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Cartografr as literáriÀs' Vitgítia KasttuP" Rcsumo: O texto realiza umã cartografia das pÌátioas de leitura realizadas na Oficina Li\Tação, localizada no BaiÌro de São Domingos, em Niterói,/Bmsil' com crianças de classe baixa- Fxamina as práticas da leitura em três niv€is: a relação com o dispositivo livro' a rclação com a rcde soçial na qual o li!'ro e o leitor estão inseridos e a relação do leitor consigo mesmo No tercero nivel as práticas de leitura envolvem a dimensão ética da cognição. O conceito de aplendizagem inventiva (V. Kastrup, 1998; 1999t 2001) é tomado como referência parâ o exame do mecanismo circular que se enconha presente na experiêícia coÌn a litelafum' que sugerc una concepção de uma ética do saber implicado, ao mesmo tempo que wÌìa ética da saidâ de si' A oficina Livração foi criada t€ndo em vistâ o desenvolvimento de praticas d€ aprendizagem inventiva, entendidâ como prccesso dç tansfoimação de si e do mundo (V' Kastrup, j999). A oficina de leitura constitui um dispositivo de aprendizagem inveníva' na medida em que o coítato com a lit€tatwa é ocasião pam experiências de pÍoblematização, como o estranhamento e a surpÍesa, distintas dâ experiência de ÌecogÍlção e que sãô essencÌ46 para o pÌocesso de aprendizagem inventiva. Neste sentido, a oficina de leitura é um dispositivo de produção de subjetividade, distitrto do dispositivo clinico, que reâliza praticâs que operam a transposição de limites taíto do si mesmo ja constituido quaíto do mundo habitado' As oficinas liteErias constituem espaços para praticar a leitura em grupo e compartilhar experiências produziús por textos literarios. Ahralmente existem modalidades de trabalho muito variadas no campo das oficinâs de leihrra. O ponto comum é que constihrem praticas coletivas de leitua em voz alta, expe meítândo fomas de ler distintâs da leitura individual e silenciosa, em dominio privado, que se iNtituiu como pratica predomilratrte a DaÍir do seculo XVllÌ (Chartier, 1996). A leitura em oficinas reune, num mesmo dispositivo, um enconBo com o li\ Ío. com as pessoas. e consigo mesmo ' O texto é resultado do pÍo.jeto iotegÌâdo de pesquisa 'Cognição e $bjetividâde a dimensão ética da invenção de si € do 1nundo", ap;iaão peto Cllpq. Agradeço aos alulìos Beâtriz Sanchovisch' Gustâvo Ferraz Kada Medeiros, l,auÍa Pozzânâ, Olíviâ Mâriúo e Tâís Baia que pâÍicipaÌarn dâ col€ta e análise dos dâdos " professom do InsrirrÌro de Psi€ologiâ € do culso de Pós-crdduação em Psicologia da uÍiversidtde FedeirÌ do Rio de JaneiÌo. E-mailì yika!úupí4ta$ÉjjroD A pratica da leitura é entendida, em primeiro lugar, como pratica cognitiva, no sentido definido por Francisco Varela (sid): conhecer: fazer = ser. A cognição é um fazer, uma prática, uma ação. Não agimos para conhecer ou conhecemos para agir. Conhecimento e açào são um mesmo processo. A ação cognitiva tem também uma dimensão ontológica, identifrcando o íazer e o ser. Ao agir, o sistema conhece e ao mesmo tempo produz-se, produzindo concomitantemente o próprio mundo. A ação responde pela invenção do sujeito e do objeto, do si e do mundo. A noção de pratica cognitiva não se confunde com o conceito behaviorisía de compoÍtamen to. O behavior é o compoÍâmento observável, raso e objetivo, controlado por estímulos do meio externo e, de acordo com estâ concepção ambientalista, a aprendizagem é um processo de solução de problemas e de adaptação ao meio ambiente. Para Varela, diferentemente, a ação não põe em relação um organismo e um ambiente dado, um sujeito e um objeto, mas os configura efetivamente. O caráter flüdo e inventivo da ação é explicado através de um modelo teórico que inclui na ação a invenção de problemas. O conceito de breakdown corresponde ao momento da invenção do problema, da experiência de problematização. Se o meio não é dado, e sim configurado, não há também problemas dados, mas sim inventados. O breakdown consiste numa quebra da continuidade da ação, numa espécie de vacúolo que inscreve a indeterminação no seio da ação. Experimenta-se uÍna descontinúdade, uma bifurcação, que reorienta seu curso. A continuidade da ação é fundada na história dos acoplamentos anteriores, mas a experiência presenle coloca problemas novos, que exigem sua reorganização. Os breakdowns não são exceções ou ruídos, mas a fonte da cogrrição concreta (F. Varela, l995, p.49). Em relação à ética, Varela (1992) se recusa a identificar seu problema àquele do juizo moral. A primeira e mais importânte modalidade de atitude ética revela-se como uma ação que não é mediada pela representação ou pela consciência reflexiva, mas caracteriza-se como rmta competência para responder ao breakdown, ao presente em sua imediatidade. A competência ética é antes d.e um know &ow do que de m know that (J . Dewey , 1922) . A ação não pode ser dita de um sujeito, pois não há um eu central que seja a fonte de ações deliberadas e voluntárias. O si mesmo é uma propriedade emergente de uma tempestade de processos cognitivos, fragmentados e impessoais. Trata-se de uma vacuidade, de um si mesmo virtual, de uma espécie de olho no coração da tempestade (F. Varela, E. Thompson e E. Rosch, 1993, J p.97). A tese de Varela é que "a competência ética é o progressivo conhecimento em primeira mão da virtualidade do si mesmo", encontrando-se ai "a essência da aprendizagem ética" (F. Varela, 1995, p.68). Dada a potência inventiva das experiências de breakdown, operadoras de bifurcações no fluxo cognitivo habitual, justifica-se a necessidade do desenvolvimento de práticas concretas de aprendizagem que mobilizem esta potência. A Oficina Liwação tomou a leitura como uma pmgmática cognitiva desta natureza. Seu objetivo é arcalização daleitura como trackìng, como atividade de rastreio, passando rente ao texto. Procura captar seus movimentos, ritmos, velocidades e sobretudo seus pontos de intensidade e de problematização. .Não visa prioritariamente a interpretação dos textos e a busca do significado, mas sim promover o encontro com o texto naquilo que ele tem de problemático, imediato e singular, escapando dos esquemas recognitivos. A leitura segue o movimento do texto, a partir do qual ocorre o enconffo com o inesperado, o estranho, a surpresa e todas as demais figuras da invenção de problemas. Os textos literários possuem notadamente uma potência de problematização. Segundo Deleuze (1987) a arte em geral, e a literatura em particular, produz experiências que transpõem os limites das formas subjetivas constituídas, acionando blocos de sensações, afectos e perceptos pre-subjetivos e impessoais. A literatura produz sensações que atravessam o vivido por um sujeito, mas que se encontram num plano distinto. Elas emergem da matéria sensivel da linguagem, das palavras, da sintaxe mas tocam o leitor como entidades imateriais, portando uma idéia, uma singularidade, um afecto, uma diferença. Podem não acionm diretamente a lembrança ou a imaginação, mas apenas capturar o leitor na experiência do presente vivo, em sua plena afirmação. E enquanto ultrapassa o plano do vivido que a literahrra revela sua potência de problematização. Em segrmdo lugar, as púticas de leitura são tomadas como práticas de si ou de atenção a si, tal como defrnidas por M. Foucault (1988, 1995), que as distingue das práticas de saber e das práticas de poder. Na obra de Foucault o conceito de pnítica é complexo, pois uma mesma prática é portadora de três dimensões: é ao mesmo tempo prática de saberl de poder e de si. O que justifica distinguir as três dimensões é que, enquanto as práticas de saber envolvem uma relação com as coisas e as púticas de poder uma relação com as pessoas, as práticas de si envolvem uma relação consigo mesmo. Em sua dimensão de púticas de si, as pníticas de leitura 4 encerram uma atenção ou cuidado de si, mas não constituem um culto ao eu ou um investimentono ego. Também não possuem um objetivo hermenêutico, de exegese do sujeito. Não são relativas à vida privada pois, embora pessoalmente escolhidas, recoÍrem a dispositivos constituidos e disponibilizados socialmente, sendo públicas, neste sentido. Também denominadas tecnologias de si, as pniticas de si "permitem aos indivíduos efetuar, : \1 :1 por conta própria ou com a ajuda de outÍos, certo número de operações sobre seu corpo e sua \. | , ,,, . alma, pensamentos, conduta ou qualquer forma de ser, obtendo assim uma transformação de si mesmos..." (M. Foucault, 1988, p.a8). Para Foucault elas possuem uma dimensão ética pois resultam de escolhas pessoais. Mas o sujeito não possui a condição de fundamento da ética, pois o que está em jogo é a invenção de si. E possível identificar ai uma reciprocidade, uma circularidade enffe a escolha das práticas de produção de si e a produção de si, em lugar de uma causalidade linear. O problema indica a presença de um mecanismo circularl. A proposta da oficina Livração foi experimentar concretamente este mecanismo circular. As crianças freqüentavam a oficina por escolha própria e sem intermediação dos pais. Tal escolha baseou-se em grande parte no conhecimento do casarão onde ela se situava, próximo de seu local de moradia. A hipótese é que a prática regular da leitura na oficina produz efeitos sobre seus leitores, afetando e reconfigurando a cognição e a subjetividade, inclusive ampliando o espectro envolvido na escolha de novas práticas. A escolha das práticas responderá pela invenção de si e também, de modo recíproco e indissociável, pela invenção de mundos para além dos limites dos mundos constituidos, expandindo-os e diversificando-os. Habitar o território da leitura e experimentar as bifurcações cognitivas que o texto litenírio possibilita é, nesta medida, ocasião para a problematização do si mesmo e do mundo conhecido, abrindo-os para transformações diversas e singulares. As práticas de leitura constituem, neste sentido, uma fonte da invenção de si e do mundo, ou seja, uma espécie de matéria prima do processo de invenção. Em ultima instância, a prática de atenção ao texto litenírio funciona como prática de atenção a si. O encontro com o texto naquilo que ele possui de potência de problematização, estranhamento ou surpresa, constitui um encontro com a virtualidade do si mesmo, com seu caúter processual que subjaz às formas já constituídas. Destacando a importância do desenvolvimento de práticas concretas de aprendizagem inventiva, o presente texto analisa a experiência desenvolvida na oficina Livração, que foi criada como um espaço de experimentação e desenvolvimento de práticas e estratégias de introdução e fortalecimento do vínculo das crianças com a leitura e com a literatura. A oficina funcionou de março de 2000 a julho de 2001 na Rua General Osório 59, no bairro de São Domingos, Niterói/Brasil. Sua proposta foi a realização de um trabalho comunitário, regular e gatuito, tendo como suporte a leitura de textos liteúrios. A ênfase na literatura - e não nos liwos em geral - demarcou seu afastamento de objetivos pedagógicos, tais como a melhora no desempenho escolar. Os encontros de leitura eram conduzidos por estudantes universitários, estagiários da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense. Os dois casarões: o cortiço e a oficina de leitura A amostra foi constituída poÌ um grupo regular de 15 crianças de idades entre 7 a 15 anos, e de um gnrpo flutuante, de freqüência eventual, que incluía crianças menores, inclusive não alfabetizadas. Quase todas eram de classe baixa e em sua maioria habitavam cortiços nos arredores, morando com famílias de diferentes configurações, quase sempre distintas da família nuclear. As rodas de leitura eram formadas por gnrpos heterogêneos quanto à idade e ao nível de escolaridade. A maior parte das crianças fieqüentava escolas públicas e vivia grande parte do tempo brincando na rua. Os encontros na oficina de leitura ocorriam duas vezes por semana, ao final da tarde, e tinham a duração de 1:30hs. As atividades eram gratuitas e destituidas de qualquer vínculo conffatual intermediado pelos pais, o que foi tomado como critério de freqüência por escolha pessoal. As crianças que freqüentavam a Oficina Liwação pertenciam, em sua maioria, a famílias situadas abaixo das chamadas famílias de baixa renda, pois muitas vezes os pais não possuíam qualquer renda ou emprego fixo, desenvolvendo eventualmente alguma atividade ilegal. A rigor não tinham acesso à moradia e por isto moravam em cotiços, onde não pagavam aluguel. A maior parte das crianças que freqüentava a oficina morava num antigo casarão do bairro, que era ocupado por 2l famílias, tânto internamente quanto em seu pátio externo. Cada família ocupava um cômodo, cujos limites eram precariamente estabelecidos por cortinas, placas de madeira, papelão ou plástico. Dentro dos apertados espaços das "casas" existiam alguns móveis, colchonetes, esteiras, roupas e, via de regra, fogão, geladeira e um aparelho de TV. Havia apenas um banheiro coletivo, mas nem todos os moradores tinham direito de utilizá-lo. 6 Percebido de fora, chamava a atenção a água que escorria permanentemente do quintal e alagava a calçada, exalando um forte cheiro de fossa. visto de dentro, percebia-se, em meio à escuridão, inúmeros olhos vigilantes e um grande burburinho de vozes e televisões ligadas. A aparência desta habitação coletiva era de extrema densidade, não apenas populacional mas, sobretudo, sensorial. A impressão era de uma atmosfera sufocante, densa, maciça e mesmo saturada, com ruidos constantes, odores fortes e pouco ar. Durante o periodo em que observamos o trabalho da oficina, todas as crianças manifestaram, em algum momento, o desejo, e mesmo uÌna expectativa, que parecia concreta, de se mudar do cortico. Através de algumas entrevistas pode ser constatado que nenhuma criança possuía liwos em casa, com exceção dos liwos didáticos, no caso das que freqüentavam a escola. A maioria de seus pais era de baixa escolaridade ou analfabeto. Apenas uma menina afirmou que seus pais gostavam de ler e efetivamente liam. poucos já haviam entrado numa biblioteca - com exceção, às vezes, da biblioteca da escola - ou nurna livraria para comprar um liwo, o que foi tomado como indício da distância existente entre o domínio cognitivo dessas crianças e a literatura. A ohcina Livração funcionava num antigo casarão situado bem próximo ao casarão onde morava a maioria das crianças. Apenas algumas casas separavam o casarão 27 e o casarão 59 da Rua General osório. Esta pequena distância guardava alguns indícios de continuidade. Sem qualquer apoio financeiro, a oficina ocupava uma pequena sala do casarão 59. Além da oficina de leitura, no espaço do casarão 59 eram desenvolvidas outras atividades como capoeira, teatro, dança e oficina de papel reciclado, gÍatuitas ou a baixo custo, além de festas e eventos dos quais participava a comunidade local. o fato da oficina situar-se no casarão 59 atraiu, desde o início, as crianças das redondezas paÌa os encontros de leitura. o território da oficina em nada lembrava uma escola. Havia uma sala de leitura composta de esteiras e almofadas espalhadas pelo chão e também uma pequena biblioteca, formada através de doações, cujos livros podiam ser manipulados livremente, antes e depois da roda de leitura. vigorava também um sistema de empréstimos, para que as crianças pudessem levar livros para casa, abrindo a possibilidade para a realização da leitura individual e silenciosa. Nesse espaço eram desenvolvidas rodas de leitura, em voz alta e em grupo, visando promover a introdução da pútica de leitwa de textos literários, mas evitando tomar como estratégia a leitura individual e silenciosa. O método da cartogralia: o paradoxo de começar pelo meio A elaboração do projetoLiwação precisava levar em conta o domínio cognitivo das crianças e o território existencial onde ele seria realizado. A cartografia do território surge como condição paÍa o trabalho, que seria orientado para a transposição de seus limites através da experiência com a literatuÍa. A cartografia não é um método que vise apresentar uma análise exaustiva ou totalizante, mas busca circunscrever S{_ P.!949*9S19!ivo de sentiCo, sistemas de signos (G. Deleuze, 1987) que não desenham uma identidade mas, ao contrario, permitem detectar os eleme!ìlgg iç.pJ.qcjgFgalidade do terri.tóriq. eln questão. Os sistemas de signop não são objetos ou características subjetivas do gnrpo, mas linhas ou forças em jog.o*{rg plocessg em curso. Para Deleuze e Guattari (1997) os signos situam-se nos limites do território observado. Aliás, qp]gplig território.não se defrng P-Q!,li!or!9s. espaciais, mas sim ser4i..o!icos'. E em sua condição de limite do território que eles devem ser analisados. Segundo Deleuze (1987) os sigrros atuam com violência pois forçam a pensar, instauram uma necessidade, põem problema e exigem sentido. E-lglta?9,qparte do território e das subjetividades mas constituetl também seus poros, os pontos através dos quais se realiza seu movimento e sua \lsli)ossivel cartografar um JqrrilóIio 4q65 de habitá-lo e a elaboração do projeto Livração começou por ai. O- trabalho vai acontecer nas bordas do território, buscando ultrapassar seus limites. A cartografia é uma metodologia processual, que exige a paradoxal tarefa de Eoqegg: pelo meio. Desde o início, tratou-se, na oficina Lirração, de um projeto- cartografia, elaborado e reelaborado na medida de mudanças observadas na configuração das forças presentes. Foi ele próprio aberto ao pÍesente e comportou ampla margem de risco e imprevisibilidade. Por exemplo, ele acolheu algtms campos temáticos imprevistos, como foi o caso da violência, que acabou assumindo um lugar central, em função da alta fiequência e forte recorrência. A violência foi uma grande caixa de ressonâncias, indicando uma imbricaçào especial naquele gnrpo entÍe os signos da violência e violência do signo. Acolher e integtar o tema da violência ao projeto significou utilizar uma semiótica potente no que diz respeito às õ práticas de transposição de limites. pois a experiência afectiva, de problematização, não é jamais abstrata. Enquanto experiência de transposição de limites, ela é acionada a partir dos limites existentes. Uma política para as práticas de leitura: a transposição de timites Dadas as peculiaridades do método da cartografia, foi estabelecida uma política prévra para o trabalho, definida como uma_!,o.liliçgi9._tt?.g$p.o_$lçã9 de limitgs tanto das formas cognitivo habitado pelas crianças. Ela foi desdobrada em três planos, que correspondem às três dimensões das práticas de leitura: a g53gjSt r_en:C9_smial. qgbEp som o Ji1,,ro e a rqlação consigo mesmo-. A primeira dimensão diz respeito à inclusão das crianças na rede social de livros e leitores. Neste plano, a política da oficina é, em primeiro lugar, afirmativa em relação à sua proposta: fazer ler ' Ela oferece a pútica da leitura, independente da demanda local e indiferenrc ao possível abismo entre os domínios cognitivos ou territórios existenciais das crianças que ela atende e a literatura. A pútica da leitura em roda constitui o elemento em torno do qual o trabalho se articula. A roda é uma espécie de rede heterogênea (8. Latour, 1994) composta em principio por pessoas e coisas - crianças, estagiários, livros, almofadas, estantes, esteiras, papéis, água filtrada, biscoito, etc. Aproximando a roda a uma rede busca-se apontar seu caráter de figura aberta, composta de linhas heterogêneas e nós de ligação. por sua vez, a roda de leitura encontra-se inserida numa rede mais ampla, pois dela participam outros vetores, liúas ou fluxos de diferentes espécies: econômicos, pedagógicos, políticos, sociais, biológicos e lingüísticos, dentrc outros. A investigação da relação daquele gnrpo de crianças com a leih'a não pode desconsiderar o fato de que a não participação do liwo e da literatura em seu domínio cognitivo é efeito de um processo de exclusão, produzido por sua situação sócio-econômica, pela politica de preços altos das editoras brasileiras, pela escassez de bibliotecas públicas, pelas politicas pedagógicas das escolas, por probremas ligados à saúde pública (necessidade de uso de óculos, por exemplo), apenas para citar alguns. por sua vez, a roda de leitura é um espaço de acolhimento da curiosidade das crianças em relação aos liwos e à leitura e oferece a oportunidade delas habitarem um território onde se realizam experiências com a literatua. 9 Emsegrmdolugarhouveumaopção,nãopelol iwoemsioupelalei turaemgeral ,mas pelos livros que veiculam textos literários. A oficina utilizava a liteútura infantil no sentido definido pela escritora Ana Maria Machadol "no teÍmo literatura infantil, o adjetivo não limita o sentido do substanttvo, como ocolre normalmente na língua mas, pelo conffário, o amplia, fazendo abranger um campo mais vasto. Por exemplo, lìteratura brasileira indica que, de toda a literatura, estamos nos referindo àquela criada por brasileiros, com exclusão das outras - é uma característica que resffinge o sentido do substantivo. No caso da ü/era tura infantì|, porém, referimo-nos àquela que pode ser lida tambëm por crianças. o que aumenta o campo semântico coberto pelo substantivo literatura, que normalmente não inclui a noção de que abarca obras ao alcance de leitores mais jovens. Não tem nada a ver com livros para crianças." (A' M. Machado, 1999, p.13). Os textos literários são dotados de uma potência inventiva pois ilcitam o pensamento, a inteligência e o espírito crítico' Escapando da linguagem em sua função utilitária e de comunicação, brincam com a sonoridade e beleza das palavras, colocando o leitor em contato com mundos inéditos. Neste sentido, produzem muitas vezes uma sensação de estranhamento e a invenção de problemas. Vale aqui a advertência da autora contra a apologia do objeto livro, em função da proliferação, nos dias atuais, do liwo-mercadoria, descartável como qualquer outro produto oferecido para consumo. os livros que veiculam textos literários também não devem ser confundidos com aqueles que consistem em manuais de regtas e que visam moldar comportamentos, veiculando uma moral conformista. Na contracoÍente' procede-se na oficina à leitura de textos literários, entendendo-a como prática de resistência tanto ao referido processo de exclusão quanto aos efeitos massificadores da mídia sobre a subjetividade. Para Machado o texto litenírio é subversivo na medida em que se apóia num convívio de significados múltiplos, ambiguidades, problematizações e, neste sentido, concoÍe para incorporar a multiplicidade no tecido cognitivo. 0 tercerro aspecto refere-se à relação consigo mesmo que a leitura possibilita' apontando o nível da subjetividade em que o trabalho deve operar. Usando uma expressão de René Schéref, trata-se do "nivel zero da subjetividade". O acento neste nivel significa trabalhar aquém das subjetividades constituidas, das formações subjetivas atuais As relaçôes que têm lugar na roda de leitura não se esgotâm no plano pessoal, nas relações intersubjetivas' na troca de informações ou de experiências vividas, mas ocoÍre no plano impessoal das 10 sensações, dos perceptos e dos afectos que o texto literário veicula. Para G. Deleuze e F. Guattari a obja d9 arte é um bloco de sensações, composto de perceptos e afectos. Afectos e percaptos são seres que existem em si e por si, sendo independentes daquele que os experimenta. Perceptos e afectos não Se confundem com percepçòes e sentìmentos pois excedem a plano do vivido, transbordando aquele que é por eles atravessadol. Neste sentido. eles transpõem os limitesda subjetividade historicamente constituida, e a literatura constitul um instrumento poderoso para a produção de tais experiências. Segundo G. Deleuze a literatura "só se instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventÍe, uma criança... As duas primeiras pessoas do singular não servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós wna terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (G. Deleuze, 1997, p-13). A literatura torce e retorce a linguagem, revirando-a até que se produzam fendas em sua dimensão de uso cotidiano e utiliLfu.io. A conseqüência é que a história pessoal e a vida do autor dão lugar ao que Deleuze denomina "uma vida", em sua dimensão de acontecimento singular, que transcende o eu. No contexto da oficina, a experiência com a literatura, visava acionar no leitor este plano impessoal, ao mesmo tempo comum e singular. O objetivo era fazer circular na roda de leitura 1>gs, e não informações ou opiniões. Não que não pudessem ser trocadas informações e opiniões, mas o que definia seu funcionamento e assegurava seu papel na produção da subjetividade eram as experiências que ocorriam num outro plano, distinto do da recognição. A leitura de textos literáÍios tinha como objetivo acionar o nível zero da subjetividade, que corresponde ao plano de produção de subjetividade (F. Guattari e S. Rolnik, 1986). Na roda de leitura buscar-se-ia experimentar as palavras para além de seu caráter utilitário e instrumentâ|. o que circularia não seria um sentido comum, o que reuniria não seria uma experiência de recognição, mas sim L9fP911Q1c1q impessoal e singular dos afectos produzidos pelo texto. Parece justo dizer que o encontro com o texto literário é o encontro com o impessoal. O impessoal escapa à apreensão pelo indivíduo, mas também não corrssponde a um plano intersubjetivo (R. Schérer, 2000). Algo deve circular na fina sintonia da roda de leitura, mas este algo não é um senso comum. Cada leitor, em sua atenção ao texto, é palco de sensações, de experiências de dessubjetivação que transpõem os limites impostos por sua história pessoal. l1 Em resumo, a política adotada visava incluir as crianças na rede, evitando utilizar a leitura como prática de busca de significação. O trabalho com a literatura seria realizado no nivel zero da subjetividade. Enfim, o que fundamentalmente distinguia a política deste trabalho comunitário da de outros, baseados numa política humanista ou filantrópica, é o fato dela operar aquém das formas subjetivas humanas ou infantis já constituídas. O problema da atenção ao texto e algumas estratégiâs A oficina Livração desenvolveu algumas estratégias para atrair a atenção das crianças para o texto literifuio, que constituía, num outro plano, a atenção a si. A atenção ao texto e a atenção a si não se confundem com a atenção ao mundo objetivo e ao mundo subjetivo, mas são ambas atenção ao plano impessoal subjacente. A maior parte dos estudos atuais em psicologra cognitiva define a atenção como um processo de tratamento de informações organizadas sob a forma de representações (J-F. Camus, 1996). A relação estreita entre atenção e representação deixa fora de suas análises o problema da atenção a algo que não I represçntaç_ão, mas ,,.probìematização, estranhamento, sensação impessoal, que é essencial ao processo de aprendizagem inventiva. Sem recusar os achados da psicologia cognitiva da atenção, pode-se concluir que ela aborda apenas uma das tendências do processo de atenção que, enquanto processo complexo, possui duas tendências divergentes. A primeira é orientada para a { rgcogniçio, ou seja, para as representações relativas tanto a objetos externos quanto àqueles ilj:otql " subjetivos. A segunda é orientada para a invç1r.ç_!o e inclinada para a apreensão dos .? intervalos entre uma rgpresentação e outÌa, para os movimentos, as gêneses, as problematizações. A primeira é voltada de modo preponderante para o mundo externo, mas inclina-se também para o mundo interior e subjetivo povoado de lembranças, preocupações, pensamentos, etc. Todavia, a atenção envolvida na leitura de um texto litenírio, que é também atenção a si, não corresponde àquela orientada para o plano pessoal e histórico da recognição. Ela se aproxima do que H. Bergson (1934) denomina atenção suplementar, que incide sobre o 1 , . fluxo movente da vida interior e é, em ultima instâlcia, atenção à duração. Ela apreende um I presente dotado de espessura temporal, que tÌaz o passado contraido e que se inclina para o futuro, numa espécie de continuidade indivisível. Para Bergson ela se distingue da atenção à vida pratica, que recorta formas claras e bem definidas e tem em vista a ação interessada. Esta .2 atenção normalmente prepondera sobre a atenção à duração, que resta uma tendência minoriúria. Bergson subliúa que a arte e a filosofia requerem um deslocamento da atenção à vida pnítica em direção à atenção à duraç!p,. No contexto da oficina, a atenção à leitura não se revelou espontâneâ, exigindo um esforço para a concentração no texto. De acordo com William James (1921, p.85) a atençào voluntária é sempre difïcil de ser sustentada. Propensa à distração, ela opera por puxões (saccades), por sucessivos esforços bruscos para retornar ao lugar. A presença de variações é fator importante de atração da atenção. Dirigindo-se à pedagogia, James destaca como regrà: todo tema deve ser apresentado de modo a revelar aspectos novos e pÍovocar novos problemas. Segundo o autor, o-_máximo de atenção ocorre quando há uma síntese entre conteúdos conhecidos e idéias novas. Parece justo afirmar que a atenção aos conteúdos coúecidos, às formas estabilizadas, muda de natureza quando se torna atenção aos problemas que desestabilizam tais formas e que se encontram na gênese de novas formações. Como ela não se orienta para as formas da recognição, não funciona como busca, mas antes como descoberta, acolhimento ou encontro imprevisível. Tomando como base a fenomenologia de Husserl, Depraz, Varela e Vermersch (2000), defendem que um processo de aprendizagem pode desenvolver este segundo tipo de atenção. As práticas de aprendizagem inventiva da oficina Livração buscaram exercitar esta tendência minoriúria, esta atenção fina e expansiva, através de algumas estratégias. I - Num primeiro momento busca-se reduzir a força da tendência recognitiva da atenção. A suspensão da atenção ao mundo extemo, tanto fisico quanto social, não é filail, em se tratando da orientação marcante da atenção, naturalmente interessada no mundo, nas coisas e nas pessoas. Uma de suas dificuldades advém da redução do controle das situações da vida prática e exige muitas vezes uma relação de confiança no trabalho e nas pessoas presentes. A redução da atenção à vida prática inclui também o desvio da atenção ao mundo interno das preocupações, pensamentos, lembranças e intenções, que assaltam a consciência na vida cotidiana. Mâs o contâto com a.litoatqra exige um movimento de retirada de si, de saída de si, para que Írs experiências de problematização possam ter lugar. l ìt i l l3 O inicio do encontro é marcado por uma atmosfera de acolhimento e de criação de condições para redução de pressões cotidianas como agitação, fome e sede, que saturam a cognição. Uma conversa informal, sem abordar um tema mobilizador, comer biscoitos, beber água e recostar nas almofadas visam produzir uma sensação de pausa, relaxamento e descanso. Aos poucos é buscada a suspensão literal das atividades motoras. O silêncio é uma regra básica para a leitura começar. O silêncio visa instalar um intervalo no burburinho cotidiano, esvaziando o ruído de fundo, constituindo condição para a leitura e encontrocom o texto. A ideia é que o*.!!1to precisa respirar para ganhar vi-djr. Sua materialidade. e as sensações que venha a produzir precisam compor com o silêncio. O encontro com o texto não acontece num ambiente de saturação sensorial, em meio à conversa e movimentos corporais. A pessoa que coordena o grupo tem como primeira tarefa assegurar que o trabalho aconteça. 2- Para atrair a atenção para o texto, a estÍatégia é chamar a atenção para um objeto percebido, que no caso era o livro, enquanto objeto concreto. A atração da atenção vai dos elementos mais dirctâmente percebidos e concretos aos menos diretamente percebidos. Nesta direção, I liwo comparece como o primeiro atrator, seguindo-se da leitura em voz alta e só depois vem a ejlpeÌiência literária. O inicio da atividade se dá com a atenção ao livro e se efetiva integËlÌnente com a experiência liteníLria, a leitura funcionando como una prática de mediaçào. Isto significa que a retimda de si e do mundo só produz efeitos de invenção de si e do mundo quando ela dá lugar à experiência com o impessoal do texto. A mera desatenção à vida cotidiana, ao mundo objetivo e subjetivo, não possui um valor em si no processo de aprendizagem inventiva. O importante na experiência com o texto literário é que ele força uma outra atenção, produzindo uma bifurcação dos estados atencionais, do pessoal ao impessoal. É essencial o preparo cuidadoso da atividade de leitura a ser desenvolvida a cada encontro. Após a seleção previa do texto, quem conduz a roda de leitura deve conhecêlo bem para explorar seus pontos fortes, brincar, improvisar, comentar, enfim, produzir um campo de variações em torno de certos momentos. A leitura deve ser realizada como trackinS, 3omo habilidade de rastreio. A leitura em voz alta deve ser ela própria uma leitura atenta, com retirada de si, sem ser completamente tomada pela intenção de ler para alguém. pla deve expressar proximidade com o texto, intimidade. Ainda que seja uma leitura em voz alta para um grupo de crianças, o que exige uma atenção ao que se passa em situação coletiva (conversas J. t4 paralelas, buúuriúo, evasão da atenção de alguns, etc) ela não pode jamais se esgotar nÌrÍrìa leitura para outrem. A idéia é que na leitura em voz alta a experiência plena com o vivo do t€xto gera contagio na roda. Manter a atenção ao texto durante a leitura é o mais dificil. A concentração é na maioria das vezes bastante fugaz, podendo perder-se a qualquer momento. A estratégia é, em primeiro lugar, Le-?lizar a leitura em roda, em situação coletiva. A atenção ao texto e a atenção a si, que ocorre em cada leitor, é reforçada pela atenção dos outros participantes da roda. A roda, como rede de múltiplos fios, torna a relação com o texto mais forte e densa, compensando em grande medida a tendência da atenção a voltar-se para o mundo pessoal, objetivo e subjetivo. A atenção da criança ao texto e a atenção ao si virnral é reforçada quando esta mesma modalidade de atenção é experimentada por outras crianças ou adultos. A escolha do texto revela-se, mais uma vez, de extrema importância. O texto deve conter um vocabuliário relativamente conhecido e abordar uma temática presente no território existencial. Para fazer acontecer a experiência literária inédita e surpÍeendente é preciso plantá-la no seio de um plano coletivo de sentido, constituído historicamente. O encontro com o texto é o objetivo maior. A experiência liteúria não se explica apenas pelas propriedades do texto nem somente pelo interesse ou atenção do leitor. E numa sintonia entre a atitude de abeúrra do leitor para acolhê-la e as forças presentes no próprio texto que ela se realiza. Por um lado, a atenção desprende-se de sua atividade de busca intencional e é substituida por uma oufa. Não basta a mera desatenção à vida prática. A atitude de buscar deve ser substituída,pela atitude de descobrir, de encontrar. Tal atitude cognitiva expressa-se como uma disponibilidade para o encontro, como ì.rÍna abertura para o presente imediato, que se furta à recognição, para o acolhimento do impessoal, que surpreende, afecta e põe problema. Revela-se como uma Ìeceptividade ativa, mais do que uma passividade. Por outro lado, o texto deve ser potente para ativar a experiência de encontro, que possui a forma de um circulo criador. Dada a atenção, o próprio texto que faz sua parte. Ele puxa, funcionando como Ìun atrator e, para o sujeito, tÍata-se de uma entrega, de urn deixar-se levar pela história, pelo ritmo, pela matéria sonora. Pela ponta de presente, o texto puxa um movimento de leitura como tracking, como rastreio, onde a atenção funciona rente ao texto. 4- i5 Os signos da viotência e a úolência do signo Como a oficina Lilração não aplicou um projeto pré-existente, as primeiras atividades de leitura utilizaram textos que não obedeceram a um critério temático preciso, mas apenas ao critério de ser um livro considerado interessante pelos estagiários que realizavam a oficina, muitas vezes lido na sua própria infância. Notou-se que a atitude inicial das crianças frente aos livros e à leitura foi antes de curiosidade e aproximação que de resistência e afastamento. Lançavam-se sobre os livros, manipulando-os, muitas vezes de modo disperso e aleatório. Neste aspecto, o livro não surgiu como um obstáculo, mas como um grande atrator para os encontros de leitura. Já durante a fase inicial do trabalho foram diversas as situações em que a experiência impessoal da arte esteve presente em sua plenitude. Em tais situações foi possivel identificar o que denominamos acima de mudança de plano, ou seja, elas atestam a passagem do plano da recognição de formas e significados para o plano da problematização, onde o encontro com o texto se faz através de afectos e devires. Um exemplo foi o efeito gerado pelo livro O equilibrisla de Fernanda Lopes de Almeida. O texto narra a história de uma personagem que não possuía uma vida banal, t"açada de antemão e que vai aos poucos desenhando e inventando o seu mundo até que, num certo momento, não sabe onde está o chão. Como havia um único exemplar do livro, as crianças deitaram-se a sua volta, observando atentamente as ilustrações. Como a própria distribuição do texto na página e as imagens brincavam com o tema do equilíbrio, não obedecendo à posição habitual para leitura, o liwo foi sendo girado aos poucos, para que a percepção pudesse seguir explorando o movimento do texto e das figuras, em seus diversos ângulos. Subitamente, uma cÍiança sentiu, ela própria, a quebra do equilíbrio, comentando a veÍigem gerada pela leitura, levantando-se e rodando em torno do livro, potencializando assim a sensação. Neste caso, o envolvimento com o texto pÍoduziu um movimento da subjetividade, ou antes um movimento- subjetividadea, que correspondeu à referida mudança de plano, cujos efeitos se estenderam e foram observados no movimento corporal. ^ | Outra situação a ser destacada ocorreu com a leitur a de 0 barbeiro e o coronel, de Ana ìi'{,' Maria Machado. Trata-se de texto em prosa, mas que brinca com a Íepetição, o ritmo e a rima das palavras, imprimindo musicalidade à leitura. O conteúdo da história é performatizado pelo estilo da narrativa. A história é de um barbeiro que, para se safar de uma encÍenca, precisava i6 sabeÍ quantos fios de cabelo havia na cabeça do coronel. O barbeiro sai aflito à procura de alguém que lhe dê a resposta, mas as pessoas que encontÍa não fazem senão aumentar, num movimento exponencial, o problema dos limites entre o contável e o inconúvel, o finito e o infinito. Multiplicam-se as perguntas: quantos peixes existem no mar? Quantas estrelas existem no céu? Quantos pensamentos podemos pensar? A leitura foi Íepetida e o grande entusiasmo gerado pelo pÌoblema do barbeiro, que ao invés de se fechar numa solução, ressurgia sempre mais emais potencializado, foi ainda maior na releitura e, ao final, a história foi aplaudida. Registramos o comenúrio dos estagiários: "Hoje 'rolou"'. Rolou quer dizer aconteceu, ocorreu a mudança de plano. Com a continuidade dos encontros pode ser observado que muitos textos, por mais inocentes, e mesmo dotados de poesia e lirismo, evocavam, por parte das crianças, associações e comenúrios acerca de situações vividas marcadas por uma extrema violência. Por exemplo, o livro Uma pena, uma saudade, de Francisca Nóbrega contava a história de uma relação de amizade muito delicada entre uma menina e um colibri. Sua leitura evocou numa das meninas a lembrança de sua amizade por sua cachorra, que havia sido brutalmente assassinada em sua pÍesença, quando dois homens invadiram sua casa em busca de um relógio roubado. Acrescentou, ao final do relato: "Não sei prá que ficar lembrando. Lembrar é ruim". O fato e que as crianças foram trazendo fieqüentemente elementos dessa natureza para a roda, suscitados pelos textos lidos. Foram também incontáveis as situações em que situações de violência invadiram o trabalho da oficina. Brigas de todos os tipos, agressões verbais, mordidas, sapatadas, lutas corporais e discussões, envolvendo crianças e estagiários, foram presenciadas muitas vezes. Além disso, as próprias idas aos cortiços, no intuito de chamar uma criança ou pedir permissão a alguns pais, foram determinantes para a constatação de que aquelas crianças viviam numa atmosfera de violàrcia marcante. As crianças gostavam tanto das almofadas coloridas da oficina que uma das meninas sugeriu um dia: "Vocês deviam, além de fazer empréstimo de livros, fazer também empréstimo de almofadâs. Então ficou decidido que haveria um projeto dedicado às almofadas. O liwo Feito à mão de Lígia Bojunga foi escolhido para servir de base para o projeto, que incluiria a confecção de almofadas, uma para cada membrc do grupo. Novos elementos são incorporados e a rede se estende. Pessoas doam tecidos, um leva a linha, outro a agulha, outros dão o r:] r . . i l:rY t'7 enchimento e lá vai o projeto, batizado de "Feito à mão". o texto de Ligia Bojunga fala de sua experiência de criança, quando decide ser escritora brincando ao lado da mãe, enquanto estâ costutava. A autora naÍTa que criou suas primeiras histórias a partir das brincadeiras com os botões que ..moravam,'na caixa de costura de sua mãe e descreve o processo de criação' envolvido tanto no ato de escrever quanto no de ler histórias, como uma relação com algo que existe fora de si, como um simples botão. Conforme a tônica do texto' a atmosfera da leitura combinava com a atmosfera do feito à mão, onde se observa uma lentificação do tempo, um tempo desacelerado, tempo do cuidado (V. Kastrup,2000). O trabalho manual e delicado da costura era desenvolvido com capricho. Ao final do trabalho, as crianças levaram as almofadas para casa. Nos encontros subseqüentes freqüentemente chegavam pedidos de ajuda para algum conseÍto das almofadas, como uma fita solta ou um pedaço de tecido descosturado, demonstrando um grande zelo pelo trabalho realizado. Uma grande delicadeza marcava a relação das crianças com as almofadas. Até que um dia uma cÍiança contou, um tanto constrangida, que não poderia mais trazer a almofada para a oficina, pois ela estava manchada de sangue. Perguntada pelo motivo, relatou que seu tio havia sido espancado no fim de semana na praça em frente, quando saía de um baile funk. A almofada foi então utilizada para acomodá-lo, já ensangüentado. Mais uma vez um signo da violência cortou o espaço da oficina A presença constante das situações de violência conduziu à elaboração de um projeto de leitura d9 textos relativos ao tema da rua, para serem lidos numa série de encontros , , consecutivos. A crônica vista cansada, de otto Lara Resende produziu um dos mais fortes ï" efeitos observados durante todo este período do trabalho, devendo ser destacado o fato de que não se trata, em princípio, de um texto dirigido para crianças. A crônica discorre sobre o fato de não enxergarmos coiSas que vemos diariamente. Começa fazendo uma critica ao escntor ameriCano Hemingway, para quem deveríamos ver as coisaS como se fosse pela última vez O autor considera tal idéia deprimente e desesperada e, em oposição, defende que deveríamos olhar as coisas como se fosse pela primeira vez. A crônica relata a mone de um poneiro que, após trinta e dois anos de trabalho no mesmo edificio comercial, só foi notado após sua morte. Termina dizendo que a criança, como o poeta, vê o que o adulto normalmente não vê. Antes de reiniciar a leitura, onde cada um leria um trecho, foi perguntado: "Por que o título é vista cansada?" Falou-se da pressa, da rotina e do hábito, que impedem a percepção de muitas l8 coisas. Falou-se também que teÍ vista cansada e usar óculos é "coisa de velho". Foi quando surgiu o comentário de uma menina: "Aqui nós envelhecemos muito cedo. Temos que fazer vista grossa para muitas coisas que acontecem aqui". Seguiu-se então uma seqüência inintemrpta de histórias terriveis. Voltou o caso do tiro na cachorra, que puxou a questão das fieqüentes invasões que ocorrem no cortiço, que lembrou outro cão assassinado, que fez um gancho com o assassinato do pai de uma das meninas, quando estava preso, que foi associado à violência nas prisões brasileiras, que foi o elo para comentaÍ que elas já tinham visto muita gente morta, o homem esquartejado perto do jomaleiro, a mulher gorda encontrada morta na caixa-d'água do cortiço, que trouxe a lembrança do rosto inchado, preto e irrecoúecível do pat enforcado na prisão, que fez a filha ficar tão nervosa na hora que viu que pensou que fosse morïer, que saiu correndo e quase foi atropelada. Cenas da mais crua violência, que tocaÍam e desconcertarâm todos nós. A crônica de Lara Resende, produzindo um efeito inesperado, não nos aproximou das crianças numa suposta tÍoca de experiências. Não saímos dali apenas mats bem informados sobre sua dura realidade. Deixamos a oficina pensativos e assustados, como quem lê um livro ou assiste um itlme de terror. Ao final do encontro, uma menina disse: "Queria escrever um livro. Ele ia se chamar Casarão 27". Cartografando os diferentes sistemas de signos, observou-se que os signos da violência são caracterizados por um tempo que é instaurador de descontinuidade. Descontinuidade que é cortante, abrupta e inesperada. O efeito subjetivo gerado é sobretudo o medo, pois são signos assustadores, fiente aos quais experimenta-se também a impotência de contê-los, restando como única saída evitar deparar-se com eles. Pode-se perceber também que, embora extremamente presentes no cotidiano, os signos da violência jamais são banais ou indiferentes. São sobretudo duros e cortantes, respondendo pela sensação de densidade e extrema saturação do território. Entretanto, a violência experimentada na leitura da crônica de Lara Resende não se limitou a produzir na menina o sentimento de medo, nem apenas a sensação de saturação. Ela produziu um desejo de escrever sobre a o casarão 2J. Embora seja precitado avaliar sua concretização futura, parece justo observar aí indícios do que denominamos de transposição dos limites das formas subjetivas e do mundo. Notamos uma bifurcação no fluxo cognitivo habitual. A violência experimentada não produziu acuo, mas um desejo de criação e a inclinação a-uma mudança no si e no mundo. t9 Um evento rnteressante ocorreu também a partir da poesia t,-ïo fixo, de lose ae 4l[ Arimathéia. Trata-se de uma poesia concreta, que expressa o mundo engolido pela fome, Sua leitqra na roda levou um menino, ao fmal, a levantal-Se e plantaÍ uma bananeira, virando-se de cabeça para baixo e equilibrando.se nas mãos com grande destreza, buscando realizar, com seu próprio corpo,o eixo fixo de que falava a poesia. Situações como esta revelam um encontro com o texto que ultrapassa o limite do entendimento do significado das palavras. A linguagem liteúria aciona devires, conduzindo o leitor a uma experiência de contágio pelo texto. Nestes momentos pudemos identificar uma experiência liteúria plena, onde se transpõem os limites da recognição e a leitura mergulha o leitor no devir do texto. Mais uma vez, a experiência com a literatuÍa impulsionou um movimgnto corpOral, naquele momento o corpo assumlu urna atitude estética, criadora, perform alizando a idéia do texto. Parece possível afirmar que nas situações descritas, o texto introduziu uma diferença, gerando uma bifi.gcação no fluxo cognitivo habitual. Este tipo de experiência, possibilitada pela liteíatura, foi tomada como produtora de efeitos subjetivos, atestando, por seu caráter imediato, inesperado e surpreendente, a ausência do controle de um si mesmo. Por outro lado, sugerem um efeito de inygnçi,o dg. mundo, pois a experiência transborda os limites do mundo conhecido, apontando para sua abertura. Nesta medida, deve-se considerar que os signos da arte retroagem sobre os demais sistemas de signos, transpondo limites e reconfigurando o si e o mundo. O método da cartografia detectou a pÍesença de diferentes sistemas de signos ou )-+ '""-i Ío cj 'l semióticas - do capital, da sexualidade, da rua e da violência - que enceÌravam diferentes modalidades de tempo, produziam diferentes efeitos sobre a subjetividade e portavam sentidos diversos, apÍesentando também diversos cruzamentos e composições. No caso em questão, os signos da violência foram aqueles que melhor encarnaram a violência do signo, sua potência de pôr problema e fazer pensar. Concluiu-se que é preciso distinguir dois tipos de violência: uma violência que destrói e uma violência que cria, que faz criar. A violência destrutiva gera medo e assusta,. produzindo paralisia e fechamento da cognição para a problematização. Sua recorrência responde pela saturação e asfixia da subjetividade, despotencializando o processo de invenção de si e do mundo singulares e diversificados. PoÍ outro lado, a violência criadora produz abertura do sistema cognitivo para i , 20 seguir as bifurcações que nele acontecem. Neste caso, os signos são violentos no sentido em que, surpreendendo, forçam a subjetividade, fazem pensar diferentemente, impulsionam a ação e acionam desejos. Os efeitos são distintos quando a violência e experimentada como susto ou como surpresa. A violência destrutiva, ao gerar susto, atua como força centripeta, fechando os limites da subjetividade e do teritório, enquanto a violência criadora, ao produzir surpresa, atua como força centrífug4 concorrendo para a transposição dos limites atuais. O que atesta a complexidade do tema é que ambas atingem a subjetividade de maneira inesperada. A primeira é seguida de uma conduta de evitâção, enquanto a segunda faz apelo a um deixar-se levar, a uma entrega, pois puxa e conduz por caminhos inéditos. A dimensão ética da aprendizagem inventiva O desenvolvimento e a continuidade do trabalho ao longo de 18 meses demonstraram que a oficina de leitura constitui um dispositivo de aprendizagem inventiva ao utilizar a leitura de textos literários como ocasião para a emergência de experiências de problematização. As praticas de leitura em roda são instrumentos exercitam a atenção ao campo processual subjacente às formas subjetivas e ao mundo constituído, funcionando como práticas que favorecem a transposição dos limites do si e do mundo constituído, abrindo para novas possibilidades. Pode ser observado que a situação de leitura em roda tem efeito positivo, mas algumas vezes acentua ainda mais a dificuldade da concentração no texto, pois a fuga da atenção de uma criança interfere diretamente e ocasiona muitas vezes a perda de sintonia de todo o grupo. Uma das maiores dificuldades diz respeito ao tempo de espera da experiência literária. Freqüentemente o texto não captura a atenção imediatamente, mobilizando afectos e acionando devires. Concluiu-se que lg"r.g.^.ji9, entÌetanto, sustentar a leitura mesmo sem a experiência afectiva, preparando e aguardando seu acontecimento. A naturezâ do texto e sua potência de pôr problemas no interior de um plano coletivo de sentido, bem como a conduçào da leitura tem papel importante para que esta não fique presa ao plano da recognição. A Oficina Liwação colocou as crianças em contato regular e sistemático com livros que veiculam textos literáriÕs, o que caracteriza este período como dando lugar a um processo de aprendizagem inventiva. Pode ser confirmado que a experiência do presente imediato, que não se confunde com a experiência recognitiva, de representação, é largamente facilitada por um l l processo de aprendizagem, conforme tem sido ouffas vezes destacado (H. Dreyfus,l992; V. Kastrup, 2000, 2001). Além de sublinhar que o trabalho teve o sentido de criar possibilidades para a inclusão das crianças na rede social de liwos e leitores, é justo apontar que a oficina de leitura possibilitou bons encontros entre crianças e liwos. A pniLtica da leitura na oficina revelou-se uma pção críticq no sentido em que ultrapassa os limites do si mesmo e do mundo, surgindo no espaço entre dois limites ou constrangimentos. P.or um lado, é limitada pela história de aprendizagem, dos acoplamentos, que configuram esquemas de percepção e de ação. Por outro, está sujeita aos constrangimentos do presente. Este duplo limite é constituído num movimento circular, onde um constÍange o outro, ao mesmo tempo em que opera sua ultrapassagem. A invenção de problemas deve ser entendida neste círculo cnador. Q problema não está no mundo, ele não é objetivo. Também não está no I sujeito. Ele é configurado numa zona de encontro, no cíÌmpo movente da experiência de problematização. Marcada pela circularidade, a aprendizagem gaúa nuances de auto-produção. As noções de circularidade e auto-produção desdobram-se para o campo da ética. Varela (1995) insiste na importância da abertura para o presente, para a imediatidade, como aspecto essencial para o entendimento da competência ética. A aberflra para o presente imediato deve ser tomada como abertura paÌa a colocação do problema enquanto pÍoblema, enquanto algo quc não está solucionado, mas que é exigente de solução. A ação competente é aberta para a problematização. A abertura para a imediatidade se faz com base numa história de acoplamentos, num conhecimento corporificado. E na tensão entre passado e presente, entre história e invenção, que o problema deve ser entendido. A freqüência das crianças à oficina permitiu a imersão num contexto e a habitação de um território de leitura. No entânto, não seria correto dizer que a aprendizagem que teve lugar produziu um saber sobre a literatura. Em seu sentido mais importante, as púticas de leitura parecem ter produzido uma atitude em relação à leitura e à literatura, que o termo grego ethos serve para designar. Pois q erÀoglencerra o duplo senrido de costume e de valor. O primeiro \.<1.' designa re._gularidade, estabilidade, permanênci4; o se-gundo é um sentido apreciativo, dgsignando um4_i4çtinaç!9. Estes dois sentidos configuram uma maneira de ser e de viveÌ. O encontro com os textos liteúrios possibilitou que as crianças experimentassem o que Varela (1995, p. 60) denomina "excesso de significação", escapando dos limites de sua constituição 22 histórica. A atitude em relação à leitura e à literatura, tanto no que diz respeito ao costume de pÍaticálas quanto no que conceme ao valor que lhes é atribuído, ambos gerados no processo de aprendizagem inventiva, diz respeito a uma certa relação da cognição com o presente em sua condição de abertura dos limites da história. Vale a citação de Varela: "Seja qual for a coisa quese encontre, deve ser valorizada de um ou outro modo (agraúlvel, desagradrivel, indiferente) e ter um efeito qualquer (atração, recusa, neutralidade). Esta valorização de fundo é inseparável do modo como o evento do acoplamento depara com uma unidade perceptivo-motoÍa funcionante, e suscita uma intenÇão (sentia-me tentado a dizer'desejo'), a qualidade única da cognição viva" (idem, ibidem). É imponante notar que Varela identifica neste ponto, que denominamos de dimensão ética, uÍn aspecto cognitivo, definindo-a como própria da cogtição viva. A cognição surge então ampliada, incluindo a dimensão ética, tomando patente sua aproximação com a noção de subjetividade. O problema do excesso de sigtificação Íeencontra aquele da vacuidade do si mesmo. A escolha das crianças pelas práticas de leitura não foi fruto de uma decisão consciente, mas se antecipa ao si e à deliberação da vontade. Os dados indicam que as crianças foram levadas a freqüentar a oficina pela proximidade de sua moradia e também pela sua localização no Casarão 57,já conhecido por suas atividades junto à comunidade local. Por outro lado, habitando aquele território e praticando a leitura em roda, foram palco de experiências de dessubjetivação que expandiram os limites do si e do domínio cognitivo anteriormente constituído. As experiências no plano impessoal reconfiguram e expandiram em seguida o campo das escolhas, numa circularidade inventiva. Recusa-se assim o raciocinro determinista e da causalidade linear. Não há um objeto que ocupe o lugar de causa do processo *=-- €,subjetivaçlo. Há apenas práticas que se realizam e que têm a potência de transpor limites, mas seus efeitos são envoltos num véu, furtândo-se à previsibilidade. As pÍáticas de leitura da Oficina Livração devem ser compreendidas no exato sentido,' de práticas de si ou de cuidado de si, que para Foucault (1995) inclui também o cuidado dos outros. Um aspecto desta natureza foi o fato contado pelas crianças de que elas realizavam rodas de leitura nos cortiços, levando a leitura às crianças menoÍes e utilizando livros tomados emprestados na oficina. Estes movimentos de irradiação revelaram desdobramentos da Oficina Livração para além de seu espaço, mas sua continuidade e seus efeitos exigiriam um acompanhamento posterior do trabalho. Em realidade, a na,tüÍeza experimental do trabalho 23 realizado exige prudência quanto uma possivel generalização das estratégias de aproximação das crianças com a literatura nos dias atuais. O que parece, entretanto, consistente com a observação regular do trabalho da oficina é que a prática da leitura de textos literários tornou-se familiar para as crianças. Ao mesmo tempo, estas foram permanentemente confrontadas com a força de problematização dos signos da arte. o trabalho da oficina Liwação indica uma direção ético-política para os trabalhos comunirários. Ele pode ser dito uma 3,gao g9111g_4.i!í.qìa, mas deve-se destacar que a ação foi aí uma ação crítica, num contínuo processo de superação de limites. A crítica surge no bojo da ação e foí realuada aÍavés de práticas concretas, e não pela reflexão ou fazendo apelo a uma consciência abstrata e universal como instância crítica. Mais uma vez, a circulmidade esteve pÍesente. A escolha das práticas de leinua não parece caber na fórmula "eu escolho". Pode-se dizer que as próprias crianças foram escolhidas quando a oficina foi instalada ao lado de onde moravam, mas mantém-se o ponto de interrogação no meio do círcúo e o tema da escolha parece explicitar-se pela formulação indeterminada do "escolhe-se". O "comum" da palawa comunitário surge como o plano impessoal, a abertura para a diferença. Se há uma ética que daí pode ser extraída ela deve ser chamada de uma ética do fazer implicado, resultado da habitação de um território. A ética revela-se também - e este é o ponto especialmente interessante - uma ética da saída de si, onde o saber revela-se sempre limitado e o sujeito é forçado a encontrar-se com aquilo que se furta à Ìecognição e que ultrapassa sua história. Referências bibliográiicas Bergson, H. (1979) O pensamento e o movente. Introdução. Bergson. São Paulo: Abril Cultural. Camus, J-F. (1996) La psychologíe cognitive de I'attention. Paris: Armand Collin. Chartier, R. (1996) (org) Práticas de leitura. Sào Paulo: Estação Liberdade. Deleuze, G. (1987) Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (1997\ Crítica e clínica. Ptio de Jtneiro: Ed. 34. Deleuze, G. & Guattari, F. (1997) Mìl Plalós, v.IV. Rio de Janeiro: Ed. 34. Í 4 .C ,,-\rNM\4 (1993) O que é afilosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34. )4 Depraz, N., Varela, F. e Vermersch, P. (2000) La réduction à I'epreuve de I'expéienc'e. Etudes Phénoméno logiques, 3 | -32, p.l 65 -184. Dewey, J. (1922) Human Naíure and Conduct. 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Dupuy (Orgs) IJnderstanding origi^ _ uiews on the origin of life, mind and socie4l. DordÍechíBoston{London: Kluwer AcaOãmic-puUüsnen,tSó2. ' A expressão foi utilizada numa conferÊncia apresentada no evento "subjetividade fora do sqieito", ocoÌrido noDepartamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, e- ouiubro de 2000. ' A idéi8 aparenJemente pâradoxal de uma experiência impessoâl ou pé-subjetivâ apaece formulada também no empirismo radiacal de W. Jâmes, atrav& do conceito de experiêncii pur4 è ainda'nos textos de E. Husserl dafase genética _(1918-t92ó). No caso de Husserl, a gênese da consciêocia e do proprio viviAo g atriúulOa X afecções e explicâda pelâ dinâmica daÌetenção e protenção, que constitui a exp€riência'do presente vivo. Cf. W.James La notion de conscience, pá osophie - llilliam Jãmes, r.64, earis, uiniur, teôl; e. trusút oe la$)nrhèse passive, Pais, Jérôme Millon,.l9 98; N. Depraz La cowcience - approches cro*arl, an ,miiqiíi ro sciences cognitives, Paris, Annand Colin, 2001. - A expressão morimento-subjetividade é utili?a.lâ aqú num sentido analogoao conceito de estilo-subjetividadeformulado por Silvia Tedesco no câmlo dos estudos iobre a linguagem. Tedesco adverte que falar de'um estilo "da" subjetividade ainda seria comiderar a subjetividade co-õ ui.ra substância, enqu-io " "*pr"..áo ."tiio-subjetividade é Ínâis apropriada para acentuar seu carâter processual e ciador. cf. Esülisubiaividade....
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