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1 A macumba no imaginário infantil Diversidade religiosa no ensino fundamental em uma escola particular laica Geová Silvério de Paiva Júnior* Resumo O trabalho busca refletir sobre os “usos” e representações da categoria “macumba” no espaço escolar laico no contexto de uma instituição privada de ensino na cidade de Recife – PE. Adotando-se uma abordagem antropológica por meio de metodologia qualitativa foi possível compreender como crianças do ensino fundamental, especificamente da 4º série, experimentam a diversidade religiosa em seu cotidiano escolar operacionalizando o que entendem por “macumba”. Vale salientar que a infância não se configura como uma cultura própria à parte do mundo adulto. As crianças constantemente dialogam com as diversas esferas sociais ao seu redor: a escola, a família, a igreja, etc. Nota-se, entretanto, ser a escola um espaço privilegiado de maior autonomia dos pequenos no qual podem interpretar e mesmo resignificar as referências culturais apreendidas. Neste processo, a diversidade religiosa, em especial por meio do imaginário infantil no que diz respeito ao conjunto de religiões afrobrasileiras, apresenta-se como uma questão a ser pensada dentro de uma pedagogia da diferença que leve em conta princípios de respeito e tolerância. O estudo a ser apresentado caminha para o entendimento desta questão. Palavras-chave: Diversidade religiosa. Macumba. Educação. Infância. Escola laica. Introdução Entre os anos de 2007 e 2009, enquanto ainda cursava a graduação de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco, tive a oportunidade de participar como bolsista de um projeto de pesquisa intitulado “Um estudo comparativo sobre (in) tolerância religiosa e de como ‘raça’, ‘classe’ e ‘religião’ se entrecruzam nas falas e práticas de crianças de escolas públicas e privadas, em Recife - PE”. O projeto visava um maior entendimento sobre a * Mestre em antropologia pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: geova.spj@hotmail.com. 2 experiência da diversidade religiosa por estudantes do ensino fundamental em um ambiente escolar laico. Sendo a pesquisa de caráter antropológico e sua metodologia qualitativa o trabalho de campo consistiu no acompanhamento de duas turmas de ensino fundamental, sendo uma em uma escola particular e outra em uma escola pública, durante o ano letivo de 2008. O presente texto será uma etnografia do período de acompanhamento da turma do 5º ano (antiga 4ª série) da escola particular estudada na pesquisa. Esse período corresponde mais sistematicamente ao primeiro semestre do ano letivo de 2008 no qual a equipe de pesquisa acompanhou especialmente as aulas de artes, história, geografia, projeto interdisciplinar, dança, além da hora do recreio1. As visitas à escola ocorriam em média de duas a três vezes por semana. Além das técnicas de observação através do acompanhamento intenso do campo, as crianças foram ouvidas não só nas conversas informais com os pesquisadores, mas também nas entrevistas semiestruturadas que buscavam captar seu depoimento a respeito dos temas a serem contemplados pela pesquisa. No processo de análise dos dados empíricos a categoria “macumba” foi uma das que se sobressaíram revelando assim muito do imaginário infantil a respeito das religiões afrobrasileiras. As representações que as crianças possuíam da “macumba” além de estarem presentes em certas encenações e episódios testemunhados em campo, também se apresentavam em seus discursos atestando a diversidade e qualidade do material disponível. Complementando este material há de se considerar ainda episódios testemunhados, conversas informais e entrevistas com funcionários, professores e coordenadores/diretores da instituição escolar pesquisada. O que é “macumba”?2 Que palavra é essa que permeia nosso imaginário social e se entranha na cultura brasileira? Um primeiro olhar das Ciências Sociais buscaria refletir tais questões no mundo dos adultos em diálogo com a lógica das religiões afrobrasileiras. No entanto, por incrível que pareça, as crianças também são capazes de responder tais questões e 1 As aulas de projeto interdisciplinar são destinadas a um projeto temático a ser trabalhado pelos alunos em variadas disciplinas durante todo o semestre. No caso, o projeto trabalhado pelos alunos no 1º semestre letivo de 2008, o projeto Brasilis, foi de extrema importância para a pesquisa pela ampla conexão com os objetivos da mesma. A escolha das disciplinas mencionadas se deu por parecerem mais propícias ao surgimento das temáticas em torno da questão religiosa. 2 Macumba é uma palavra que historicamente carrega um valor pejorativo no senso comum da sociedade brasileira, sendo um termo etnocêntrico para se referir de forma generalizada às religiões de matriz africana existentes no país. Ainda assim, no corrente trabalho o termo se mostra adequado na medida em que será metodologicamente utilizado como categoria analítica fornecida pelos próprios nativos com os quais se dialogou. Dessa forma, optei por manter a palavra “macumba” tal como era expressa em campo, sendo usada aqui entre aspas. 3 nos fornecer interpretações tão plausíveis quanto se as fossemos buscar em outras dimensões sociais, adultas por excelência. Portanto, se parte da voz deste novo e pequeno sujeito para se explorar novas compreensões acerca dos entendimentos dados às religiões afrobrasileiras, às vezes sintetizadas na categoria “macumba”. Sob esta perspectiva, a criança então passa a ser encarada como um ator social. É no diálogo e na troca de significados simbólicos entre o universo infantil e as instituições sociais adultas que o cercam que as representações da “macumba” podem denunciar a reprodução ou resignificação de determinados valores transitáveis entre modernidade e tradicionalismo em um movimento que pode indicar maior proximidade ou distanciamento com o ideal de tolerância e respeito à diversidade religiosa, principalmente quando se pensa isso em relação às religiões de matriz africana. É possível agora analisar como as crianças de uma escolar particular laica na cidade de Recife – PE pensam “macumba” e sobre quais circunstâncias seus sentidos são acionados tendo em vista o panorama religioso brasileiro sem ignorar os mediadores sociais envolvidos no processo como escola, família, igreja, etc. Vale ressaltar que a etnografia que se segue parte da lógica das próprias crianças, são os seus discursos e práticas que estão sendo analisados. Descrevendo o campo A turma do 5º ano do turno da manhã de uma escola particular laica situada no bairro da Várzea (Recife - PE) era uma turma relativamente pequena de 20 alunos com idades próximas aos 10 anos. Sendo os pais dos alunos profissionais liberais, o perfil da escola e das crianças sugere um ambiente predominantemente da classe média, média alta. No que diz respeito à escola, esta é tida como modelo em sua linha pedagógica construtivista seguindo uma política multicultural nas atividades com os alunos. Apesar de não ser uma escola muito grande possui uma boa estrutura física, adequada ao desenvolvimento das crianças: salas de aulas arejadas, sala de informática, artes, expressão, biblioteca, cozinha, quadra poliesportiva, pátios de recreação com areia tratada, horta, sala de professores, secretaria, cantina, coordenação, espaço para receber pais de alunos, etc. Em relação à turma pesquisada, o 5º ano, ela possui uma peculiaridade – é marcada por uma forte divisão de gênero. A própria organizaçãoespacial demonstra isso, a princípio os meninos encontravam-se concentrados de um lado da sala, enquanto as meninas situavam- se do outro. Na hora do recreio eles não se misturavam, existia brincadeira de meninos e 4 brincadeira de meninas. Nos trabalhos em sala de aula, realizar grupos mistos sempre gerava confusão e somado a estes aspectos a de se mencionar a diferença quantitativa: a turma possuía 13 meninas e 7 meninos3. Em relação à caracterização racial das crianças, a turma reproduzia o padrão da escola, a maioria dos alunos brancos e uns poucos negros. A turma contava com 3 meninas e 1 menino negros (de pele escura, variando entre negra e parda). O background religioso da classe foi de difícil descoberta ficando apenas evidente próximo ao fim da pesquisa através de questionamento direto nas entrevistas semiestruturadas. A partir disto foi possível perceber certo nível de diversidade religiosa naquela turma, onde se pensava inicialmente existir uma maioria católica em detrimento de um evangélico. Ao contrário, descobriu-se para além da religião católica, a existência de 3 alunos de tradição protestante, 3 que se denominam sem religião, 2 com afinidades espíritas, sem contar com a professora da turma que era de denominação protestante. Sob estas circunstâncias, a diversidade religiosa existente nesta turma detinha um status de invisibilidade o que possibilitava aparentemente um ambiente que indicava à harmonia e à “tolerância” religiosa4. A inserção em campo foi dada de maneira muito formalizada naquela escola. Fomos apresentados à turma pela professora assim como nossos objetivos, ficando claro que não éramos alunos, mas também não éramos professores ou funcionários da escola. Os alunos a princípio ficaram curiosos e confusos em relação a nossa função, mas de qualquer maneira nos agregaram com facilidade em seu cotidiano escolar. No período em que se acompanhou a turma em análise, a posição ocupada pelos pesquisadores sempre foi em meio às crianças. Em sala de aula, não estávamos separados a parte como observadores imparciais avaliando determinados comportamentos. Estávamos sentados nas bancas, prestando atenção nas aulas, emprestando lápis e borracha, estabelecendo conversas na hora de aula, trocando desenhos, fazendo parte da leitura coletiva, etc. Éramos como “colegas de classe”. Passemos agora aos episódios etnográficos que remetem ao imaginário infantil sobre as religiões de matriz africana. 3 Esta divisão de gênero foi atenuada posteriormente quando a professora da turma obrigatoriamente separou os meninos uns dos outros acabando com a concentração espacial dos sexos e fazendo com que meninos e meninas se relacionassem mais. 4 A respeito da invisibilidade da diversidade religiosa nesta escola, explorei o tema no relatório técnico de pesquisa destinado a FACEPE (PAIVA JR, 2008). A temática também é aprofundada no artigo escrito pela equipe de pesquisa - “Pesquisando o invisível: percursos metodológicos de uma pesquisa sobre sociabilidade infantil e diversidade religiosa” (CAMPOS ET ALL, 2009). 5 As representações da “macumba” na turma do 5º ano de uma escola particular Episódio I: Uma aula sobre a religião dos africanos5 Era aula de história e a professora da turma do 5º ano trabalhava assuntos que se interligavam com o projeto a ser desenvolvido pelas crianças. Estávamos fazendo uma leitura coletiva de uma versão adaptada da Declaração dos Direitos Humanos. O assunto em pauta não podia ser outro: direitos iguais para pessoas diferentes. É possível? Já viu né, veio todo um debate e os pequenos começaram a falar de preconceito por causa das diferenças e é nessas diferenças que o brasileiro foi formado. É índio, é branco, é negro, é toda uma mistura! Mas que negro é esse? É africano! Africano tem religião? Eis o que os nossos pequenos nativos pensam: - “Eles [os africanos] acreditam em vários deuses”. - “Eles fazem macumba. Macumba é coisa do diabo”. - “Macumba tem coisa ruim e coisa boa”. - “Deve haver um nome científico [para macumba]”. - “Eu não acredito em macumba”. - A professora pergunta: “Macumba é religião?” – Algumas crianças dizem que não. “O que é religião?”, questiona ela. As crianças respondem: “É a crença”. O episódio acima relatado diz respeito ao primeiro momento em que a categoria “macumba” emergiu espontaneamente em campo. Foi pensando sobre as religiões afrobrasileiras, a religião oriunda dos negros escravos, que as crianças do quinto ano fizeram uma primeira associação entre “macumba” e estas religiões. Neste primeiro momento temos uma clara referência ao significado degradado e degradante expresso pelo senso comum da sociedade brasileira. A partir de então, através do projeto interdisciplinar denominado “Brasilis” uma pedagógica da diferença reconhecedora da condição da população de cor no Brasil atuará dando novos contornos a estas primeiras representações da “macumba” no imaginário infantil daquela sala. 5 O episódio diz respeito a uma aula de história assistida por mim. Reconstituo-o em uma linguagem mais informal com base no meu diário de campo escrito no momento em que o fato ocorria. As falas entre aspas foram professadas pelas crianças tal como foram aqui escritas. 6 O projeto “Brasilis” concretiza pedagogicamente a lei de diretrizes e bases 10.639 do Ministério da Educação que obriga a inclusão da temática “História e cultura afrobrasileira” no currículo oficial da rede de ensino. Assim, o projeto contempla conjuntamente com as disciplinas de história, geografia, artes e dança o aprendizado da formação do povo brasileiro enfatizando a contribuição da população negra na construção da cultura de nosso país. Sobre este contexto, impossível não pensar a respeito da religiosidade desta população. Existiram trabalhos os quais visaram esclarecer as crianças em relação mais especificamente ao candomblé. Dentre estes trabalhos destacaram-se a apresentação da pesquisa de alguns alunos da sala a respeito das religiões dos orixás com uma maquete que apresentava o panorama histórico da religiosidade brasileira no contexto da colonização. Também se tem a viajem para comunidade quilombola de Castainho em Garanhuns – PE e a visita ao terreiro Santa Bárbara Xambá em Olinda – PE. Mesmo com todo o trabalho do projeto desenvolvido durante o primeiro semestre letivo de 2008, as religiões afrobrasileiras ainda permaneceram confinadas ao esquecimento. Durante as entrevistas (realizadas já no segundo semestre letivo de 2008), quando questionados sobre quais as religiões que sabiam existir, nenhuma criança mencionou espontaneamente o candomblé. As respostas ficaram em torno do catolicismo e do “evangélico” havendo citações também do espiritismo e do budismo. O candomblé apenas surgiu no discurso das crianças de forma estimulada e, em muito dos casos, no tempo pretérito como se não existisse mais nos dias atuais, apenas na época da escravidão. Explicando melhor: em uma das perguntas dizíamos o nome de algumas religiões não citadas pelos alunos para saber se conheciam e o que conheciam da religião. Logo, quando questionados se conheciam o candomblé a imensa maioria das crianças, quando não disseram que apenas ouviram falar, imediatamente lembraram desta religião. Geová: Certo. Eu vou te dizer uma outra religião que tu não falasse: o Candomblé? Luciano: Ah, me esqueci! A religião que a gente estudou. Geová: É... O que é que tú sabe dela? Luciano: É... Ela acredita em Deuses negros, fazem rituais só que quando a gente foi lá pra Castainho era Candomblé,só que eles não faziam ritual, Xambá fazia uma vez por semana e 7 cada mês tinha um Deus. O... o Deus era negro, tinha os deuses e cada um representava uma cor e um tipo de natureza do mar, de água, de raio, era assim. (Luciano, 10 anos, católico).6 Stephanie: Eu vou te perguntar agora sobre algumas religiões que tú não mencionou. E se tú não conhecer tú vai dizer assim: “não conheço” e se tú lembrar aí tú pode me explicar o que é que tú acha. A primeira é o candomblé. Conhece o candomblé? Verusca: Conheço. Stephanie: Pronto, aí o que é que tú entendes assim por candomblé? Verusca: O candomblé eles não adoram a Deus, a santos também não. Eles assim, na verdade não é nada assim sobre Deus. São mais sobre os africanos. Tem a mãe de santo, a água, o arco-íris, esses negócios. Stephanie: Não tem a bíblia? Verusca: Não Stephanie: Mas é uma religião? Verusca: É. (Verusca, evangélica: igreja batista). As entrevistas acima revelam então o conhecimento estimulado das religiões afrobrasileiras, mais especificamente do candomblé. Interessante perceber que tal conhecimento é expresso com certo teor didático demonstrando o aprendizado adquirido no projeto Brasilis e na maior parte dos casos o conhecimento apreendido não sofreu maiores interferências do pertencimento religioso das crianças. Verusca foi a única criança entrevistada a demonstrar em suas falas maiores evidências da influência de sua religião na forma de uma opinião valorada moralmente de maneira negativa sobre a religião dos orixás. Verusca: É porque o candomblé assim que é uma religião totalmente diferente. Seria uma religião que eu assim, não gosto muito porque isso aí é de... Todo mundo já sabe que faz mal assim né e tal, então não seria tão bom assim... Stephanie: Mas assim e sobre isso que tú falou de as pessoas acharem que é do mal. Tú acha um pouco isso ou não? Verusca: Pra mim assim na minha religião, no caso da minha religião acho que assim é um pouco de mal né, porque eles não acreditam em Deus né. Eles acreditam em outros deuses que eles assim às vezes inventam e tal, por exemplo, na época dos negros. Pra mim é do mal. (Verusca, evangélica: igreja batista). 6 Os fragmentos de entrevistas aqui reproduzidos e durante o restante do trabalho serão acompanhados de um nome fictício da criança entrevistada mais a idade e religião nos casos em que estas informações estiverem disponíveis. Os entrevistadores permanecem com os nomes inalterados. Quanto à religião, ela segue a autopercepção das crianças segundo as entrevistas e não a interpretação dos pesquisadores. 8 Por meio do projeto Brasilis, o candomblé no imaginário infantil deixa de ser “macumba”, aquela nefasta atitude mágico mística (ROSENFELD, 1993), para se tornar religião. A religião dos escravos africanos que vieram para o Brasil, a religião daqueles que ajudaram a construir nosso país, portanto, a religião que também construiu o Brasil. Diante deste quadro, ela é tão digna de respeito quanto as outras religiões. É um construto histórico merecedor de respeito e reconhecimento de sua diferença. O sucesso do projeto vai além do aprendizado sobre a formação do Brasil e a contribuição da cultura negra no período colonial. O projeto Brasilis é um projeto que ensina pelo menos a nível discursivo, um grande passo para o nível prático, a tolerância e o respeito. As crianças de maneira geral aprovaram o projeto, a maneira como foi conduzido, além de afirmarem ter gostado do que aprenderam. Elas dizem, em sua maioria, não ter problemas em fazer e manter amizades com pessoas de cor ou religião diferente, mesmo que sejam do candomblé. Todo este processo não anula antigas representações da “macumba”. Soma-se a elas. Aprender novas informações, inclusive mais politicamente corretas, não implica necessariamente em ignorar o conhecimento anterior, mas atualizá-lo, ampliá-lo, resignificá- lo. Trata-se de um capital a mais no acervo intelectual das crianças a ser utilizado nos contextos que assim o exigir. De qualquer maneira, crianças ainda pensam sobre “macumba” ainda que ela não seja mais candomblé. Episódio II: Cantando macumba lê lê!7 Nas sextas feiras, próximo do término das aulas, a professora sempre dispensava os alunos alguns minutos mais cedo para que pudessem brincar de algum jogo, ler algum livro, desenhar, enfim, realizar alguma atividade mais relaxante para extravasar o “stress” da semana. O jogo favorito dos meninos era banco imobiliário e eu sempre me juntava a eles no momento da brincadeira. Achava incrível a disposição e ânimo deles para jogar um jogo extremamente longo em quinze minutos. Era a vez de Tarcísio, um menino de 10 anos e simpático ao espiritismo jogar. Antes de ele lançar os dados um curioso ritual foi executado sendo acompanhado pelos outros jogadores. Tarcísio balançava os dados dentro das palmas das mãos fechadas as 7 Outro episódio reconstituído de maneira mais informal com base em meu diário de campo. O evento diz respeito a uma rodada do jogo banco imobiliário com os meninos da qual participei. Ocorreu em uma sexta feira, 15 minutos antes de a turma largar. 9 movimentando de um lado para o outro cantarolando “Macumba lê lê, macumba lê lê” repetidamente. Os outros meninos iniciaram movimentos de batida nos joelhos com as palmas das mãos e alguns outros fizeram uma encenação como se estivessem batendo tambores e também cantarolavam “Macumba lê lê”. No final, Tarcísio sopra as mãos e lança os dados sobre o tabuleiro de forma semelhante a um pai de santo quando faz o jogo de búzios. A “Macumba” estava feita. Não lembro se o resultado era o esperado por Tarcísio, todavia também não foi um mal resultado. A sorte foi lançada e a “macumba” foi bem sucedida. A encenação de tambores acompanhada da música “macumba lê lê”, vez por outra acontecia entre os meninos do 5º ano. A “macumba” é um ritual mágico que compreende a sorte ou o azar, o bem ou o mal. Este conteúdo não pertence à ação em si, mas ao sujeito que a pratica. Em linhas gerais, esta parece ser a maneira pela qual a “macumba” é compreendida entre os alunos do 5º ano da escola privada e é particularmente encenada pelos meninos. Quando se apropriam do termo em beneficio próprio para ganhar o jogo do banco imobiliário ou desejar alguma atitude da professora que possa beneficiá-los (como não passar tarefa de casa, por exemplo) a “macumba” é boa. Ela é má quando age em prol do malefício do outro. Tarcísio: Macumba pode ser uma coisa ruim ou uma coisa boa. Uma coisa ruim tipo... Araújo e eu nós fazemos futebol. Aí às vezes a gente faz uma macumba pro cara errar a falta ou se não o pênalti. Aí uma vez a gente fez e o cara pegou errado na bola e chutou lá pra fora. Geová: Aí essa macumba funcionou? Tarcísio: Funcionou (risos). Geová: Pro bem ou pro mal? Tarcísio: Pro bem, vamos dizer assim. Geová: E quando é pro mal? Tarcísio: Pro mal? Quando ela é pro mal, alguém pode se machucar ou pior. (Tarcísio, 10 anos, simpático ao espiritismo). Geová: E tipo em relação à macumba, por exemplo? Luciano: Macumba? (risos). Geová: É... Muitas vezes vocês se referiam às vezes a esse termo. 10 Luciano: Macumba é um tipo de ritual que fazem pra acontecer alguma coisa por meio de magia fazendo... É isso. Geová: Tú acha que é do bem ou do mal? Luciano: Eu acho que às vezes é pro bem, outras vezes pro mal. Geová: Mas tú acredita em macumba? Luciano: Eu acho que fazem, mas eu fazer, eu não faço não. (Luciano, 10 anos, católico). A “macumba” não perde seu significadomágico com fins malignos. Os seus significados são relativizados e acionados de acordo com o contexto em que as crianças se encontram. A “macumba”, para o bem ou para o mal, atua como operador lógico (MAGGIE, 1992; BARROS, 2000) a estabelecer relações entre eventos, pessoas e seus desejos (conscientes ou inconscientes) tal qual como acontece entre os Azande (EVANS- PRITCHARD, 1978). As crianças apreendem o mundo de maneira mais pragmática. Atribui-lhe significado em relação às evidências concretas e palpáveis. Diante disto todas as crianças afirmam não acreditar em magia ou bruxaria. Mesmo consumindo alguns objetos culturais com conteúdos relativos à magia como filmes no estilo Harry Potter, revistas Witch, desenhos tipo Naruto ou games como Senhor dos Anéis e Warcraft8, elas não creem em poderes sobrenaturais e manipulação do mundo por meio destes. A “macumba” é a categoria concreta pela qual a crença na magia ganha maior respaldo e evidência. Isso porque a “macumba” circula entre as esferas mágica e religiosa. Carrega historicamente um significado e uma referência mágica religiosa concreta, está interligada com crenças e rituais legitimados socialmente, ainda que hierarquicamente a margem das principais cosmovisões que orientam nosso plural sistema religioso9. 8 Os objetos culturais de teor mágico mencionados estão interrelacioandos com os produtos midiáticos da indústria cultural destinado ao público infanto-juvenil e que possuem alguma simbologia de caráter mágico. A reflexão em torno do conteúdo mágico religioso que tais objetos poderiam oferecer foram ponto de discussão levantados nas entrevistas semiestruturadas. As revistas Witch são destinadas às meninas e os personagens que alavancam o almanaque são bruxas que controlam elementos da natureza. Naruto é uma animação aos moldes orientais (anime) sobre ninjas possuidores de técnicas e poderes sobrenaturais. Warcraft é uma franquia de jogos eletrônicos que reproduzem um mundo em guerra povoado por magos, feiticeiros, cavaleiros, criaturas místicas, etc. Por fim Harry Potter e Senhor dos Anéis foram grandes sucessos cinematográficos que renderam os mais diversos produtos, todos fazendo menção ao conteúdo mágico destes filmes. 9 A crença na “macumba” e na magia existe e é legitima em nossa sociedade. Opera de diversas maneiras como nos demonstra a etnografia (RAFAEL, 2004; BARROS, 2000). Ainda assim, estão hierarquicamente as margens de nosso campo religioso, compreendido em sua pluralidade principalmente através do catolicismo, protestantismo e até mesmo do campo afrobrasileiro. 11 Da mesma forma que na teoria antropológica a categoria magia ganhou sentido apenas quando pensada em relação à categoria religião, a crença na “macumba” enquanto magia, para as crianças do 5º ano da escola particular, só existe como se preenchida de carga religiosa africana. Nem todas as crianças acreditam na “macumba”, no entanto, ela parece muito mais plausível do que simplesmente a magia ou a bruxaria dos filmes, revistas e games infanto-juvenis10. As crianças ainda que não questionem enfaticamente a existência ou não da “macumba”, ela pode existir ou ter existido, tem relação com a religião dos negros africanos escravos no Brasil. Não é superpoderes inimagináveis, é “um conjunto de diferentes atos que emanam de uma atitude mágico mística que remetem à liturgia e ao ritual das religiões originalmente africanas praticadas em solo brasileiro” (ROSENFELD, 1993, p. 49). Assim como os Zande, as crianças não teorizam demasiadamente sobre “macumba” (EVANS-PRITCHARD, 1978). Suas ações, encenações e discursos expressam esta categoria a partir dos sentimentos e experiências das situações concretas vivenciadas no cotidiano escolar, seja estas situações colocadas pelo projeto Brasilis, pelo jogo de banco imobiliário, ou mesmo, por uma partida de futebol como veremos no último episódio a seguir. Episódio III: Um macumbeiro no jogo de futebol11 Durante a hora do recreio, a maior parte dos meninos da turma do 5º ano da escola particular se encontra na quadra com o pessoal das outras turmas para jogar futebol. Teve- se conhecimento que em uma das partidas, uma criança invadiu o jogo atrapalhando a brincadeira e chutando a bola para longe. O que se seguiu foi que um grupo de crianças começou a xingá-lo de macumbeiro. Eis como o aluno Fernando, católico de 10 anos narra o caso: “Eu tava. Foi uma sexta feira, uma sexta feira que foi o filho do governador. A gente tava jogando, aí a bola saiu assim, aí ele foi chutou a bola lá para cima. Aí eu fale: ‘tio vem aqui vê tio’. Aí só que ele tava lá dentro pegando a bola para os meninos pequenininhos. Aí 10 Note-se que o tipo de magia ou bruxaria ilustrado por estes tipos de objetos culturais remete a um modelo mais ocidental. 11 Este episódio foi acompanhado e relatado pela pesquisadora Juliana Cíntia. Fizemos uso dele nas entrevistas semiestruturada para se trabalhar sobre o xingamento e a acusação de macumbeiro. No relato de Fernando, todos os nomes foram alterados e é apenas uma versão. De fato, o evento ocorreu como confirmado com os meninos através das entrevistas, mas não se sabe dos detalhes, pois há várias versões da história. O importante aqui, independente dos detalhes, é analisar a circunstância em que a acusação surgiu e as representações da “macumba” suscitadas pelo evento. 12 Sérgio, Sérgio tava no jogo também. Sérgio falou, não sei se foi ele que falou, chamou macumbeiro. Aí George né, ele joga sabe, ele já é uma pessoa que qualquer coisa ele ri... Aí: ‘macumbeiro!’, ficou rindo. Agora eu não lembro desse jogo não, macumbeiro, não... não sei se chamei, ou coisa assim... Sei não... O jogo de futebol emergiu tensões e conflitos entre os meninos as quais permitiram que a categoria “macumba” surgisse na lógica da ofensa e da desqualificação do indivíduo, reproduzindo assim velhos significados da categoria, atestando a sobrevivência destes no imaginário infantil. A respeito disto observemos a reflexão de Fernando. Geová: Mas por que tú acha que chamaram ele de macumbeiro? Fernando: Porque depois que os meninos souberam o que é macumbeiro, o que é macumba, disseram que é coisa ruim. Aí ficar chamando a pessoa de macumba não é coisa ruim? Aí, por exemplo, Luciano, ele desenha a pessoa. Aí com o corpo bem pequenininho assim e a cabeça bem grandão, aí ele fala queremos abusar essa pessoa aqui, aí é tanta coisa, macumbeiro aí é coisa ruim né, quer dizer coisa ruim macumbeiro. Aí eu acho que é isso. (Fernando, 10 anos, católico). Em momentos de irritação, parece que a uma das primeiras palavras que vêm à cabeça para o xingamento é o termo “macumbeiro”. O novo termo apreendido e ressignificado pelo projeto Brasilis ainda guarda sua lógica do desrespeito e da ofensa. Para corroborar com isso, Tarcísio nos diz: Tarcísio: Lembro... lembro, disso aí eu lembro. É que agente usa macumbeiro ou maconheiro pra ofender. Geová: Aí no caso dele... Como foi esse episódio? Relata aí porque eu não tô muito lembrado. Tarcísio: É que a gente ia bater uma falta aí chegou o cara lá e... tá chutou a bola. A gente começou a chamar ele de macumbeiro, maconheiro é... Aqueles negócios todos lá... Geová: Há entendi então o macumbeiro seria também uma forma de dizer, de ofender o outro... Tarcísio: É Geová: No sentido de coisa ruim. Mas surgiu do nada assim? Tarcísio: É. (Tarcísio, 10 anos, simpático ao espiritismo). 13 Macumbeiro e maconheiro são categorias enquadradas em uma mesma lógica pelas crianças. Por meio delas,acusam e ofendem o outro. Em ampla correspondência, ambas remetem a práticas não oficiais, degradantes e marginais. Diante disto, pelo o que já foi exposto até o presente momento, as crianças da escola particular contam com um acervo diversificado de representações da categoria “macumba” acionando os diferentes significados desta de acordo com aquilo que é exigido pelo contexto social. A vinculação religiosa delas, de maneira geral, parece pouco influir sobre suas percepções a respeito da “macumba”. Em contraposição, a escola e a política multicultural de suas atividades empreendida através de uma pedagógica da diferença parecem fornecer um capital sociocultural aos pequenos de modo a torná-los capazes de relativizar a “macumba” de maneira que ora manuseiem como magia boa ou má, ora como referência a religiosidade afrobrasileira. Considerações finais O caminho da “macumba” entre magia e religião é uma via de mão dupla. As crianças são atores sociais legítimos capazes de transitar entre uma esfera e outra através dos mais diversos mediadores sociais. As representações que fazem e operacionalizam da “macumba” são oriundas desses mediadores e (re) interpretadas de acordo com os espaços que estes pequenos sujeitos ocupam na sociedade. Mais do que teorizar, as crianças experimentam sentimentos e vivências concretas a respeito da “macumba”. As representações que constroem emergem a partir de elementos dispostos em seu cotidiano, sejam eles de ordem estética, sejam eles de ordem simbólica. O mundo é apreendido por elas de maneira pragmática. A “macumba” é o operador lógico pelo qual relações e posições sociais são expressas e julgadas pelas crianças. Por meio dela revelam tensões e conflitos nas redes de amizades, afastam e excluem os “outros” ou até mesmo fazem uso dela para explicar a sorte no alcance de objetivos almejados. As crianças da escola particular contam com um acervo mais diversificado e relativizador de suas representações da “macumba”. A escola parece ser um mediador importante neste sentido, pois por meio de uma política multicultural e de um projeto pedagógico de reconhecimento e respeito às diferenças, as crianças são capazes de desmistificar a religiosidade dos negros africanos escravos no Brasil. O projeto “Brasilis” concretiza a lei 10.639 de diretrizes e bases do Ministério da Educação na qual atesta a 14 obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira. Por meio deste projeto o candomblé deixa de ser uma nefasta atitude mágico mística intitulada de “macumba” para ser a religião africana de fundamental importância na formação de nosso país. Diante então do conjunto de informações apreendidas na escola, as crianças repensam a categoria “macumba” de modo a relativizá-la mais. Mesmo quando situada na esfera da magia, ela pode tanto fazer o mal quanto fazer o bem, é acionada de acordo com aquilo que é exigido pelo contexto social. A LDB 10.639 do MEC, se implementada por meio de um projeto pedagógico multidisciplinar, parece ser uma intervenção de extrema importância no intuito de se evitar práticas preconceituosas e de intolerância para com as religiões de matriz africana. A existência de uma pedagogia da diferença que desmistifique a relação entre “macumba” e religiões afrobrasileiras é essencial para a transformação da representação dessas religiões no imaginário infantil, tornando possível que as futuras gerações pelo menos sejam capazes de livremente executar um exercício de relativização da categoria “macumba”. Tal exercício parece ser a saída mais plausível para desmistificação da “macumba” na qualidade de magia destinada a fazer o mal, uma vez que, não acredito ser possível dissociar completamente este sentido da categoria no imaginário infantil e também no imaginário adulto. O presente trabalhou buscou, portanto, elucidar algumas das maneiras diversas pelas quais crianças de uma escola particular laica na cidade de Recife – PE trazem a tona as representações que possuem em seu imaginário das religiões de matriz africana, reproduzindo ou resignificando percepções mais usais da sociedade mais ampla. Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. AUGÉ, Marc. Magia. In: Enciclopédia Einaudi, n. 30. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1994. BARROS, Sulivan Charles. O medo do feitiço: relações entre magia e poder em Codó/ MA. Revista Múltipla, Brasília, ano 5, vol. 6, n. 9, dez. 2000. 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