa escolaridade, não haveria subsídios para sua boa administração. O segundo desafio encontra-se nos tributos e na organização legal, na qual a cooperativa não encontra amparo específico que ermitã distingui-la da empresa capitalista. Por outro lado, a cooperativa necessita de informação técnico-científica e torna-se mais viável quando o “know-how” de que ela precisa pode viabilizar-se aos cooperados. Neste aspecto, não há problemas, pois as universidades, através dos programas de incubadoras de cooperativas, garantem a todas as iniciativas de organização cooperativa o acesso à tecnologia, à informação e à capacitação. Ascooperativas têm de enfrentar mudanças organizacionais em direção à gestão solidária, que é ao mesmo tempo direito e tarefa de todos os cooperados. Este é o primeiro desafio, pois se considera o discurso dominante de que a administração é um saber técnico os cooperados não teriam subsídios para realizá-la, sendo inviável a gestão coletiva não efetuada por um corpo técnico. A administração, porém, é uma arte que une experiência e conhecimento na tomada de decisões e assim, geralmente as decisões na cooperativa, conquanto mais demoradas, são também mais acertadas, pois incluem um maior conjunto de informações, advindas do conhecimento e experiência de todos. O segundo desafio é então uma falta de garantia das bases de sustentação da economia solidária: a falta de ação político-governamental para dar subsídios à formação, capacitação e acessória tecnológica de cooperativas, que não é considerada pelo governo como um todo; a falta de acesso a crédito, que é em geral menor para cooperativas em comparação às empresas capitalistas; a falta de acesso a redes de comercialização, e de uma rede de cooperativas que atue para minimizar estes problemas; a falta de legislação tributária específica para empresas cooperativas, que faz com que os cooperados sejam tributados duas vezes, como sócios de empresa e como assalariados; a falta de fiscalização, que deixa uma brecha para que empresas capitalistas registrem-se como cooperativas, anulando direitos trabalhistas de seus funcionários e diminuindo ilegalmente o preço de seus produtos, o que se intensificou nas décadas de 1990 e 2000. A cooperativa é uma organização surgida da prática, que casa a unidade posse-uso dos meios de produção, próprios da produção simples de mercadorias, com o princípio de socialização destes, isto é, de sistemas só utilizados por grande número de pessoas, próprios do capitalismo. Embora este sistema pareça um híbrido entre estes dois modos de operação da economia, ele é uma síntese que os supera. O problema inicial é a gestão democrática da cooperativa, não pela falta de capacidade para a gestão, mas pelo discurso dominante de que a administração só é viável por um discurso competente de natureza técnico-científica. Outro problema é a falta de fiscalização, que deixa uma brecha para que empresas capitalistas registrem-se como cooperativas, anulando direitos trabalhistas de seus funcionários. Esta operação intensificou-se nas décadas de 1990 e 2000, tanto pelo aumento do nível de desemprego que levou à degradação das condições de trabalho quanto pela privatização da oferta de serviços sociais através de ONG's e parcerias público-privadas. Nestes casos, os contratos apoiaram a responsabilização social do Estado para contratação de funcionários por concurso público, para oferecer serviços e implantar projetos sociais integrados a um plano de desenvolvimento social, mas não aceitaram cooperativas na negociação. QUESTÃO 07 As transformações em saúde e educação visando à universalização do atendimento à população tiveram seu maior fortalecimento no período de lutas pela redemocratização, do final da década de 1970 e início da década de 1980, articuladas à assembléia constituinte e à promulgação da constituição de 1988. Aponte as principais transformações na organização de ambos os sistemas. Descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal. Participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis com a instituição de conselhos populares (Conselho de Saúde, Conselho Tutelar, etc.). Diversificação do atendimento, com foco na prevenção em saúde através de programas da atenção básica, como o Programa de Saúde da Família e no atendimento das demandas em educação, com a instituição de supletivos para alunos fora da idade escolar, campanhas pela matrícula universal de crianças, programas de recuperação paralela para combater a repetência escolar, etc. Todas as anteriores. QUESTÃO 08 Sobre as políticas de qualificação profissional do Estado, é correto afirmar que: Tem-se contratado pessoas de maior escolaridade para cargos de baixa qualificação, pois com a redução de postos de trabalho pela reestruturação produtiva neoliberal, pode-se selecionar um trabalhador mais escolarizado, independente da qualificação necessária para o desempenho da tarefa. A premissa de que o trabalhador melhor qualificado obtém melhores vagas é uma avaliação que culpabiliza perversamente o desempregado pela exclusão do mercado, ocultando fatores estruturais geradores do desemprego. Os programas estatais de qualificação profissional se direcionam assim mais a práticas condizentes com o discurso dominante da necessidade de qualificação do que à questão do desemprego estrutural gerada pelo capitalismo. A exigência de qualificação e a competitividade maior apresentam um lado "perverso", pois com a pressão do desemprego e da fragilização do trabalho sob os trabalhadores, a requalificação profissional é cada vez mais necessária para manter o emprego e a formação profissional se torna um critério de seleção que transcende exigências concretas da vaga. Assim, a iniciativa estatal de qualificação profissional contribui não apenas para o acesso de trabalhadores à cultura e à educação, mas considera a principal causa destes fenômenos no contexto sócio-econômico, que é a pouca qualificação do trabalhador brasileiro, gerando a redução definitiva do desemprego e subemprego através desta política. O próprio o mecanismo de funcionamento e os preceitos do capitalismo se pautam pela ampliação da exploração do trabalho e pelo corte de gastos, visando aumentar a lucratividade e gerar a evolução tecnológica que substitui o trabalho humano. Assim, o desemprego torna-se um problema estrutural, só passível de resolução pelo crescimento econômico amplo e por uma boa qualificação profissional de toda a sociedade para sua inclusão no processo produtivo. A qualificação dos trabalhadores no atual período do neoliberalismo é responsável pela obtenção do emprego, já que o cenário amplo crescimento econômico garante a empregabilidade da maioria da população. Neste contexto, as ações de governo quanto ao oferecimento de qualificação profissional atendem amplamente as demandas dos trabalhadores, na busca de soluções estruturais do sistema sócio-econômico brasileiro. QUESTÃO 09 Cite os métodos tradicionais de gestão capitalista e sua análise no contexto da gestão pública em saúde e educação. As três principais teorias administrativas são a clássica, que tem como critério central a eficiência (capacidade real de produzir o máximo com o mínimo de recursos); a psicossocial, que substitui o critério da eficiência pelo da eficácia, em que os objetivos a alcançar são intrínsecos ao sistema, e a contemporânea, que tem como critério a efetividade (capacidade de criar a resposta desejada). Hoje, também a gestão escolar é similar à gerência capitalista, referida ao comando administrado do trabalho alheio. A decisão final é do conjunto de alunos e professores, não havendo hierarquia. Este conjunto é responsável pela supervisão das atividades, que têm funções específicas, facilitando seu controle. Assim, o diretor pode agir apenas para aprimorar a escola, pela análise de antagonismos e desigualdades sociais e pela conquista de espaços mais amplos na sociedade civil, visando à transformação do Estado em prol de uma relação menos coercitiva e mais democrática e convergente com o interesse popular. As teorias administrativas capitalistas levaram a posições de aceitação da gestão capitalista e de negação da necessidade de gestão na escola. Estas duas posições são extremadas e não analisam os determinantes sociais e econômicos da gestão escolar, mostrando-se acríticas à realidade concreta. A primeira eleva à universalidade um tipo de gestão socialmentemarcado e a segunda considera esta gestão geradora de todo autoritarismo. Este debate trouxe questões acerca de uma gestão escolar democrática, na qual as teorias administrativas capitalistas, distantes da noção de lucro, ampliam noções sobre limites e aberturas da gestão participativa, resgatando a necessidade de ação conjunta, no diálogo com os diferentes setores da escola e na reflexão crítica sobre seu papel, seus rumos e as situações que são apresentadas. A teoria administrativa do século XX se desenvolveu em três escolas principais: a clássica, que tem como critério central a eficiência; a psicossocial, que substitui o critério da eficiência pelo da eficácia, em que os objetivos a alcançar são intrínsecos ao sistema, e a contemporânea, que tem como critério a efetividade. Estas teorias nortearam a organização institucional na sociedade capitalista, trazendo a noção de lucro ao interior das instituições, que passou a permear as relações humanas, com implicações sociais e políticas. Este caráter da teoria e prática da administração, no âmbito escolar levou os estudos a proporem extremos: ou a defesa das condutas da empresa capitalista ou a negação da necessidade de administração escolar. Porém, os percalços da gestão escolar por sua vinculação ao sistema capitalista promoveram críticas e questionamentos às formas como a gestão escolar vem se dando, pelas diferenças entre os objetivos e modos de constituição da escola, que é uma instituição voltada a processos humanos inseridos na construção social, e a empresa capitalista, que é uma organização pautada pelo lucro produtivo do proprietário. As três teorias administrativas, clássica, psicossocial e contemporânea, desenvolvidas no século XX, fornecem as bases ara a administração escolar. No contexto da administração capitalista da escola, é possível criar um espaço propício à transformação social do próprio capitalismo. Assim, é no contexto da administração de competência técnica e científica visando o lucro social que a educação escolar pode servir de artifício em poder dos grupos sociais dominados, pela a apropriação crítica do saber historicamente forjado em direção à emancipação cultural, desconstruindo relações de opressão. QUESTÃO 10 Assinale a alternativa que melhor descreve a história, a organização e os problemas atuais os Conselhos de Saúde, Conselhos Tutelares e outros conselhos comunitários em gestão pública: No Brasil, antes da constituição de 1988, apenas os associados ao antigo INPS podiam utilizar a saúde pública. Esta conexão entre saúde e trabalho ligava-se à necessidade de, por um lado, garantir meios mínimos de sobrevivência aos trabalhadores e, por outro lado, discipliná-los frente a formas altamente predatórias de disposição do trabalho presentes na sociedade brasileira. Este era um modelo de saúde não-universalizante e assistencialista, voltado a grupos assalariados de pouco peso econômico e articulação política. Nos anos 80, quando agentes do governo temiam o processo de redemocratização, este realizou a reorganização da gestão na saúde, pela Proposta de Emenda Constitucional da Saúde (PEC 29) definiu a aplicação mínima de recursos fixada por lei, num passo inicial em direção ao Sistema Único de Saúde (SUS), que declarou a saúde “direito de todos e dever do Estado”. A municipalização permitiu a transferência de recursos para áreas como vigilância sanitária e epidemiológica e controle de doenças transmissíveis, mas não para a assistência médica. Quanto aos Conselhos de Saúde, a falta de estrutura dos conselhos com participação comunitária e a tradição de autoritarismo e centralização do poder no Brasil fomentam situações de uso autoritário deste instrumento público. No Brasil, até a constituição de 1988, a saúde era garantida apenas àqueles com carteira de trabalho assinada. Esta conexão entre saúde e trabalho, regulada legalmente desde 1923 e que já exprimia uma resposta a movimentos populares urbanos, consistia num modelo de saúde e seguro social não-universalizante e assistencialista, voltado a grupos assalariados, de maior peso econômico e articulação política, com uma visão centralizadora da gestão em saúde que reforçava a exclusão da população na tomada de decisões. Nos anos 80, com a luta política por soluções aos problemas sociais brasileiros, os movimentos sociais se inseriram na constituinte, influenciando as diretrizes constitucionais da saúde como direito de todos e dever do Estado e dispositivos legais de participação popular, principalmente através da descentralização da gestão, cada vez mais realizada pelos municípios e dos Conselhos de Saúde, que garantiam um órgão de participação popular. Isto permitiu, por exemplo, inverter o modelo assistencialista, pela adoção de ações preventivas como o Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários (PACS). O SUS, que substituiu o antigo INPS nos anos 80, considera a saúde “direito de todos e dever do Estado” por princípios de universalidade no atendimento, descentralização, participação da sociedade, eqüidade no custeio e uniformidade de benefícios Estas diretrizes constitucionais permitiram maior participação popular, em níveis integrados e descentralizados nos municípios e estados e na regionalização do atendimento. Mas enquanto a concepção e criação do SUS se desenrolaram na conjuntura política favorável da redemocratização, sua regulamentação, em 1990, deu-se num período marcado pelo acirramento da crise fiscal e econômica e pelo avanço neoliberal mundial, impedindo algumas conquistas em andamento. Assim, num cenário de negociações e conflitos entre gestores de várias esferas, a gestão ainda não foi descentralizada até hoje, e as prefeituras arcam com todas as despesas referentes à suas ações em saúde. Embora o movimento de redemocratização dos anos 80 tenha dado importantes passos na direção do SUS, foi apenas nos anos 90, com a conjuntura favorável de apoio do capital, que o governo Collor (1990-1992) regularizou a situação, vetando itens perigosos por acarretar alto custo ao governo pela excessiva participação da população. Permitindo a descentralização, as Conferências de Saúde, por outro lado, permitiram que em 2000, 98% dos municípios fossem cadastrados em algum nível de gestão. Porém, o sistema ainda enfrenta problemas advindos da gestão democrática, pois os Conselhos de Saúde não possuem gabarito técnico nem legitimidade para atuar, havendo situações em que o uso dos conselhos para fins eleitoreiros, o endosso de decisões governamentais não discutidas e a falta de clareza sobre participação social obstruem a gestão democrática. � Intervenção é compreendida aqui tal como apontada por Heloísa Szymanski (2004) significando interpor os bons ofícios. Refere-se assim a uma ação constituída em conjunto, de modo dialógico e plural e não unidirecionalmente. �PAGE �100�