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DESPRET, V. AS EMOÇÕES QUE NOS FABRICAM (1).pdf

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AS	
  EMOÇÕES	
  QUE	
  NOS	
  FABRICAM	
  
Vinciane	
  Despret	
  
	
  
Introdução	
  
O	
  décimo	
  segundo	
  camelo	
  
	
  
	
   Conta-­‐se	
  que	
  de	
  países	
  longínquos,	
  tão	
  diversos	
  quanto	
  as	
  ilhas	
  do	
  Pacífico	
  Ocidental,	
  as	
  terras	
  
glaciais	
   do	
   Alaska,	
   o	
   Japão,	
   a	
   profundidade	
   do	
   deserto	
   egípcio	
   ou	
   alguns	
   países	
   da	
   África	
   negra,	
  
antropólogos	
  voltam	
  com	
  novas	
  emoções,	
  desconhecidas	
  para	
  nós.	
  Estas	
  emoções	
  novas,	
  das	
  quais	
  nos	
  
dizem,	
   aliás,	
   que	
   elas	
   são	
   difíceis	
   de	
   traduzir,	
   ganham	
   os	
   nomes	
   estranhos	
   de	
   song,	
   de	
  metagu,	
   de	
  
amae,	
  de	
  ikari,	
  e	
  outras	
  ainda.	
  Nossas	
  almas	
  não	
  parecem	
  conhecê-­‐las,	
  contudo,	
  se	
  nos	
  esforçamos	
  para	
  
dar	
   palavras	
   de	
  nossa	
   língua,	
   elas	
   se	
   assemelham	
  a	
   certas	
   emoções	
   que	
  nós	
   conhecemos,	
   o	
  medo,	
   a	
  
cólera	
  justificada,	
  ou	
  ainda	
  o	
  sentimento	
  da	
  criança	
  mimada	
  por	
  sua	
  mãe.	
  Mas	
  estas	
  emoções,	
  dizem	
  os	
  
antropólogos,	
  não	
  são	
  senão	
  dificilmente	
  acessíveis,	
  e	
  nós	
  não	
  poderemos	
  compreendê-­‐las	
  plenamente	
  
senão	
  se	
  recriássemos	
  o	
  mundo	
  que	
  as	
  viu	
  emergir,	
  e	
  que	
  lhes	
  deu	
  seu	
  sentido.	
  
	
   Os	
   antropólogos,	
   uma	
   vez	
   que	
   interrogam	
   as	
   almas	
   daqueles	
   a	
   quem	
   eles	
   se	
   dirigem,	
   foram	
  
batizados	
  etnopsicólogos,	
  sugerindo	
  por	
  isso	
  que	
  as	
  almas	
  por	
  elas	
  mesmas	
  poderiam	
  diferir	
  conforme	
  
as	
  culturas	
  que	
  as	
  acolhe.	
  Eles	
  nos	
  narram	
  que	
  algumas	
  das	
  emoções	
  que	
  nós	
  conhecemos,	
  e	
  que	
  nós	
  
sempre	
   tínhamos	
   pensado	
   universais,	
   parecem	
   desconhecidas	
   alhures,	
   como	
   a	
   cólera.	
   Mais	
  
inacreditável	
   ainda,	
   pareceria	
   que	
   algumas	
   de	
   nossas	
   emoções,	
   justamente	
   aquelas	
   que	
   nós	
  
pensávamos	
  naturais,	
  arcaicas	
  ou	
  biológicas,	
  aquelas	
  que	
  nós	
  críamos	
  inscritas	
  em	
  nosso	
  fundo	
  comum	
  
de	
   natureza,	
   não	
   existem	
   para	
   outros	
   a	
   não	
   ser	
   se	
   cultivadas,	
   e	
   que	
   se,	
   por	
   exemplo,	
   não	
   tomarem	
  
cuidado	
  em	
  ensinar	
  a	
  seus	
  filhos,	
  é	
  arriscado	
  que	
  elas	
  jamais	
  emerjam:	
  como	
  é	
  o	
  caso	
  do	
  medo.	
  
	
   Pareceria	
  assim,	
  que	
  nossas	
  emoções,	
  que	
  sempre	
  foram	
  para	
  nós	
  de	
  uma	
  evidência	
  tão	
  íntima,	
  
estas	
  emoções	
  que	
  são	
  sempre	
  tão	
  internas	
  para	
  nós,	
  tão	
  naturais,	
  tão	
  biológicas,	
  tão	
  transbordantes,	
  
estas	
  emoções	
  cuja	
  autenticidade	
  mesma	
  nos	
  fascina,	
  se	
  constitui	
  para	
  os	
  outros	
  de	
  uma	
  maneira	
  muito	
  
diversa.	
  Parece	
  mesmo	
  que	
  as	
  questões	
  que	
  nós	
  dirigimos	
  às	
  nossas	
  emoções,	
  a	
  maneira	
  pela	
  qual	
  nós	
  
nos	
   interrogamos	
  habitualmente	
  para	
  defini-­‐las	
  ou	
  explicá-­‐las,	
  para	
  as	
  pessoas	
  de	
  outras	
  culturas,	
  não	
  
faz	
  muito	
   sentido.	
   Vocês	
   não	
   podem,	
   dizem	
  os	
   antropólogos,	
   pedir	
   a	
   um	
   Ifaluk	
   ou	
   a	
   um	
   chinês	
   para	
  
responder	
  à	
  questão	
  do	
  sentimento	
  evocando	
  o	
  que	
  se	
  passa	
  no	
  interior	
  de	
  suas	
  cabeças,	
  porque	
  não	
  é	
  
assim	
  que	
  as	
  emoções	
  são	
  interrogadas	
  por	
  eles.	
  Vocês	
  não	
  podem	
  lhes	
  perguntar,	
  dizem	
  ainda	
  alguns	
  
dentre	
  eles,	
   se	
  as	
  emoções	
  são	
  naturais,	
  ou	
  ainda	
  se	
  elas	
   são	
  autênticas,	
  porque	
  esta	
  questão	
  não	
  se	
  
coloca	
   para	
   eles	
   nestes	
   termos,	
   e	
   até	
  mesmo,	
   não	
   se	
   coloca	
   de	
  maneira	
   nenhuma.	
   	
   E	
   se	
   vocês	
   lhes	
  
pedissem	
  para	
  evocar	
  a	
  relação	
  entre	
  razão	
  e	
  emoção,	
  seria	
  muito	
  provável	
  que	
  eles	
  te	
  olhassem	
  com	
  
um	
  ar	
  surpreso	
  e	
  pensassem	
  certamente	
  que	
  os	
  Ocidentais	
  têm	
  preocupações	
  bem	
  estranhas.	
  
	
   Esta	
  busca	
  que	
  nos	
   conduz	
  a	
   interrogar	
  os	
   “outros”	
  e	
  que	
   retorna	
  a	
  nós	
   sob	
  a	
   forma	
  de	
  uma	
  
lição	
  de	
  contraste,	
  mina	
  o	
  sentimento	
  de	
  evidência	
  com	
  o	
  qual	
  nós	
  pensamos	
  nossas	
  emoções.	
  Nós	
  as	
  
definimos	
  como	
  naturais,	
  autênticas,	
  universais,	
  nós	
  as	
  opomos	
  à	
  razão,	
  está	
  bem	
  aí	
  o	
  modo	
  como	
  nós	
  a	
  
tomamos	
  a	
  sério,	
  o	
  modo	
  pelo	
  qual	
  parece	
  que	
  elas	
  se	
  impõem	
  à	
  nossa	
  experiência.	
  	
  À	
  luz	
  deste	
  por	
  em	
  
contraste,	
  nós	
  nos	
  damos	
  conta	
  de	
  que	
  estas	
  características	
  constituem	
  de	
  fato	
  a	
  maneira	
  pela	
  qual	
  nós	
  
cultivamos	
   as	
   emoções:	
   a	
   natureza	
   se	
   torna	
   aí	
   isto	
   que	
   em	
   nós,	
   se	
   cultiva;	
   a	
   autenticidade	
   que	
   se	
  
constrói;	
  a	
  universalidade	
  que	
  nos	
  singulariza.	
  
	
   Pode-­‐se,	
  desde	
  então,	
  começar	
  a	
  compreender	
  este	
  fato	
  de	
  aparência	
  tão	
  surpreendente:	
  o	
  fato	
  
de	
  que	
  nossas	
  questões	
  possam	
  não	
  ter,	
  para	
  aqueles	
  que	
  os	
  etnopsicólogos	
  interrogam,	
  muito	
  sentido;	
  
o	
  fato	
  de	
  que	
  nós	
  não	
  podemos	
  esperar	
  grande	
  coisa	
  se	
  pedirmos	
  a	
  um	
  Ifaluk	
  para	
  nos	
  contar	
  a	
  emoção	
  
como	
  uma	
  experiência	
  sobre	
  a	
  qual	
  a	
  razão	
  não	
  tem	
  nenhum	
  domínio,	
  a	
  um	
  chinês	
  para	
  descrever	
  o	
  que	
  
se	
   passa	
   num	
   nível	
  mais	
   íntimo	
   quando	
   ele	
   está	
   emocionado,	
   ou	
   a	
   um	
   japonês	
   para	
   falar	
   de	
   um	
   eu	
  
autêntico	
   que	
   deveria	
   emergir	
   a	
   partir	
   das	
   experiências	
   emocionais.	
  O	
   contraste	
   entre	
   o	
   fato	
   de	
   que	
  
estas	
  emoções	
   fazem	
  sentido	
  para	
  nós	
  e	
  não	
   fazem	
  da	
  mesma	
  maneira	
  para	
  os	
  outros	
  pode,	
  por	
   sua	
  
vez,	
  guiar	
  nossas	
  práticas	
  científicas	
  para	
  a	
  via	
  da	
  reflexividade.	
  
	
   O	
  primeiro	
  momento	
  deste	
  retorno	
  reflexivo	
  se	
  apresenta	
  de	
  fato	
  sob	
  a	
  forma	
  de	
  um	
  paradoxo:	
  
como	
  o	
  que	
  nós	
  pensamos	
  sob	
  o	
  signo	
  da	
   íntima	
  evidência	
   se	
   faz	
  ao	
  mesmo	
  tempo	
  objeto	
  de	
  um	
  tal	
  
questionamento,	
   de	
   um	
   tão	
   intenso	
   interesse,	
   ao	
   ponto	
   em	
   que	
   nós	
   tivemos	
   que,além	
   do	
   mais,	
  
interrogar	
  os	
  outros	
  para	
  definir	
  a	
  emoção?	
  Como	
  aquilo	
  que	
  nós	
  pensamos	
  como	
  tão	
  evidente	
  pode	
  ser	
  
objeto	
   deste	
   inacreditável	
   acúmulo	
   de	
   teorias,	
   desta	
   proliferação	
   de	
   escritos,	
   de	
   definições,	
   de	
  
explicações	
  e	
  de	
   controvérsias?	
  Muitos	
  dos	
  meus	
  amigos	
   cientistas	
   a	
  quem	
  eu	
  dizia	
  querer	
  estudar	
  o	
  
problema	
   das	
   emoções	
  me	
   respondia	
   rindo:	
   “as	
   emoções?	
   Você	
   não	
   sabe	
   no	
   que	
   está	
   se	
  metendo!	
  
Ninguém	
  chegou	
  a	
  um	
  acordo.	
  Há	
  tantas	
  teorias	
  quanto	
  teóricos,	
  ninguém	
  afinal	
  sabe	
  o	
  que	
  é.”	
  Quantos	
  
cientistas	
  afirmam	
  que	
  ninguém	
  sabe	
  o	
  que	
  é,	
  e	
  aí	
  está	
  o	
  paradoxo,	
  que	
   teria	
   feito	
   rir:	
   justamente,	
  a	
  
emoção	
  não	
  é	
  aquilo	
  que	
   todos	
  nós	
   conhecemos?	
  Como	
  pretender	
  que	
  ninguém	
  saiba	
   isso	
  que	
  ela	
  é	
  
uma	
  vez	
  que	
  nossa	
  cultura	
  se	
  singulariza	
  pela	
  intensidade	
  de	
  seu	
  interesse	
  por	
  ela?	
  Basta	
  ver	
  como	
  nos	
  
romances,	
  nos	
  filmes,	
  nos	
  poemas,	
  e	
  nas	
  mais	
  antigas	
  tragédias	
  pelas	
  quais	
  são	
  habitadas;	
  basta	
  escutar	
  
também	
  a	
  maneira	
  pela	
  qual	
  cada	
  um	
  de	
  nós	
  fala	
  dela.	
  Levada	
  ao	
  extremo,	
  esta	
  afirmação	
  gostaria	
  de	
  
dizer	
  então	
  que	
  nós	
  sabemos	
  o	
  que	
  é	
  a	
  emoção	
  no	
  todo,	
  e	
  que	
  somente	
  os	
  cientistas	
  não	
  teriam	
  acesso	
  
a	
   este	
   saber	
   ou,	
   em	
   outros	
   termos,	
   que	
   o	
   saber	
   da	
   emoção	
   resistiria	
   à	
   ciência?	
   É	
   uma	
   hipótese	
   que	
  
mereceria	
   ser	
   considerada.	
   Mas,	
   há	
   uma	
   maneira	
   mais	
   simples	
   e	
   menos	
   radical	
   de	
   traduzir	
   esta	
  
proliferação	
  de	
  explicações	
  que	
  desembocam	
  em	
  um	
  “ninguém	
  sabe	
  verdadeiramente”:	
  nossas	
  ciências	
  
se	
   definem	
   também	
   como	
   herdeiras	
   deste	
   interesse	
   pela	
   emoção,	
   mas	
   elas	
   as	
   articulam	
   aos	
   seus	
  
projetos	
  próprios,	
  às	
  suas	
  exigências	
  e	
  entre	
  estas	
  últimas,	
  àquelas	
  que	
  presidem	
  à	
  definição	
  disto	
  que	
  
é,	
  para	
  eles,	
  “saber”.	
  O	
  fato	
  de	
  que	
  a	
  multiplicidade	
  das	
  concepções	
  possa	
  se	
  traduzir	
  tão	
  laconicamente	
  
em	
  um	
  “ninguém	
  sabe”	
  ilustra	
  então	
  tanto	
  a	
  singularidade	
  do	
  acesso	
  privilegiado	
  para	
  nossas	
  ciências,	
  
quando	
  a	
  diversidade	
  das	
  formas	
  que	
  podem	
  tomar	
  esta	
  intensidade	
  de	
  interesse	
  pela	
  emoção.	
  
	
   Neste	
  sentido,	
  o	
  etnopsicólogo	
  se	
  apresenta	
  como	
  uma	
  das	
  modalidades	
  pelas	
  quais	
  as	
  práticas	
  
que	
   interrogam	
  o	
  que	
  é	
   ser	
   um	
  homem,	
   isto	
  que	
  é	
   ter	
   uma	
  alma,	
   e	
   o	
  que	
  é	
   estar	
   emocionado,	
   uma	
  
modalidade	
  que	
  prolonga	
  este	
   interesse	
  pelo	
   “saber”	
  da	
  emoção,	
  e	
  multiplica	
  as	
  definições.	
   Torna-­‐se	
  
então	
  interessante	
  perguntar	
  a	
  esta	
  prática	
  etnopsicológica,	
  na	
  via	
  reflexiva	
  que	
  ela	
  contribui	
  para	
  abrir	
  
e	
  para	
  criar,	
  as	
  razões	
  que	
  a	
  conduzem	
  a	
  ir	
  buscar	
  alhures	
  outras	
  definições	
  da	
  emoção,	
  definições	
  que,	
  
somando	
   tudo,	
   não	
   podem	
   senão	
   complicar	
   um	
  pouco	
  mais	
   o	
   problema	
   e	
  multiplicar	
   as	
   explicações.	
  
Certamente,	
  nós	
  somos	
  curiosos,	
  e	
  esta	
  curiosidade	
  nos	
  singulariza.	
  Certamente	
  ainda,	
  nosso	
  interesse	
  
pela	
  emoção	
  utiliza	
  todos	
  os	
  recursos	
  para	
  nutrir	
  esta	
  curiosidade,	
  e	
  para	
  prolongar	
  a	
  cultura.	
  Mas	
  esta	
  
curiosidade	
   não	
   se	
   resume	
   a	
   um	
   simples	
   apetite	
   de	
   saber	
   os	
   outros:	
   ir	
   buscar	
   alhures	
   não	
   é	
   apenas	
  
complicar	
  o	
  problema,	
  é	
  aprender	
  a	
  deslocá-­‐lo,	
  a	
  colocá-­‐lo	
  em	
  perspectiva,	
  quer	
  dizer	
  a	
  nos	
  olhar	
  “em	
  
perspectiva”.	
  A	
  curiosidade	
  que	
  nós	
  tínhamos	
  pelos	
  outros	
  se	
  prolonga	
  então	
  na	
  cultura	
  de	
  uma	
  paixão:	
  
a	
  paixão	
  pelo	
  espanto.	
  A	
   curiosidade	
  pelos	
  outros	
   retorna	
  em	
  espanto	
  de	
  nós	
  mesmos:	
  eis	
  nos	
  a	
  nos	
  
olhar,	
  à	
  luz	
  deste	
  contraste,	
  como	
  criaturas	
  bem	
  estranhas,	
  eis	
  nos	
  a	
  nos	
  olhar	
  como	
  “outros”;	
  eis	
  nos	
  a	
  
nos	
  surpreender	
  a	
  nós	
  mesmos	
  em	
  perspectiva.	
  
	
   Imaginemos	
   que	
   um	
   antropólogo	
   extraterrestre	
   nos	
   chegue	
   com	
   o	
   projeto	
   de	
   estudar	
   as	
  
culturas	
  terrestres,	
  e	
  que	
  ele	
  se	
  empenhe	
  em	
  analisar	
  a	
  maneira	
  pela	
  qual,	
  entre	
  outros,	
  nós,	
  ocidentais,	
  
nos	
   descrevemos.	
   Haveria,	
   ele	
   poderia	
   dizer	
   ou	
   escrever,	
   entre	
   os	
   terráqueos,	
   uma	
   cultura	
   bem	
  
surpreendente,	
   que	
   se	
   auto	
   nomeia	
   cultura	
   moderna.	
   Estas	
   pessoas	
   apresentam	
   uma	
   crença	
   bem	
  
curiosa:	
  primeiro,	
  elas	
  falam	
  geralmente	
  delas	
  mesmas	
  como	
  se	
  elas	
  fossem	
  habitadas	
  por	
  duas	
  pessoas	
  
diferentes,	
  as	
  quais	
  elas	
  dão	
  dois	
  nomes	
  bem	
  distintos.	
  Elas	
  batizam	
  a	
  primeira	
  destas	
  pessoas	
  “Razão”	
  e	
  
a	
  segunda	
  “emoção”.	
  Elas	
  descrevem	
  estas	
  duas	
  entidades	
  que	
  as	
  habitam	
  como	
  isto	
  que	
  as	
  faz	
  mexer	
  e	
  
agir.	
   Estas	
   duas	
   entidades	
   parecem	
   se	
   comportar	
   de	
  maneira	
   estranha	
   entre	
   elas,	
   e	
   nós	
   poderíamos	
  
dizer,	
  quando	
  se	
  analisa	
  a	
  maneira	
  pela	
  qual	
  eles	
  falam	
  delas,	
  que	
  elas	
  têm	
  relações	
  muitos	
  conflituosas.	
  
Elas	
   situam	
  todas	
  as	
  duas	
  entidades	
  no	
   interior	
  de	
   seu	
  organismo,	
  mas	
  consideram	
  que	
  a	
  primeira	
   se	
  
aloja	
   na	
   cabeça,	
   e	
   que	
   a	
   segunda	
   pertence	
   ao	
   corpo:	
   elas	
   dizem	
   também	
   que	
   essa	
   última	
   é	
   mais	
  
profundamente	
   escondida,	
   muito	
   mais	
   antiga.	
   Estas	
   entidades	
   seriam	
   de	
   qualquer	
   maneira,	
   neste	
  
sistema	
  de	
  crenças,	
  como	
  um	
  ancestral	
  vivo	
  nessas	
  pessoas,	
  um	
  ancestral	
  universal.	
  Elas	
  as	
  descrevem	
  
aliás,	
  nestes	
  termos,	
  falando	
  de	
  sua	
  origem	
  primitiva	
  ou	
  arcaica.	
  Parece	
  que	
  este	
  ancestral	
  habita	
  váriosreinos	
   do	
   vivo,	
  mas	
   não	
   todos.	
   Nós	
   não	
   conhecemos	
  muito	
   bem	
  o	
   seu	
   sistema	
   de	
   classificação,	
  mas	
  
parece	
   que	
  os	
   organismos	
   vivos	
   não	
  móveis	
   não	
   são	
  habitados	
   por	
   ela;	
   e	
   que	
   entre	
   os	
   vivos	
  móveis,	
  
alguns	
  seriam	
  dotados	
  desse	
  ancestral	
  e	
  outros	
  não	
  (é	
  necessário	
  acrescentar	
  que	
  a	
  primeira	
  entidade,	
  
batizada	
  “Razão”,	
  parece	
  se	
  distribuir	
  de	
  maneira	
  mais	
  parcimoniosa	
  ainda).	
  Algumas	
  de	
  suas	
  descrições	
  
poderiam	
  fazer	
  pensar	
  que	
  elas	
  crêem	
  que	
  este	
  ancestral,	
  ou	
  esta	
  entidade,	
  de	
  fato,	
  “possuiria”	
  o	
  corpo,	
  
mas	
  isto	
  não	
  esta	
  sempre	
  muito	
  claro.	
  A	
  relação	
  com	
  este	
  ancestral	
  não	
  é	
  das	
  mais	
  simples:	
  em	
  certos	
  
casos,	
   eles	
   a	
   valorizam,	
   e	
   a	
   descrevem	
   como	
   autêntica.	
   Parece	
   que	
   esta	
   autenticidade	
   lhes	
   aparece	
  
como	
  uma	
  qualidade	
  particular,	
  e	
  que	
  ela	
  é	
  privilegiada	
  no	
  sistema	
  de	
  valores.	
  Não	
  nos	
  é	
  fácil	
  traduzir	
  o	
  
que	
  este	
  termo	
  “autenticidade”	
  recobre.	
  Elas	
  dizem,	
  por	
  exemplo,	
  que	
  esta	
  parte	
  delas	
  mesmas	
  é	
  mais	
  
verdadeira,	
   e	
   isto,	
   por	
   razões	
   bastante	
   complicadas.	
   Elas	
   explicam	
   que	
   esta	
   autenticidade	
   é	
   a	
  
característica	
   daquilo	
   que	
   elas	
   chamam	
   de	
   natureza	
   (pode-­‐se	
   aliás,	
   observar	
   que	
   as	
   duas	
   entidades	
  
parecem	
  corresponder	
  a	
  dois	
  mundos	
  diferentes).	
  Pode-­‐se	
  igualmente	
  pensar	
  que	
  esta	
  característica	
  da	
  
autenticidade	
   refere,	
   em	
   seu	
   sistema	
   de	
   classificação,	
   àquilo	
   que	
   elas	
   não	
   controlam,	
   mas	
   que	
   elas	
  
dizem	
   dever	
   controlar.	
   Quando	
   elas	
   se	
   referem	
   nitidamente	
   a	
   esta	
   necessidade	
   de	
   controle,	
   a	
  
representação	
  do	
  ancestral	
  aparece	
  como	
  uma	
   figura	
  ambivalente.	
  Com	
  efeito,	
   se	
  elas	
  valorizam	
  este	
  
ancestral	
  que	
  vive	
  no	
  interior	
  delas	
  mesmas,	
  se	
  elas	
  falam	
  muito	
  a	
  seu	
  respeito	
  e	
  se	
  insistem	
  sobre	
  suas	
  
qualidades,	
   elas	
   parecem,	
   por	
   outro	
   lado,	
   temê-­‐lo:	
   elas	
   não	
   cessam	
   de	
   lembrar	
   que	
   elas	
   podem	
   ser	
  
ultrapassadas	
  por	
  ele,	
  e	
  que	
  elas	
  são,	
  muitas	
  vezes,	
  suas	
  vítimas	
  passivas.	
  Elas	
  dizem	
  ainda	
  que	
  é	
  à	
  outra	
  
entidade	
  que	
  elas	
  se	
  referem	
  	
  para	
  dominar	
  isto	
  que	
  elas	
  nomeiam	
  de	
  emoção,	
  e	
  que,	
  paradoxalmente,	
  
embora	
   ela	
   seja	
   muito	
   menos	
   antiga,	
   elas	
   a	
   consideram	
   como	
   a	
   mais	
   sábia.	
   Certamente,	
   deveria	
  
continuar	
   nosso	
   extraterrestre,	
   nós	
   não	
   encontramos	
   apenas	
   alguns	
   entre	
   estes	
   ocidentais,	
   e	
   parecia	
  
que	
   estas	
   crenças	
   ou	
   estas	
   maneiras	
   de	
   ser	
   habitado	
   por	
   duas	
   entidades	
   pode,	
   entre	
   eles,	
   variar	
  
consideravelmente:	
  alguns	
  não	
  temem	
  o	
  mais	
  antigo;	
  outros	
  não	
  crêem	
  nisto	
  e	
  pensam	
  que	
  estas	
  duas	
  
entidades	
  não	
  são	
  duas,	
  mas	
  uma	
  só;	
  outros	
  ainda	
  não	
  pensam	
  que	
  a	
  emoção	
  venha	
  da	
  natureza,	
  mas	
  
que	
   seria	
  mais	
   uma	
   entidade	
   fabricada	
   pelo	
   o	
   que	
   eles	
   chamam	
   cultura.	
   É	
   ressaltada	
   entretanto,	
   de	
  
nossas	
  observações,	
  que	
  poderia	
  concluir	
  nossa	
  viagem,	
  que	
  estes	
  modernos	
  são	
  todos	
  fascinados	
  pelo	
  
o	
  que	
  eles	
  dizem	
  agir	
  de	
  dentro	
  deles	
  mesmos,	
  e	
  que	
  eles	
  não	
  cessam	
  de	
  falar,	
  de	
  colocar	
  questões	
  a	
  
seu	
  respeito,	
  e	
  até	
  mesmo	
  de	
  criar	
  em	
  laboratório,	
  dispositivos	
  que	
  podem	
  ativar	
  estas	
  entidades.	
  
	
   O	
  contraste,	
  assim	
  radicalizado,	
  poder	
  ter	
  um	
  efeito	
  devastador.	
  Mas	
  sua	
  ironia	
  não	
  me	
  parece	
  
poder	
   nos	
   conduzir	
  mais	
   longe	
   do	
   que	
   esta	
   desconstrução.	
   Ela	
   não	
   pode,	
   em	
   todo	
   o	
   caso,	
   nem	
   nos	
  
permitir	
  compreender	
  que	
  os	
  contrastes	
  se	
  constroem	
  ,	
  nem	
  nos	
  ajudar	
  a	
  explorar,	
  tomando-­‐a	
  a	
  sério,	
  a	
  
maneira	
  pela	
  qual	
  nós	
  cultivamos	
  as	
  emoções.	
  Deixemos	
  portanto	
  aí	
  este	
  explorador	
  costurado	
  pelo	
  fio	
  
branco	
  e	
  retomemos	
  melhor	
  o	
  contraste	
  tal	
  como	
  ele	
  se	
  constrói	
  efetivamente,	
  de	
  tal	
  maneira	
  que	
  ele	
  
me	
  permita	
  hoje	
  falar	
  de	
  nossas	
  emoções	
  como	
  de	
  alguma	
  coisa	
  que	
  perdeu	
  seu	
  caráter	
  de	
  evidência.	
  
	
   A	
  primeira	
   evidência	
   com	
  a	
  qual	
   os	
   etnopsicólogos	
   tiveram	
  que	
   se	
   resignar	
   a	
   romper	
   e	
   sob	
   a	
  
qual	
   circularia	
   nossa	
   concepção	
   das	
   emoções	
   é	
   a	
   evidência	
   de	
   sua	
   universalidade.	
   As	
   emoções	
  
desconhecidas	
  por	
  nós	
  são	
  cultivadas	
  alhures,	
  algumas	
  de	
  nossas	
  emoções	
  apresentam	
  inegavelmente	
  
um	
  caráter	
  local.	
  	
  Mas	
  estas	
  diferenças	
  poderiam	
  sempre	
  se	
  traduzir	
  em	
  termos	
  de	
  leves	
  variações	
  sobre	
  
um	
  fundo	
  natural	
  e,	
  portanto,	
  universal	
  –	
  a	
  cultura	
  vem	
  depositar	
  algumas	
  sombras	
  sobre	
  o	
  belo	
  tecido	
  
virgem	
  da	
  natureza.	
  Por	
  outro	
  lado,	
  a	
  constatação	
  segundo	
  a	
  qual	
  “nossas”	
  questões	
  não	
  fazem	
  muito	
  
sentido	
  para	
  os	
  outros	
  convida	
  muito	
  mais	
  seriamente	
  a	
  repensar	
  esta	
  universalidade.	
  O	
  fato	
  de	
  que	
  isto	
  
se	
  acompanha	
  do	
  espanto	
  assinala	
  o	
  êxito	
  do	
  contraste:	
  como,	
  se	
  nossas	
  emoções	
  são	
  todas	
  universais,	
  
se	
  elas	
  pertencem	
  ao	
  velho	
  fundo	
  de	
  natureza	
  que	
  unifica	
  nossas	
  experiências	
  e	
  as	
  torna	
  idênticas	
  para	
  
além	
   das	
   culturas,	
   pode-­‐se	
   dar	
   que	
   “nossas”	
   questões	
   a	
   propósito	
   das	
   emoções	
   não	
   sejam,	
   elas	
  
também,	
  suscetíveis	
  de	
  sempre	
  produzir	
  respostas	
  semelhantes	
  às	
  nossas?	
  O	
  espanto,	
  para	
  os	
  outros,	
  
se	
  transforma	
  aqui	
  também	
  em	
  um	
  espanto	
  reflexivo:	
  eis	
  nos	
  a	
  nos	
  espantar	
  de	
  que	
  estas	
  questões	
  que	
  
nós	
   remetemos	
   a	
   nossas	
   emoções,	
   e	
   que	
   parecem	
   surpreendentes	
   e	
   atéincompreensíveis	
   para	
   os	
  
outros,	
  possam	
  fazer	
  sentido	
  para	
  nós.	
  À	
  luz	
  do	
  contraste,	
  estas	
  questões	
  perdem	
  também	
  seu	
  caráter	
  
de	
  evidência,	
  e	
  começam	
  a	
  nos	
  parecer	
  um	
  pouco	
  estranhas.	
  
	
   Contudo,	
  elas	
   fazem	
  sentido	
  para	
  nós.	
   São	
  as	
  questões	
  acima	
  que	
  os	
  psicólogos,	
   sociólogos	
  e	
  
biólogos	
  nos	
   colocam,	
   e	
   é	
   com	
  elas	
  que	
   se	
   constitui	
   nosso	
   saber	
   científico	
  da	
   emoção.	
  Nós	
  podemos	
  
desde	
  então	
  tentar	
  compreender	
  como	
  estas	
  questões	
  estranhas	
  são	
  articuladas	
  em	
  nossas	
  concepções	
  
das	
   emoções	
   e	
   as	
   fazem	
   prolongar.	
   Pode-­‐se,	
   por	
   exemplo,	
   espantar-­‐se	
   de	
   que	
   algumas	
   de	
   nossas	
  
práticas	
   possam,	
   com	
   total	
   coerência,	
   interrogar	
   os	
   sujeitos	
   do	
   laboratório	
   a	
   propósito	
   disto	
   que	
   é	
   a	
  
emoção	
   isolando-­‐as	
   completamente;	
   que	
   elas	
   possam	
   lhes	
   pedir,	
   na	
   maior	
   solidão,	
   fazer	
   bater	
   seu	
  
coração	
   um	
   pouco	
   mais	
   rápido,	
   produzir	
   substâncias	
   misteriosas	
   que	
   tornam	
   a	
   emoção	
   legível,	
  
preencher	
   questionários,	
   reconhecer	
   em	
   outros	
   rostos,	
   que	
   não	
   são	
   o	
   seu,	
   rostos	
   aliás,	
   tão	
   isoladas	
  
quanto	
  ela	
  própria,	
  as	
  expressões	
  de	
  uma	
  paixão.	
  Por	
  mais	
  surpreendente	
  que	
  seja	
  esse	
  dispositivo,	
  ele	
  
não	
  é	
  menos	
  verdadeiro	
  porque	
  ele	
  está	
  totalmente	
  de	
  acordo	
  com	
  certas	
  dimensões	
  da	
  emoção	
  que	
  
nós	
  privilegiamos:	
  não	
  é	
  ela,	
  antes	
  de	
  tudo,	
  segundo	
  nossa	
  concepção,	
  uma	
  aventura	
  íntima?	
  
	
   Nós	
   esperaríamos	
   dos	
   outros	
   que	
   trouxessem	
   outras	
   respostas	
   a	
   nossas	
   questões,	
   eis	
   que	
  
nossas	
   questões	
   parecem	
   dever	
   estar	
   elas	
   mesmas	
   submissas	
   à	
   interrogação,	
   até	
   mesmo	
   à	
  
desconstrução.	
  Não	
  são	
  somente	
  nossas	
  concepções	
  da	
  emoção	
  que	
  se	
  trata	
  de	
  minar	
  a	
  evidência,	
  é	
  a	
  
maneira	
   pela	
   qual	
   nossas	
   práticas	
   as	
   definem	
   e	
   as	
   interrogam	
   que	
   nós	
   aprendemos	
   a	
   colocar	
   em	
  
perspectiva.	
  
	
   Nós	
   podemos,	
   por	
   exemplo,	
   tentar	
   compreender	
   como	
   e	
   porque	
   estas	
   práticas,	
   como	
   a	
  
psicologia	
   experimental	
   e	
   social,	
   a	
   biologia	
   e	
   a	
   sociologia	
   privilegiam	
   certas	
   concepções	
   da	
   emoção	
  
(naturais,	
  universais,	
  íntimas,	
  internas,	
  somáticas,	
  autênticas),	
  e	
  como	
  as	
  questões,	
  que	
  elas	
  ambicionam	
  
resolver	
   determinam	
   estes	
   privilégios.	
   Eles	
   poderiam	
   me	
   responder	
   que	
   as	
   práticas	
   científicas	
  
prolongam	
  nossas	
  concepções	
  da	
  emoção,	
  as	
  dimensões	
  que	
  são	
  privilegiadas	
  em	
  nossa	
  cultura.	
  Não	
  é	
  
isso	
   que	
   eu	
   sugeria	
   ao	
   afirmar	
   que	
   as	
   questões	
   dos	
   cientistas	
   estão	
   bem	
   articuladas	
   com	
   nossas	
  
concepções	
   e	
   que	
   elas	
   as	
   perpetuam	
   em	
   seu	
   campo	
   próprio?	
   Eu	
   espero	
   complicar	
   um	
  pouco	
  mais	
   a	
  
resposta	
  “concretamente”,	
  esta	
   resposta	
  um	
  pouco	
  simples	
  que,	
   finalmente,	
   reduz	
  nossas	
  ciências	
  ao	
  
papel	
   de	
   herdeiras	
   passivas	
   de	
   uma	
   tradição	
   que	
   tem	
   nela	
   mesma	
   o	
   poder	
   de	
   se	
   perpetuar.	
   Esta	
  
resposta,	
  com	
  efeito,	
  não	
  nos	
  diz	
  como	
  estas	
  concepções	
  chegam	
  nas	
  	
  nossas	
  práticas,	
  e	
  muito	
  menos	
  
como	
   ela	
   não	
   é	
   capaz	
   de	
   dar	
   conta	
   das	
   transformações	
   pelas	
   quais	
   estas	
   concepções	
   sofrem,	
   as	
  
exigências	
  as	
  quais	
  elas	
  respondem	
  e	
  que	
  contribuem	
  certamente	
  para	
  prolongá-­‐las,	
  mas	
  também	
  para	
  
reinventá-­‐las	
  e	
  para	
  retraduzi-­‐las.	
  
	
  
	
   Etnopsicologia	
  de	
  nossas	
  práticas	
  
	
   	
  
	
   Nós	
  podemos,	
  para	
   ilustrar	
  essa	
  perspectiva,	
  analisar	
  como	
  a	
  fascinação	
  pela	
  autenticidade	
  da	
  
emoção	
   se	
   traduz	
   no	
   laboratório	
   de	
   biologia	
   ou	
   de	
   psicologia	
   experimental.	
   Esta	
   fascinação	
   pela	
  
autenticidade	
  da	
  emoção	
  é	
  bem	
  uma	
  característica	
  de	
  nossa	
  tradição.	
  Nós	
  a	
  exprimimos	
  em	
  linguagem	
  
corrente,	
   de	
   diversas	
   maneiras:	
   a	
   emoção	
   nos	
   chega,	
   ela	
   nos	
   excede:	
   nós	
   não	
   controlamos	
   nossas	
  
emoções,	
   “nós	
   somos	
   a	
   preza	
   de	
   nossas	
   paixões”,	
   diríamos	
   para	
   designar	
   a	
   autenticidade	
   de	
   uma	
  
experiência	
  sobre	
  a	
  qual	
  a	
  razão	
  tem	
  pouco	
  domínio,	
  a	
  permanência	
  de	
  um	
  núcleo	
  arcaico	
  de	
  natureza	
  
sob	
  as	
  camadas	
  da	
  cultura	
  ou	
  do	
  social	
  e	
  de	
  seus	
  artifícios.	
  Nós	
  dizemos	
  também	
  que	
  “elas	
  revelam	
  o	
  
que	
   nós	
   sentimos	
   verdadeiramente”,	
   e	
   eis	
   nosso	
   rosto	
   que	
   trai	
   nossa	
   emoção	
   como	
   se	
   a	
   verdade	
  
ressurgisse	
   por	
   detrás	
   da	
  máscara.	
   Esta	
   fascinação	
   pela	
   autenticidade	
   é	
   reencontrada	
   no	
   laboratório.	
  
Mas	
  ela	
  não	
  é	
  reencontrada	
  sob	
  a	
  forma	
  de	
  um	
  simples	
  prolongamento,	
  ela	
  traduz	
  (e	
  se	
  traduz	
  em)	
  um	
  
certo	
  tipo	
  de	
  exigência;	
  ela	
  concorda	
  de	
  fato	
  de	
  maneira	
  privilegiada	
  aos	
   imperativos	
  do	
  fazer	
  ciência.	
  
Com	
   efeito,	
   a	
   esta	
   autenticidade	
   da	
   emoção	
   que	
   nós	
   cultivamos	
   se	
   articula	
   a	
   fascinação	
   pela	
  
autenticidade	
  daquilo	
  que	
  trata-­‐se	
  de	
  saber	
  e	
  do	
  acesso	
  mais	
  igualitário	
  para	
  garantir	
  isso:	
  trata-­‐se	
  para	
  
cada	
  uma	
  das	
  práticas	
  e	
  das	
  teorias,	
  de	
  achar	
  o	
  que	
  permite	
  o	
  acesso	
  à	
  autenticidade	
  da	
  emoção.	
  Serão	
  
desde	
  então	
  privilegiadas	
   todas	
  as	
  dimensões	
  da	
  emoção	
  as	
  mais	
   igualitárias	
  para	
  garantir	
  os	
  acessos	
  
autênticos.	
   Uma	
   das	
   controvérsias,	
   a	
   mais	
   recorrente	
   no	
   campo	
   do	
   saber	
   das	
   emoções	
   consiste	
   em	
  
determinar	
  se	
  as	
  emoções	
  são	
  naturais	
  e	
  biológicas,	
  ou	
  se	
  elas	
  são	
  culturais.	
  É	
  de	
  todo	
  evidente,	
  quando	
  
se	
  passa	
  em	
  revista	
  toda	
  a	
  literatura	
  científica,	
  uma	
  das	
  questõesmais	
  importantes.	
  Esta	
  questão	
  reflete	
  
certamente	
  uma	
  das	
  características	
  de	
  nossa	
  tradição,	
  aquela	
  que	
  divide	
  o	
  mundo	
  entre	
  sujeito	
  e	
  objeto	
  
de	
  natureza	
  e	
  sujeito	
  e	
  objeto	
  de	
  cultura:	
  sob	
  este	
  título,	
  a	
  emoção	
  deve	
  tomar	
  lugar	
  no	
  contraste.	
  Mas,	
  
além	
   dessa	
   característica	
   de	
   nossa	
   tradição,	
   a	
   controvérsia	
   testemunha	
   também	
   a	
   fascinação	
   pela	
  
autenticidade:	
   a	
   questão	
   desse	
   velho	
   debate,	
   retraduzindo-­‐a	
   no	
   campo	
   científico,	
   é	
   de	
   saber	
   qual	
  
emoção	
  poderá	
  ser	
  trabalhada	
  em	
  boa	
  causa,	
  em	
  causa	
  autêntica.	
  Aquela	
  que	
  se	
  dá	
  como	
  emanação	
  do	
  
corpo,	
   como	
   sugere	
  a	
   versão	
  biológica?	
  A	
  universalidade	
  e	
  a	
  naturalidade	
  de	
  uma	
  emoção	
  é	
  definida	
  
como	
  não	
  contaminada	
  pela	
  cultura,	
  esta	
  oferece	
  todas	
  as	
  garantias	
  de	
  autenticidade:	
  este	
  velho	
  fundo	
  
de	
   natureza	
   do	
   qual	
   testemunha	
   a	
   emoção	
   não	
   constitui	
   a	
   parte	
  mais	
   imutável,	
   a	
  mais	
   universal	
   de	
  
todos	
   os	
   humanos?	
   E	
   a	
   legibilidade	
   tão	
   particular	
   do	
   corpo,	
   deste	
   corpo	
   emocionado	
   que	
   não	
   pode	
  
mentir,	
   oferece	
   ele	
  mesmo	
   a	
   garantia	
   da	
   autenticidade	
   do	
   acesso.	
   A	
   emoção,	
   sempre,	
   nos	
   trairá.	
   Ela	
  
escapa	
  à	
  vontade	
  do	
  sujeito,	
  desde	
  então	
  ela	
  pode	
  se	
  revelar	
  autenticamente.	
  Certamente,	
  poder-­‐se-­‐ia	
  
imaginar	
   que	
   a	
   autenticidade	
   torna-­‐se	
   muito	
   mais	
   problemática	
   para	
   aqueles	
   que	
   mantêm	
   outra	
  
concepção,	
  a	
  concepção	
  social	
  ou	
  culturalista.	
  Aqui,	
  não	
  é	
  mais	
  a	
  questão	
  de	
  um	
  corpo	
  que	
  não	
  poderia	
  
mentir,	
  não	
  é	
  mais	
  questão	
  de	
  desvelar	
  a	
  natureza	
  sob	
  os	
  artifícios	
  do	
  social.	
  Portanto,	
  a	
  preocupação	
  
da	
  autenticidade	
  resta	
  presente.	
  Mas	
  ela	
  se	
  retraduz	
  de	
  novo,	
  e	
  desenha	
  uma	
  outra	
  configuração:	
  não	
  
seria	
  autenticamente	
  humano	
  senão	
  aquelas	
  emoções	
  sob	
  as	
  quais	
  se	
  imprime	
  a	
  cultura.	
  O	
  sentido	
  de	
  
autenticidade	
  da	
  emoção	
  se	
  define	
  aí	
  de	
  maneira	
  um	
  pouco	
  diferente,	
  porque	
  ela	
  se	
  refere	
  à	
  vocação	
  
cultural	
   do	
   homem,	
   mas	
   ela	
   articula	
   sempre	
   as	
   mesmas	
   dimensões	
   do	
   contraste.	
   A	
   questão	
   da	
  
autenticidade	
  do	
  acesso	
  é	
  tomada	
  aí,	
  também	
  de	
  outras	
  formas,	
  mas	
  ela	
  se	
  inscreve	
  no	
  mesmo	
  registro,	
  
naquele	
  do	
  acesso	
  verídico	
  a	
  isto	
  que	
  é	
  verdadeiro:	
  assim,	
  torna-­‐se	
  totalmente	
  legítimo	
  pedir	
  à	
  emoção	
  
que	
   testemunha	
  a	
   sua	
   sociabilidade	
   isolando	
  o	
   sujeito,	
  uma	
  vez	
  que	
  está	
  aí	
   o	
  modo	
  privilegiado	
  pelo	
  
qual	
  o	
  cientista	
  pode	
  ter	
  acesso	
  a	
  este	
  fundo	
  íntimo	
  e	
  autêntico	
  ao	
  erradicar	
  tudo	
  isto	
  que	
  poderia	
  fazer	
  
figura	
   de	
   parasita,	
   tudo	
   aquilo	
   que	
   não	
   poderia	
   ser	
   controlado	
   na	
   experiência	
   quando	
   ela	
   pede	
   ao	
  
sujeito	
  para	
  reagir.	
  Nesta	
  perspectiva,	
  a	
  versão	
  que	
  define	
  a	
  emoção	
  como	
  uma	
  reação	
  relativamente	
  
independente	
  da	
  vontade	
  se	
  articula	
  particularmente	
  bem	
  aos	
  dispositivos	
  do	
  laboratório,	
  uma	
  vez	
  que	
  
este	
  privilegia	
  o	
  acesso	
  aos	
  objetos	
  que	
  se	
  pode	
  fazer	
  reagir,	
  e	
  define	
  estes	
  como	
  os	
  que	
  devem	
  reagir.	
  O	
  
laboratório	
  se	
  encarregará	
  de	
  construir	
  as	
  condições	
  nas	
  quais	
  a	
  emoção	
  se	
  efetua	
  como	
  passividade.	
  
	
   Esta	
   coexistência	
   de	
   duas	
   concepções	
   contraditórias	
   da	
   emoção	
   na	
   paisagem	
   teórica	
   se	
  
prolonga	
   num	
   outro	
   tipo	
   de	
   disjunção,	
   também	
   completamente	
   recorrente	
   e	
   imperativa:	
   a	
   emoção,	
  
parece,	
  deve	
  escolher	
  seu	
  campo.	
  Ela	
  está	
  no	
  mundo?	
  –	
  sim,	
  responderão	
  uns,	
  eu	
  estou	
  triste	
  porque	
  o	
  
mundo	
  é	
  triste,	
  eu	
  rio	
  porque	
  a	
  brincadeira	
  é	
  engraçada,	
  eu	
  tenho	
  medo	
  porque	
  o	
  mundo	
  é	
  terrível.	
  Ela	
  
está	
   na	
   alma?	
   –	
   sim,	
   responderão	
   outros,	
   o	
   mundo	
   é	
   triste	
   porque	
   eu	
   o	
   sou,	
   a	
   brincadeira	
   só	
   é	
  
engraçada	
  porque	
  eu	
  rio,	
  o	
  mundo	
  é	
  terrível	
  porque	
  eu	
  tenho	
  medo.	
  Ou	
  ainda,	
  outra	
  possibilidade	
  que	
  
deveria	
   excluir	
   o	
   privilégio	
   das	
   outras	
   duas	
   sob	
   o	
   título	
   de	
   boa	
   explicação,	
   a	
   emoção	
   não	
   seria	
   uma	
  
emancipação	
  do	
  corpo?	
  E	
  os	
  primeiros,	
  que	
   reprovam	
  os	
   segundos	
  e	
  os	
   terceiros,	
   teriam	
  esvaziado	
  o	
  
mundo	
  em	
  proveito	
  do	
  corpo	
  ou	
  da	
  consciência,	
  os	
  segundos	
  reivindicam	
  dos	
  outros	
  o	
  retorno	
  da	
  alma,	
  
do	
  espírito	
  ou	
  do	
  sujeito	
  cognoscente;	
  os	
  últimos	
  se	
  escandalizariam	
  daqueles	
  que	
  gostariam	
  de	
  fazer	
  de	
  
nós	
  anjos.	
  Aqui	
  também	
  a	
  questão	
  da	
  autenticidade	
  constitui	
  uma	
  questão	
  maior:	
  trata-­‐se	
  não	
  somente	
  
de	
  achar	
  a	
  boa	
  causa	
  (o	
  mundo,	
  a	
  consciência,	
  o	
  corpo),	
  mas	
  trata-­‐se	
  também	
  de	
  estabilizar	
  esta	
  causa	
  –	
  
ou	
  o	
  mundo	
  produz	
  o	
  sujeito	
  emocionado,	
  e	
  é	
  sempre	
  a	
  ele	
  que	
  o	
  cientista	
  poderia	
  se	
   referir;	
  ou	
  é	
  a	
  
consciência;	
  ou	
  é	
  o	
  corpo,	
  e	
  é	
  a	
  este	
  que	
  o	
  cientista	
  se	
  dirigirá,	
  são	
  eles	
  que	
  lhe	
  garantirão	
  o	
  bom	
  acesso.	
  
Mas	
  não	
  pode	
  ser	
  questão	
  que	
  a	
  emoção	
  mude	
  de	
  causa,	
  que	
  ela	
  transforme	
  este	
  em	
  efeito,	
  que	
  ela	
  se	
  
empenhe	
  em	
  resistir	
  às	
  determinações.	
  
	
   É	
   aí,	
   sem	
   dúvida,	
   que	
   reside	
   a	
   diferença	
   essencial	
   entre	
   o	
   romance	
   e	
   a	
   psicologia:	
   o	
   que	
   o	
  
primeiro	
   assume	
   construir	
   sob	
  um	
  modo	
  o	
  mais	
   indeterminado,	
   a	
   segunda	
   se	
   esforça	
   em	
   revelar	
   em	
  
suas	
   determinações;	
   o	
   primeiro	
   exige	
   que	
   a	
   emoção	
   seja	
   bem	
   construída,	
   o	
   segundo	
   que	
   ela	
   seja	
  
autenticamente	
  revelada.	
  Se	
  todosos	
  dois	
  traduzem	
  esta	
  intensidade	
  de	
  interesse	
  pela	
  emoção,	
  parece	
  
que	
  seja	
  na	
  obediência	
  à	
  necessidade	
  de	
  disjunção	
  que	
  as	
  ciências	
  se	
  delimitam	
  o	
  mais	
  nitidamente	
  do	
  
romance.	
  Onde	
  esta	
  constrói	
  e	
   cultiva	
  a	
   indeterminação	
  e	
  de	
   fato,	
  o	
  “nós”	
  de	
   sua	
   intriga,	
  deixando	
  o	
  
leitor	
   na	
   perplexidade	
   a	
  mais	
   livre	
   –	
   que	
   se	
   pense,	
   por	
   exemplo,	
   nos	
   romances	
   de	
  Henry	
   James	
   –,	
   a	
  
psicologia	
  se	
  esforça	
  em	
  distribuir	
  as	
  determinações,	
  o	
  que	
  é	
  causa	
  privilegiada	
  e	
  o	
  efeito	
  que	
  resulta	
  
daí,	
   tentam	
   responder	
   de	
   uma	
   vez	
   por	
   todas	
   à	
   questão	
   recorrente	
   de	
   saber	
   se	
   é	
  minha	
   paixão	
   que	
  
constrói	
  um	
  mundo	
  apaixonante,	
  ou	
  se	
  ao	
  contrário,	
  é	
  um	
  mundo	
  apaixonante	
  que	
  me	
  produz	
  como	
  ser	
  
apaixonado.	
  Os	
  acontecimentos	
  que,	
  no	
  dispositivo	
  do	
  romance,	
  misturam	
  e	
  complicam	
  a	
  seu	
  bel	
  prazer	
  
cada	
   um	
   dos	
   candidatos	
   ao	
   título	
   de	
   causa	
   e	
   de	
   efeito,	
   estes	
   acontecimentos	
   que	
   o	
   romance	
   cultiva	
  
como	
   indeterminados,	
   se	
   inscrevem	
   nos	
   dispositivos	
   das	
   nossas	
   ciências	
   de	
   maneira	
   totalmente	
  
diferente:	
  nós	
  separamos	
  tanto	
  o	
  corpo	
  do	
  mundo,	
  quanto	
  o	
  corpo	
  da	
  alma,	
  quanto	
  a	
  alma	
  do	
  mundo,	
  
segundo	
  o	
  privilégio	
  concedido	
  a	
  cada	
  um	
  deles.	
  E	
  esta	
  separação	
  garante	
  desde	
  agora	
  a	
  autenticidade	
  
do	
  acesso	
  ao	
  que	
  nós	
  ambicionamos	
  saber,	
  e	
  a	
  autenticidade	
  daquilo	
  que	
  se	
  trata	
  de	
  saber.	
  
	
   Certamente	
  nós	
  poderíamos	
  levar	
  mais	
  longe	
  esta	
  desconstrução:	
  a	
  lição	
  do	
  contraste	
  pode	
  nos	
  
incitar	
  a	
  multiplicar	
  as	
  questões	
  reflexivas,	
  e	
  a	
  desconstruir	
  as	
  articulações	
  entre	
  nossas	
  concepções	
  e	
  as	
  
práticas	
   que	
   as	
   prolongam	
   e	
   as	
   efetivam.	
  Nós	
   podemos	
   colocar	
   a	
   questão	
   de	
   saber	
   como	
   o	
   que	
   nós	
  
cultivamos	
  como	
  não	
  negociável	
  deve	
  justamente	
  se	
  negociar	
  para	
  ser	
  definido	
  como	
  tal,	
  como	
  isto	
  que	
  
nós	
  consideramos	
  como	
  natural	
  deve	
  ser	
  cultivado	
  para	
  existir	
  como	
  tal.	
  E	
  nós	
  podemos	
  também	
  fazer	
  
recuar	
  esta	
  questão	
  reflexiva	
  à	
  vontade,	
  até	
  a	
  vertigem	
  ou	
  ao	
  paradoxo:	
  nos	
  espantamos	
  disto	
  que	
  nós	
  
somos	
   à	
   luz	
   disto	
   que	
   nós	
   não	
   somos	
   para	
  melhor	
   nos	
   compreender,	
   para	
   nos	
   desiludir	
   de	
   qualquer	
  
maneira,	
  participando	
  finalmente	
  desta	
   fascinação	
  pela	
  autenticidade	
  –	
  nós	
  vamos	
  enfim	
  nos	
  “saber”.	
  
Eis	
  nos,	
  com	
  a	
  questão	
  da	
  autenticidade,	
  na	
  posição	
  de	
  um	
  regador	
  regado.	
  
	
   Nos	
  é	
  necessário	
  medir	
  aquilo	
  que	
  nos	
  engaja	
  ao	
  fato	
  de	
  nos	
  interrogar	
  nestes	
  termos.	
  Manter-­‐
se	
  nesta	
  vontade	
  de	
  nos	
  compreender	
  ou	
  de	
  nos	
  saber	
  sob	
  o	
  único	
  modo	
  da	
  desconstrução	
  me	
  parece	
  
não	
  poder	
  chegar	
  senão	
  a	
  dois	
  tipos	
  de	
  atitude,	
  finalmente	
  pouco	
  interessantes:	
  com	
  a	
  primeira,	
  eu	
  me	
  
veria	
   optar	
   pela	
   ironia,	
   com	
   a	
   segunda,	
   eu	
  me	
   decidiria	
   pela	
   aceitação	
   passiva.	
   A	
   posição	
   do	
   irônico	
  
consistiria	
  em	
  afirmar	
  que	
  nosso	
  saber	
  das	
  emoções	
  é	
  apenas	
  um	
  conjunto	
  de	
  ficções	
  relativas	
  às	
  nossas	
  
crenças	
   –	
   e	
   nós	
   poderíamos	
   chamar	
   de	
   novo	
   nosso	
   extraterrestre	
   falsamente	
   ingênuo	
   para	
   nos	
   dar	
  
outras	
   lições	
   de	
   ironia.	
   Na	
   versão	
  mais	
   crítica,	
   nós	
   chegaríamos	
   à	
   conclusão	
   de	
   que	
   nosso	
   saber	
   das	
  
emoções	
  não	
  deve	
  ser	
  nada	
  mais	
  do	
  que	
  uma	
  longa	
  sequência	
  de	
  divagações	
  e	
  de	
  erros.	
  Ou,	
  esta	
  ironia	
  
seria	
  pelo	
  menos	
  paradoxal.	
  Com	
  efeito,	
  para	
  tirar	
  as	
  lições	
  do	
  contraste,	
  eu	
  me	
  imponho,	
  por	
  um	
  lado,	
  
de	
  tomar	
  o	
  saber	
  dos	
  outros	
  a	
  sério,	
  e	
  por	
  outro	
  lado	
  de	
  tomar	
  com	
  a	
  mesma	
  seriedade	
  o	
  fato	
  de	
  que	
  é	
  
a	
   intensidade	
   mesma	
   de	
   nosso	
   interesse	
   que	
   nos	
   conduz	
   à	
   interrogar	
   e	
   a	
   construir	
   o	
   contraste.	
  
Inicialmente,	
   seria	
  pelo	
  menos	
  paradoxal	
   rir	
  desta	
   intensidade	
  do	
   interesse	
  e	
  das	
   formas	
  que	
  se	
  pode	
  
tomar	
  e	
  de	
  recusar	
  aquilo	
  pelo	
  qual	
  ele	
  é	
  prolongamento.	
  Em	
  seguida,	
  não	
  seria	
  menos	
  paradoxal	
  não	
  
utilizar	
   o	
   saber	
   dos	
   outros	
   senão	
   como	
   um	
   modo	
   de	
   desqualificação	
   do	
   nosso.	
   Com	
   efeito,	
   se	
   a	
  
etnopsicologia	
  como	
  disciplina	
  toma	
  sua	
  fonte	
  na	
  interrogação	
  dos	
  “outros”,	
  o	
  fato	
  de	
  nos	
  inscrever	
  no	
  
contraste	
   faz	
   então	
   de	
   nossa	
   psicologia	
   uma	
   etnopsicologia	
   entre	
   outras.	
   E	
   a	
   este	
   título,	
   da	
   mesma	
  
maneira	
  que	
  nós	
  tomamos	
  a	
  sério	
  a	
  etnopsicologia	
  dos	
  outros	
  para	
  criar	
  uma	
  perspectiva,	
  nós	
  devemos	
  
tomar	
  nossa	
  etnopsicologia	
  a	
  sério.	
  Mas,	
  tomar	
  a	
  sério	
  não	
  se	
  resume	
  ao	
  segundo	
  ramo	
  de	
  alternativa,	
  
aquele	
   da	
   aceitação	
   passiva,	
   aquele	
   que	
   se	
   resumiria	
   em	
   afirmar	
   que	
   nosso	
   saber	
   revela	
   nossa	
  
concepção	
  das	
  paixões	
  e	
  que	
  nós	
  não	
  podemos	
  nos	
  pensar	
  de	
  outra	
  forma	
  a	
  não	
  ser	
  esta	
  que	
  nós	
  nos	
  
pensamos.	
  Se,	
  ao	
  contrário	
  da	
  constatação	
  irônica,	
  esta	
  constatação	
  aberta	
  não	
  chegasse	
  sobre	
  nenhum	
  
paradoxo,	
  é	
  muito	
  simplesmente	
  porque	
  ela	
  não	
  chega	
  a	
  nada.	
  Vê-­‐se	
  mal,	
  aliás,	
  a	
  razão	
  de	
  construir	
  um	
  
contraste	
   qualquer,	
   ou	
   o	
   interesse	
   de	
   nos	
   saber,	
   se	
   não	
   for	
   senão	
   para	
   emitir	
   algumas	
   lamentações	
  
quanto	
  à	
  indigência	
  de	
  nossa	
  herança,	
  e	
  a	
  fatalidade	
  daquilo	
  que	
  ela	
  produz.	
  
	
   Ora,	
  se	
  nosso	
  conhecimento	
  das	
  paixões	
  é	
  bem	
  um	
  produto	
  de	
  nossa	
  herança,	
  e	
  si	
  nóspodemos	
  
mostrar	
  como	
  nossas	
  práticas	
  efetivam	
  as	
  concepções	
  de	
  nossa	
  tradição,	
  este	
  saber	
  e	
  essas	
  práticas	
  são	
  
ao	
  mesmo	
  tempo	
  o	
  vetor	
  desta	
  herança:	
  nosso	
  saber	
  certamente	
  prolonga	
  nossas	
  concepções,	
  mas	
  ele	
  
as	
  transforma	
  também.	
  	
  E	
  isto	
  que	
  eu	
  poderei	
  dizer	
  participa	
  desta	
  transformação,	
  e	
  se	
  torna	
  vetor	
  da	
  
herança.	
  Não	
  se	
   trata	
  de	
   recuar	
  a	
  questão	
  reflexiva	
  de	
  um	
  corte,	
  mas	
  de	
   interrogar	
  ativamente	
   isto	
  a	
  
que	
   o	
   fato	
   de	
   ser	
   vetor	
   nos	
   engaja:	
   como	
   fazer	
   de	
   nossa	
   herança	
   um	
  problema	
   e	
   não	
   uma	
   solução?	
  
Como	
  nos	
  reconhecer	
  como	
  produtos	
  desta	
  herança,	
  e	
  nos	
  engajar	
  também	
  como	
  seu	
  vetor?	
  E,	
  porque	
  
é	
  para	
  a	
  etnopsicologia	
  que	
  as	
  questões	
  pelas	
  quais	
  nós	
  herdamos	
  puderam	
  ser	
  suscitadas,	
  trata-­‐se	
  de	
  
definir	
  como	
  nós	
  queremos	
  utilizar	
  o	
  saber	
  dos	
  outros,	
  o	
  saber	
  que	
  nos	
  torna	
  outros	
  do	
  fato	
  de	
  termos	
  
reencontrado	
   os	
   outros,	
   em	
   uma	
   nova	
   maneira	
   de	
   colocar	
   o	
   problema	
   daquilo	
   que	
   se	
   transmite,	
   e	
  
daquilo	
  que	
  nós	
  queremos	
  fazer	
  do	
  que	
  é	
  transmitido.	
  
	
  
	
   Uma	
  herança	
  a	
  construir	
  
	
  
	
   Um	
  velho	
  homem,	
   sentindo	
  seu	
   fim	
  se	
  aproximar,	
   chama	
  a	
   seus	
   três	
   filhos,	
  para	
  dividir	
  entre	
  
eles,	
   aquilo	
  que	
   lhe	
   resta	
  de	
  bens.	
   Ele	
   lhes	
  diz:	
  meus	
   filhos,	
   eu	
   tenho	
  onze	
   camelos,	
   eu	
  deixo	
  metade	
  
deles	
  ao	
  primeiro	
  filho,	
  um	
  quarto,	
  ao	
  segundo,	
  e	
  tu,	
  meu	
  último	
  filho,	
  eu	
  te	
  dou	
  a	
  sexta	
  parte.	
  Com	
  a	
  
morte	
  do	
  pai,	
   os	
   filhos	
   se	
   tornam	
  bem	
  perplexos:	
   como	
  dividir?	
  A	
   guerra	
  da	
  divisão	
  parece	
   tornar-­‐se	
  
inevitável.	
   Sem	
   solução,	
   eles	
   se	
   dirigem	
   à	
   vila	
   vizinha,	
   para	
   pedir	
   conselho	
   de	
   um	
   velho	
   sábio.	
   Este	
  
reflete,	
  pois	
  coça	
  a	
  testa:	
  eu	
  não	
  posso	
  resolver	
  este	
  problema.	
  Tudo	
  o	
  que	
  eu	
  posso	
  fazer	
  por	
  vocês,	
  é	
  
vos	
  dar	
  meu	
  velho	
  camelo.	
  Ele	
  é	
  velho,	
  é	
  magro	
  e	
  muito	
  valente,	
  mas	
  ele	
  vos	
  ajudará	
  a	
  separar	
  vossa	
  
herança.	
  Os	
  filhos	
  levam	
  o	
  velho	
  camelo	
  e	
  partilham:	
  o	
  primeiro	
  recebe	
  então	
  seis	
  camelos,	
  o	
  segundo	
  
três	
   e	
   o	
   último	
   dois.	
   Resta	
   ainda	
   o	
   velho	
   camelo	
   insignificante	
   que	
   eles	
   puderam	
   devolver	
   a	
   seu	
  
proprietário.	
  
	
   O	
   que	
   nós	
   podemos	
   fazer	
   disto	
   que	
   os	
   etnopsicólogos	
   nos	
   tem	
   trazido	
   de	
   suas	
   viagens	
   aos	
  
países	
  de	
  outras	
  paixões	
  me	
  parece	
  poder	
  ser	
  lido	
  da	
  mesma	
  maneira	
  que	
  a	
  solução	
  que	
  o	
  velho	
  homem	
  
propõe	
  aos	
  filhos	
  herdeiros	
  de	
  uma	
  herança	
  a	
  qual	
  os	
  filhos	
  não	
  sabiam	
  muito	
  bem	
  o	
  que	
  fazer,	
  e	
  que	
  
não	
   poderia	
   ser	
   transmitida	
   tal	
   e	
   qual.	
   Estejamos	
   atentos,	
   este	
   décimo	
   segundo	
   camelo	
   que	
   foram	
  
buscar	
  nossos	
  antropólogos	
  não	
  é	
  a	
  solução	
  –	
  não	
  menos	
  do	
  que	
  ele	
  não	
  foi	
  para	
  os	
   filhos	
  –	
  mas,	
  ele	
  
transforma	
   o	
   problema	
   sob	
   um	
   modo	
   que	
   exibe	
   a	
   possibilidade	
   da	
   construção.	
   O	
   décimo	
   segundo	
  
camelo	
  não	
  constitui,	
  ele	
  mesmo,	
  a	
  solução,	
  ele	
  põe	
  o	
  problema	
  do	
  que	
  nós	
  vamos	
   fazer.	
   Isto	
  que	
  os	
  
outros	
  são,	
  isto	
  que	
  eles	
  terão	
  produzido	
  como	
  saber	
  e	
  como	
  paixão,	
  nos	
  permite	
  nos	
  pensar	
  de	
  outra	
  
maneira,	
  mas	
   não	
   nos	
   diz	
   como	
   nos	
   pensar	
   de	
   outra	
  maneira,	
   como	
   nos	
   apropriar	
   desta	
   herança	
   se	
  
torna	
  matéria	
  a	
  pensar.	
   Tudo	
  o	
  que	
  ele	
  nos	
  diz	
  deste	
   como,	
  está	
  no	
  “sim”	
  que	
  os	
   filhos	
   conseguiram	
  
produzir,	
  e	
  no	
  humor	
  do	
  mal-­‐entendido	
  que	
  nós	
  podemos	
  ler	
  aí.	
  Os	
  filhos	
  não	
  ficaram	
  coagidos	
  entre	
  os	
  
dois	
   ramos	
  de	
  um	
  dilema	
  que	
  põe	
  a	
  herança	
  em	
  termos	
  de	
  solução:	
  a	
  aceitação	
  tal	
  e	
  qual	
   (ainda	
  que	
  
seja	
  preciso	
  brigar	
  para	
  dividi-­‐la)	
   ou	
   recusá-­‐la.	
  O	
   “sim”	
  que	
  os	
   filhos	
   conseguiram	
  produzir,	
   e	
  do	
  qual	
  
emerge	
  este	
  modo	
  de	
  divisão	
  propriamente	
  inesperado,	
  o	
  “sim”	
  que	
  encoraja	
  o	
  dom	
  do	
  último	
  camelo,	
  
não	
   é	
   nem	
   a	
   recusa	
   ou	
   a	
   denúncia	
   de	
   uma	
   escolha	
   impossível,	
   nem	
   a	
   aceitação	
   pura	
   e	
   simples	
   da	
  
herança.	
  Os	
  filhos	
  conseguiram	
  considerar	
  que	
  isto	
  que	
  seu	
  pai	
  lhes	
  legou	
  não	
  era	
  uma	
  solução,	
  mas	
  um	
  
problema,	
   o	
   problema	
  daquilo	
   que	
   eles	
   poderiam	
   fazer	
   com	
  aquilo	
   que	
   eles	
   receberam.	
   Eles	
   tiveram	
  
que	
   se	
   tornar	
   dignos	
   de	
   sua	
   herança,	
   e	
   dignos	
   da	
   confiança	
   da	
   qual	
   seu	
   pai	
   lhes	
   testemunhou	
   lhes	
  
legando	
  alguma	
  coisa	
  a	
  construir.	
  Este	
  “sim”	
  dos	
  filhos,	
  e	
  este	
  modo	
  de	
  divisão	
  inesperado	
  que	
  assinala	
  
o	
   sucesso	
  da	
   transmissão,	
   define	
   então	
  uma	
  outra	
  maneira	
  de	
  herdar:	
   uma	
  herança	
   a	
   se	
   construir,	
   e	
  
tudo	
   isto	
  que	
  participa	
  de	
  sua	
  construção	
  se	
  torna	
  um	
  devir	
  possível	
  desta	
  herança;	
  os	
  filhos	
  não	
  tem	
  
somente	
  herdado	
  onze	
  camelos,	
  eles	
  se	
  fazem	
  herdeiros	
  de	
  um	
  problema	
  e	
  tem	
  que	
  definir	
  a	
  herança	
  a	
  
partir	
  deste	
  problema.	
  E	
  é	
  aí,	
  eu	
  penso,	
  que	
  reside	
  a	
  lição	
  do	
  humor;	
  o	
  humor	
  que	
  celebra,	
  no	
  paradoxo,	
  
a	
   construção	
   e	
   a	
   invenção	
   inesperada	
   disto	
   que	
   se	
   transmite,	
   e	
   daquilo	
   que	
   torna	
   esta	
   transmissão	
  
aceitável.	
  
	
   É	
   para	
   conseguir	
   produzir	
   este	
   mesmo	
   “sim”	
   que	
   eu	
   queria	
   então	
   me	
   ater,	
   para	
   criar	
   as	
  
condições	
  pelas	
  quais	
  nós	
  podemos	
  inventar	
  uma	
  nova	
  relação	
  comnossa	
  herança,	
  uma	
  nova	
  maneira	
  
de	
  ser	
  digno	
  e	
  de	
  ganhar	
  a	
  confiança,	
  uma	
  nova	
  maneira	
  de	
  nos	
  por	
  em	
  acordo.	
  
	
   Entre	
   a	
   tentação	
   irônica	
   e	
   a	
   aceitação	
   passiva,	
   eu	
   gostaria	
   de	
   achar	
   uma	
   maneira	
   de	
   fazer	
  
herança,	
   uma	
  maneira	
   que	
   nos	
   engajar	
   ao	
  mesmo	
   tempo,	
   como	
   produtos	
   e	
   como	
   vetores	
   disto	
   que	
  
herdamos:	
  eu	
  gostaria	
  de	
  me	
  espantar,	
  mas	
  sob	
  o	
  modo	
  do	
  humor;	
  eu	
  gostaria	
  de	
  prolongar,mas	
  sob	
  o	
  
modo	
  da	
  invenção.	
  Por	
  um	
  lado,	
  eu	
  gostaria	
  de	
  me	
  espantar	
  sob	
  o	
  modo	
  do	
  humor,	
  me	
  reconhecendo	
  a	
  
mim	
  mesma	
  como	
  o	
  produto	
  da	
  história	
  daqueles	
  que	
  busco	
  seguir	
  a	
  construção.	
  Eu	
  posso	
  rir	
  com	
  meu	
  
extraterrestre,	
  mas	
  eu	
  sei	
  que	
  meu	
  riso	
  me	
  designa	
  como	
  herdeira	
  da	
  fascinação	
  pela	
  autenticidade,	
  já	
  
que	
   ela	
   traduz	
   ainda,	
   a	
   vontade	
   de	
   nos	
   “saber”	
   autenticamente,	
   e	
   até	
   mesmo	
   talvez,	
   a	
   esperança	
  
inesquecível	
   de	
   que	
   existe	
   um	
   saber	
   mais	
   verdadeiro	
   da	
   emoção,	
   uma	
   vez	
   que	
   nós	
   seremos	
  
desembaraçados	
   de	
   todo	
  o	
  monte	
   confuso	
  de	
   crenças.	
   Por	
   outro	
   lado,	
   eu	
   gostaria	
   de	
   prolongar	
   esta	
  
herança,	
  mas	
  sob	
  o	
  modo	
  da	
  invenção,	
  e	
  fazer	
  de	
  minha	
  busca	
  um	
  dos	
  vetores	
  desta	
  invenção.	
  
	
   Na	
  conclusão	
  do	
  livro	
  Nascimento	
  de	
  uma	
  teoria	
  etológica,	
  na	
  dança	
  do	
  pássaro	
  ???,	
  eu	
  já	
  tinha	
  
feito	
  a	
  escolha	
  do	
  humor	
  contra	
  aquela	
  da	
  ironia.	
  Ao	
  longo	
  do	
  livro,	
  eu	
  já	
  tinha	
  analisado	
  a	
  maneira	
  pela	
  
qual	
   cada	
   um	
   dos	
   etologistas	
   observavam	
   este	
   estranho	
   pássaro	
   nomeado	
   “craterope”,	
   tentando	
  
responder	
  à	
  questão	
  de	
  saber	
  porque	
  este	
  pássaro	
  dança.	
  Eu	
  tinha	
  tentando	
  religar	
  cada	
  uma	
  de	
  suas	
  
hipóteses	
  aos	
  contextos,	
  às	
  histórias	
  que	
  mobilizaram	
  estes	
  pesquisadores,	
  e	
  nas	
  quais,	
  por	
  sua	
  vez,	
  eles	
  
mobilizaram	
   os	
   pássaros.	
   Eu	
   poderia	
   certamente	
   sorrir	
   ao	
   observar	
   que	
   o	
   pássaro	
   descrito	
   por	
   Jon,	
  
etologista	
   de	
   Oxford	
   cuidadoso	
   na	
   experimentação,	
   se	
   tornava	
   ele	
   mesmo	
   um	
   experimentador	
   de	
  
talento,	
  e	
  inventava	
  os	
  dispositivos	
  finalmente	
  muito	
  similares	
  àqueles	
  de	
  seu	
  observador	
  para	
  colocar	
  o	
  
real	
   à	
   prova;	
   eu	
   não	
   podia	
  me	
   impedir	
   de	
   notar	
   que	
   quando	
   este	
   pássaro	
   recebia	
   como	
   porta-­‐voz	
   o	
  
etologista	
   israelense	
   Zahavi,	
   ele	
   começava	
   a	
   contar	
   uma	
   história	
   estranhamente	
   parecida	
   àquela	
   dos	
  
kibboutz,	
  e	
  se	
  encontravam	
  resolvendo	
  os	
  mesmo	
  dilemas	
  que	
  aqueles	
  que	
  encontraram	
  os	
  pioneiros	
  
de	
  Israel:	
  mas	
  eu	
  aprendia,	
  na	
  medida	
  da	
  minha	
  busca,	
  que	
  os	
  fios	
  que	
  guiavam	
  a	
  minha	
  análise	
  destas	
  
práticas	
  e	
  destes	
  discursos,	
  eram	
  os	
  mesmo	
  daqueles	
  que	
  eu	
  tentava	
  desembaraçar:	
  	
  
Se	
  nós	
  queremos	
   aprender	
   sobre	
  nós	
  mesmos	
   analisando	
  o	
  discurso	
  
sobre	
  os	
  animais,	
  é	
  necessário	
  aprender	
  a	
  rir	
  de	
  nossa	
  incompetência	
  
face	
  à	
  relação	
  sempre	
  opaca	
  na	
  qual	
  nós	
  somos	
  enredados.	
  O	
  riso	
  nos	
  
perseguirá	
  no	
  momento	
  em	
  que	
  nós	
  nos	
  encontrarmos	
  tão	
  presos	
  nos	
  
laços	
  que	
  nós	
  seremos	
  –	
  e	
  todos	
  desta	
  vez	
  –	
  os	
  regadores	
  regados.	
  
	
  
	
   Entretanto,	
   esta	
   escolha	
   do	
   humor	
   contra	
   a	
   ironia	
   não	
   me	
   engajaria	
   além	
   desta	
   posição	
   de	
  
narradora	
  perplexa:	
   eu	
  poderia	
  mandar	
  de	
  volta	
  para	
   trás,	
   cada	
  um	
  dos	
  protagonistas	
  desta	
   comédia	
  
etológica;	
  eu	
  poderia	
  deixar	
  os	
  teóricos	
  discutir	
  a	
  questão	
  de	
  saber	
  porque	
  estes	
  pássaros	
  dançam,	
  e	
  me	
  
contentar	
  em	
  me	
  interessar	
  pelos	
  motivos	
  	
  e	
  pelos	
  jogos	
  das	
  respostas;	
  eu	
  poderia	
  deixar	
  para	
  o	
  futuro	
  
o	
   cuidado	
   de	
   encerrar	
   as	
   controvérsias,	
   sem	
  me	
   preocupar,	
   sem	
   tomar	
   partido,	
   e	
   concluir	
   com	
   uma	
  
confiança	
   tranqüila:	
   “Isto	
   não	
   impedirá	
   os	
   crateropes	
   de	
   continuar	
   a	
   dançar”.	
  Minha	
   relação	
   com	
   os	
  
saberes	
  das	
  emoções	
  não	
  pode	
  mais	
  se	
  definir	
  hoje	
  como	
  uma	
  relação	
  de	
  relativa	
  exterioridade,	
  e	
  esta	
  
confiança	
  tranqüila	
  que	
  me	
  habitaria	
  então	
  não	
  me	
  parece	
  mais	
  aqui	
  colocada.	
   	
  Uma	
  teoria	
  etológica,	
  
por	
  princípio,	
  não	
  impede	
  um	
  pássaro	
  de	
  dançar.	
  Eu	
  digo	
  “por	
  princípio”	
  pois	
  eu	
  sei	
  que	
  uma	
  teoria	
  da	
  
ligação	
  pode	
  conduzir	
  os	
  cientistas,	
  como	
  o	
  primatólogo	
  Harlow,	
  a	
  impedir	
  os	
  pequenos	
  símios	
  de	
  amar.	
  
Eu	
  conheço	
  bem	
  demais	
  os	
  efeitos	
  terríveis	
  destes	
  dispositivos	
  que,	
  em	
  nome	
  das	
  exigências	
  do	
  “fazer	
  
ciência”,	
  não	
  encontraram	
  para	
  interrogar	
  seus	
  sujeitos	
  e	
  conhecer	
  seus	
  objetos,	
  outros	
  meios	
  a	
  não	
  ser	
  
aqueles	
  de	
  destruí-­‐los.	
  O	
  fato	
  de	
  que	
  eu	
  perco	
  totalmente	
  o	
  humor	
  quando	
  eu	
  me	
  remeto	
  a	
  estes	
  tipos	
  
de	
  práticas	
  situa	
  bem	
  o	
  contraste:	
  o	
  saber	
  de	
  nossas	
  emoções	
  é	
  um	
  saber	
  que	
  nós	
  levamos	
  a	
  sério,	
  é	
  um	
  
saber	
  que	
  nos	
   afeta.	
  A	
  maneira	
  pela	
  qual	
   nossos	
   cientistas	
   concebem	
  os	
  bons	
  modos	
  de	
  definir	
   e	
   de	
  
interrogar	
  as	
  emoções,	
  os	
  dispositivos	
  que	
  eles	
  criam,	
  a	
  maneira	
  pelas	
  quais	
  eles	
  se	
  remetem	
  a	
  nós,	
  não	
  
terá	
   nunca	
   conseqüências	
   insignificantes	
   ou	
   indiferentes.	
   Os	
   saberes	
   que	
   eles	
   produzem	
   nos	
   afetam,	
  
nos	
  transformam,	
  nos	
  inventam	
  e	
  nós	
  podemos	
  nos	
  inventar	
  com	
  eles:	
  nós	
  somos	
  os	
  produtos	
  deles	
  e	
  
podemos	
  ser	
  também	
  os	
  vetores.	
  
	
   Vetor	
  e	
  produto	
  da	
  herança,	
  é	
  assim	
  que	
  nós	
  podemos	
  aliás	
  definirsobre	
  um	
  modo	
  positivo	
  a	
  
relação	
   aparentemente	
   paradoxal	
   de	
   nossos	
   saberes	
   com	
   a	
   paixão,	
   a	
   relação	
   de	
   nossas	
   práticas	
   com	
  
nossas	
  emoções:	
  nosso	
  saber	
  é	
  um	
  produto	
  daquilo	
  que	
  são	
  nossas	
  paixões,	
  porque	
  aquilo	
  que	
  elas	
  são	
  
nos	
   permite	
   sabê-­‐las;	
   mas	
   existe	
   também	
   o	
   vetor,	
   uma	
   vez	
   que	
   aquilo	
   que	
   nós	
   sabemos	
   de	
   nossas	
  
paixões,	
  a	
  maneira	
  pela	
  qual	
  nossa	
  cultura	
  as	
  define	
  –	
  compreendido	
  aí	
   isto	
  que	
  as	
  ciências	
  produzem	
  
como	
  seus	
   sujeitos	
  –	
  nos	
  dá	
  uma	
  existência,	
  e	
  as	
   faz	
  existir.	
  Da	
  mesma	
  maneira	
  que	
  nós	
  construímos	
  
nossos	
  mitos	
   para	
   nos	
   inventar	
   a	
   partir	
   deles,	
   nós	
   fabricamos	
   nossas	
   emoções	
   afim	
   de	
   que	
   elas	
   nos	
  
fabriquem.	
  Está	
  aí	
  a	
  relação	
  que	
  eu	
  gostaria	
  de	
  construir	
  para	
  a	
  nossa	
  herança:	
  prolongar	
  aquilo	
  que	
  nós	
  
recebemos;	
  inventar	
  e	
  nos	
  inventar	
  no	
  gesto	
  mesmo	
  do	
  prolongamento.	
  
	
   Desde	
   então,	
   as	
   lições	
   do	
   contraste	
   as	
   quais	
   eu	
   nos	
   convido	
   a	
   entrar	
   para	
   nos	
   definir	
   sob	
   o	
  
modo	
   do	
   humor	
   não	
   se	
   resume	
   a	
   uma	
   desconstrução.	
   Se	
   é	
   verdadeiro	
   que	
   eu	
   tive	
   necessidade	
   dos	
  
outros	
   para	
   nos	
   pensar	
   de	
   outra	
   forma,	
   para	
   nos	
   pensar	
   da	
   exterioridade	
   e	
   para	
   aprender	
   a	
   me	
  
espantar,	
  é	
  a	
  isto	
  que	
  nós	
  somos,	
  a	
  isto	
  que	
  nós	
  pensamos	
  e	
  a	
  isto	
  que	
  nós	
  podemos	
  nos	
  tornar	
  que	
  eu	
  
gostaria	
  de	
  me	
  interessar.	
  Como	
  os	
  filhos	
  herdeiros,	
  eu	
  escolhi	
  nosso	
  décimo	
  segundo	
  camelo	
  como	
  um	
  
modo	
  pelo	
  qual	
  nós	
  apropriamos	
  nossa	
  herança,	
  não	
  como	
  um	
  meio	
  de	
  escapar	
  ao	
  problema	
  que	
  ela	
  
pode	
  nos	
  colocar.	
  E	
  é	
  ao	
  problema	
  que	
  eu	
  quero	
  me	
  interessar:	
  como	
  descobrir	
  nosso	
  saber,	
  como	
  dizer	
  
nossas	
  práticas	
  sob	
  o	
  modo	
  pelo	
  qual	
  eu	
  saiba	
  que	
  ele	
  vai	
  fazê-­‐los	
  existir,	
  que	
  ele	
  vai	
  os	
  transformar,	
  sob	
  
um	
  modo	
  que	
  eles	
  oferecem	
  uma	
  possibilidade	
  suscetível	
  de	
  nos	
  interessar?	
  
	
   Eu	
  me	
  situo,	
  neste	
   fato,	
  em	
  relação	
  a	
  este	
  problema,	
  na	
  mesma	
  relação	
  que	
  nossos	
  cientistas	
  
têm	
   com	
   os	
   seus	
   objetos:	
   uma	
   relação	
   de	
   contemporaneidade,	
   uma	
   relação	
   que	
   faz	
   com	
   que	
   as	
  
condições	
   de	
   produção	
   de	
   saber	
   daqueles	
   que	
   interrogam	
   são	
   ao	
   mesmo	
   tempo	
   as	
   condições	
   de	
  
existência	
  do	
  outro,	
  o	
  sujeito	
  ou	
  o	
  objeto	
  de	
  interrogação,	
  uma	
  relação	
  que	
  caracteriza	
  o	
  inextrincável	
  
emaranhado	
  do	
  saber	
  e	
  de	
  seu	
  objeto,	
  do	
  saber	
  e	
  daquele	
  que	
  produz	
  este	
  saber.	
  Quando	
  o	
  psicólogo	
  
social	
   construtivista	
   Keneth	
   Gergen	
   se	
   interroga	
   sobre	
   os	
   efeitos	
   da	
   disseminação	
   das	
   teorias	
  
psicológicas	
   para	
   o	
   grande	
   público,	
   ele	
   nota	
   a	
   existência	
   de	
   duas	
   possibilidades	
   contraditórias	
   destes	
  
devires.	
   Por	
   um	
   lado,	
   os	
   sujeitos	
   interrogados	
   realizam	
   as	
   predições.	
   A	
   ciência	
   psicológica,	
   como	
  
prolongamento	
  da	
  cultura	
  e	
  produtora	
  de	
  cultura,	
  porque	
  ela	
  prolonga	
  a	
  tradição,	
  torna	
  alguns	
  destes	
  
aspectos	
  possíveis	
  mais	
  prováveis,	
  e	
  porque	
  ela	
  é	
  produto	
  da	
  cultura,	
  prescreve	
  ao	
  mesmo	
  tempo	
  em	
  
que	
  ela	
  descreve.	
  A	
  análise	
  de	
  Ian	
  Hacking	
  dá	
  conta	
  do	
  fenômeno:	
  as	
  pessoas	
  classificadas	
  de	
  uma	
  certa	
  
maneira	
   tem	
   tendência	
   a	
   se	
   conformar	
  ou	
  a	
   tornar-­‐se	
  da	
  maneira	
  pela	
  qual	
   ela	
   foi	
   descrita.	
  Mas	
  por	
  
outro	
   lado,	
   não	
   se	
   pode	
   esquecer	
   que	
   certas	
   teorias	
   são	
   rapidamente	
   invalidadas,	
   e	
   isto,	
  
paradoxalmente,	
  pelo	
  fato	
  mesmo	
  de	
  que	
  elas	
  se	
  tornaram	
  um	
  ingrediente	
  do	
  saber	
  daqueles	
  que	
  ela	
  
descrevia.	
   Pelo	
   fato	
   de	
   ser	
   verdade,	
   uma	
   teoria	
   se	
   torna	
   falsa.	
   Um	
   exemplo	
   simples	
   e	
   real	
   permite	
  
ilustrar	
  este	
  paradoxo.	
  Os	
  pesquisadores	
  do	
   tema	
  altruísmo,	
  nos	
  anos	
  sessenta,	
   foram	
  principalmente	
  
ativados	
  pelo	
  escândalo	
  do	
  assassinato	
  de	
  uma	
  jovem	
  nova-­‐iorquina,	
  Kitty	
  Genovese.	
  Esta	
  jovem	
  mulher	
  
foi	
  assassinada	
  quando	
  ela	
  se	
  apressava	
  para	
  entrar	
  em	
  sua	
  casa.	
  O	
  assassinato	
  durou	
  perto	
  de	
  trinta	
  
minutos,	
  ao	
  longo	
  dos	
  quais	
  seu	
  assassino	
  a	
  esfaqueou	
  múltiplas	
  vezes.	
  Apesar	
  de	
  seus	
  gritos,	
  e	
  de	
  seus	
  
apelos,	
   nenhuma,	
   das	
   cerca	
   de	
   30	
   pessoas	
   que	
   assistiam	
   aquilo	
   de	
   seus	
   apartamentos,	
   reagiu,	
   nem	
  
chamou	
  a	
  polícia.	
  O	
  escândalo	
  foi	
  enorme.	
  Os	
  psicólogos	
  sociais	
  tentaram	
  compreender	
  o	
  que	
  tinha	
  se	
  
passado.	
  Eles	
  chegaram,	
  entre	
  outras	
  conclusões,	
  a	
  pensar	
  que	
  as	
  testemunhas	
  não	
  eram,	
  de	
  fato,	
  nem	
  
monstros	
   egoístas,	
   nem	
   malfeitores,	
   mas	
   que	
   sua	
   abstenção	
   poderia	
   se	
   explicar	
   em	
   termos	
   de	
  
dissolução	
   da	
   responsabilidade.	
   Os	
   pesquisadores	
   confirmaram	
   esta	
   hipótese:	
   quanto	
   mais	
   há	
  
testemunhas,	
   menos	
   as	
   pessoas	
   pensar	
   dever	
   reagir.	
   E	
   se	
   a	
   situação	
   é	
   ambígua,	
   eles	
   se	
   referem	
   as	
  
respostas	
  dos	
  outros	
  para	
  se	
  determinar	
  o	
  que	
  é	
  que	
  dá	
  pra	
  fazer.	
  Menos	
  os	
  outros	
  fazem,	
  menos	
  cada	
  
um	
  será	
  tentado	
  a	
  fazer	
  ele	
  mesmo.	
  Mas,	
  muito	
  rapidamente,	
  a	
  teoria	
  se	
  torna	
  inválida,	
  e	
  isto,	
  pelo	
  fato	
  
mesmo	
  de	
  que	
  ela	
  se	
   tornaria	
  um	
   ingrediente	
  de	
  saber	
  daqueles	
  pelos	
  quais	
  ela	
  pensaria	
  descrever	
  o	
  
comportamento.	
  Porque	
  os	
  pesquisadores	
  e	
  a	
  transmissão	
  dos	
  resultados	
  tornaram	
  conhecida	
  a	
  teoria	
  
da	
   dissolução	
   da	
   responsabilidade,	
   as	
   pessoas	
   tornaram-­‐se	
  muito	
   atentasao	
   fato	
   de	
   intervir,	
   e	
   isto,	
  
tanto	
  mais	
  quanto	
  maior	
  fosse	
  o	
  número	
  de	
  pessoas.	
  Diante	
  do	
  fenômeno	
  da	
  invalidação	
  de	
  um	
  saber,	
  
por	
  sua	
  partilha,	
  Gergen	
  propõe	
  juntar	
  às	
  teorias	
  uma	
  teoria	
  dos	
  efeitos	
  teóricos	
  do	
  saber.	
  Mas,	
  se	
  se	
  
seguir	
   a	
   lógica	
   de	
   sua	
   proposição,	
   esta	
   deveria	
   então	
   ela	
  mesma,	
   se	
   acrescentar	
   uma	
   teoria	
   de	
   seus	
  
próprios	
   efeitos,	
   e	
   a	
   regressão	
   não	
   cessaria,	
   senão	
   com	
   a	
   penúria	
   dos	
   pesquisadores	
   ou,	
   o	
   que	
   seria	
  
mais	
   provável,	
   um	
   rápido	
   silenciamento	
   dos	
   subsídios.	
   Esta	
   proposição,	
   em	
   último	
   recurso,	
   não	
  
testemunha	
  a	
  não	
  ser	
  uma	
  coisa:	
  a	
  impossibilidade	
  da	
  psicologia	
  de	
  se	
  aceitar	
  como	
  cultura,	
  como	
  efeito	
  
e	
   produto	
   de	
   cultura,	
   uma	
   vez	
   que	
   ela	
   propõe	
   de	
   considerar	
   seus	
   próprios	
   efeitos	
   sob	
   um	
   modo,	
  
digamos,	
  esquizofrênico.	
  
	
   Porém,	
  mais	
   do	
   que	
   uma	
   regressão	
   ao	
   infinito	
   que	
   se	
   inventaria	
   sob	
   o	
  modo	
   de	
  metateorias	
  
cada	
  vez	
  mais	
  complexas,	
  sob	
  o	
  modo	
  da	
  história	
  da	
  história,	
  sob	
  o	
  modo	
  reflexivo,	
  eu	
  proponho	
  que	
  
nós	
  voltemos	
  à	
  especificidade	
  das	
  ciências	
  que	
  interrogam	
  o	
  homem:	
  são	
  ciências	
  que	
  estão	
  engajadas,	
  
pois	
  cada	
  uma	
  delas	
  se	
   inscreve	
  no	
  tempo	
   inseparável	
  daqueles	
  que	
  ela	
  descreve-­‐prescreve.	
  E	
   têm	
  os	
  
riscos	
  específicos	
  que	
  as	
  caracterizam,	
  os	
  riscos	
  do	
  engajamento,	
  os	
  riscos	
  que	
  nos	
  fazem	
  definir	
  o	
  que	
  
nós	
  produzimos	
  como	
  saber	
  em	
  termos	
  de	
  problema	
  e	
  não	
  de	
  solução.	
  Cada	
  um	
  dos	
  enunciados	
  destas	
  
ciências,	
  explica	
  Isabelle	
  Stengers,	
  deve	
  poder	
  “ser	
  colocado	
  em	
  risco	
  por	
  aquilo	
  a	
  que	
  ela	
  se	
  endereça,	
  
as	
  ciências	
  ditas	
  humanas	
  não	
  podem	
  esperar	
  produzir	
  um	
  saber	
  confiável	
  senão	
  na	
  medida	
  onde	
  elas	
  
não	
   se	
   endereçam	
   aos	
   “humanos”	
  mas	
   aos	
   seres	
   que	
   elas	
   sabem	
  que	
   são	
   capazes	
   de	
   tomar	
   posição	
  
quando	
  à	
  pertinência	
  das	
  questões	
  que	
  lhes	
  são	
  endereçadas”	
  e	
  eu	
  acrescentaria,	
  quanto	
  à	
  pertinência	
  
e	
   ao	
  devir	
  das	
   respostas	
  que	
   se	
  empresta	
  deles,	
   ou	
  que	
   lhe	
   são	
  propostas.	
   É,	
   com	
  efeito,	
   em	
   termos	
  
disto	
  que	
  é	
  proposto	
  que	
  nós	
  podemos	
  ler	
  a	
  maneira	
  na	
  qual	
  o	
  saber	
  torna-­‐se	
  um	
  saber	
  que	
  se	
  partilha	
  
e	
  que	
  se	
  coloca	
  em	
  risco	
  pelo	
  fato	
  de	
  ser	
  partilhado.	
  
	
   Desde	
  então,	
  se	
  a	
  referência	
  aos	
  outros	
  deve	
  nos	
  conduzir	
  à	
  melhor	
  compreensão	
  da	
  relação	
  de	
  
nossos	
   saberes	
   e	
   de	
   nossas	
   paixões,	
   com	
   eu	
   teria	
   sugerido,	
   este	
   não	
   é	
   o	
   projeto	
   tranqüilo	
   de	
   um	
  
conhecimento	
   mais	
   lúcido	
   daquilo	
   que	
   nós	
   somos	
   e	
   daquilo	
   que	
   nós	
   pensamento	
   que	
   este	
   termo	
  
“compreender”	
   quer	
   traduzir.	
   Compreender,	
   escreve	
   Isabelle	
   Stengers,	
   “não	
   é,	
   quando	
   se	
   trata	
   de	
  
questão	
   de	
   ciência,	
   descobrir	
   o	
   que	
   preexistiria	
   à	
   questão”.	
   Compreender,	
   e	
   nos	
   encontramos	
   aqui	
  
ainda	
  com	
  a	
  figura	
  de	
  nosso	
  último	
  camelo,	
  compreender	
  é	
  tomar	
  com,	
  é	
  “integrar	
  em	
  novas	
  relações	
  
produtoras	
   de	
   história	
   humana”.	
  Compreender	
   nosso	
   saber	
   das	
   paixões	
   se	
   traduz	
   não	
   em	
   termos	
   de	
  
reflexividade,	
  e	
  de	
  desconstrução	
  da	
  história,	
  mas	
  em	
  termos	
  de	
  engajamento	
  e	
  dos	
  riscos	
  inerentes	
  à	
  
construção	
  de	
  uma	
  história.	
  É	
  aqui	
  que	
  a	
   zona	
  que	
  eu	
  vou	
   tentar	
  construir	
   se	
   revela	
  a	
  mais	
  exigente,	
  
estão	
  aí	
  os	
   riscos	
  que	
  definem	
  minha	
  posição:	
  se	
  eu	
  me	
   imponho	
  olhar	
  nossos	
  saberes	
  com	
  a	
  mesma	
  
curiosidade	
  e	
  a	
  mesma	
  confiança	
  que	
  aquela	
  que	
  nós	
  manifestamos	
  pelos	
  “outros”,	
  que	
  nós	
  oferecemos	
  
ao	
  contraste,	
  me	
  é	
  necessário	
  ao	
  mesmo	
  tempo	
  fazer	
  existir,	
  na	
  maneira	
  de	
  sua	
  fala,	
  as	
  possibilidades	
  
de	
   tornar	
   estes	
   saberes,	
   e	
   as	
   possibilidades,	
   não	
   de	
   corrigi-­‐los,	
   mas	
   de	
   deslocar	
   o	
   que	
   lhes	
   parece	
  
incontornável.	
  
	
  
	
   Visões	
  do	
  mundo,	
  versões	
  de	
  mundos	
  
	
  
	
   Como	
   construir	
   essa	
   zona	
   de	
   risco	
   entre	
   a	
   crítica	
   e	
   a	
   aceitação	
   passiva,	
   e	
   me	
   situar	
   nas	
  
inumeráveis	
  controvérsias	
  e	
  nas	
  definições	
  tão	
  contraditórias	
  da	
  emoção?	
  Como	
  dar	
  conta	
  ativamente	
  
da	
  coexistência	
  de	
  saberes	
  divergentes	
  sem	
  trair	
  o	
  projeto	
  que	
  eu	
  me	
  incumbi,	
  aquele	
  de	
  me	
  espantar	
  
sem	
  denunciar,	
  aquele	
  de	
  rir	
  e	
  de	
  tomar	
  a	
  sério	
  isto	
  que	
  nos	
  acontece	
  e	
  que	
  pode	
  nos	
  acontecer,	
  aquele	
  
de	
  tomar	
  com	
  sem	
  afirmar	
  que	
  tudo	
  é	
  válido,	
  aquele	
  de	
  ser	
  benevolente	
  e	
  de	
  me	
  reconhecer	
  filha	
  desta	
  
tradição	
  que,	
  no	
  todo,	
  suscita	
  ativamente	
  os	
  devires	
  possíveis	
  para	
  ela?	
  Para	
  me	
  construir	
  este	
  acesso,	
  
eu	
   escolhi	
   cartografar	
   nossas	
   práticas	
   definindo	
   o	
   que	
   elas	
   produziriam	
   em	
   termos	
   de	
   versões.	
   Eu	
  
escolhi,	
  de	
  início,	
  este	
  termo	
  por	
  duas	
  razões:	
  primeiro	
  porque	
  me	
  parecia,	
  melhor	
  que	
  todos	
  os	
  outros,	
  
poder	
  dar	
  conta	
  desta	
  coexistência	
  múltipla	
  de	
  saberes,	
  de	
  definições	
  contraditórias	
  e	
  de	
  controvérsias.	
  
Como	
  dar	
  conta	
  da	
  existência	
  de	
  tais	
  controvérsias	
  se	
  não	
  construindo	
  a	
  hipótese	
  de	
  uma	
  multiplicidade	
  
de	
  versões	
  da	
  emoção?	
  Assim,	
  por	
  exemplo,	
  porque	
  ela	
  coloca	
  em	
  cena	
  uma	
  versão	
  da	
  emoção	
  como	
  
emanação	
   do	
   corpo,	
   o	
   laboratório	
   efetua	
   esta	
   versão	
   pedindo	
   ao	
   corpo	
   para	
   produzir	
   tanto	
   os	
  
batimentos	
   cardíacos,	
   quanto	
   uma	
   resposta

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