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André Henrique de Brito Veloso O ÔNIBUS, A CIDADE E A LUTA: a trajetória capitalista do transporte urbano e as mobilizações populares na produção do espaço. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Geografia. Área de concentração: Organização do espaço Linha de pesquisa: Produção, organização e gestão do espaço. Orientador: Prof. Dr. Klemens Augustinus Laschefski Coorientadora: Profa. Dra. Rita de Cássia Lucena Velloso Belo Horizonte 2015 iv AGRADECIMENTOS Em diversos momentos na elaboração deste trabalho, especialmente os mais difíceis, me imaginei nesse momento de agora, escrevendo às pessoas que fizeram com que chegar aqui fosse possível. Imaginar esse momento também me fez continuar. Sei que dificilmente conseguirei falar de todos que me ajudaram, e a cada um não será possível demonstrar, por meio de palavras, a importância que tiveram para mim nessa travessia. Exerço aqui a gratidão como uma forma de reconhecimento dos outros em mim, e deles neste trabalho, de suas múltiplas vozes e vivências compartilhadas em meus sentimentos. Agradeço por tê-los conhecido, sentido e amado. Agradeço por poder partilhar da mesma época e da mesma terra em que vivemos essas vidas errantes, intensas. Agradeço à minha mãe, Sônia, e ao meu pai, José Geraldo, pelo apoio incondicional, pelo carinho e amor profundos, e por ensinar que o caminho se faz ao caminhar. À minha irmã Larissa, pela coragem e força, e pelo carinho e cuidado que não deixam nunca de me surpreender. Ao meu orientador Klemens, pelo apoio e paciência, pelas inúmeras conversas e pela escuta das minhas confusões. À minha coorientadora, Rita, pela profunda amizade e compreensão, e pelo apoio que veio de tantas formas diferentes. A meu amigo Marcelo Cintra, por todos os toques, leituras, escutas e conversas. Por ajudar a clarear um caminho que muitas vezes parecia impenetrável. À Leta e ao Marcos Fontoura, que também forneceram luzes. Àqueles que ajudaram a rastrear algumas trajetórias – ao Roberto Andrés e ao Low, pelas conversas e por mostrar que é possível fazer acontecer. Ao Igor Oliveira pelas conversas e reflexões sobre os labirintos da conjuntura. Ao Lúcio Gregori, que sempre consegue passar seu profundo conhecimento com uma simplicidade impressionante. E ao João Luiz, cujos comentários foram imprescindíveis para a versão final do texto. v Àqueles que partilharam o cotidiano comigo, Matheus, Jorge, Kaique e Zoe, agradeço pela paciência, camaradagem e compreensão. À Zoe agradeço ainda por ter sempre ajudado a segurar a onda, com carinho e força. Ao Bicas pelo apoio de sempre e pela ajuda imprescindível na revisão desse trabalho. Aos amigos de tantos anos e tantos percursos, à presença fundamental de cada um nos momentos de dificuldade. Em especial à Tatá e à Júlia, pelo profundo companheirismo. À Clarissa e à Camila, que apareceram na última hora, mas fizeram toda a diferença lá na EA. A todos e todas que constroem a luta do Tarifa Zero BH, por me fazer acreditar que vale a pena se entregar à labuta todo dia. Por fazer sentir que é possível e necessária a construção de um mundo livre de todas as amarras do poder, e que se vive já, agora, uma outra cidade no processo da luta. Àqueles que se aventuraram na tentativa de imaginar um socialismo com liberdade real. Em especial à Joyce, pela incrível sensibilidade e coragem, e ao Luca, pela amizade e dedicação. Por fim, e principalmente, à Letícia, minha companheira, pela presença intensa e imprescindível. Pelo profundo amor partilhado com coragem, carinho e cuidado renovados a cada gesto, a cada escuta. Por virar minha cabeça, sempre. Por ter feito essa travessia comigo. Por termos compartilhado a descoberta dos caminhos. Sem você eu não estaria aqui. vi “Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem. O esplêndido negócio insinua-se no tráfego. Multidões que o cruzam não veem. É sem cor e sem cheiro. Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul, vem na areia, no telefone, na batalha de aviões, toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.” Carlos Drummond de Andrade – Nosso Tempo (1942) “Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada Ilude a polícia, rompe o asfalto.” Carlos Drummond de Andrade – A Flor e a Náusea (1942) “Por uma vida sem catracas!” Movimento Passe Livre, no século XXI vii RESUMO O transporte coletivo de passageiros pelo espaço urbano é um serviço que surge no Brasil como uma manifestação do processo de modernização das relações sociais de produção no país. Em sua longa trajetória urbana, as relações sociais e econômicas que pautam a necessidade de deslocamento nas cidades brasileiras adquirem crescente complexidade. Espaço de disputa entre diversos grupos sociais, as sucessivas configurações do sistema de transporte urbano revelam facetas tanto do processo de produção do espaço brasileiro como da consolidação das relações capitalistas no Brasil. A presente dissertação busca discutir a relação entre transporte urbano, produção do espaço e mobilização popular a partir da reconstituição da formação e trajetória do setor das empresas prestadoras de transporte por ônibus, entendendo que este é o setor mais longevo e que por mais tempo deteve a hegemonia nas determinações do sistema de transporte urbano brasileiro. Além disso, este trabalho busca identificar e debater as características das principais mobilizações populares a respeito dos transportes, dentro do contexto da urbanização brasileira, o mais amplo e rápido processo ocorrido em escala mundial no século XX. Para tanto, as cidades de Belo Horizonte e São Paulo são tomadas como os locais a partir dos quais a narrativa se desenvolve. Como metodologia, é realizado um levantamento do debate acadêmico no âmbito do transporte público e da questão urbana brasileira, por meio do qual se buscará debater as abordagens existentes e caracterizar a trajetória do setor a partir da perspectiva marxiana de reprodução ampliada do capital. Por fim, apresenta-se um estudo sobre os movimentos recentes pelo transporte e a história e contexto específicos do movimento Tarifa Zero BH entre os anos de 2013 e 2015. Espera-se assim apresentar uma contribuição na discussão das perspectivas e desafios da construção de um sistema de transporte urbano verdadeiramente controlado pela população, que possibilite a criação de relações livres e justas na cidade. Palavras-chave: Transporte urbano. Urbanização. Movimentos sociais urbanos. História dos transportes públicos. viii Abstract The collective transportation of passengers through urban space is a service that emerges in Brazil as an expression of the modernizing process in social productions relations in the country. In its long urban trajectory, the social and economic relations guiding the need to travel become increasingly complex. As an object of dispute between different social groups, the successive configurationsof the urban transportation system reveal features regarding both the production of space and the consolidation of capitalist relations in Brazil. This thesis aims to discuss the relationship between urban transportation, production of space and popular mobilization by reconstituting the origin and path of Brazilian bus companies as an economical sector. By doing so, the thesis assumes that this is the most enduring sector and the one which has been hegemonic for the longest period of time in the dynamics of the Brazilian urban transportation system. Furthermore, this thesis seeks to identify and discuss the aspects of the main popular mobilizations regarding public transports in the context of Brazilian urbanization, the widest and fastest process of its kind to take place in the world during the 20th century. For this purpose, the cities of Belo Horizonte and São Paulo are taken here as the main location sources for narrative development. As a methodology, a survey of the debates in the areas of public transportation and the Brazilian urban question is carried out, through which the most relevant approaches of the theme are discussed. By doing so, a Marxian perspective of the expanded reproduction of capital is taken as the main approach. Finally, a study of the recent movements for public transportation as well as the history and specific context of Tarifa Zero BH in the last two years is presented. It is expected, thus, that the present thesis may contribute to the discussion on the prospects and challenges for the construction of a truly popular-controlled urban transportation system which might enable freer and fairer relations in urban space Keywords: Urban transportation. Urbanization. Urban social movements. Public transportation history. ix LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Cartaz para Seminário "Transporte Público e Passe Livre" - organizado pelo MPL-SP.........................................................................................................................179 Figura 2 - Cartazes da "campanha não-eleitoral" da editora PISEAGRAMA espalhados pela cidade.....................................................................................................................181 Figura 3 - Panfleto da frente "Todos contra o aumento!", de fevereiro de 2011, em Belo Horizonte.......................................................................................................................183 Figura 4 - Bandeirão "Ônibus sem catraca" em manifestação do dia 22 de junho de 2013...............................................................................................................................186 Figura 5 - Logo da campanha do projeto de lei de inciativa popular por tarifa zero.....200 Figura 6 - Cartaz "Tarifa Zero é mais justo".................................................................201 Figura 7 - Cartaz "Tarifa Zero é mais saudável"...........................................................202 Figura 8 - Cartaz "Tarifa Zero é mais econômico"......................................................,.202 Figura 9 - Cartaz "Tarifa Zero é mais rápido"...............................................................203 Figura 10 - Cartaz "Tarifa Zero é mais seguro"............................................................204 Figura 11 - Cartaz "Tarifa Zero é mais riqueza"...........................................................204 Figura 12 - Cartaz dentro da estrutura publicitária de um ponto de ônibus em Belo Horizonte.......................................................................................................................207 Figura 13 - Publicação sobre a aprovação do fundo de financiamento da tarifa na IV CMPU............................................................................................................................216 Figura 14 - Chamada na internet para a MANIFESTA Junina.....................................241 Figura 15 – Anúncio de tarifa zero no carnaval............................................................244 Figura 16 - Mapa com os itinerários da Busona Sem Catracas no carnaval 2014........245 Figura 17 - Anúncio da Busona Sem Catracas para o Barreiro.....................................249 Figura 18 - Cartaz Busona sem Catraca para Contagem...............................................250 Figura 19 - Preparativos da Busona Sem Catraca para o Carnaval 2015......................251 x LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1- Variação no licenciamento anual de veículos e no transporte de passageiros por ônibus 1994-2013......................................................................................................81 Gráfico 2 – Evolução da taxa de motorização no Brasil e em 9 cidades selecionadas (2002-2014)...................................................................................................................161 xi LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Quadro resumo da inflação brasileiro (1879-2014).....................................106 Tabela 2 - Relação dos principais Quebra-quebras de transporte coletivo nas metrópoles brasileiras entre 1974 e 1981.........................................................................................135 Tabela 3 – Variação da taxa de viagens por modo/habitante em Belo Horizonte – modo e grupos selecionados (2002-2012)...............................................................................163 Tabela 4 - Sistematização de Ações Institucionais do Movimento Tarifa Zero............210 Tabela 5 - Sistematização das manifestações de rua do Movimento Tarifa Zero BH...221 xii LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABAEM Associação dos Barraqueiros do Entorno do Mineirão ABES Associação Baiana Estudantil Secundarista ACO Ação Católica Operária AGP Ação Global dos Povos AMES-BH Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas de Belo Horizonte Amforp American & Foreign Power Company ANFAVEA Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores ANLUT Associação Nacional de Lutas pelo Transporte ANPET Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes ANTP Associação Nacional de Transporte Públicos APH-BH Assembleia Popular Horizontal de Belo Horizonte AUTC Associação dos Usuários de Transporte Coletivo BHTRANS Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A BRT Bus Rapid Transit CAIO Induscar Companhia Americana e Industrial de Ônibus CCT Câmara de Compensação Tarifária CDL Câmara dos Dirigentes Lojistas CEB Comunidade Eclesial de Base CEF Caixa Econômica Federal CEFET-MG Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais CEPAL Comissão Econômica Para a América Latina CFLMG Companhia de Força e Luz do Estado de Minas Gerais CGO Custo de Gerenciamento Operacional CIP Conselho Interministerial de Preços CMI Centro de Mídia Independente CMTC Companhia Municipal de Transportes Coletivos de São Paulo CNA Confederação Nacional da Agricultura CNC Confederação Nacional do Comércio CNI Confederação Nacional da Indústria CNT Confederação Nacional dos Transportes COMTAR Conselho Municipal de Tarifas xiii COMURB Conselho Municipal de Mobilidade Urbana COMUT Comitê Metropolitano dos Usuários de Transporte COPAC Comitê Popular dos Atingidos Pela Copa CPI Comissão Parlamentar de InquéritoCRTT Comissão Regional de Transporte e Trânsito DBO Departamento de Bondes e Ônibus de Belo Horizonte DCE-UFMG Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais DENATRAN Departamento Nacional de Trânsito DER Departamento de Estradas de Rodagem EBTU Empresa Brasileira de Transportes Urbanos EMTU Empresas Metropolitanas de Transportes Urbanos E&Y Empresa Ernst & Young Terco S/A FCM Frente Pela Cidadania Metropolitana FDTU Fundo de Desenvolvimento dos Transportes Urbanos . FIAT Fabbrica Italiana Automobili Torino FIFA Fédération Internationale de Football Association FGE Fundo Garantidor do Equilíbrio Econômico e Financeiro FGV Fundação Getúlio Vargas FJP Fundação João Pinheiro FSM Fórum Social Mundial FTZ Feministas do Tarifa Zero GEIPOT Grupo de Estudos para Integração da Política de Transportes IBGE Instituto Brasileiro de Geografia Estatística INCC Indíce Nacional de Preços da Construção Civil INRETS Institut National de Recherche sur les Transports et leur Sécurité IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPK Índice de Passageiros por Quilômetro IPTU Imposto Predial Territorial Urbano ISSQN Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza ITDP The Institute for Transportation and Development Policy IV CMPU 4ª Conferência Municipal de Políticas Urbanas de Belo Horizonte JOC Juventude Operária Católica xiv JR Juventude Revolução JRI Juventude Revolução Independente LER-QI Liga Estratégica Revolucionária – Quarta Internacional LOC Liga Operário Camponesa LOM Lei Orgânica Municipal MEPR Movimento Estudantil Popular Revolucionário METROBEL Companhia de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte MPL Movimento Passe Livre MPL-SP Movimento Passe Livre – São Paulo MPMG Ministério Público do estado de Minas Gerais MRTC Movimentos Reivindicativos por Transporte Coletivo NTU Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos OAB-MG Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais PACE Projeto da Área Central PBH Prefeitura de Belo Horizonte PCR Partido Comunista Revolucionário PDDI Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado PEC Proposta de Emenda Constitucional PIS/COFINS Programa de Integração Social/ Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social PLAMBEL Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte PM Polícia Militar PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro POR Partido Operário Revolucionário PPAG Plano Plurianual de Ação Governamental ProBus Programa de Organização do Transporte Público PROGRESS Programa Especial de Vias Expressas PSB Partido Socialista Brasileiro PSOL Partido Socialismo e Liberdade PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado PT Partido dos Trabalhadores xv RFF Rede Ferroviária Federal RMBH Região Metropolitana de Belo Horizonte RMRJ Região Metropolitana do Rio de Janeiro RMSP Região Metropolitana de São Paulo SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio SENAT Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte SESI Serviço Social da Indústria SEST Serviço Social do Transporte SETRA-BH Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte SETRANSP Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte SINDREDE Sindicato dos Professores da Rede Municipal de Ensino SINDUSCON Sindicato das Empresas de Construção Civil do Estado de Minas SINTRAM Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros Metropolitano SNTU Sistema Nacional de Transportes Urbanos STTR-BH Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário de Belo Horizonte e Região Metropolitana TICEN Terminal de Integração do Centro TRANSFÁCIL Consórcio Operacional do Transporte Coletivo de Passageiros por Ônibus do Município de Belo Horizonte TRANSMETRO Transportes Metropolitanos TZ-BH Tarifa Zero – Belo Horizonte UBES União Brasileira de Estudantes Secundaristas UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFSJ Universidade Federal de São João Del Rei UJS União da Juventude Socialista UNE União Nacional dos Estudantes VIURBS Programa de Estruturação Viária de Belo Horizonte xvi SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1 CAPÍTULO 1 – A TRAJETÓRIA CAPITALISTA DO ÔNIBUS NO BRASIL: acumulação, estado e empresa na conformação de um transporte urbano. ............. 8 1.1. Ônibus no espaço urbano: as características do deslocamento enquanto mercadoria e suas especificidades enquanto processo produtivo espacializado. .............................. 13 1.1.1.– O transporte coletivo por ônibus sob a ótica da microeconomia neoclássica .... 15 1.2.“Viações ilimitadas” – a perspectiva da reprodução ampliada do capital no transporte coletivo por ônibus brasileiro ........................................................................ 23 1.2.1. A reprodução ampliada do capital em seu contexto geral ................................... 23 1.2.2. Funis de demanda e oferta no espaço urbano: o transporte público na perspectiva da economia política marxista .................................................................... 27 1.2.3. Os funis invertidos da oferta de transporte público – a dinâmica do capital no setor. ............................................................................................................................... 31 a)Autoprodução .............................................................................................................. 32 b) Reprodução simples da atividade .............................................................................. 33 c) Reprodução ampliada da atividade............................................................................ 37 d) As duas últimas etapas: capitalização e expansão do serviço, concentração e simultânea diversificação do capital .............................................................................. 40 e) A convivência dos modos de produção de transporte coletivo .................................. 42 1.3. – A modernização empresarial do setor de ônibus e o poder público: patrimonialismo, resistências e favorecimentos. ............................................................ 43 1.3.1. Circulação e privilégio: gratuidades e itinerários do transporte público em suas origens ............................................................................................................................ 44 1.3.2. - Infraestrutura, escala e produção do espaço urbano – as origens das concepções de regulação no transporte público. ........................................................... 48 1.3.3. – Metropolização, hegemonia privada e intervenção federal: o transporte e sua modernização de 1975 a 1988 ........................................................................................ 57 1.3.3.1 – A política federal para o transporte público ................................................... 59 1.3.3.1.1. – METROBEL: a experiência belo-horizontina de intervenção pública ........ 63 1.3.3.1.2. - Vale-transporte e municipalização ............................................................... 67 xvii 1.4. – Inflexão social na década de 1990: o sopro democrático-popular, neoliberalismo e motorização. ...................................................................................................................71 1.4.1. – São Paulo e Belo Horizonte: a experiência do projeto democrático-popular nos transportes ...................................................................................................................... 73 1.4.1.1. Belo Horizonte e a proposta de controle cidadão do transporte ...................... 76 1.4.2. – Neoliberalismo e as mudanças nos debates teóricos ........................................ 77 1.4.3. – O processo acelerado de motorização e a mudança na urbanização ............... 80 1.5 – A mobilidade urbana como um problema social: as recentes disputas da década da motorização .................................................................................................................... 83 1.5.1. – Perueiros: instabilidade, confronto e cooptação. ............................................. 83 1.5.2 – Motorização acelerada e a crise urbana contemporânea .................................. 86 1.5.3 – Inércia rodoviarista: a persistência das obras viárias como política pública .. 88 1.5.4 – Crise do controle público: as mudanças na regulação do transporte na década da motorização ............................................................................................................... 89 1.5.5. – Crise social da mobilidade: a instabilidade de um novo cenário ..................... 98 CAPÍTULO 2 – AS MOBILIZAÇÕES POPULARES PELO TRANSPORTE NO CONTEXTO DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO .............. 99 2.1. Alguns esclarecimentos conceituais ...................................................................... 101 2.1.1. - Localização e renda da terra ........................................................................... 101 2.1.2 – A questão da inflação ....................................................................................... 106 2.1.3. – Mobilização popular e transporte urbano ...................................................... 108 2.1.4. – Periodização .................................................................................................... 109 2.2. Indignação perene e revolta esporádica na cidade densa: a questão do transporte urbano até 1945 ............................................................................................................ 111 2.2.1. – A Revolta do Vintém ........................................................................................ 112 2.2.2. - Primeiras modernizações, a cidade densa e o congelamento de tarifas ......... 115 2.3. Ônibus, “pioneiros urbanos” e a precária conciliação de classes: o transporte público no período populista (1945-1964) ................................................................... 121 2.3.1. – O Quebra-Quebra de 1947 .............................................................................. 121 2.3.2. – Populismo e aceleração do processo de urbanização .................................... 124 2.4. A metropolização acelerada como processo hegemônico: espoliação urbana e o surgimento dos movimentos organizados em torno do transporte coletivo (décadas de 1970/1980) .................................................................................................................... 129 xviii 2.4.1. – Os quebra-quebras da década de 1970 ........................................................... 132 2.4.2. - Os Movimentos Reivindicativos por Transporte Coletivo ............................... 138 2.4.3. – As Associações de Usuários de Transporte Coletivo ...................................... 143 2.5. Convergência das narrativas: aprendizados e contradições dos governos democrático-populares na década de 1990. .................................................................. 148 2.5.1. – Tarifa Zero e a “ética do trabalho” ................................................................ 148 2.5.2. – Estruturas de participação popular e os vazios organizativos ....................... 153 CAPÍTULO 3 – A TARIFA ZERO COMO PROJETO DE TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: novos movimentos na retomada de uma questão urbana ................. 157 3.1. Aspectos da metrópole contemporânea: fragmentação e motorização .................. 160 3.1.1. – Mobilidade e juventude: a dependência de um sistema heterônomo .............. 163 3.2. Uma trajetória do Movimento Passe Livre ............................................................ 165 3.2.1. A Revolta do Buzu .............................................................................................. 165 3.2.2. Florianópolis – a campanha pelo passe livre e as revoltas das catracas .......... 167 3.2.3. Encontros nacionais: o surgimento do Movimento Passe Livre ....................... 170 3.2.4. Uma breve experiência em Belo Horizonte ........................................................ 173 3.2.4.1. - O recente desdobramento da pauta do passe livre estudantil em BH .......... 176 3.3. Tarifa Zero como pauta e força motriz: um rastreamento da disseminação da proposta em Belo Horizonte ......................................................................................... 178 3.3.1. – Um primeiro aparecimento na disputa política institucional ......................... 182 3.4. Surgimento e trajetória do Tarifa Zero BH ........................................................... 184 3.4.1. Acontecimentos de junho de 2013 em Belo Horizonte ....................................... 185 3.4.1.1. – A ocupação da Câmara Municipal ............................................................... 189 3.4.2. A campanha pela tarifa zero .............................................................................. 194 3.4.2.1. – O projeto de lei de iniciativa popular .......................................................... 195 3.4.2.2. – A campanha política-publicitária ................................................................. 198 3.4.3. Ações institucionais ............................................................................................ 208 a) Denúncias ao Ministério Público e o Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) ......................................................................................................................... 211 b) O Conselho Municipal de Mobilidade Urbana ........................................................ 212 c) A IV Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte ....................... 215 d) A atuação no judiciário ............................................................................................ 216 3.4.4. “Ações diretas” .................................................................................................. 219 xix 3.4.4.1.- Manifestações “clássicas” ............................................................................. 220 a) 1ª Jornada de Lutas contra o aumento ...................................................................... 225 b) Disputa de direção .................................................................................................... 226 c) A 2ª Jornada de Lutas contra o aumento .................................................................. 231 3.4.4.2. – Cultura, Carnaval e comunicação ............................................................... 234 3.4.4.3.- A Busona Sem Catracas ................................................................................. 242 3.4.4.4 - Outras iniciativas ........................................................................................... 251 a) Feministas do Tarifa Zero ........................................................................................ 252 b) O Plano Nacional de Mobilidade Urbana ................................................................ 253 c) A Frente Metropolitana pelo Transporte ..................................................................255 3.4.5 Debates, refluxos, contradições e perspectivas. .................................................. 256 4. À GUISA DE CONCLUSÃO: TRAÇADOS DE AGENDAS DE LUTA E DE PESQUISA .................................................................................................................. 261 4.1. Das trajetórias e acúmulos, uma proposta: o controle popular do transporte para a retomada da cidade ....................................................................................................... 262 4.2 – Apontamentos para uma agenda perene de pesquisa. .......................................... 265 5. REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 268 1 INTRODUÇÃO 2 Câmara Municipal de Belo Horizonte, dia 30 de Junho de 2013. A casa legislativa da cidade amanhecia naquele domingo ocupada por cerca de 300 pessoas, a maioria de jovens com menos de 25 anos, que exigiam do prefeito da cidade a redução no preço da passagem para o sistema de ônibus municipal. Desdobramento de um processo nacional de manifestações que já durava mais de três semanas, a motivação objetiva da ocupação era o repúdio ao processo de votação ocorrido na manhã do dia 29 de junho, no qual haviam sido negadas as emendas parlamentares que pediam uma maior redução da tarifa e a abertura das planilhas das empresas de ônibus. Sem poder ignorar a ocupação, o prefeito da cidade envia à Câmara o Presidente da BHTRANS e o Secretário Municipal de Governo para debater as demandas dos ocupantes. Na reunião, em meio aos vários questionamentos sobre a abertura das contas das empresas, o presidente do órgão gestor do transporte e trânsito da capital afirma: “não há como fazer a abertura das planilhas porque não há planilhas. O que vocês estão falando ficou para trás em 2008, na planilha GEIPOT da antiga licitação”. Em outros termos, estava reiterando, sem explicações para a grande maioria de “leigos”, um ponto de vista técnico que buscava silenciar politicamente o movimento. Aquela ocasião não seria a primeira nem a última em que argumentos técnicos seriam utilizados para deslegitimar reivindicações políticas de movimentos sociais. Foi a constatação da força dessas barreiras burocráticas e discursivas, que privilegiam os setores que buscam sua própria manutenção no poder, junto à necessidade de compreendê-las e desmontá-las, que ensejaram este processo de pesquisa. O presente trabalho surge como o desdobramento de uma inquietação latente. Ele se configura como uma busca pela compreensão da atual situação da mobilidade urbana nas cidades brasileiras, em especial a realidade do sistema de transporte coletivo por ônibus. A motivação para a pesquisa vem da atuação nos movimentos sociais da cidade de Belo Horizonte que ano após ano lutam contra aumentos tarifários, a explosão do número de veículos automotores e a persistência de uma política de expansão da malha rodoviária da cidade. Nesse cenário, percebia-se que o desconhecimento, por parte daqueles que lutavam, acerca das características dos agentes e processos contra os quais estavam lutando, era benéfica a estes últimos. Pouco ou nada era debatido a respeito de elementos tais como a estrutura econômica das empresas de ônibus, a forma como o município se relaciona com elas, as motivações políticas e as justificativas técnicas para a continuidade de uma política excludente e segregacionista, não só do 3 município, mas da maioria das cidades no país. As discussões, em geral, giravam em torno de repetições idealizadas e lugares-comuns não verificados. Na prática, pouco acrescentavam para se pensar uma transformação real das circunstâncias contra as quais se lutava. No mesmo sentido, pouco se sabia sobre as mobilizações populares por transporte na história brasileira: suas vitórias, derrotas e aprendizados. Se era notório que revoltas populares contra o aumento da tarifa sempre haviam existido na história urbana brasileira, o que se percebia nas discussões feitas em Belo Horizonte é que poucos elementos dessa rica história das mobilizações populares pelo transporte eram debatidos. Dessa maneira, quase nenhum aprendizado concreto sobre a determinação dos rumos do transporte público a partir da luta popular era sistematizado. A impressão contínua era da repetição da história a partir de uma tábula rasa. Assim, foi para compreender a formação e a trajetória histórica dos diversos sujeitos sociais envolvidos na conformação do atual sistema de transporte público brasileiro, à luz das disputas políticas contemporâneas, que esta pesquisa de mestrado foi desenvolvida. Nesse sentido, três personagens foram colocados em enfoque: as empresas privadas de operação de transporte coletivo por ônibus nas cidades brasileiras; o Estado – em suas diversas esferas – como agente regulador e, por vezes, produtor do serviço; e a população usuária que, longe de ser um agente passivo, disputa continuamente os direcionamentos da oferta e dos excedentes que o transporte público gera. Como contexto ativo que desenvolve e condiciona a atuação desses três personagens está o processo de urbanização brasileiro: a forma como as localizações no espaço urbano se configuram historicamente, atraindo pessoas e desenvolvendo relações sociais de produção, é fundamental para o entendimento da produção, gestão e disputa dos rumos do sistema de transportes. Abordar esses quatro elementos exigia uma pesquisa que buscasse, desde o primeiro momento, transpor abordagens disciplinares isoladas que marcaram desde o início a discussão do tema. Em relação às empresas de ônibus, foi preciso resgatar e sistematizar elementos de regulação do transporte público debatidos no âmbito da engenharia de transportes e compreender a evolução da forma como se ofertou o transporte por ônibus ao longo da história. A produção acadêmica a respeito do transporte público configurou-se historicamente por meio de extensos levantamentos sobre as diversas formas que este assume em locais e momentos distintos. No 4 levantamento bibliográfico, obras que abordavam características distintas sobre o transporte coletivo convergiam na mesma metodologia de elaboração a partir do levantamento e debate sobre diferentes cidades. Ou, de maneira análoga, convergiam para uma análise das várias e circunstanciais mudanças de direção da oferta de transporte em uma mesma cidade. Assim, enquadram-se no primeiro caso levantamentos sobre o surgimento e a operação dos bondes nas cidades brasileiras (como o pioneiro STIEL, 1984), além de estudos sobre aspectos da formação das empresas de ônibus nas cidades brasileiras (BRASILEIRO & HENRY, 1999) ou, especificamente, sobre a forma de concessão e regulação do serviço (ORRICO FILHO et. al., 1996). No segundo caso, que aborda as diversas mudanças em uma mesma cidade, tem-se para Belo Horizonte o imprescindível estudo da Fundação João Pinheiro (1996) e, sobre a questão específica da política de gratuidade, o estudo de Oliveira (2002). O contato com essas referências determinou duas características para o processo de pesquisa. Em primeiro lugar, viu-se que para debater a trajetória do transporte coletivo era necessário abranger um amplo espectro temporal e espacial. A compreensão do cenário só pôde se dar a partir do entendimento das similaridades e diferenças da formação do transporte coletivo em momentos e cidades distintas no país. Só dessa maneira, foi possível transcender o caráter local e específico que muitas vezes a questãodo transporte público assume. Em segundo lugar, constatou-se que a presença da esfera estatal como agente regulador do transporte era mais que determinante da questão, era um elemento intrínseco à existência e trajetória desse setor do capital. Debater a trajetória da formação capitalista do transporte coletivo era, portanto, debater a relação entre Estado e capital nesse setor. É a partir dessa perspectiva que o processo de pesquisa buscou o entendimento da teoria econômica que baliza a regulação do setor. Percebe-se então que a teoria reguladora que debate a questão surge, na maioria das vezes, a reboque da realidade objetiva sobre a qual pretende determinar. Assim como na economia política criticada por Marx, a abordagem tradicional do sistema de transporte público parte de aspectos que são entendidos na análise como premissas naturalizadas, e não como características historicamente determinadas do setor. Nesse sentido, a pesquisa se desdobra na classificação dessa abordagem e na busca por uma alternativa que se enquadre na perspectiva da crítica da economia política e entenda o desenvolvimento do setor a 5 partir do imperativo do processo de reprodução ampliada do capital, perspectiva essa que é encontrada na abordagem de Etienne Henry (1999a, 1999b). Na metodologia adotada na pesquisa, as mobilizações populares e a dinâmica de produção do espaço urbano foram estudadas como elementos mutuamente relacionados entre si e ao setor de transporte coletivo. Sua abordagem, entretanto, se deu somente após a sistematização da trajetória econômica do setor. Somente a partir do entendimento da forma histórica de reprodução desse setor, da compreensão de suas principais características econômicas e principais marcos históricos, a pesquisa sobre as revoltas urbanas por transporte e a dinâmica de desenvolvimento do espaço urbano pôde ser contextualizada com mais clareza. É a partir desse ponto que fica claro como a produção do espaço pressiona a disputa por localização e pela consequente renda diferencial da terra urbana, e como essa dinâmica é decisiva para o contexto político e econômico do transporte público. Essa metodologia de pesquisa foi, em algum grau, reproduzida na forma como o conteúdo desta dissertação está redigido e estruturado. Como se afirmou no início desta introdução, o processo de pesquisa se deu motivado pelas questões políticas contemporâneas que permeiam o transporte público no Brasil. Nesse sentido, a pesquisa só se completava ao abordar os movimentos sociais e as transformações na mobilidade urbana das duas últimas décadas. Debate da história do presente, esta última etapa da pesquisa envolveu um esforço pela identificação e concatenação dos fatos que compuseram as mudanças do último período, uma vez que todas as últimas obras de referência sobre a história do transporte foram publicadas na década de 1990. Esse fato, por si só, é revelador das mudanças que ocorreram e da relevância da retomada de uma abordagem sistêmica. Assim, a partir de dissertações, artigos, notícias e debates em jornais, bem como de uma profícua reflexão na internet feita em inúmeros textos pelos novos movimentos sociais, a pesquisa passou a abordar a história do Movimento Passe Livre, as recentes mudanças na regulação do transporte coletivo, bem como a trajetória do movimento Tarifa Zero BH, coletivo surgido após as manifestações de junho de 2013 e que luta pela efetivação do transporte como um direito social. Nesse processo, é importante ressaltar que a proposta de gratuidade no transporte por meio de seu financiamento indireto, pauta central que dá nome e conteúdo aos novos movimentos sociais na questão, é elemento que conduz toda a pesquisa e redação realizadas, não só nesta última etapa como em toda a dissertação. 6 Dessa maneira, esta dissertação está dividida em três capítulos, além desta introdução. O primeiro – A trajetória capitalista do ônibus no Brasil – estabelece um dos fios da narrativa do transporte público a partir do desenvolvimento do capital. Assim, o capítulo aborda o processo de formação do transporte coletivo por ônibus nas cidades brasileiras enquanto um setor econômico, no qual as relações com o Estado foram cruciais para o seu desenvolvimento. Elementos da abordagem microeconômica clássica e da abordagem marxista foram desenvolvidos, nesse contexto, para que fosse possível realizar uma leitura do processo de modernização do setor em sua relação com o poder público, desde a década de 1930 até os dias atuais. O segundo capítulo – As mobilizações populares pelo transporte no contexto da produção do espaço urbano brasileiro – aborda a questão do transporte a partir do processo histórico de formação das cidades brasileiras e do consequente desenvolvimento das necessidades urbanas de sua população. Estruturada em classes sociais que disputam o excedente produzido na urbe, a dinâmica social que produz os espaços urbanos apresentará um processo de mobilização popular pelo transporte que se expressará de maneira mais ou menos violenta conforme as circunstâncias. Nesse sentido, o capítulo parte da noção de localização e renda da terra para construir uma periodização da relação entre forma urbana e luta por transporte. Dessa maneira, estabelecem-se quatro períodos para a sistematização desse cenário: os anos dos bondes e da cidade adensada até 1945; a aceleração da urbanização, o desenvolvimento acelerado do setor de ônibus e a disputa aberta de classes no período populista entre 1945-1964; o processo acelerado de metropolização brasileiro, dentro de um contexto político autoritário de espoliação urbana até o fim da década de 1970 e seus desdobramentos na década de 1980; e, por fim, a tentativa de implantação da tarifa zero no governo de Luiza Erundina e seus desdobramentos nos anos 1990. Por fim, o terceiro capítulo – A tarifa zero como projeto de transformação política – aborda a história recente dos movimentos sociais contemporâneos que lutam pela melhoria do transporte como meio de transformar o espaço urbano. Nesse sentido, o capítulo discute brevemente alguns dos elementos da mobilidade urbana atual e sua relação com a juventude, principal segmento que atua politicamente nessa questão. O capítulo segue apresentando a história da formação do Movimento Passe Livre, a partir dos acontecimentos do começo da década de 2000 e se estende, dessa forma, para o desenvolvimento da proposta de tarifa zero no seio dos movimentos e relata sua 7 disseminação em Belo Horizonte. O capítulo culmina com uma extensa apresentação e debate das ações políticas do Movimento Tarifa Zero BH nos últimos dois anos. Como se verá, a própria forma de abordagem, investigação e apresentação das questões do transporte coletivo no Brasil deu a esta pesquisa uma ampla abrangência, inescapável à própria coesão do estudo que se buscou realizar. Nesse sentido, pode-se afirmar que sua principal inovação foi a concatenação de fatos e a sistematização de uma história cujos aspectos se encontravam abordados de maneira focalizada, por áreas acadêmicas distintas, que não dialogam entre si. Dessa forma, o que esta dissertação propõe, ao fim e ao cabo, é uma agenda de pesquisas a ser desenvolvida a respeito da relação sistêmica entre transporte urbano, produção do espaço e mobilização popular. Além disso, busca-se contribuir com os próprios rumos em disputa da mobilidade urbana, por meio da produção de um primeiro material escrito e sistematizado sobre a experiência do movimento social Tarifa Zero BH. Espera-se que essa pesquisa possa servir como mais um elemento para o debate e ação política dos novos movimentos. Por fim, o que sepropõe ao trazer para o centro da pesquisa a relação entre mobilização popular por transporte e produção do espaço, é pensar um projeto de cidade como espaço de emancipação humana, que combata a alienação do homem em relação ao espaço que, afinal, é produzido pelo seu trabalho. Pensar uma cidade na qual os fluxos não fiquem à mercê de determinantes externos e que os deslocamentos possam se dar voltados para a fruição do tempo-espaço de vida, com o desenvolvimento de novas relações sociais, é pensar uma cidade verdadeiramente livre. É também como uma pequena contribuição para que a luta dos movimentos sociais possa efetuar avanços concretos, a partir de uma perspectiva de emancipação, que essa dissertação foi redigida. 8 CAPÍTULO 1 – A TRAJETÓRIA CAPITALISTA DO ÔNIBUS NO BRASIL: acumulação, estado e empresa na conformação de um transporte urbano. 9 O setor de empresas que ofertam transporte coletivo urbano por ônibus no Brasil tem uma longa e consolidada trajetória. Desde os “pioneiros” em seus auto-ômnibus no começo do século XX, oferecendo “caronas remuneradas”, complementares ao caminho do bonde, aos “grandes barões da catraca” de hoje em dia, uma história de quase de 100 anos decorreu. Hoje, mesmo enfrentando uma consolidação da queda histórica de demanda nos últimos 20 anos, os empresários de ônibus constituem um grupo economicamente forte e influente na política nacional, com capital representado em vários tipos de companhia de transporte, companhias aéreas, indústria produtora de carrocerias, indústria alimentícia, entre outros. A história da formação das empresas de ônibus no Brasil se confunde com a própria urbanização nacional. É ponto claro de partida para a elaboração deste trabalho que a formação capitalista das cidades brasileiras ao longo do século XX guarda uma relação indissociável com o surgimento do setor de ônibus urbanos. Desde o fim do século XIX, as cidades mergulharam no complexo e contraditório processo de modernização das relações sociais, com ritmos e profundidades variados ao longo dessa trajetória, levando consigo todas as peculiaridades e contradições de um Brasil recém- republicano, oligárquico e profundamente desigual. Se a urbanização não é processo espacial hegemônico até a década de 1930, com o fim da 1ª República isso muda de figura. O processo de industrialização por substituição de importações e o processo de integração econômica nacional que se inicia, amplia a capacidade produtiva e a dinâmica econômica de todo o país, atraindo e multiplicando cada vez mais a população nas grandes cidades do sudeste. Dos interiores e sertões dos quais surge a população que se faz urbana, novas ocupações se dão a cada dia, e é no vácuo da estrutura estatal que o transporte por ônibus surge como alternativa para consolidar e dar dinâmica ao maior processo de urbanização do século XX1. Nesse cenário, o transporte coletivo por ônibus compõe hoje a paisagem e o cotidiano da maioria das cidades no mundo. Nos países da América Latina, essa forma de transporte é hegemônica desde a segunda metade do século XX e, em que pese a complexidade que sua operação abrangente no espaço-tempo da metrópole 1 De acordo com o censo demográfico de 1940, a população urbana brasileira era de 10,9 milhões de pessoas, o que correspondia a 26% da população total. Quarenta anos depois, em 1980, a população urbana brasileira é de 82 milhões de pessoas, correspondendo a 69% da população total. A mudança da composição proporcional em quatro décadas só encontra exemplos semelhantes, no século XX, em países como a antiga Iugoslávia (SANTOS, 1993), mas com um contingente populacional bem menor. Países como os EUA ou da Europa Ocidental levaram mais de 100 anos para realizar essa transição. 10 contemporânea demanda, sua existência é naturalizada no dia-a-dia. As precárias condições de serviço, que são mais a regra do que a exceção nessas metrópoles, nem sempre são suficientes para despertar na população um questionamento sobre seus próprios rumos. Ainda que a insatisfação se dê cotidianamente, as informações de quem fornece e como tem fornecido esse serviço ao longo do tempo são estrategicamente deixadas de lado pelos responsáveis no poder. A população vive, assim, em uma relação de alienação com seu fluxo cotidiano, no qual as distâncias, formas e motivos de seu deslocamento são naturalizados e a tendência cada vez mais forte contemporaneamente é a busca por soluções individuais. Ainda assim, o caráter essencial dos deslocamentos para o funcionamento da cidade e sua importância no processo de urbanização fazem com que o Estado – enquanto poder público – não possa se omitir da questão da regulação do serviço de transporte por ônibus. Destarte, desse complexo sistema emergem uma série de temas a serem abordados: a especificidade do serviço de transporte por ônibus enquanto mercadoria na cidade moderna; a dinâmica de mercado específica a esse setor que lida com uma espacialidade urbana; a controversa relação que os ofertantes privados desse serviço têm tido com o Estado brasileiro ao longo da história; a relação desse serviço com o espaço urbano e outros modos de transporte, bem como sua capacidade de ressignificá-los; e, por fim, as possibilidades de rompimento com a dinâmica capitalista e estatal que o serviço oferece, e como explorá-las. Essas questões fundamentais não podem ser desenvolvidas em abstrato. É necessário dar concretude histórica e geográfica ao tema para que se possa analisar suas minúcias e contradições. A realidade urbana brasileira será o espaço amplo que alimentará essa reflexão, mas o debate sobre o transporte público por ônibus, por definição, exige que se trabalhe também a partir de uma perspectiva local. Neste trabalho, Belo Horizonte e São Paulo serão as cidades a partir das quais os acontecimentos concretos serão narrados e reverberados para o contexto nacional. Os motivos para a escolha desses dois pontos de partida são distintos. Maior metrópole da América Latina, a importância econômica e social de São Paulo faz com que seja inescapável abordar sua realidade para explicar a formação de um setor econômico de atuação urbana local. São Paulo tem sido, desde o começo do século XX, a síntese das contradições brasileiras: seu gigantismo impraticável e a potência de suas experiência locais; espaço de oportunismos políticos grosseiros mas também de experiências 11 populares inéditas; cidade colapsada pelo trânsito, mas também capaz de criar movimentos sociais radicalmente contestadores. Toda essa diversidade é fundamental para que se possa apreender a trajetória do transporte urbano brasileiro. Belo Horizonte, por sua vez, apresenta-se neste trabalho a partir de um ponto de vista diverso. Para além do evidente fato de que esse é o lócus onde a realidade cotidiana da mobilidade urbana é vivida por mim em todas as suas contradições e disputas políticas, essa escolha desvelou em seu processo uma série de motivos. Em primeiro lugar, a natureza específica do surgimento de Belo Horizonte – planejada para abrigar uma modernidade redentora que nunca viria, superar traumas e ressentimentos regionais e nacionais que insistirão em reaparecer. Assim, Belo Horizonte tem como marca de seu nascimento a segregação de classe em seu espaço urbano, que se repetirá e se aprofundará espacialmente no lugar de moradia de suas classes ao longo de toda a sua trajetória.A conformação do sistema de transporte público dialogará sempre com essa contradição primeira. Como parte dessa vocação para uma modernidade incompleta, que tenta – canhestramente – esconder suas contradições de classe a partir da criação do novo, sucessivos governantes inovadores em seu “rodoviarismo”, como Juscelino Kubistchek (prefeito nos anos 1940), passarão por seu comando e farão da cidade e do estado de Minas Gerais a antessala de experiências que se repetirão em escala nacional. A exemplo da influência mineira nos rumos da política nacional, a trajetória específica dos empresários de transporte do município se apresenta de maneira, ao mínimo, curiosa. Eles surgem na atividade econômica com pioneirismo para a sua época, mas, ao contrário das outras metrópoles nacionais, sua trajetória apresenta permanência de uma estrutura de empresas, mas não de propriedade,2 relativamente desconcentrada. Ao se entenderem regionalmente, os empresários mantiveram o seu mercado fechado à concorrência externa e expandiram sua atuação para todo o território nacional. No processo de consolidação da modernização do setor, eles têm papel preponderante na formação e consolidação de associações de classe como Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos (NTU) e na renovação da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), influindo nas políticas nacionais de transporte pelo menos desde o governo Figueiredo (Cf. BRASILEIRO, HENRY; 1999). Colocado o cenário sobre o qual se debruçará, o presente capítulo está estruturado em cinco seções. Na primeira, busca-se apresentar, sob a perspectiva da 2 Não houve ainda um estudo sistematizado sobre os proprietários das empresas belo-horizontinas de ônibus e suas relações familiares. 12 microeconomia tradicional3 algumas das características específicas do transporte enquanto mercadoria e da formação de seu mercado, que têm marcado o debate da economia dos transportes e da literatura mais ampla há bastante tempo. A seção seguinte busca introduzir os conceitos desenvolvidos pelo economista Etienne Henry, abordando o desenvolvimento do setor a partir das categorias da economia política e de sua crítica de viés marxista. Essa fundamentação teórica é central para visualizar a trajetória do setor inserida no contexto mais amplo de reprodução ampliada do capital através da modernização capitalista do século XX. É a partir da inserção no contexto amplo do desenvolvimento capitalista que os conceitos trazidos por essa abordagem teórica ilustrarão a trajetória do setor. A terceira seção busca apresentar a relação do setor com o poder público, fundamental para sua consolidação econômica no país e aspecto indissociável de sua formação. É nesse momento que a história do transporte público por ônibus ganha consistência. Aspectos como a origem da ideia de gratuidade no transporte e os princípios de regulação econômica são fundamentais para a compreensão dos atuais impasses na mobilidade urbana. Buscar-se-á demonstrar que a influência da esfera privada sobre os aspectos públicos do serviço foi contínua e dominante, pautando-se em relações patrimonialistas e clientelistas de Estado. As importantes vezes em que houve sérias tentativas de regulação e encampação do setor – a METROBEL em Belo Horizonte, e ocasionalmente a Companhia Municipal de Transporte Coletivo em São Paulo - demonstraram também uma capacidade de reação de classe organizada por parte dos empresários. Em seguida, a quarta seção irá debater a situação do setor na década de 1990, considerada aqui como o ponto de inflexão da mobilidade urbana brasileira. A conjugação da maturação do setor com o começo do declínio de sua demanda histórica é agravada pelo início do processo de motorização e pelas mudanças na dinâmica de urbanização. O debate que surge entre os estudiosos da questão a partir dessa situação, se mostrará então fundamental para a compreensão das mudanças dos últimos vinte anos e das transformações necessárias apontadas no horizonte. Por fim, a última seção discutirá os acontecimentos do século XXI, marcado por uma profunda aceleração na motorização da sociedade e uma consequente crise urbana sem precedentes. As mudanças na forma de regulamentação no país, em Belo Horizonte 3 Isto é, a microeconomia de perspectiva neoclássica, derivada da “revolução marginalista” de Alfred Marshall no fim do século XIX e ainda hegemônica no ensino e na pesquisa científica. 13 e em São Paulo, serão apresentadas sob a luz das (ausências de) políticas públicas no setor e a formação de novos movimentos sociais na questão. 1.1. Ônibus no espaço urbano: as características do deslocamento enquanto mercadoria e suas especificidades enquanto processo produtivo espacializado. O deslocamento pelo espaço urbano é uma necessidade cotidiana em qualquer sociedade moderna. Na medida em que o processo de urbanização avança e a relação entre os espaços se complexifica, a demanda por deslocamentos aumenta tanto em quantidade como em qualidade: trajetos, horários, distâncias e motivos. Como quase toda atividade contemporânea que envolve custos, matéria-prima, força de trabalho e organização do processo produtivo, a produção do serviço de transporte coletivo urbano por ônibus tornou-se uma atividade mercantilizada na sociedade capitalista. De fato, em que pese o fato de sua existência ser essencial - comparável aos serviços de saúde, educação e segurança pública - o transporte é hoje uma mercadoria no sentido clássico do termo, de forma bem mais naturalizada que esses outros serviços. De relativo baixo custo para novos entrantes, o transporte coletivo tem a capacidade de atrair novos ofertantes continuamente (e.g. o transporte clandestino em diversas ocasiões), e pode, ao longo de sua trajetória, garantir a consolidação urbana de bairros outrora periféricos. Foi dessa maneira que as hoje grandes empresas brasileiras de viação se iniciaram (Cf.. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, BRASILEIRO & HENRY, 1999, entre outros). O produto do serviço de transporte coletivo por ônibus é o deslocamento de uma pessoa do ponto A para um ponto B, em determinado horário do dia, oferecido de maneira coletiva e estruturada, mas adquirido e realizado enquanto mercadoria individualmente. Como boa parte da grande categoria de “serviços”, e do fenômeno da “terciarização” sobre a qual os estudos sobre o pós-fordismo têm se debruçado, há uma especificidade nesse produto: o processo produtivo da mercadoria e sua realização enquanto tal coincidem no mesmo momento e no mesmo local4. Entretanto, diferentemente dos serviços tradicionais (como, por exemplo, um atendimento 4 É importante separar aqui o que é considerado realização da mercadoria enquanto transformação de seu equivalente em dinheiro (valor de troca) e enquanto processo de consumo do seu valor de uso. De fato, desde o advento das vendas antecipadas - que hoje constituem o sistema de créditos eletrônicos e do qual a venda de vale-transporte participa em peso –, a receita prévia do serviço de transporte público, sem a contrapartida necessária de sua realização concreta, tem se constituído um ativo fundamental para as empresas de ônibus. Segundo a verificação independente do sistema belo-horizontino, as receitas antecipadas não utilizadas compõem cerca de 2% do total bruto anual. (ver EY, 2014) 14 telefônico), essa coincidência espaço-temporal entre produção e realização é concreta e imprescindível para o processo, pois ocorre e se constitui em um trajeto geográfico específico no espaçoda cidade, gerando uma relação de dependência entre o funcionamento da cidade e a produção da mercadoria. Em suma, para todos os efeitos de análise do setor é necessário ter claro essas duas peculiaridades: a coincidência espaço-temporal de produção e realização da mercadoria e a manifestação espacialmente urbana da natureza da mercadoria. Dessa forma, as possibilidades de diferenciação e individualização do produto são praticamente infinitas, pois variam por trajeto ao longo do espaço urbano (pontos de embarque e desembarque) e horários. Essa característica única de abrangência no tempo-espaço cotidiano da cidade conferirá ao setor de transporte urbano por ônibus originalidades fundamentais que balizarão a organização de sua produção, força de trabalho, regulamentação pelo poder público e uma série de outras variáveis. Sobre a prestação do serviço pelas empresas, Santos e Orrico Filho comentam que Da perspectiva da empresa operadora, entretanto, o que é comercializado é o deslocamento de veículos, ordenado segundo um certo quadro horário e um dado itinerário. Desta forma, uma característica do mercado de transportes é que, além de constituir-se como uma estrutura industrial de produtos múltiplos, a empresa programa a produção de um serviço cujas unidades, a princípio – e com rigor formal – não são equivalentes ao que seus consumidores adquirem. (SANTOS & ORRICO FILHO, 1996, p. 34-5). Nesse sentido, o transporte público urbano também assume uma posição privilegiada para efetuar a análise das transformações capitalistas contemporâneas. Sua existência simultânea enquanto processo produtivo e mercadoria articula as principais características da produção do espaço urbano (a sobreposição histórica de valores de uso e de troca da terra urbana enquanto mercadoria)5 com as especificidades inerentes ao setor de serviços, os mesmos que se configuram como força dinâmica no capitalismo pós-fordista (Cf. NEGRI, 2004). 5 Há uma contradição específica do solo urbano (ou rural) quando colocado sob a dinâmica de mercado, seja como mercadoria a ser negociada, seja como elemento que valoriza e confere dinâmica a outros setores, como é o caso do serviço de ônibus. Entre todas as rendas diferenciais (chamadas “mais-valias fundiárias”) que o trabalho humano pode gerar para a terra enquanto mercadoria (por infraestrutura instalada, por fertilidade, etc), há uma cuja reprodução é impossível. A localização geográfica do solo (sua latitude e longitude especificas) faz com que esse aspecto seja um monopólio intrínseco desse ativo – nenhuma terra pode reproduzir a localização privilegiada de outra – e confira assim ao processo de produção do espaço urbano uma contradição específica na disputa da terra entre valor de uso e valor de troca. A característica locacional da terra urbana será desenvolvida como elemento explicativo no capítulo 2. 15 1.1.1.– O transporte coletivo por ônibus sob a ótica da microeconomia neoclássica As contradições que a mercantilização do transporte urbano gera são, portanto, essenciais para se entender a trajetória histórica de formação do setor, suas crises e mudanças de regulamentação. Levando em conta as duas peculiaridades já citadas sobre o produto, a literatura tradicional sobre os ônibus urbanos começa a identificar as especificidades de seu mercado que, ao que tudo indica, não pode ser tratado a partir da perspectiva da livre concorrência. Em outras palavras, é altamente questionável que o sistema de mercado – tomado de maneira independente – consiga ser o mediador eficaz da oferta e demanda de acesso a esse serviço. É necessário, portanto, realizar um debate sobre a natureza privada, pública, ou semi-pública da mercadoria (ou “bem”) no âmbito da microeconomia. De fato, as chamadas “falhas de mercado” do setor são recorrentes na literatura e no debate teórico, e fundamentais para a formulação das políticas públicas e justificativas de intervenção do setor público. Nesta seção elas serão elencadas a partir dos trabalhos de Santos & Orrico Filho (1996), Oliveira (2013) e Dias (1991). Antes de iniciar essa apresentação, porém, é necessário ter mais clara a abordagem que é estudada aqui. A teoria microeconômica neoclássica, tal como se desenvolveu no século XX, é herdeira direta da sistematização iniciada por Adam Smith no século XVIII e continuada no século XIX por economistas como David Ricardo, Stuart Mill, Alfred Marshall, entre outros. Há um ponto de inflexão fundamental na escola de pensamento econômico inaugurada por Smith: antes, outros pressupostos morais concorriam para dar valor e preço às mercadorias para além dos mecanismos de oferta e procura mercantil clássica. Depois das formulações da chamada “economia política clássica”, existe um processo hegemônico de naturalização das relações de mercado, que buscou estabelecer seus critérios como definidores de uma “verdade” e passou a desconstruir outras formas morais de se atribuir valor às mercadorias. O mercado passa, assim, de um lugar de “jurisdição” para um lugar de “veridição” (Cf. FOUCAULT, 1979) e o instituto da propriedade privada passa a ser um pressuposto naturalizado de toda essa dinâmica, que nesse sentido compactua com o processo de mercantilização da sociedade e com a lógica do “preço natural” (Cf. MARX, 1844). Os serviços públicos urbanos ocupam lugar relevante nessa história, pois não são imediatamente capturados pela ideologia liberal nascente, que continuamente tenta 16 estabelecê-los como mercadorias. O transporte público, ao nascer como mercadoria paga e não-subsidiada, está em lugar estratégico nessa história. Isso posto, voltemos à literatura microeconômica. Esta classifica um bem ou propriedade privada como aquela cujo consumo é “rival e excludente” de outro bem. Em outras palavras, o consumo do bem é feito necessariamente em detrimento de outro bem e de outro consumidor. Os exemplos são fartos e dizem respeito principalmente a bens materiais: o consumo de uma garrafa de vinho, por exemplo, é excludente, pois sua dinâmica de mercado pode proibir o consumo desse bem por aqueles que não pagaram por ele. Nesse caso, o princípio dos direitos da propriedade privada falam mais alto. Da mesma forma, a garrafa de vinho possui “rivalidade” enquanto bem privado porque o seu consumo impede que outras pessoas possam ter acesso ao bem6. Em outras palavras, existe um limite físico na produção e venda deste bem. Assim, o princípio da exclusão, sob a perspectiva liberal, faz com que a instância do mercado seja a melhor mediadora na dinâmica de provimento e consumo desses bens, com o instituto do preço como elemento alocador de sua quantidade “ótima”. (Cf. PINDYCK; RUBENFELD, 2002) Já os bens públicos tidos como “puros” são aqueles cujo consumo é não-rival e não-excludente. Um exemplo contemporâneo é a produção de conhecimento na Internet: sua oferta, se colocada em sites de acesso público (e.g. Wikipedia) atinge todos aqueles que consigam acessar e ler o conteúdo da página, quer tenham contribuído para o seu custeio, quer não. Dessa maneira, seu consumo é não excludente porque não há acesso impedido para aqueles que não pagaram, e não rival, porque sua realização, por definição, não impede que outros a consumam. Na era pós-fordista, os produtos do trabalho imaterial se enquadram nessas definições, e a disputa entre o caráter partilhado e o estabelecimento de bloqueios ao seu acesso (encriptação, pagamentos, etc.) é uma das principais disputas contemporâneas. A teoria microeconômica define, ainda, um tipo intermediário de bem, entre o público e o privado, chamado de “bens comuns” (common-pool resources, na formulaçãooriginal de Elinor Ostrom (1990)). Esse bem teria a característica da rivalidade ou “subtraibilidade”, mas não seria afeito ao princípio da exclusão em seu acesso. Um exemplo clássico é o pasto natural para o gado: se tratado de forma correta, 6 A pesquisa contemporânea é inclinada a substituir o termo “rival” pelo termo “subtraibilidade” de forma a acentuar que a rivalidade do bem e sua exclusão não é absoluta e sim gradual conforme as circunstâncias. (Cf. HELFRICH, 2012) 17 sua provisão pode ser mantida todo ano, sem exclusão ao acesso a outrem. Porém, é claro que esses recursos são finitos, possuindo, portanto, subtraibilidade. Assim, é possível classificar os bens públicos puros a partir da aferição de suas características: a primeira é a indivisibilidade de suas externalidades – os indivíduos não-consumidores não podem ser excluídos das consequências (negativas e positivas) geradas pela existência e consumo desses bens. Para o transporte público essa característica se expressa na medida em que este é concorrente de espaço público na rua. Para exemplificar, imaginemos que, quando um ônibus transporta um determinado número de pessoas ele está possivelmente evitando que parte delas se utilizem de automóveis ou motos como alternativa fazendo com que, portanto, a oferta do serviço de transporte público gere uma “economia” de xxm² de uso de vias públicas, além de menor emissão de poluentes e menos risco de acidentes. Ou seja, o transporte público gera externalidades positivas para todos os habitantes da cidade, quer eles custeiem o serviço ou não. A segunda característica de um bem público dito “puro” na microeconomia clássica é o custo marginal de provimento nulo, isto é, o ato de consumo de uma unidade extra por um indivíduo não reduz a quantidade que poderá ser ofertada a outro. Esse ponto é controverso para o caso do transporte público. É fato que no horário de pico ou de alta demanda o consumo de transporte público por um indivíduo impossibilita o consumo por um individuo a mais (por não haver mais espaço para embarque, por exemplo). Mas essa característica não procede para os momentos em que o transporte circula com capacidade ociosa, pois a sua utilização por outro indivíduo não impede o consumo por outrem, uma vez que há espaços vazios. Em outras palavras, o custo marginal de provimento em situações de capacidade ociosa existe, mas não em patamares que possam caracterizar a ineficiência do serviço. O economista João Luiz da Silva Dias7 coloca a questão nos seguintes termos: Se o serviço [de transporte público] estiver adequadamente dimensionado, a exclusão é ineficiente. Quer dizer, o metrô, os ônibus estão circulando, existem os lugares [vazios, ociosos], mas só viajam os que podem pagar. Se, de outra forma, o serviço está sub-dimensionado, e o pagamento é a forma de solução – [selecionando] quem viaja, [de] quem é excluído – de equilibrar-se oferta e demanda, nem por isso o sistema de mercado será eficiente. A 7 É importante, desde já, situar este autor como um dos personagens da trajetória do transporte público a ser narrada. João Luiz foi o primeiro presidente da Metrobel (Companhia de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte), implantando inovações significativas na gestão e regulação do transporte público na RMBH. Posteriormente, exerceu cargos diretivos na BHTRANS e na CBTU, na década de 1990. 18 eventual privatização dos benefícios por alguns é semelhante ao que acontece com a educação, com a saúde e mesmo com as ruas e calçadas, onde a insuficiência na oferta destes bens enseja a privatização do consumo e até a oferta privada suplementar. (DIAS, 1991, p. 73-4). Assim, é importante compreender que, nos termos em que a sociedade organiza seus deslocamentos hoje, há, de fato, momentos de pico de demanda que são os dimensionadores da capacidade ofertada (assim como nas ofertas de energia, água, etc.) e de sua eficiência. Os momentos fora desse pico configuram, em alguma medida, uma capacidade ociosa estrutural do serviço. Atente-se que essa capacidade ociosa não varia apenas ao longo das horas de um dia, apresentando comportamento variado conforme os dias da semana, os dias e semanas do mês (e.g. pelo fato de ser tarifado, o transporte é mais utilizado no começo do mês) e os meses do ano (meses de férias escolares geralmente apresentam uma demanda mais baixa). O que importa apreender dessa discussão é que, se a literatura concorda que o transporte público não pode ser tratado como um bem inteiramente privado, ela não chega a um consenso sobre a natureza totalmente pública desse serviço. Se nas atuais configurações do capitalismo há uma disputa pela possibilidade de apropriação de bens comuns, como o conhecimento colaborativo gerado pelo trabalho imaterial, parece claro que a classificação dos bens em privados, públicos ou comuns é uma característica histórica atribuída a posteriori da existência em si do bem. Como já esclarecia Marx para a questão da propriedade privada e da economia política de então, a naturalização de características socialmente construídas no sistema produtivo serve a propósitos de classe específicos. Quando a microeconomia neoclássica identifica bens como públicos, privados ou comuns ela o faz de maneira que essas características sejam pressupostos, e não atribuições. Como ressalta Silke Helfrich no atual debate sobre bens comuns: Em outras palavras, a característica de exclusão de um bem depende de circunstâncias concretas, daquilo que nós, como indivíduos atuantes, somos capazes de fazer, e de nossas decisões. Poderíamos também expressar essa ideia nos seguintes termos: um bem comum não possui a característica de consumo não-excludente; pelo contrário, essa característica é a ele atribuída. (HELFRICH, 2012, grifos da autora).8 O transporte público, da mesma maneira, está no centro dessa disputa da naturalização de seu caráter mercantil. Sua origem é historicamente privada, fazendo com que a disputa por sua oferta pública parta de pressupostos de mercado. Mas a 8 Tradução livre de: “In other words, excludability depends on the concrete circumstances, on what we as acting individuals are capable of doing, and our decisions. We could also express this idea as follows: a common good does not have the characteristic of non-excludability; rather, it is given this characteristic”. 19 proposta de tarifa zero e o debate sobre mudanças na regulação apontam para uma natureza comum do serviço, ainda não explorada. A transformação da natureza do transporte é uma tarefa de perspectiva histórica, que envolve um processo ativo de mobilização da sociedade. É para isso que este trabalho busca contribuir. Quando o transporte público gera externalidades, em função de sua característica de bem público, é necessário ressaltar que nem todas elas são positivas para a sociedade. Em sua relação indissociável com espaço urbano, o transporte por ônibus acaba por gerar também uma série de contradições. As ruas e avenidas, meios de produção e locais de realização do transporte público, não são construídas ou mantidas pelas empresas privadas que ofertam o serviço. Trata-se de espaço público, comum, compartilhado, mas que sofre desgaste desigual conforme o uso. Assim, as chamadas externalidades negativas no espaço urbano são uma das contradições fundamentais do transporte público, sob qualquer abordagem. As condições da via interferem na produtividade do serviço e, portanto em seu custo operacional, mas a depreciação e manutenção desse espaço não
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