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A criação do texto literário Leyla Perrone Moisés

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Lf~l(\çerrDVliX) - rtO(se::;
Ir . \ -' _ \.\. L~ C'f' ~~ t~~YC7' v-l ~
(
8
A CRIAÇÃO
DO TEXTO LITERÁRIO
o título que me propuscram. e que aceitei. é extremamente
ambicioso. Quercr sintetizar. numa breve comunicação, as
questões que esse título anuncia. seria urna pretcnsão ou uma in-
genuidade. Fique. pois. desde logo claro que pretcndo apenas le-
vantar aqui alguns pontos quc me parecem ftilldamentais. deixan-
do (1campo aberto para os dcpoimentos·dos escritores e as inter-
vençücs dos ouvintes que se seguirão 8S minhas colocações.
.,A criação do texto litenírio." Embora pareça bastante neutro,
em sua generalidade. esse título j<Íimplica uma determinada teoria
da literatura. !\ palavra criaçtlo supüc o tirar do nada, o tornar ex-
istente aquilo que não existia antes. É urna palavra teológica. As-
sim como Dcus criou o mundo a partir do Verbo. a~;simo autor
literário instauraria um munuo novo. nascido de sua vontade e de
sua palavra. Para o leitor. esse mundo seria doado. com todas as
suas maravilhosas novidades. como o jardim do Éden a Adão. A
palavra criaçiiIJ, aplicada ao razcr artístico, pertcnce ao vocabulário
uo idealismo romântico: presume que o artista não imita a na-
tureza. mas cria uma outra natureZ<1.gerada por um c,:.;cessode
car:íter divino c destinada a uma completude autúnoma.
Entretanto, o título proposto aeopla criaçt70 a outra palavra
que aponta para outras teorias. mais recentes. I~a palavra texto.
Ao introduzir-se a palavra (exlO. remete-se para a matcrialidadc
du escrito, e atenua-se o incf<Ívclda palavra criaçt7o,Forma-se as-
sim um título de compromisso. de conciliação entre o "divino" da
!!Cnesee o "humano. demasiadamentc hUlTlano" do objeto criado.
Como. porém. as alianças contaminam. o pniprio texto. aqui re-
sultante de uma criação. torna-se um objeto algo miraculoso, co-
mo uma pomba surgida dc uma cartola.
fOI)
Poderíamos substituir a palavra criaçiio por outras, quase
sinônimas, (Existirão realmente sinônil~lOs.isto é. palavras que
tenham exatamente o_l1lcsmo significado'!) Se ~ubstituíssemos a
palavra criaçiio pela palavra ill\·cllçiio. por exemplo. j,Í seria ou-
tra teoria da literatura que estaria por detr,ís. "A i;1venção do
texto litenírio." Invenção é lambém a criaç;)o de lima coisa no-
va. mas não de modo divino e al1soluto. Inventar é usar o en-
genho humano. é interferir localizada.mente no conjunto dos
artefatos de que o homem dispüe para tornar sua vida mais rica
e mais interessante. Dentro de um sistema de Verdade. ifl-
VCIIÇÜO tem até algo de pejorativo. Diz-se de uma mentira: isso é
uma invenção. Daí havcr algo de provocador n() uso da palavra
illFCIIÇÜO para designar o fazer artísticQ. O e~erilor que diz "eu
invento" recusa as verdades ab~olutas e os I'alo"res e~l<Íveis.
ressalta sua habilidade mais do que SU<linspiração. O inVl:nlor
não acredita necessariamente em Deus: Irah,lIll<I no mundo dos
recursos humanos. Cham,lda de ill\·CflÇilo. a ohra de arte é com-
parável ;\ pülvora ou ao <I\·ião. ;\ceila-~e assim (Iue um,i in-
venção também é circunscrita no templi: 01a~er<Ísuhstituída por
outra. mais engenhosa. llIais llIoderna. Ess;\ é ln11,\1),11,1\'1';1C<lra
às vanguardas uo século XX. que ddendem o constantc prnduzir
cio novo como Ulll valor.
Outra palavra quase sinllllim;1 das du,ls ;lIllL'riorcs é a p,lIana
pmdllçiio. "A produç;)o do texto liler;íri(l." 1:,,;\ é uma pal;I\'1a
marcadamcnte materialista. Fm ccollollli;l. IJ/'IIdll('cllI é ;1 <:ri;u,:;)o
de bens e de serviços C<lP;lICSde suprir as Ilccessitl:ides m;llc.ri;lis
do homcm. Produção implica quantidadc de o\ljC!OS c wlclivi-
eladede produtores e consumidores. Não telll, portanto, qualquer
conotação sobrenatural: é ainda mais tern:na do que a p,1I;I\'1'aill-
vCJlçiio. E, das três p,llavras "qui apreselll<ld,ISCOIllOp()ssí\Tis. l; <I
que se liga ele nH)do mais homo!!êne(1COIll a palavra (C.rlO, COIll-
preendido este como objeto nl<ltcri;d l' COIIClC[O. Inserido IllIlll
processo de produç;10. o lc.\!o fica cquil';lr,ldo ,I um produto dI)
mundo industrial. como um guarda-chuva ou uma m,íquinil dc
costura.
Outras duas palanas poderi;lm ainda substituir. lH:sseuniver-
so vocabular. ,IS três anteriores: scri;lIn as pal,lvr;ls rt'{JU',I'('II(({(:C;Ol'
expresstlIJ. Mas. para uS<Í-las.dcvcríamos rclirar ,I 1,;1I,IH<I(CX(O e
deixar ,lpenas ";] representaç:io liter;:ri;l" ou "a cxpress;lo lill'-
r,íria", E esse fato ilOS mostra que j<ÍeSI;lIlIO$(:1\1outras C<lte,l!ori;ls
discursivas e enl outr,lS \'isadas ll'(íric;ls.
{Ii{
*Por que fica impróprio "a representação do texto literário" ou
"a expressão do texto literáriÇ>"? Porque representaçãoe ex-
pressão,diferentemente das três palavras previamente sugeridas,
remetem para algo anterior ao texto, algo de preexistente; um
mundo (no caso da representação),um indivíduo (no caso da ex-
pressão).Representaçãoé a palavra mais antiga em nossa teoria
literária; é a mimese de Aristóteles. Supõe uma visão do real e
uma determinada imitação que, mesmo sendo uma transfor-
mação, tem o mundo como ponto lIe partilla. Expressãopertence
ao vocabulário da psicologia e foi valorizada pelo romantismo tar-
dio. que privilegia, no ato de escrever. o sujeito emissor, com sua
personalidade e seus afetos.
;\mbas as palavTas estão atualmente postas sob suspeita, na
teoria literária; porque a filosofia contempor<1neaduvida da possi-
bilillade de se captar o mundo como uma totalidade representável
e a lingüística questiona a anterioridade da idéia à palavra, a pri-
mazia do sentido sobre o dito.
E agora, como ficamos? O que faz o escritor? Cria? Inventa?
Produz? Representa? Exprime? A respeito de cada um desses
verbos manifestei urna margem de reserV<l.que é característica de
um certo mal-estar da teoria- literária alual. pouco propensa às
definições categóricas e totalizantes. mais desconfiada dc scus
pressupostos filosóficos e mais cética a respeito de suas possibili-
d<ldes"científicas".
Esse mal-estar terminológico não deve, entretanto, desenco-
rajar-nos. As palavras lIevcl11ser revisitadas. reexaminadas e ex-
ploradas. elas nos ajudam na aproximação 1I0saber que buscamos
na medida mcsma em que conhecemos seus pressupostos e seus
limites. E essa foi minha intenção ao examiná-Ias aqui, de modo
forçosamente sumário, Q,i~x~o. invenção. produçã(?2._rep'!:esen-
~~5~~.~?'PJe~Jiio-:--quaiquc~'~~sKU2~I~~'~rjãJiPJ~iilli!.SLd~sg,?s-
t:rl/as. com as qUals se tenta captar o fazer lIterárIO, pode ser por
nós agora retomada, contanto que explicitel110so modo como as
estamos retomando.
A literatura, felizmente. continua existindo, apesar de não
acreditarmos mais na possibilidade de a linguagem representar ou
expressar um real prévio, criar, inventar ou produzir um objeto
que seja auto-suficiente ou. pelo contrário. reabsorvido e utilizado
pelo real concreto, A literatura parte d~l)}.u~ce_ill....9!L~retendedi-
zer. falha sempre ao-JízTiu--:-iiúls--âüTiliwr lIiz outra cOlSã,"ÕeSVen-
-J;ilU]l ~)~nUõ'maIsr~alllo que ;ql'ieJeqa-eprete;:;di~·di;.-er.---- ~
.-- o '_. - ._----~..._- ._--" _. -~
102
y
\:' l-.} ~() - .•...
\_;.':,\,\~»),\j,.~) \h
\)\)J . f\~G\\. c,,!,
.f,,-<~j··· -..
;~. A literatura nasce de uma dupla fa!t<l:uma falIa sentida no
mundo, que se pretende suprir pela linguagem. ela própria senlid;l
ef!l seguida com falta,
/, A primeira falta é experimentada por todos, no mundo físico a
; que chamamos real. O mundo em que vivenlos. o rilllndo em qUL'
tropeçamos diariamente. não é satisfatôrio, FSS;l0 uma conslal;lç:io
a que se chega bem cedo. na existência. ;\0nascermos. o primeiro
esforço para respirar e o choro emitido cm Cllnseqii0nciaj,i el'idell-
ciam a falta do conforto 1I0 útero materno, Nos dias e meses
seguinteso bebê percebe (reclamando) o hlo de que a m,je 11;10es-
tá sempre presente, como ele o desejaria. ou de quc seu corpomio
está em permamellle bem-estar. Esse descontenlamento plimiíril1
que nos traz o estar no l11undosó faz acentuar-sepela vida ;lIora. ;'1
medida que à simples sensação da falta sc acrcseen[;lm as espLCU-
" lações racionais sobre como ascoisas deveriam ser c n,IOS,IO.
"~'o Quando digo qúe o mtindo não é satisfalório. pensa-se logo
(concordando) no mundo atual. lIesde as amcaças de guerra nu-
clear até os problemas gritantes de nossa realidadc brasileira, tvlas
seria ilusório pensar que nos c<lbeo doloroso privilégio de vivcr
um real insatisfatório. Todos os momentos da história do homelll
foram vividos como insatisfal<Írios ou mcsmo insuporl<íl'eis,
Flaubert gostava de lembrar S<lO Policarpo, um rwírtir do século 11
de nossa era, que dizia: "tvleu Deus. em que século me lileslL's
nascer!", Dezessete séculos mais tarde. o escrilor Irancês rclom;l-
va essas palavras como suas, Cem anos lIepois. eu comcntci com
Osrnan Lins essa citação de Policlrpo/Flauberl. O escritor bra-
sileiro concordou C()~llela. élcrcsccntando por SU;Iconla: "Em quc
século e em qlle IlIgl/r me fizestes nélscer!", Podemos arrematar
com 130rgesem sua fina ironia. dizendo ;1 rcspcito de ;d~uL;m:
"Coube-lhe, como a todos. maus tcmpos p;lra l'i\Tr",
O que torna o real de nosso momento histórico mais agulla-
mente insatisfatório éa maior complexidade de dados de quc dis-
pomos, aumentando nossa capacidade lIe conhecer c. paradoxal-
mente, impedindo-nos de chegar a uma vis,lo de conjunto, O que
há, e já houve em doses.mais confortadoras para o homem. S;IO
modos de reagir à insatisfação que o mundo nos causa: pela re-
ligião. aceitando os desígnios da providência c remctendo () mun-.
do sem falhas para o além-morte: pela aç;lo social. desde aquelas
lO3
integradas num vasto projeto político até as isoladas, _quese apli-
cam a fazer pequenos consertos no rcal: pcla imaginação, pelo faz-
dc-conta,_'lL!.~_r~oscompensa~po~_alg.un~~l~f!1<::IJtos~ºáiiisütis-
façiio causada peiõrc~t1. ' "
Det~nhiliiló:il'l;s n'esse lÍitimo rccurso. o da imaginaçãà, A
imaginaç,10como fuga ou compcnsaç<1o.como prêmio de pn!~er,é
cxcrciUdct jj(JI' todós os st:res hum;lIlos, /\Iguns, eriirelanto, exte-
riorizam sua imaginação, inscrcvem-se em objetos expostos à per-
ccpção de outras pessoas, Esse é o modo artístico de exercer a
imaginaç,10c de compensar o que falta no mundo. Nãu nos impor-
ta, por enquanto, o valor dessc razer. isto é, se o objeto produzido
realiza ou n<1oo objctivo de substituir um real insatisfatôrio. Ten-
tar dar uma forma concrcla ao imaginado é. de qualquer modo,
uma atividadc dc tipo artístico.
De todas as prMicas de que podcmos valer-nos para refazer o
rcal. COI11a ajuda da imaginação. a quc aqui nos ocupa é a
literária. isto é, a rcconstrução do mundo pelas palavras. 'Nas
histórias in\'cnladas podemos, eventlwlmente, encontrar um mun-
do preferível àquele em que vivemos: el11certos poemas podemos
Clll.:ontrar os dados do rcal harmonizados dc modo mais satis-
fatôrio, 1\las dizer que a ohra liteníria compensa assim, positiva-
mentc. as falhas do real kvar-nos-ia a uma vis<1oidílica da literatu-
ra: supor quc todas as n,llTati\'as e todos os poemas apresentam
um mundo mais belo. mais prazeroso do que o mundo real. A li-
teratura seria cntão aquele famoso "sorriso da sociedade", e o es-
critor uma incorrigívd Poliana ou UIlI inofensivo sonhador. ./
As obras estão aí para desmenti-Io. Que dizer daquelas narra-
tivas que nos mostram Urll mundo ainda mais terrível do que esse.
j,í t<1oinsatisfatório. quc nos cerca? E daqueles poemas que mani-
fcstam urna dor ou um pavor ainda maiores do que os quotidiana-
mente nos assaltam? E csse é o modo de ser histórico da literatura '\l
co~lp()r'inca'.-'~:~~-J.-:.'-ll-'a-~-(~-_~~~~-,S-)_ COE=~e:r~ !
-Ura. ncssàs-í."J,.H1SOl;gatlvasTe-se ,nnda l11alSclaramente a IIlSatls- j
ração causada pela falta. Áccntuar o quc estú mal. torná-Io per- ~
ceptível e generalizado até o insuporlúvel. é ainda sugerir. indire- t
tamentc, o quc devcria scr e não é.
.•' .' ')-',. -, ,Na sua gênese e na sua realizaçüo. a literatura a. 011lasempre, . !. .~--'-~--- -.-- •
\: \.,'". pará'o 'ue falta, no mundo c em nós. Ela emprcende dIzer as" I 7'. I ~ •. __ ~-:; ...•••~ __.•••..••_
, :.,' coisas como são. faltantes, ou como deveriam scr. completas,
Trágica ou epifânica. negativa ou positiva, ela estéísempre dizendo
" . ". :~ --- =. ~.--~~-'''"''-._....... ....• '.......... -'- .... - - -
, ljue 2 rea!JwQ.~~,_--
( " :
. 1 !__-
Ç)
~...,;
10·1
I'
\ 1-··
I '
Inúmeros ~ãoos escritores quc defincm a literatura a partir dafaltaJFlaubcrlf; "A vida é 1,1uhorrível que st'>seyod~ ..?up(~rt<í-Ia
evitan~lo-a;e p(xlemos f<l7:~-lo'quandose vive ii~mundo da arlc".
Fernando Pess'o1: "/\ literatUJ:;I,~Õnl~)loda ;;rte:-Cllma Cllnfiss,10
de que a vida não basta", No cntanto, nl'nhum d()s d(jis es'crevcu
ul11aobra que se possa C<lracterizarconlll uma fuga para um Illun-
do mais alegrc do que o rc'll. E !3(lI'ges)l'llj;IS Lihulas podem parc-
cer, ü primeinL visla. como desvincul"das do rcal. ,Irirm<t:"A lite-
ratura nasce da inrclicidade. A felicidadc n;locxi 'e nada, t\""m'Mi-
CiUal e queC~~Ji?Xljj~~ã'"filt'(jlI;~í~lcL~~Ea':" Essa ~~"
ein-'(jlIé'sC;transfo'lli'í7í-a infelicidade é qll'epode Cllmpensar a falta,
não pelo que ela cria ou representa. mas por scu modo dc ser. /\
isso voitnremos mais adianlc,
, . Invcntar um outro Illllildo mais plenl! ou e\'illenci,lr as lacullas !!/"-
, elesse em que vivcmos s,10 duas mancir,ls dc rcclamar da l'all,1, •
Mas aí chcgamos ao grande p'lrado.\o quc funda o fazer lilcr<Írio,
A literatura cmpreendc suprir;1 falIa por um sistcma quc funciona
em falta, em falso: cssc sisiCnia é <llingu'lgclll. Us signos verbais
s<1osubstitutos das coisas.scu uso rcpousa numa nler;1cOJl\'cnção
d.c cor.rcspondência: ,(,li c~)isaser;í .represcnlad;l ,por tal si~no, AS_/'
sIm. dIZer as cOisas e 'aceitar pcrdc-Ias, dIstanCIa-bis c alc Illcsmo
anulá-Ias, /\ linguagcm ni'io podc subslituir o Illundo, ncm ao
mcnos represenl<í-Io I'ielmenle, l'mle apenas cv(icá~li),aludir a ele
através ele um pacto que implica a perda do rc;lI concreto,
\ A lingu,lgem tem uma funçiio rdercnciaJ c uma prclenstlO
, represcntaliv,l. Entrcl'lnl(). o IllUllLio l'Ii"Lil! pcl<llinguagcm nuncl
esl<Ítolalmcntc ,ldcquado ao rc,lI, Narr<lr uma histúria, Ill_esnll'.
q 1~1~'U:.sl~~I,~i,l:.ll)"I7çúÜ:Y]íiÚ""h~_J2U;~~· pessoas
nunca contam o Illcsmo fal,o da mesnlil forma: a simples cscolha
dos pnrmclllires.a sc.:rcmn,lITados, a (lrdcn,lç,lo dos fatos e o ,in-
guio de quc eles si'io cllcar'ldos. (udo isso l'Iia a possibilidade dc
mil e uma hislúrias. das quais Ilcnhum;1sl'r;í <I"rcal", Sempre cs-
lar,í faltando. na hisl(íria. <l1~(ldl! rc,lI: c 1ll1lil,ISvezcs se cs(ar;í
criando. na histlÍria, algo quc f,lIla\',1no rcal. Uu mclllllr. algo que,
ao se produzir na hislúria. rcvel<l,umailllpcrdo;ivl'i fal~l~1no real. ~
Escrever um poem,l é l,imbcm. PCllJ tem:l, Ill<lgnlilcar um llU
v;írius aspectos dl! 1'C,i1.dcsprczando outros: l'cl,1 forma. rilmar as
palavras como um convitc a rilmar o mundo, criar harmonias de f
som c de sentido que n<1ose percehclll na linguagem correnle: ins-
taurar o que Valéry define COIllOa "hcsilaç,10 cntre_C! ,~onle o SCIl-
tido", Na mônada do pocma. o mundo fica momentancamcilic
IO,'i
, -
Saberque o escritorsó atingeo "dcveras"como um "fingi-
dor" (FernandoPessoa),só alcançaa verdadeatravésde umatéc-
nica, é ter consciênciada gravidadede seu ofício: um fazerque
!J.0~~s.~~e_(: n~.~,~~._~I.~~~~~SI,~~:() quese COrl(lffm'f;~~larZJi'-
manaue ummeroobJclOornameHtal.l1]asUlll objillLQ.!.ldeo n:al
se dá a ver.O compromissodo CSCril(;r'C'õiíl~undo I~;;;r:)r
'li;nc'(;;'~I:;;-missocom a forma:é o que Roland Bartheschamou
de "responsabilidadeda forma",
A simplesdenúncia,pela linguagcm.do quevai mal no mun-do, não tema eficáciaconscguidapelo trabalhoda formana lite-
ratura.Os artifíciosdo escritorrevelam.ao rneslllolempo.o quc
faltano mundoe aquiloque ncle-devcriaeslar.FeI,1forçade SU,1
articulação.contra[JoStaú "desordem asi;íticado mundo real"
(Sorges).a obra literáriadcmonstraqueo hOlllcmé capazdeunl<l
harmoniamaior.Mesmoasobrascuja tern,ílic;1é a dcsordemc a
falta.quandopossuemessai'orçada forma.Clllnprclllumafunç;lo
positiva.Nietzschedizia: "Todas ,IS cois<tshoassiio fortesestimu-
lantesem favorda vida:é a!i,íso casodc t(ld(l~!I_
~
Por outro lado, inventare arresenLHr(1 illl'xistl'nteé só apaj
rentementeuma,lçãoalienantedo real. I'ois. quandoesseIllullllo
invenladoseerg.uecoma perturbadoraceltoa quc lhedüa for\11ajusta.eleé Ulll [Joderosorival daquelequeaccil<ív,\\11OSCOIllOreal.
107
Escreveré o mododequcmtema palavracomoiSC1:a )ala,-~t
candooqucniioé pal'1\'fa.Um;1,-czqucSCPL'SCOU,I cl1lrclinh,l,po-
,",":;.-\ ••.~•••.•~_:..;.'~~,--,<"''''''.~~:;''-,.r-.':!,"-''~:'':.;. , ._
dia-secomaliVIO Jogara palavralora,"',Ias,11ccssaaanalogia:anao,
Jalavra.aomordera isca,incorporou-a, ~~ .•..-..;:..~""" ",~~-,"--.•..-
, ou o poemae sãosuaslinhasde força invisíveis.atéo lavor minu-
~Ti,asodo estilo,queconsisteemcolocarasr'alanascm determina-
daordem,pesandocomonumabalançaossonsc os ritmos.A for-
mabuscadapeloescri.t9r'é"'nãoapenasessaformasensívclíiãõíã:
._ _._, ~ .- ,_ _ __ ••_'_. ,.:... __ - •• _ •• - __ .o~ ---_
, Teriafiaadedo Iscurso-masoaõ"mesrnof'enipo.a formado sentido.
, nõarranjo)LIsta' as'rcfêrg-nci,is',-n7t-'cxriõr;lç~o-d;lséOrl~(aç()~s.;\
1~~irrCo'§là-~r.é~i~j~ ,f,':~C_~lrdLi~)~.aIn<;!lt.et~,!ll]adãj)7lra
'colher,no real,veruadesque nãosevêema ulho QP.S q~l_c..vistas,I ,.""'''' •• '" .",,_. .__••...•>-'--', ~-, ,',-" •..0'" '
'obri amareformularo'prórrio real.-_
- Só poJ'êser-;;CritZ;j:nqucl~-(íue~onheccc aceitaessepcrcur-
soenviesadodo realàspalavrase daspalavrasao real.aquelequc
sabequeseucaminhoé o indireto.Dizia ClariceLis[Jector:
106
( cifrado,a captaçãodo particularinsinuandoque umaplenitudedo
. mundoé de~ejávele possível.
O hurizonteda literaturaé sempreo real que se pretendere-
presentar-emsuadolorosacondiç;lode falta ou reapresentarnu-
mapropostaalternativadecOlllplelude.Mas. por ser linguagem,a
literaturanuncapodeser realista.O chamadorealismonadamais f
é do que um conjunto de efeitos,baseadosel11convençõesque t
variam historicamente.Céline assim explicava sua experiência, f
aparentementerealIsta:~uandose m=rgulh,~um bast.ãona ágUa,)'
ele parccetorto pelo deito da rclraçao:entao,se qUIsermosque '
elepareçareto,lemosdequebr;í-loantesde mergulhá-Ionaágua.
~ssaág,uaque obriga a entortaro real. rara que ele volte a------ -~ •.•••~ _ .•__ .~ ~_•.••...-._••'_';.o~_. 1.'
ser Q.~ -realmente era, é a IlIlguagem li~!.ária. Já dizia
Words\Vorth:"A [Joesiaé 'lm11\:;'/íiigüilgcj;]'JJStz;rcid;'::-Qualquer
linguagemdCfo)-niii-ã"SColsas:'ea ling~prénaaocscritor, para
dar verdade;ls coisas.assumedecididamenteseu estatutode ar-
tifício e de ilusão.Daí a importânciada formae suarelaçãocoma
verdade.na literatura.
Parasepensaressarelaçãoda literaturacomaverdade,valea
penalembraros vari,riveissentidosda palavramiro. Para os povos
primitivos, o mito é a história verdadeira ror excelência;em
muitosdesses[JOvos.sãoos relatosdo quotidiano quesãochama-
dos de "históri<JSfalsas'o,Em nossacivilização.ao contrário,mito {)
tomouo sentidode coisa[Juramenteimagináriae. portanto,men-' ,.1tirosa. Mais do que duasconcepçõesdiferentesda verdade.são fl't•...{{V
dois modosdiferentesde buscá-l<í.Muito diverso de umdevaneio
fantasioso.o mito é um sistemasimbólico rigorosamenteforma-
lizado. O modo literária de buscara verdadecontinuasendo o
modosimbólicodo mito.
Contrariamenteao quc pensamos que têm uma concepção
meramenteinstrulllentalda linguagem~a fonnQiizQÇào ejorati-
vamcntechamadadeartifício),n<llitera~n;~ 6:11í"ê;;ação'efirrí~~-.._,.-c'.''''''. .---~'.' "•..•. __ ,,~_~__ ,_•.•._ _.__ ~_~_•..• ~.-. . .
ll~~~umace;:.\.i!-'(er(~~:~~l~J}~o.....L!~lr5)Elll~~..in~disp~nsá-
~~!J}5!JJ.l,!;1,S.~~...p.JL.~I<Í.~q.u.s.h!.~i;!--ilguçadaque ahre t~'i<~has]2'I~.r.~~.0~:.0l)g_~~h.~~~.A.:~~~!~j~!l~!!.~.5?,,~~':.r~~t~r.{(nº~)..valõ.~_~_s,~ --1~'1i\lhtt-
~ laz:~_u.~,-i~!.anQ~.oY_9~.~11ge~;.~12~aJeorclenaç~:?~?..m,~~~.o.E í
" ) por esseart1llcl0da_toj'IDaquea literaturaatingeumaverdadedo
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Já Arist6teles, em sua teorra da_representação poética, defendia
não a veracidade mas a verossimilhança:
Não é ofício do poetanarraro queaconteceu;é.sim.o de represen-
tar o que podia acontecer,quer dizer. o que é possívelsegundoa
verossimilhançae a necessidade.
"/,\"): - o Representnr o que poderia ter acontecido é sugerir o que
)'i; J .\) r.0~.~~~r"e.[e~êàrlJoSS-íbliLd·;ile~Er;,alfZã'd.~~do:e,a~.,s é
,- -nesse sentido que a htemtura pode ser e c rcvoluclOnana: por
, () nHÍliTer'V'ívaaú(opià: nãõ'cônio 'o irrí~lgini{rio"<illlP,(;s~Ívél~m'a~'co-
o T1TGõ~lsna-gíiiáverpósSível.0"-'--", ", .. ,.
·l-'-!(;-t'iXricc~Lispector observava: "Escrever é tnntas vS?~~~r-
.,; §e do ue nunca existiu". Lembrm::::~edo que nuncn existiu é não
'cOl';-formar·seC(;111() mUlldo e suas histlÍrias. não considerar o real
, como o inelut;ívet; é afirmar que as coisas poderiam ter sido ou-
tras. poderão ser outras. A função revolucionária da literatura não
consiste em emitir mensagens revolucionárias, mas em levantar,
por suas reordenações e invenções. uma dúvida radical sobre a fa-
talidade do real. sobre o determinismo da histlÍria. É o que diz
Miguel Torga. emadminíveis versos: "Canta, poeta. canta!! Violen-
ta o silêncio conformado.! Cega com outra luz a luz do din.! Desns-
sossegao mundo sossegado.!Ensina a cada alma a sua rebeldia".
Assim COlllOa literaturn não representa fielmente o real, tam-
b<5mnão age diretamente sobre ele. A falta p(~deser diIa. m'ls não ",
•.... ~:::;,.~-..-_.-._--.-.. ~~-.-.~ .•..,...- .•.•.._. -
~9JS~12!i~, Ainda Flaubert: "S~.:2·~s'fcil'lis piiIjdizêJg.
nüo par.1tê-Io;'. O que a literatura pode. e faz, <5ampliar nossa com·
pr~eal. por um processo que consiste em destruÍ-lo e re-
constrUÍ-Ia, alribuindo-Ihe valores que. em si, ele não lemo Como
loJa arte "representativa". aliás. Comentando um filme sobre o
garimpo, que lhe foi moslrndo. um velho garimrciro observou: "Tu-
do o que está lá, a genle já conhece: mas no filme ludo transpareee
c a gente reconhece" (U EstadodeS. Paulo, .(de mnio de IlJ7K).
( A criaçüo liter<Íriaé um processo que tem dois p,ólos:.0.es-
lerilor c o Ieilor. Â obra literária só cXlste. de falo (' IIldeflnlda-
\mente, enquanto recriada pela leitura. ofício que deve ser tão ali-
'vo quanto o do escritor.
Nesse processo. o escritor é o deseneadendor. mas não o dono
bsoiuto, como certo romantismo remancscentc quer fazer crer.
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"
j
No ato de recriação da obra pela leitura, a proposta inicial se am-l opli'a e as intenções primitivas cio autor são superadas, Entre o di- .
zer e °ouvir, entre o escrever e o ler. ocorrem coisas maiores do )que os propósitos de um emissor e as expectativas de um receptor:
há um saber inconsciente circulando na linguagem. instiluiç,lo c ,.J
bem comum de autores e leitores. ,.ffO que importa, assim, n<loS,IO as intcnçCles mensageiras do >"lf
autor (por melhores que sejam), e sim sua cap:lcidadc de imprimir
n obra aquele impulso poderoso e aquela ahcrtura estimulante
que convide o leitor a prosseguir sua criação, Todavi;1.assim como
o autor nüo é o dono absoluto da obra, que o ullrapassa. o leilor
também nüo pode ler a prelensão de ser sober;lIlOem sua leilur:l. /
Aleilara <5um aprendizado de alenç:lo. de sensihilidade e dc in- ,
venção. A grande obra não pode ser lida de qualquer maneira, ao (
bel-prazer da pura subjetividade do leilor. porquc nela estão ins-{critas ciquela~linhas de força quc podem ser moduladas c prolon;
gadas..mas nao anuladas.
Na circulação entre a proposta que é a ohra e sua recepção
pe'lo leitor cria-se não propriamcnle um mundo paralelo, repre-
sentado, e sim uma vis:lo valorativa do mundo em que vivcmos,
Assim, a obra liter:íria é construç;lo do rcal e convite reiler:Hlo ao
seu ultrapassamento. Essa comprecnsão permitida pela obra
!ileníria é diversa da compreensão racional. visada pelos discursos
instrumcntais da eiênci;l e da filosofia: é uma inteligC'nciascnsí\'el.
que se opera cm nossa mente como em nosso corpo. pelo podcr
de uma linguagem e111que as palavras eVOC:lI11ohjetos. mas SÜO.
ao mesmo tempo. objdos sensÍ\'l:is e ;110 meSnlll sel)suais.
Assim. a literatura IlllI 1C:l cst;,í afaslada do rc,J1. Trabalh:lr o
imagilHírio pela lingu:g!.em n,IO é scr C:lplur,ldo I)elo imagin:írio.
mas caplurar. ;llravés uo illlagin,írio. \'erd,l(ks do re;J1que n;lo se
dão a ver fora de uma ordem silllb<ilica, ,\ IU~:Jdo re,J1. ou scu
oposto, o realismo, nunca se efetuam tol<J1lllcntena liter:llur:1.
pois as duas atitudes têm o real como hori/onle e a ling.uagemco-
mo mediação. A linguagem é obsuículo. 11\1C:lminl1odo real. f.lJ:1S
é também possibilidade de fund:í-Io. Fora da ordem da lingua~em.
o real é apenas C'IOS.Como lembra Oct:l\'jo 1',1/."a palaHa não S(l
diz o mundo. 'mas tamb<5mo funda - ou II tr:Jnsforma", Pre-
tendendo subslituir o real ou. pelo contnírio. l'Slll'lh,í-lo. scmpre <5
a ele que a literatura se refere. Tanto a fuga CllnlO o mergulho·
obrigam-nos aTcr esse rcal. a question,í-Io e a ITin\'cnt:í-lo.
1M
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J
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~.;·._.I
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Como todasas atividadeshumanas(a partir da própria fala),
ali-teratura nasceda vivênciada falta e da aspiraçãcà comple-
tud:e. Essa compJetude.a literaturanão nos pode dar. O que ela .';'
nos ,podedar.issosim.é umaformade conhecimentoquesatisfaz:
não )umaverdadeabstratae dada.masUllla verdadecorporificada
e em obra.
Cls inúmerossaberescarreadospela literaturasão merospre-
textos para um saber maior: o saber lia falta. e a permanente
manutençào do desejo de supri-Ia. O mundo deixa a desejar,as
palavrasestãosempreem falta:a literaturao diz. insistentee ple-
namente.[IS184]
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