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COSTA, Jurandir Freire. Transcrição Conferência O SUJEITO NA SAUDE COLETIVA

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1
Conferência “O sujeito na saúde coletiva” – Jurandir Freire 
Costai 
 
O Sujeito na saúde coletiva: um problema clínico ou social? 
Eu vou tentar abordar a questão do sujeito e da saúde no meu viés e na minha 
perspectiva, ou seja, dentro do meu campo de experimento, que é a minha clínica. É claro 
que isso deve se desdobrar em algumas outras coisas, deve se desdobrar em pesquisas de 
campo com um universo muito mais vasto, muito mais expressivo do que esse aqui. Eu 
queria, no entanto, fazer a defesa inicialmente do tipo de metodologia, de esboço de 
metodologia, empregado em grandes linhas, ou seja, aquilo que me permite falar sobre o 
que eu vou falar, acreditando que pode ter o mínimo de legitimidade e expressar 
minimamente algo que seja da ordem da realidade. Eu parto, então, da idéia de que no 
universo humano observado por mim, em minha prática clínica de psiquiatra e analista, 
existe a tematização da saúde, e a tematização da saúde passa a não ser qualquer coisa 
opcional, adventícia, acessória à formação do próprio sujeito. 
A hipótese que eu pretendo investigar é que esse tema, hoje em dia, é constitutivo 
da própria subjetividade e numa medida enorme, imensa, mas, com certeza, diferente 
daquilo que pode ter sido no nascimento da intervenção médica sobre os indivíduos ou na 
formação do indivíduo. Eu parto, então, do princípio de que a minha base evidencial, 
aquilo que eu tomo como evidência, como fato, para a ideação de hipóteses são as crenças 
que os sujeitos têm sobre si. O que eu quero dizer com isso? Eu quero dizer com isso que 
essas crenças são eficazes quando e se elas são partilhadas no imaginário social. Uma vez 
que já existe suficiente difusão de certas crenças no imaginário social, os indivíduos as 
assumem e elas passam, então, a ter eficiência na transformação, no condicionamento ou 
determinação daquilo que nós somos, daquilo que nós julgamos ser. 
 
Crenças partilhadas e a construção das subjetividades 
Como é que eu sei se uma crença tem suficiente peso social? Uma das maneiras de 
medi-la é a maneira que eu estou propondo: é quando ela é capaz de produzir alteração nos 
estados mentais. O que eu quero dizer com capaz de produzir alteração nos estados 
mentais? Em função da crença que eu sou qualquer coisa ou quero qualquer coisa, isso 
funciona como a razão causal que determina a mudança em estados anteriores do meu 
psiquismo, estados anteriores da minha maneira de sentir, de pensar ou de agir. Numa 
terminologia mais técnica, essas crenças eficazes são públicas e eficientes porque podem 
 2
alterar ocorrência, estados, processos, em suma, eventos mentais. A base evidencial, então, 
é essa. Significa que se alguém chega e diz “eu estou sofrendo” e apresentando tal 
sofrimento, ou “melhorei porque o que eu acreditava que estava na raiz do sofrimento era 
isso”, e isso foi extirpado, atenuado ou abolido, eu digo que aquela crença é uma crença 
eficiente e que ele jamais poderia ter aquela crença de forma idiossincrática, salvo exceção, 
tendo tanta força performativa, tanta força de transformação. Para dar um exemplo e 
tornar, talvez, mais simples: eu nunca vi no meu consultório alguém chegar e dizer “olha, 
eu estou lhe procurando porque estou com grave conflito: eu não sei se eu acredito, ou 
não, em discos voadores; eu não sei se eu creio, ou não, em dragões, em gnomos ou em 
centauros; e, no momento que isso me vem, eu sofro tanto que faço sintoma, eu sofro 
tanto que perturbo minha vida de relações”. Está aí o exemplo de uma crença que não tem 
eficiência na determinação da identidade subjetiva. 
No entanto, quando se trata de saúde, e esse é o meu ponto, é isso que eu quero 
defender, a história não é a mesma, não é? Os indivíduos sofrem e padecem por isso. 
Então, não só a base evidencial é a base das crenças partilhadas como sendo o agente 
eficiente na transformação, como outro, digamos, dado metodológico iniciante é o de que 
eu vou procurar alterar um pouco a percepção ou a via de entrada para a análise do valor 
da saúde na determinação da subjetividade. Em vez de tomar a idéia de doença mental 
como doença, eu vou falar, como prefiro, de arranjo psíquico particular, de diversas formas 
de subjetivação, e ver nessas subjetivações que atualmente são vistas ou tidas como 
mórbidas, como doentes, ou seja, ver o que no próprio sintoma exprime o papel da saúde. 
Não vou, então, analisar doença mental como se ela já fosse um caso de saúde ou doença, 
mas vou analisar certos casos da clínica contemporânea como a entrada, a fenomenologia 
daquilo que me permite querer entender o papel da saúde na determinação da 
subjetividade. Por exemplo, o aumento expressivo de casos clínicos de depressões 
disquímicas, de compulsões alimentares, de drogadições legais, de distúrbios da imagem 
unitária do corpo, como, por exemplo, se traduz em fobias socias, hipocondrias mitigadas 
ou síndrome de pânico; por fim, a presença de atos sociais que vão desde casos claros de 
irrupção de vandalismo até episódios de roubo, depredação do que é seu e do outro; todos 
esses casos tidos como sendo distúrbios são aquilo que vai me permitir pensar o papel da 
saúde na subjetivação. É via, então, esse arranjo psíquico, via essa forma de subjetivação 
que eu espero poder trazer para vocês aquilo que eu penso do papel da saúde. 
 
 
 3
O ethos do indivíduo desengajado, descomprometido, descompromissado 
E qual é o primeiro tópico da explicação? É que essas formas de subjetivação, a 
meu ver, exprimem o que o Gouchet chamou do indivíduo desengajado, do ethos do 
indivíduo descomprometido ou descompromissado. Esse ethos, a forma como as pessoas 
vivem e pensam seu cotidiano, pode ser abordado de diversas maneiras. Entre nós, por 
exemplo, o Naomar [de Almeida Filho], a partir de vários autores, de uma revalorização 
inclusive de autores de origem marxista, vem tematizando a questão. Vê como de fato essas 
escolhas pontuais, cotidianas e diárias, isso que a Cristina Possa chama de “estilo de vida”, 
para distinguir de condição de vida, e que todas são tópicos de formas de vida, é nesse 
terreno que eu vou me mover quando falo do ethos do individualismo desengajado. Esse 
ethos, então, se traduz por duas características centrais: primeiro, é uma experiência radical 
de desinstitucionalização. Desinstitucionalização do que eu chamaria “as instâncias 
doadoras de identidade tradicionais” ou, em nossa linguagem psicanalítica, as instâncias que 
fornecem modelos imaginários de eus ideais ou ideais do eu. Essa desinstitucionalização é 
sobretudo patente em algumas formas institucionais seculares em nossa cultura, como 
família, trabalho e religião. 
Aí, então, o primeiro traço desse estilo de vida ou desse ethos do individualismo 
desengajado e descomprometido: a desinstitucionalização. O que não significa dizer que 
essas instâncias não mais existem, significa dizer que elas vêm sendo progressivamente 
privatizadas, ou seja, suas finalidades, seus propósitos e seus sentidos deixam de preceder 
as existências individuais e passam a ser objeto de interpretação de cada um, passam a ser 
objeto que não mais exigem consenso no seu entendimento. É isso o que eu estou 
chamando de desinstitucionalização, e não que elas não mais existam, o que seria um 
despropósito sem tamanho, já que todos sabemos que as pessoas estão trabalhando, têm 
família e têm religião. 
Segunda característica, então, desse ethos: eu chamaria de “experiência de 
destotalização” das formas tradicionais de construção de histórias pessoais, de narrativas 
identitárias. Aqui, explicando melhor ou traduzindo isso, talvez, numa linguagem mais 
próxima de nossa experiência cotidiana, isso significa que nós estamos perdendo ahabilidade que tínhamos até bem pouco tempo, até cinqüenta anos, até quarenta ou mesmo 
trinta anos atrás, mas um pouco mais recuado, a habilidade que nós tínhamos de imaginar 
nossa identidade como sendo algo formado por narrativas de eventos de acontecimentos 
históricos que nos davam um sentimento de um fluir, de algo que era o mesmo, de uma 
certa homogeneidade mais ou menos seccionada por descontinuidades. Isso que faz com 
 4
que, na nossa linguagem, nos dê a identidade que a gente chama de egonarcísica, aquilo que 
faz com que a gente tenha um sentimento de totalidade, de que a gente é uno, indiviso, o 
mesmo, não obstante a mudança do tempo e dos contextos, isso tinha regras claras ou pelo 
menos suficientemente claras para que nós não experimentássemos como sendo 
pulverizadas. Essas regras eram as regras da construção dos sentimentos, da nossa história 
sentimental. Nós falávamos de nós e de nossas vidas, em geral, como sendo produto de 
embates, de vitórias, de derrotas, de dificuldades ou facilidades na construção do nosso 
caráter, entendido como caráter sentimental. Eram histórias do nosso passado, onde, em 
geral, o que era trazido à cena eram questões relativas à disputa com autoridades familiares, 
médicas, pedagógicas ou outras, a respeito de temas que diziam respeito à formação 
subjetiva, sexualidade, disciplina de estudo, disciplina de trabalho, valores morais, em suma. 
Essa prática lingüística, essa forma descritiva, essa maneira ou esse habitus, para falar num 
termo de Bourdieu, ou essa maneira de imaginarizar, para trazer para o meu vocabulário 
específico, de imaginar o sujeito, era então baseada numa espécie de apoio de consenso de 
que eu não tinha um pedaço da minha história que eu contava de uma maneira e tinha 
outro que eu ia contar de outra, que é a forma como eu suponho que é típica do indivíduo 
desengajado de hoje, que somos todos nós ou pelo menos os mais jovens, ou a geração dos 
meus filhos, dos filhos das pessoas da minha faixa etária. 
 
Processos de subjetivação contemporâneos: efeitos 
Também essa experiência da desinstitucionalização e da destotalização, ambas 
apontam para a eminência da importância do problema da saúde. Tentando retomar um 
pouco, a fim de que essa digressão necessária não nos faça perder de vista o objetivo da 
apresentação das hipóteses, vamos dividir agora e ver essa desinstitucionalização, o que ela 
pode produzir do ponto de vista subjetivo. 
A primeira coisa da desinstitucionalização é que o outro não é mais familiar nem 
conhecido. Ele se torna enigmático, já que ele não tem o código de decifração ao qual estou 
habituado. A reação imediata, então, face a esse outro de uma desinstitucionalização 
progressiva é as reações que nós poderíamos chamar de “quíntuplo de” ou da “atitude 
psicológica” ou da “atitude cultural” de ver o outro à distância, com desconfiança, com 
desdém, com desafio ou, então, com dependência. Nós lidamos com esse outro 
desinstitucionalizado no seu mistério, em sua opacidade, que já não é mais traduzível na 
linguagem da tradição, com essas atitudes. O medo do outro, a angústia permanente de 
perder o outro vem trazendo ou vem conferindo aos sujeitos modernos um dos traços 
 5
específicos que é a solidão, com suas contrapartidas ou tentativas de responder isso de 
maneira nova, que não seja a maneira de recorrer à antiga ética do dever para com essas 
instituições. Quais são essas formas que o indivíduo moderno ou o sujeito moderno, pelo 
menos dessa faixa etária, pelo menos dessa faixa cultural, tenta reagir à 
desinstitucionalização e à estranheza do outro? Eu acredito que uma dessas respostas é a 
criação de coletivos naturais que vêm substituir antigos vínculos de sangue ou de 
naturalidade. São grupos de raça, de sexo ou de idade que começam a funcionar como essa 
espécie de cópia, de exato substituto dos antigos vínculos ou aliança de sangue perdidos 
quando a família se tornou opcional, quando pertencer a uma família se tornou qualquer 
coisa que cada um de nós pode escolher quando, em que tempo, de que maneira, em 
função de que circunstância. 
Outra forma de substituir isso é a forma que eu chamaria de “recusar o político” e 
aderir a alguma coisa mais basal, que a gente chamaria “ética dos direitos humanos” ou 
“ética dos direitos do homem”. “Não me interessa a política no varejo; eu não abro mão de 
certas coisas que parecem guardar a imagem do humano mais firme”. Não é verdade que as 
pessoas não se preocupam em grande parte com os outros; se trata de entender o outro 
como parceiro da construção de um futuro, como alguém que, com ela, na aparência do 
público, vai recriar as regras de constituição da sociedade. Aí ninguém quer votar, aí o 
político não presta, aí partido também não presta. A apatia é permanente. Mas as pessoas 
estão permanentemente, de forma permanente, se ocupando daquilo que já é adquirido, 
daquilo que já é dado, daquilo que é dito “olha, esse limiar a gente não pode passar”. No 
que diz respeito à extrema violência com a sobrevivência das pessoas ou humilhações, 
como trabalhos escravos ou exploração de menores, as pessoas são sensíveis, elas reagem. 
Elas reagem porque isso faz parte de qualquer coisa que parece, a seu ver, algo sólido, algo 
imutável, tão sólido e imutável quanto coletividades regidas pela realidade de raça, de 
sangue ou, entre aspas, de sexo. Isso também é uma tentativa de retomar num outro 
registro a idéia de institucionalização, que não seja a institucionalização do dever. 
Finalmente, uma outra forma é a forma de se integrar a grandes cosmologias 
naturais ou religiosas, é de ter o todo e não a parte, é de se sentir partícipe, pertencendo a 
uma ordem que lhe ultrapassa, que lhe dá uma espécie de transcendência estática, 
porquanto a-histórica. Tudo que cheire a mobilidade, tudo que cheire a atividade 
participativa: é isso que o indivíduo desengajado recusa-se a inscrever. Em contrapartida, 
ele procura fundamentos cada vez mais sólidos, cada vez mais firmes, que lhe digam: “disso 
você não pode escapar de ser, isso você tem que retratar, porque existia no começo e nos 
 6
fins do tempo, porque existia antes que qualquer subjetividade se formasse”. Esse recurso 
ou esse recuo, então, a uma ética das ecologias, a uma ética de raças, de idades, de sexos, a 
uma ética, em suma, de direitos que parecem garantidos por nossa semelhança física com 
outros humanos ou com outros mortais, isso tudo começa a funcionar como uma espécie 
de resposta subjetiva à desinstitucionalização, e coloca em cena algo da biologia, algo do 
corpo que vai ter a ver com a saúde. 
 
Histórias de vida e a percepção subjetiva das relações humanas 
A resposta da desinstitucionalização seria essa: a destotalização. A resposta, a meu 
ver, que parece como mais preeminente é efetivamente a busca no corpo do critério para 
dizer quem eu sou, o que devo ser, como devo ser, e se o que eu sou e devo ser a partir dos 
atributos ou propriedades do meu corpo, se isso me dá segurança, me dá consistência à 
identidade que eu tanto tenho dificuldade em manter. No fundo, no fundo, as novas 
gerações vêm sendo criadas e sendo obrigadas a refazerem a história a partir de 
particularmente dois critérios. No início elas dizem: “quando eu era criança, eu era fílho de 
um pai permissivo, de uma mãe amorosa, de casais que se separaram, me meteram medo, 
eram muito religiosos” etc. etc. Um pedaço da minha vida continua sendo contado através 
da história sentimental, da narrativa pessoal baseada em realidades lingüísticas. 
A partir das metamorfoses da puberdade, da entrada na vida adolescente ou adulta, 
quando ela começa a ver uma realidade que guarda os antigos ideais simplesmente como 
emblema,simplesmente como fachada, mas completamente esvaziados do poder 
normativo que tinham na constituição e fabricação de identidades, elas passam a contar 
uma outra história, e agora a história pessoal passa a ser a anamnese corporal. Passa a ser a 
história de quão inapto eu fui para poder ter boa forma, de quão inapto eu fui para poder 
não adquirir hábitos saudáveis de maneira que pudessem me organizar em torno de uma 
vitalidade, ou em torno de uma vida que me oferecesse as condições de imaginá-la como 
saudável, de imaginá-la como longeva. O corpo, seja na vertente da desinstitucionalização 
como na vertente da destotalização identitária, passa a ocupar o centro, mas não como se 
diz, eu acredito, na forma da idéia de culto ao corpo, como normalmente a gente diz. 
 
A centralidade do corpo 
A atitude do sujeito, da subjetividade diante do corpo, a meu ver, é hoje claramente 
dividida, ela é claramente bipartida. De um lado, eu diria, uma radical desidealização do 
corpo como fonte de vida; de outro lado, uma idealização desse corpo como fonte de 
 7
satisfação. Essas injunções antagônicas, ou que são complementares, mas nem sempre 
congruentes, são um fardo da subjetividade atual. 
O que eu chamo de desidealização do corpo? Eu chamo de desidealização do corpo 
uma espécie de mudança fenomênica e que se traduz no nível da epistemologia da vida e da 
saúde. Mudança essa que diz o seguinte: a vida, desde um certo tempo, não mais coincide 
com as formas e funções restritas ao limite corporal. O corpo, atualmente, não é mais o 
único testemunho da vida, pode até continuar a ser em certos casos privilegiados. Vocês 
lembram ou alguns aqui sabem e conhece a famosa máxima do Leriche que o Canguilhem 
tão bem explicitou nos seus trabalhos: “a saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. Hoje em 
dia, a saúde antecede os órgãos, ou o funcionamento dos órgãos. A saúde ultrapassa a 
anatomia dos órgãos. A vida pulsa além dos órgãos aos quais nosso corpo ou a imagem de 
corpo biológico está colada. São os códigos genéticos, onde a gente pode ver sinal de saúde 
e doença. É anterior à forma aparente do corpo, não depende do corpo e, no entanto, é 
vida. 
A vida, onde é que a gente, hoje em dia, pode definir que ela começa e termina? O 
que a gente considera vida, quando a gente já tem estudo de código genético, próteses de 
várias ordens, cálculos de reprodução, “quero ter filho ou não, aborto ou não”, hibridez 
dos nossos órgãos, que antes era privilégio, se vocês quiserem, de casos excepcionais, como 
óculos, obturação ou muleta. A quantidade de coisas que a gente tem da gente que apita, 
que dá sinal, que nos liga a isso ou aquilo é cada vez maior. Nós estamos pouco a pouco 
nos tornando seres híbridos; aliás, já somos. Vocês têm os respiradouros, os ambientes 
artificiais contra infecção, soluções químicas que funcionam perfeitamente como 
nutrientes. Todo mundo sabe, nesses casos graves de ablação de órgãos responsáveis pela 
digestão, as pessoas não só se nutrem como ganham peso com a alimentação parenteral 
puramente artificial, e assim por diante. A vida então é qualquer coisa que, ao ultrapassar o 
corpo, relega o corpo a um segundo lugar no imaginário da subjetividade. É algo que pode 
ser passivo, pode ser entregue à manipulação. É algo que não mais permite que a gente 
possa imaginar a sociedade como um sistema em equilíbrio, como um processo, como um 
estado que cresce ou declina, que adoece ou que se torna sadio. 
Em suma, o corpo já não mais serve de metáfora à construção do social, e vice-
versa, que ficou celebrizado na imagem do Foucault a respeito de controle via biopolítica. 
A biopolítica fazia sentido quando o corpo monopolizava a imagem de vida, e a vida, por 
conseqüente, era extrapolada para a formação social. Se imagina a biopolítica quando a 
imagem de corpo fornece a matriz imaginária para estados, nações, grupos, sociedades ou 
 8
raças. No momento em que a vida deserda do corpo, no momento em que a vida 
ultrapassa, explode, passa além, é a própria idéia de biopolítica, é a própria idéia de 
disciplinarização do corpo que começa a perder o valor, que começa a perder o sentido, 
embora continue a existir. Não me interessa só disciplinar o corpo para que, através da 
anátomo-política, eu chegue a políticas democráticas ou biopolíticas das populações. 
Interessava antes porque o corpo tinha o privilégio, era o dono da vida. Atualmente a vida 
ultrapassa o corpo. 
Eu vou, então, passar a pensar as questões de saúde e de doença de outra maneira, 
desidealizando o corpo. E começo a pensar não em termos de política biológica, 
biopolítica, ou de disciplina corporal. No lugar desses mediadores conceituais, ou seja, do 
biopoder expresso na modalidade de biopolítica, nós temos, então, as biotecnologias e a 
bioética. A biopolítica visava controlar anormais e degenerados, aqueles que escapavam da 
média desse corpo; na bioética se trata de controlar os limites entre anomalia e 
monstruosidade. O domínio da biotecnologia, aquilo que diz respeito à bioética, já não visa 
mais àquela uniformidade que tinha no corpo sua imagem de marca; visa à proliferação, à 
diversidade, à pluralidade. Doença não é só sinal de patologia, doença é sinal de que nós 
podemos viver de maneiras muito diferentes. É aí o sucesso do Oliver Sacks, é aí o sucesso 
do Richard Rorty, é aí o sucesso de todos esses pesquisadores que atualmente mostram que 
existe vida que pulsa, que pode ser criativa, que é exemplo da vitalidade da espécie, mesmo 
que essas vidas estejam mutiladas de uma série de atributos que a vida da média tem. 
Não obstante, elas não só são algo que merece viver, como nos ensinam 
capacidades que nós desconhecemos quando estamos atrelados a essa forma corporal. É 
quando eu passo a dizer que, pela experiência da enxaqueca, eu posso ter percepção visual 
dos sentidos, posso decodificar o mundo de uma maneira que não soe deficiente com 
respeito a quem não tenha enxaqueca, mas de uma maneira que enriquece a experiência 
humana pelo fato de eu decodificá-la de tal maneira ou de tal outra. A biotecnologia e a 
bioética vêm, então, recolocar a questão do estatuto epistemológico da saúde e da doença, 
o que é que ele pode formar e o que é que nós podemos retirar, assim como vem mostrar 
que uma certa imagem de controle dos indivíduos pela política, uma certa imagem de 
controle do indivíduo pela disciplina do corpo perde seu valor. Se não desaparece, passa a 
competir com outras preocupações, com outras práticas. 
No que diz respeito à idealização do corpo, segundo tópico, o que nós podemos 
observar? É que a saúde, no caso desse tipo de vida ampliada, de vida out there, de vida além 
do corpo, ou de vida aquém do corpo, ela começa a ser representada, a demanda de saúde, 
 9
como demanda por maiores investimentos de tecnologia. A saúde, aqui, significa querer 
mais e mais aquilo que eventualmente venha me prometer uma imortalidade que eu perdi 
quando renunciei à política. É a política que nos torna imortal, tornando o ambiente 
humano durável e guardando pela memória feitos e palavras dignos de ser lembrados, a 
imortalidade dos grandes nomes e grandes feitos, isso que o humano, na sua efemeridade 
guardava, constituindo o equipamento cultural, político, que o mantivesse vivo. Pois bem, a 
renúncia a essa imortalidade é meio que resgatada na fantasia da biotecnologia, da mesma 
forma que a renúncia à eternidade religiosa. Talvez o anseio de imortalidade e de eternidade 
venham a se traduzir sob a demanda de saúde enquanto reforço, progresso, maior 
distribuição, maior acesso aos grandes equipamentos de tecnologia médica que estão à 
disposição para manter a vida além do corpo, fora do corpo ou aquém do corpo.No caso da idealização do corpo, não se trata mais de imaginar o sujeito fora do 
tempo, na imortalidade ou eternidade; a idealização do corpo como fonte de satisfação. 
Trata-se de premiar subjetividade aqui e agora. Esse corpo, desqualificado por uma vida 
que está além dele, fragmentado em função desse próprio progresso, é unificado de duas 
formas: primeiro, esse corpo é unificado no espelho do outro, através da forma saudável do 
outro, através da forma estética do outro. Vocês conhecem, não preciso falar a vocês, o 
valor que tem a fitness, o valor que tem o desempenho, o valor que tem a boa qualidade de 
uma forma resgatada nesse registro, porquanto perdida noutro, ou seja, enquanto forma, 
enquanto vaso que continha a vida que nós prezávamos, de maneira que a essa 
fragmentação correspondo com a totalização imaginária de um corpo que é o corpo da 
estética, da mesma forma que a essa fragmentação eu respondo com o usufruto ou com a 
uniformização no campo das sensações. Esse corpo, então, para ser nesse registro da 
individualidade, da identidade, passa a construir uma identidade fazendo a função daquilo 
que antes as instituições faziam, e ele passa a constituir a identidade através da idéia da 
forma e através do gozo das sensações que são, basicamente: maximização do prazer, 
evitação da dor e transformação do sofrimento em dor controlável clinicamente. 
 
A saúde: biossociabilidade e bioascese 
A saúde, aqui, novamente é trazida à tona; dessa vez, no entanto, não no sentido de 
fazer proliferar a diversidade, mas no sentido de sedimentar a uniformidade. Sedimentar a 
uniformidade ensinando a experiência de satisfação, que é uma experiência, como eu disse, 
muitas vezes redutível ao prazer das sensações, por oposição ao antigo prazer dos 
sentimentos, ao prazer das histórias, dos processos, da estabilidade, dos modos de ser, dos 
 10 
compromissos com o futuro, que era típico do sujeito sentimental de nossa família 
patriarcal, de nossa escola autoritária, enfim, de uma sociedade regida ainda pelos ideais 
religiosos leigamente traduzidos em compromisso com a História. 
Hoje, o prazer das sensações é aquilo que me dá a idéia, o imaginário, do controle 
sobre mim mesmo, do domínio sobre mim mesmo. É a vontade de poder que se exerce 
sobre mim, imitando aquele outro da forma que me serve de modelo, e adestrando 
consensualmente, sem disciplinas de dever, sem éticas de sacrifício, maximizando essas 
sensações. A saúde, então, vem como uma espécie de substituto daquilo que era o dever 
imposto pela instância da transcendência. Agora não é dever que vem de fora, é direito que 
vem de dentro. É espontaneidade que eu reconheço, é tenacidade, é disciplina, é a 
capacidade de, pelo trabalho, fazer com que surja aquilo que a repressão escondeu, surja 
aquilo que o dever sepultou. Em vez de biopolítica, eu dizia, se cria no campo da saúde 
uma discussão sobre biotecnologias e sobre bioéticas. No que diz respeito à construção da 
identidade, em vez da discussão sobre disciplinas corporais, aquilo que Foucault chamou de 
anátomo-política, aquilo que era voltado para o corpo para torná-lo dócil e atrelado à 
sociedade como metáfora de sistema vivo, como metáfora de organismo ou de corpo vivo, 
que podia degenerar ou que podia se desenvolver, pois bem, no lugar dessa disciplina, nós 
vemos uma outra coisa. 
Nós vemos surgir no registro da especularidade, do contato e do convívio, o que 
nós estamos provisoriamente chamando de biossociabilidade. Essa biossociabilidade é 
aquilo que nos fornece vocabulário dos encontros, é aquilo que fornece a tradução 
simultânea, é o dicionário para que a gente saiba que está falando a mesma língua, e esse 
dicionário, curiosamente, está se tornando cópia de protocolo de análise de laboratório 
químico. Nossos assuntos de conversa passam a ser: “como é que está teu LDL?, como é 
que está o teu HDL?, como é que está o bom?, como é que está o ruim?, o que é que faz?, 
o que é que deixa de fazer?, hoje vinho faz mal, amanhã tabaco, depois o que é, o que é?”. 
Não tem mais uma conversa savante no meio dessas pessoas, onde você, de repente, não 
faça uma interrupção pra discutir quem parou de beber, quem parou de fumar, quem está 
andando quantos quilômetros, como vai teu HDL, teu último exame de sangue etc. etc. E 
isso está ocupando o lugar da conversa de salão, onde uns e outros se reconhecem como 
sujeitos da saúde, como sujeitos comprometidos com seu projeto futuro de longevidade, de 
forma, em última instância, do imaginário de imortalidade e eternidade. 
No nível ou equivalente a essa biossociabilidade, nós vemos surgir uma bioascese, 
uma ascese do corpo que nada tem que ver com aquela ascese repressiva dos primeiros 
 11 
santos da igreja, da qual falava Foucault, nem com as asceses romanas ou gregas. Essa 
bioascese visa fundamentalmente extrair do corpo aquilo que passa a ser definido como a 
“felicidade”. A felicidade para um asceta grego jamais era a boa dieta; a felicidade era a vida 
lograda, era a vida bem sucedida, era aquela vida onde os regimes do corpo, da bebida, das 
sexualidades etc. estavam postos em função de uma finalidade, que era governar a si para 
bem governar a pólis, era ser senhor de si para saber como usar o domínio dos outros. 
Hoje em dia, o cuidado de si e os usos dos prazeres não visam nada além deles, viraram a 
reprodução dessa felicidade definida como satisfação sensorial que se esgota nela mesma. 
 
Considerações finais 
Nós temos, então, uma felicidade que deixa de estar comprometida com objetivos 
transcendentes, e objetivos transcendentes que deixam de estar comprometidos com a 
felicidade. A saúde é o mediador conceitual e o mediador fenomênico. É isso que eu 
acredito que passa a ser essa prática do indivíduo desengajado, do indivíduo 
descompromissado com aquilo que é a atividade criativa de um mundo feito por ele e por 
seus pares. Viver nessa saúde, contudo, já dizia Foucault, você produz seus próprios 
trânsfugas, você produz suas próprias resistências. Nunca tivemos tantas dores nas costas, 
no pescoço, na coluna. Nunca tivemos tantas dores de cabeça, tantas insônias, tantas 
depressões, tantas compulsões, inibições, irrupções paroxísticas, como hoje. É o 
descontrole da bioascese. É a resistência a uma outra manipulação de nossa vontade de 
nossa liberdade. É tudo isso que emerge nessa ilha do prazer, no sentido de Pinocchio, 
daquela ilha aonde ele ia. É isso que emerge, que vem de novo contestar e nos obrigar a 
perguntar algo que parece enigmático, mas que é sempre nossa tarefa perguntar: de fato, 
para que serve a saúde? É essa um pouco nossa interrogação, é isso que eu deixo com 
vocês, agradecendo a atenção. 
 
i A conferência aqui transcrita foi realizada pelo professor Jurandir Costa por ocasião do VI Encontro 
Nacional de Saúde Coletiva, em Salvador-BA, em 2000. O tratamento dado ao texto já transcrito, assim como 
sua divisão, foi feita por Gabriel Varandas Lazzari (FFLCH-USP).

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