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Texto 10 Kastrup Cartografias Literárias

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Cartografr as literáriÀs'
Vitgítia KasttuP"
Rcsumo: O texto realiza umã cartografia das pÌátioas de leitura realizadas na Oficina Li\Tação,
localizada no BaiÌro de São Domingos, em Niterói,/Bmsil' com crianças de classe baixa- Fxamina
as práticas da leitura em três niv€is: a relação com o dispositivo livro' a rclação com a rcde
soçial na qual o li!'ro e o leitor estão inseridos e a relação do leitor consigo mesmo No tercero
nivel as práticas de leitura envolvem a dimensão ética da cognição. O conceito de aplendizagem
inventiva (V. Kastrup, 1998; 1999t 2001) é tomado como referência parâ o exame do
mecanismo circular que se enconha presente na experiêícia coÌn a litelafum' que sugerc una
concepção de uma ética do saber implicado, ao mesmo tempo que wÌìa ética da saidâ de si'
A oficina Livração foi criada t€ndo em vistâ o desenvolvimento de praticas d€
aprendizagem inventiva, entendidâ como prccesso dç tansfoimação de si e do mundo (V'
Kastrup, j999). A oficina de leitura constitui um dispositivo de aprendizagem inveníva' na
medida em que o coítato com a lit€tatwa é ocasião pam experiências de pÍoblematização,
como o estranhamento e a surpÍesa, distintas dâ experiência de ÌecogÍlção e que sãô essencÌ46
para o pÌocesso de aprendizagem inventiva. Neste sentido, a oficina de leitura é um dispositivo
de produção de subjetividade, distitrto do dispositivo clinico, que reâliza praticâs que operam a
transposição de limites taíto do si mesmo ja constituido quaíto do mundo habitado'
As oficinas liteErias constituem espaços para praticar a leitura em grupo e
compartilhar experiências produziús por textos literarios. Ahralmente existem modalidades de
trabalho muito variadas no campo das oficinâs de leihrra. O ponto comum é que constihrem
praticas coletivas de leitua em voz alta, expe meítândo fomas de ler distintâs da leitura
individual e silenciosa, em dominio privado, que se iNtituiu como pratica predomilratrte a
DaÍir do seculo XVllÌ (Chartier, 1996). A leitura em oficinas reune, num mesmo dispositivo,
um enconBo com o li\ Ío. com as pessoas. e consigo mesmo
' O texto é resultado do pÍo.jeto iotegÌâdo de pesquisa 'Cognição e $bjetividâde a dimensão ética da invenção
de si € do 1nundo", ap;iaão peto Cllpq. Agradeço aos alulìos Beâtriz Sanchovisch' Gustâvo Ferraz Kada
Medeiros, l,auÍa Pozzânâ, Olíviâ Mâriúo e Tâís Baia que pâÍicipaÌarn dâ col€ta e análise dos dâdos
" professom do InsrirrÌro de Psi€ologiâ € do culso de Pós-crdduação em Psicologia da uÍiversidtde FedeirÌ do
Rio de JaneiÌo. E-mailì yika!úupí4ta$ÉjjroD
A pratica da leitura é entendida, em primeiro lugar, como pratica cognitiva, no sentido
definido por Francisco Varela (sid): conhecer: fazer = ser. A cognição é um fazer, uma
prática, uma ação. Não agimos para conhecer ou conhecemos para agir. Conhecimento e açào
são um mesmo processo. A ação cognitiva tem também uma dimensão ontológica,
identifrcando o íazer e o ser. Ao agir, o sistema conhece e ao mesmo tempo produz-se,
produzindo concomitantemente o próprio mundo. A ação responde pela invenção do sujeito e
do objeto, do si e do mundo. A noção de pratica cognitiva não se confunde com o conceito
behaviorisía de compoÍtamen to. O behavior é o compoÍâmento observável, raso e objetivo,
controlado por estímulos do meio externo e, de acordo com estâ concepção ambientalista, a
aprendizagem é um processo de solução de problemas e de adaptação ao meio ambiente. Para
Varela, diferentemente, a ação não põe em relação um organismo e um ambiente dado, um
sujeito e um objeto, mas os configura efetivamente. O caráter flüdo e inventivo da ação é
explicado através de um modelo teórico que inclui na ação a invenção de problemas. O conceito
de breakdown corresponde ao momento da invenção do problema, da experiência de
problematização. Se o meio não é dado, e sim configurado, não há também problemas dados,
mas sim inventados. O breakdown consiste numa quebra da continuidade da ação, numa
espécie de vacúolo que inscreve a indeterminação no seio da ação. Experimenta-se uÍna
descontinúdade, uma bifurcação, que reorienta seu curso. A continuidade da ação é fundada na
história dos acoplamentos anteriores, mas a experiência presenle coloca problemas novos, que
exigem sua reorganização. Os breakdowns não são exceções ou ruídos, mas a fonte da cogrrição
concreta (F. Varela, l995, p.49).
Em relação à ética, Varela (1992) se recusa a identificar seu problema àquele do juizo
moral. A primeira e mais importânte modalidade de atitude ética revela-se como uma ação que
não é mediada pela representação ou pela consciência reflexiva, mas caracteriza-se como rmta
competência para responder ao breakdown, ao presente em sua imediatidade. A competência
ética é antes d.e um know &ow do que de m know that (J . Dewey , 1922) . A ação não pode ser
dita de um sujeito, pois não há um eu central que seja a fonte de ações deliberadas e
voluntárias. O si mesmo é uma propriedade emergente de uma tempestade de processos
cognitivos, fragmentados e impessoais. Trata-se de uma vacuidade, de um si mesmo virtual, de
uma espécie de olho no coração da tempestade (F. Varela, E. Thompson e E. Rosch, 1993,
J
p.97). A tese de Varela é que "a competência ética é o progressivo conhecimento em primeira
mão da virtualidade do si mesmo", encontrando-se ai "a essência da aprendizagem ética" (F.
Varela, 1995, p.68).
Dada a potência inventiva das experiências de breakdown, operadoras de bifurcações
no fluxo cognitivo habitual, justifica-se a necessidade do desenvolvimento de práticas concretas
de aprendizagem que mobilizem esta potência. A Oficina Liwação tomou a leitura como uma
pmgmática cognitiva desta natureza. Seu objetivo é arcalização daleitura como trackìng, como
atividade de rastreio, passando rente ao texto. Procura captar seus movimentos, ritmos,
velocidades e sobretudo seus pontos de intensidade e de problematização. 
.Não visa
prioritariamente a interpretação dos textos e a busca do significado, mas sim promover o
encontro com o texto naquilo que ele tem de problemático, imediato e singular, escapando dos
esquemas recognitivos. A leitura segue o movimento do texto, a partir do qual ocorre o
enconffo com o inesperado, o estranho, a surpresa e todas as demais figuras da invenção de
problemas. Os textos literários possuem notadamente uma potência de problematização.
Segundo Deleuze (1987) a arte em geral, e a literatura em particular, produz experiências que
transpõem os limites das formas subjetivas constituídas, acionando blocos de sensações,
afectos e perceptos pre-subjetivos e impessoais. A literatura produz sensações que atravessam
o vivido por um sujeito, mas que se encontram num plano distinto. Elas emergem da matéria
sensivel da linguagem, das palavras, da sintaxe mas tocam o leitor como entidades imateriais,
portando uma idéia, uma singularidade, um afecto, uma diferença. Podem não acionm
diretamente a lembrança ou a imaginação, mas apenas capturar o leitor na experiência do
presente vivo, em sua plena afirmação. E enquanto ultrapassa o plano do vivido que a
literahrra revela sua potência de problematização.
Em segrmdo lugar, as púticas de leitura são tomadas como práticas de si ou de atenção
a si, tal como defrnidas por M. Foucault (1988, 1995), que as distingue das práticas de saber e
das práticas de poder. Na obra de Foucault o conceito de pnítica é complexo, pois uma mesma
prática é portadora de três dimensões: é ao mesmo tempo prática de saberl de poder e de si. O
que justifica distinguir as três dimensões é que, enquanto as práticas de saber envolvem uma
relação com as coisas e as púticas de poder uma relação com as pessoas, as práticas de si
envolvem uma relação consigo mesmo. Em sua dimensão de púticas de si, as pníticas de leitura
4
encerram uma atenção ou cuidado de si, mas não constituem um culto ao eu ou um
investimentono ego. Também não possuem um objetivo hermenêutico, de exegese do sujeito.
Não são relativas à vida privada pois, embora pessoalmente escolhidas, recoÍrem a
dispositivos constituidos e disponibilizados socialmente, sendo públicas, neste sentido.
Também denominadas tecnologias de si, as pniticas de si "permitem aos indivíduos efetuar,
: \1 :1
por conta própria ou com a ajuda de outÍos, certo número de operações sobre seu corpo e sua \. | , ,,, .
alma, pensamentos, conduta ou qualquer forma de ser, obtendo assim uma transformação de si
mesmos..." (M. Foucault, 1988, p.a8). Para Foucault elas possuem uma dimensão ética pois
resultam de escolhas pessoais. Mas o sujeito não possui a condição de fundamento da ética,
pois o que está em jogo é a invenção de si. E possível identificar ai uma reciprocidade, uma
circularidade enffe a escolha das práticas de produção de si e a produção de si, em lugar de uma
causalidade linear. O problema indica a presença de um mecanismo circularl.
A proposta da oficina Livração foi experimentar concretamente este mecanismo
circular. As crianças freqüentavam a oficina por escolha própria e sem intermediação dos pais.
Tal escolha baseou-se em grande parte no conhecimento do casarão onde ela se situava,
próximo de seu local de moradia. A hipótese é que a prática regular da leitura na oficina produz
efeitos sobre seus leitores, afetando e reconfigurando a cognição e a subjetividade, inclusive
ampliando o espectro envolvido na escolha de novas práticas. A escolha das práticas
responderá pela invenção de si e também, de modo recíproco e indissociável, pela invenção de
mundos para além dos limites dos mundos constituidos, expandindo-os e diversificando-os.
Habitar o território da leitura e experimentar as bifurcações cognitivas que o texto litenírio
possibilita é, nesta medida, ocasião para a problematização do si mesmo e do mundo
conhecido, abrindo-os para transformações diversas e singulares. As práticas de leitura
constituem, neste sentido, uma fonte da invenção de si e do mundo, ou seja, uma espécie de
matéria prima do processo de invenção. Em ultima instância, a prática de atenção ao texto
litenírio funciona como prática de atenção a si. O encontro com o texto naquilo que ele possui
de potência de problematização, estranhamento ou surpresa, constitui um encontro com a
virtualidade do si mesmo, com seu caúter processual que subjaz às formas já constituídas.
Destacando a importância do desenvolvimento de práticas concretas de aprendizagem
inventiva, o presente texto analisa a experiência desenvolvida na oficina Livração, que foi
criada como um espaço de experimentação e desenvolvimento de práticas e estratégias de
introdução e fortalecimento do vínculo das crianças com a leitura e com a literatura. A oficina
funcionou de março de 2000 a julho de 2001 na Rua General Osório 59, no bairro de São
Domingos, Niterói/Brasil. Sua proposta foi a realização de um trabalho comunitário, regular e
gatuito, tendo como suporte a leitura de textos liteúrios. A ênfase na literatura - e não nos
liwos em geral - demarcou seu afastamento de objetivos pedagógicos, tais como a melhora no
desempenho escolar. Os encontros de leitura eram conduzidos por estudantes universitários,
estagiários da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense.
Os dois casarões: o cortiço e a oficina de leitura
A amostra foi constituída poÌ um grupo regular de 15 crianças de idades entre 7 a 15
anos, e de um gnrpo flutuante, de freqüência eventual, que incluía crianças menores, inclusive
não alfabetizadas. Quase todas eram de classe baixa e em sua maioria habitavam cortiços nos
arredores, morando com famílias de diferentes configurações, quase sempre distintas da família
nuclear. As rodas de leitura eram formadas por gnrpos heterogêneos quanto à idade e ao nível
de escolaridade. A maior parte das crianças fieqüentava escolas públicas e vivia grande parte
do tempo brincando na rua. Os encontros na oficina de leitura ocorriam duas vezes por
semana, ao final da tarde, e tinham a duração de 1:30hs. As atividades eram gratuitas e
destituidas de qualquer vínculo conffatual intermediado pelos pais, o que foi tomado como
critério de freqüência por escolha pessoal.
As crianças que freqüentavam a Oficina Liwação pertenciam, em sua maioria, a famílias
situadas abaixo das chamadas famílias de baixa renda, pois muitas vezes os pais não possuíam
qualquer renda ou emprego fixo, desenvolvendo eventualmente alguma atividade ilegal. A rigor
não tinham acesso à moradia e por isto moravam em cotiços, onde não pagavam aluguel. A
maior parte das crianças que freqüentava a oficina morava num antigo casarão do bairro, que
era ocupado por 2l famílias, tânto internamente quanto em seu pátio externo. Cada família
ocupava um cômodo, cujos limites eram precariamente estabelecidos por cortinas, placas de
madeira, papelão ou plástico. Dentro dos apertados espaços das "casas" existiam alguns
móveis, colchonetes, esteiras, roupas e, via de regra, fogão, geladeira e um aparelho de TV.
Havia apenas um banheiro coletivo, mas nem todos os moradores tinham direito de utilizá-lo.
6
Percebido de fora, chamava a atenção a água que escorria permanentemente do quintal e alagava
a calçada, exalando um forte cheiro de fossa. visto de dentro, percebia-se, em meio à escuridão,
inúmeros olhos vigilantes e um grande burburinho de vozes e televisões ligadas. A aparência
desta habitação coletiva era de extrema densidade, não apenas populacional mas, sobretudo,
sensorial. A impressão era de uma atmosfera sufocante, densa, maciça e mesmo saturada, com
ruidos constantes, odores fortes e pouco ar. Durante o periodo em que observamos o trabalho
da oficina, todas as crianças manifestaram, em algum momento, o desejo, e mesmo uÌna
expectativa, que parecia concreta, de se mudar do cortico.
Através de algumas entrevistas pode ser constatado que nenhuma criança possuía
liwos em casa, com exceção dos liwos didáticos, no caso das que freqüentavam a escola. A
maioria de seus pais era de baixa escolaridade ou analfabeto. Apenas uma menina afirmou que
seus pais gostavam de ler e efetivamente liam. poucos já haviam entrado numa biblioteca - com
exceção, às vezes, da biblioteca da escola - ou nurna livraria para comprar um liwo, o que foi
tomado como indício da distância existente entre o domínio cognitivo dessas crianças e a
literatura.
A ohcina Livração funcionava num antigo casarão situado bem próximo ao casarão
onde morava a maioria das crianças. Apenas algumas casas separavam o casarão 27 e o
casarão 59 da Rua General osório. Esta pequena distância guardava alguns indícios de
continuidade. Sem qualquer apoio financeiro, a oficina ocupava uma pequena sala do casarão
59. Além da oficina de leitura, no espaço do casarão 59 eram desenvolvidas outras atividades
como capoeira, teatro, dança e oficina de papel reciclado, gÍatuitas ou a baixo custo, além de
festas e eventos dos quais participava a comunidade local. o fato da oficina situar-se no
casarão 59 atraiu, desde o início, as crianças das redondezas paÌa os encontros de leitura. o
território da oficina em nada lembrava uma escola. Havia uma sala de leitura composta de
esteiras e almofadas espalhadas pelo chão e também uma pequena biblioteca, formada através
de doações, cujos livros podiam ser manipulados livremente, antes e depois da roda de leitura.
vigorava também um sistema de empréstimos, para que as crianças pudessem levar livros para
casa, abrindo a possibilidade para a realização da leitura individual e silenciosa. Nesse espaço
eram desenvolvidas rodas de leitura, em voz alta e em grupo, visando promover a introdução
da pútica de leitwa de textos literários, mas evitando tomar como estratégia a leitura individual
e silenciosa.
O método da cartogralia: o paradoxo de começar pelo meio
A elaboração do projetoLiwação precisava levar em conta o domínio cognitivo das
crianças e o território existencial onde ele seria realizado. A cartografia do território surge como
condição paÍa o trabalho, que seria orientado para a transposição de seus limites através da
experiência com a literatuÍa. A cartografia não é um método que vise apresentar uma análise
exaustiva ou totalizante, mas busca circunscrever S{_ P.!949*9S19!ivo de sentiCo, sistemas de
signos (G. Deleuze, 1987) que não desenham uma identidade mas, ao contrario, permitem
detectar os eleme!ìlgg iç.pJ.qcjgFgalidade do terri.tóriq. eln questão. Os sistemas de signop não
são objetos ou características subjetivas do gnrpo, mas linhas ou forças em jog.o*{rg plocessg
em curso. Para Deleuze e Guattari (1997) os signos situam-se nos limites do território
observado. Aliás, qp]gplig território.não se defrng P-Q!,li!or!9s. espaciais, mas sim ser4i..o!icos'.
E em sua condição de limite do território que eles devem ser analisados. Segundo Deleuze
(1987) os sigrros atuam com violência pois forçam a pensar, instauram uma necessidade, põem
problema e exigem sentido. E-lglta?9,qparte do território e das subjetividades mas constituetl
também seus poros, os pontos através dos quais se realiza seu movimento e sua
\lsli)ossivel cartografar um JqrrilóIio 4q65 de habitá-lo e a elaboração do projeto
Livração começou por ai. O- trabalho vai acontecer nas bordas do território, buscando
ultrapassar seus limites. A cartografia é uma metodologia processual, que exige a paradoxal
tarefa de Eoqegg: pelo meio. Desde o início, tratou-se, na oficina Lirração, de um projeto-
cartografia, elaborado e reelaborado na medida de mudanças observadas na configuração das
forças presentes. Foi ele próprio aberto ao pÍesente e comportou ampla margem de risco e
imprevisibilidade. Por exemplo, ele acolheu algtms campos temáticos imprevistos, como foi o
caso da violência, que acabou assumindo um lugar central, em função da alta fiequência e forte
recorrência. A violência foi uma grande caixa de ressonâncias, indicando uma imbricaçào
especial naquele gnrpo entÍe os signos da violência e violência do signo. Acolher e integtar o
tema da violência ao projeto significou utilizar uma semiótica potente no que diz respeito às
õ
práticas de transposição de limites. pois a experiência afectiva, de problematização, não é
jamais abstrata. Enquanto experiência de transposição de limites, ela é acionada a partir dos
limites existentes.
Uma política para as práticas de leitura: a transposição de timites
Dadas as peculiaridades do método da cartografia, foi estabelecida uma política prévra
para o trabalho, definida como uma_!,o.liliçgi9._tt?.g$p.o_$lçã9 de limitgs tanto das formas
cognitivo habitado pelas crianças. Ela foi
desdobrada em três planos, que correspondem às três dimensões das práticas de leitura: a
g53gjSt r_en:C9_smial. qgbEp som o Ji1,,ro e a rqlação consigo mesmo-.
A primeira dimensão diz respeito à inclusão das crianças na rede social de livros e
leitores. Neste plano, a política da oficina é, em primeiro lugar, afirmativa em relação à sua
proposta: fazer ler 
' Ela oferece a pútica da leitura, independente da demanda local e indiferenrc
ao possível abismo entre os domínios cognitivos ou territórios existenciais das crianças que ela
atende e a literatura. A pútica da leitura em roda constitui o elemento em torno do qual o
trabalho se articula. A roda é uma espécie de rede heterogênea (8. Latour, 1994) composta em
principio por pessoas e coisas - crianças, estagiários, livros, almofadas, estantes, esteiras,
papéis, água filtrada, biscoito, etc. Aproximando a roda a uma rede busca-se apontar seu
caráter de figura aberta, composta de linhas heterogêneas e nós de ligação. por sua vez, a roda
de leitura encontra-se inserida numa rede mais ampla, pois dela participam outros vetores,
liúas ou fluxos de diferentes espécies: econômicos, pedagógicos, políticos, sociais, biológicos
e lingüísticos, dentrc outros. A investigação da relação daquele gnrpo de crianças com a leih'a
não pode desconsiderar o fato de que a não participação do liwo e da literatura em seu domínio
cognitivo é efeito de um processo de exclusão, produzido por sua situação sócio-econômica,
pela politica de preços altos das editoras brasileiras, pela escassez de bibliotecas públicas,
pelas politicas pedagógicas das escolas, por probremas ligados à saúde pública (necessidade de
uso de óculos, por exemplo), apenas para citar alguns. por sua vez, a roda de leitura é um
espaço de acolhimento da curiosidade das crianças em relação aos liwos e à leitura e oferece a
oportunidade delas habitarem um território onde se realizam experiências com a literatua.
9
Emsegrmdolugarhouveumaopção,nãopelol iwoemsioupelalei turaemgeral ,mas
pelos livros que veiculam textos literários. A oficina utilizava a liteútura infantil no sentido
definido pela escritora Ana Maria Machadol "no teÍmo literatura infantil, o adjetivo não limita
o sentido do substanttvo, como ocolre normalmente na língua mas, pelo conffário, o amplia,
fazendo abranger um campo mais vasto. Por exemplo, lìteratura brasileira indica que, de toda
a literatura, estamos nos referindo àquela criada por brasileiros, com exclusão das outras - é
uma característica que resffinge o sentido do substantivo. No caso da ü/era tura infantì|, porém,
referimo-nos àquela que pode ser lida tambëm por crianças. o que aumenta o campo semântico
coberto pelo substantivo literatura, que normalmente não inclui a noção de que abarca obras ao
alcance de leitores mais jovens. Não tem nada a ver com livros para crianças." (A' M.
Machado, 1999, p.13). Os textos literários são dotados de uma potência inventiva pois ilcitam
o pensamento, a inteligência e o espírito crítico' Escapando da linguagem em sua função
utilitária e de comunicação, brincam com a sonoridade e beleza das palavras, colocando o leitor
em contato com mundos inéditos. Neste sentido, produzem muitas vezes uma sensação de
estranhamento e a invenção de problemas. Vale aqui a advertência da autora contra a apologia
do objeto livro, em função da proliferação, nos dias atuais, do liwo-mercadoria, descartável
como qualquer outro produto oferecido para consumo. os livros que veiculam textos literários
também não devem ser confundidos com aqueles que consistem em manuais de regtas e que
visam moldar comportamentos, veiculando uma moral conformista. Na contracoÍente'
procede-se na oficina à leitura de textos literários, entendendo-a como prática de resistência
tanto ao referido processo de exclusão quanto aos efeitos massificadores da mídia sobre a
subjetividade. Para Machado o texto litenírio é subversivo na medida em que se apóia num
convívio de significados múltiplos, ambiguidades, problematizações e, neste sentido, concoÍe
para incorporar a multiplicidade no tecido cognitivo.
0 tercerro aspecto refere-se à relação consigo mesmo que a leitura possibilita'
apontando o nível da subjetividade em que o trabalho deve operar. Usando uma expressão de
René Schéref, trata-se do "nivel zero da subjetividade". O acento neste nivel significa
trabalhar aquém das subjetividades constituidas, das formações subjetivas atuais As relaçôes
que têm lugar na roda de leitura não se esgotâm no plano pessoal, nas relações intersubjetivas'
na troca de informações ou de experiências vividas, mas ocoÍre no plano impessoal das
10
sensações, dos perceptos e dos afectos que o texto literário veicula. Para G. Deleuze e F.
Guattari a obja d9 arte é um bloco de sensações, composto de perceptos e afectos. Afectos e
percaptos são seres que existem em si e por si, sendo independentes daquele que os
experimenta. Perceptos e afectos não Se confundem com percepçòes e sentìmentos pois
excedem a plano do vivido, transbordando aquele que é por eles atravessadol. Neste sentido.
eles transpõem os limitesda subjetividade historicamente constituida, e a literatura constitul
um instrumento poderoso para a produção de tais experiências. Segundo G. Deleuze a
literatura "só se instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que
de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma
mulher, um animal, um ventÍe, uma criança... As duas primeiras pessoas do singular não
servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós wna
terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (G. Deleuze, 1997, p-13). A literatura
torce e retorce a linguagem, revirando-a até que se produzam fendas em sua dimensão de uso
cotidiano e utiliLfu.io. A conseqüência é que a história pessoal e a vida do autor dão lugar ao que
Deleuze denomina "uma vida", em sua dimensão de acontecimento singular, que transcende o
eu. No contexto da oficina, a experiência com a literatura, visava acionar no leitor este plano
impessoal, ao mesmo tempo comum e singular. O objetivo era fazer circular na roda de leitura
1&gtgs, e não informações ou opiniões. Não que não pudessem ser trocadas informações e
opiniões, mas o que definia seu funcionamento e assegurava seu papel na produção da
subjetividade eram as experiências que ocorriam num outro plano, distinto do da recognição. A
leitura de textos literáÍios tinha como objetivo acionar o nível zero da subjetividade, que
corresponde ao plano de produção de subjetividade (F. Guattari e S. Rolnik, 1986). Na roda de
leitura buscar-se-ia experimentar as palavras para além de seu caráter utilitário e instrumentâ|.
o que circularia não seria um sentido comum, o que reuniria não seria uma experiência de
recognição, mas sim L9fP911Q1c1q impessoal e singular dos afectos produzidos pelo texto.
Parece justo dizer que o encontro com o texto literário é o encontro com o impessoal. O
impessoal escapa à apreensão pelo indivíduo, mas também não corrssponde a um plano
intersubjetivo (R. Schérer, 2000). Algo deve circular na fina sintonia da roda de leitura, mas
este algo não é um senso comum. Cada leitor, em sua atenção ao texto, é palco de sensações, de
experiências de dessubjetivação que transpõem os limites impostos por sua história pessoal.
l1
Em resumo, a política adotada visava incluir as crianças na rede, evitando utilizar a
leitura como prática de busca de significação. O trabalho com a literatura seria realizado no
nivel zero da subjetividade. Enfim, o que fundamentalmente distinguia a política deste trabalho
comunitário da de outros, baseados numa política humanista ou filantrópica, é o fato dela
operar aquém das formas subjetivas humanas ou infantis já constituídas.
O problema da atenção ao texto e algumas estratégiâs
A oficina Livração desenvolveu algumas estratégias para atrair a atenção das crianças para o
texto literifuio, que constituía, num outro plano, a atenção a si. A atenção ao texto e a atenção a
si não se confundem com a atenção ao mundo objetivo e ao mundo subjetivo, mas são ambas
atenção ao plano impessoal subjacente. A maior parte dos estudos atuais em psicologra
cognitiva define a atenção como um processo de tratamento de informações organizadas sob a
forma de representações (J-F. Camus, 1996). A relação estreita entre atenção e representação
deixa fora de suas análises o problema da atenção a algo que não I represçntaç_ão, mas 
,,.probìematização, estranhamento, sensação impessoal, que é essencial ao processo de
aprendizagem inventiva. Sem recusar os achados da psicologia cognitiva da atenção, pode-se
concluir que ela aborda apenas uma das tendências do processo de atenção que, enquanto
processo complexo, possui duas tendências divergentes. A primeira é orientada para a
{
rgcogniçio, ou seja, para as representações relativas tanto a objetos externos quanto àqueles
ilj:otql 
" 
subjetivos. A segunda é orientada para a invç1r.ç_!o e inclinada para a apreensão dos .?
intervalos entre uma rgpresentação e outÌa, para os movimentos, as gêneses, as
problematizações. A primeira é voltada de modo preponderante para o mundo externo, mas
inclina-se também para o mundo interior e subjetivo povoado de lembranças, preocupações,
pensamentos, etc. Todavia, a atenção envolvida na leitura de um texto litenírio, que é também
atenção a si, não corresponde àquela orientada para o plano pessoal e histórico da recognição.
Ela se aproxima do que H. Bergson (1934) denomina atenção suplementar, que incide sobre o 1 , .
fluxo movente da vida interior e é, em ultima instâlcia, atenção à duração. Ela apreende um I
presente dotado de espessura temporal, que tÌaz o passado contraido e que se inclina para o
futuro, numa espécie de continuidade indivisível. Para Bergson ela se distingue da atenção à
vida pratica, que recorta formas claras e bem definidas e tem em vista a ação interessada. Esta
.2
atenção normalmente prepondera sobre a atenção à duração, que resta uma tendência
minoriúria. Bergson subliúa que a arte e a filosofia requerem um deslocamento da atenção à
vida pnítica em direção à atenção à duraç!p,.
No contexto da oficina, a atenção à leitura não se revelou espontâneâ, exigindo um
esforço para a concentração no texto. De acordo com William James (1921, p.85) a atençào
voluntária é sempre difïcil de ser sustentada. Propensa à distração, ela opera por puxões
(saccades), por sucessivos esforços bruscos para retornar ao lugar. A presença de variações é
fator importante de atração da atenção. Dirigindo-se à pedagogia, James destaca como regrà:
todo tema deve ser apresentado de modo a revelar aspectos novos e pÍovocar novos
problemas. Segundo o autor, o-_máximo de atenção ocorre quando há uma síntese entre
conteúdos conhecidos e idéias novas. Parece justo afirmar que a atenção aos conteúdos
coúecidos, às formas estabilizadas, muda de natureza quando se torna atenção aos problemas
que desestabilizam tais formas e que se encontram na gênese de novas formações. Como ela
não se orienta para as formas da recognição, não funciona como busca, mas antes como
descoberta, acolhimento ou encontro imprevisível. Tomando como base a fenomenologia de
Husserl, Depraz, Varela e Vermersch (2000), defendem que um processo de aprendizagem
pode desenvolver este segundo tipo de atenção. As práticas de aprendizagem inventiva da
oficina Livração buscaram exercitar esta tendência minoriúria, esta atenção fina e expansiva,
através de algumas estratégias.
I - Num primeiro momento busca-se reduzir a força da tendência recognitiva da atenção. A
suspensão da atenção ao mundo extemo, tanto fisico quanto social, não é filail, em se tratando
da orientação marcante da atenção, naturalmente interessada no mundo, nas coisas e nas
pessoas. Uma de suas dificuldades advém da redução do controle das situações da vida prática
e exige muitas vezes uma relação de confiança no trabalho e nas pessoas presentes. A redução
da atenção à vida prática inclui também o desvio da atenção ao mundo interno das
preocupações, pensamentos, lembranças e intenções, que assaltam a consciência na vida
cotidiana. Mâs o contâto com a.litoatqra exige um movimento de retirada de si, de saída de si,
para que Írs experiências de problematização possam ter lugar.
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O inicio do encontro é marcado por uma atmosfera de acolhimento e de criação de
condições para redução de pressões cotidianas como agitação, fome e sede, que saturam a
cognição. Uma conversa informal, sem abordar um tema mobilizador, comer biscoitos, beber
água e recostar nas almofadas visam produzir uma sensação de pausa, relaxamento e descanso.
Aos poucos é buscada a suspensão literal das atividades motoras. O silêncio é uma regra básica
para a leitura começar. O silêncio visa instalar um intervalo no burburinho cotidiano,
esvaziando o ruído de fundo, constituindo condição para a leitura e encontrocom o texto. A
ideia é que o*.!!1to precisa respirar para ganhar vi-djr. Sua materialidade. e as sensações que
venha a produzir precisam compor com o silêncio. O encontro com o texto não acontece num
ambiente de saturação sensorial, em meio à conversa e movimentos corporais. A pessoa que
coordena o grupo tem como primeira tarefa assegurar que o trabalho aconteça.
2- Para atrair a atenção para o texto, a estÍatégia é chamar a atenção para um objeto percebido,
que no caso era o livro, enquanto objeto concreto. A atração da atenção vai dos elementos mais
dirctâmente percebidos e concretos aos menos diretamente percebidos. Nesta direção, I liwo
comparece como o primeiro atrator, seguindo-se da leitura em voz alta e só depois vem a
ejlpeÌiência literária. O inicio da atividade se dá com a atenção ao livro e se efetiva
integËlÌnente com a experiência liteníLria, a leitura funcionando como una prática de mediaçào.
Isto significa que a retimda de si e do mundo só produz efeitos de invenção de si e do mundo
quando ela dá lugar à experiência com o impessoal do texto. A mera desatenção à vida
cotidiana, ao mundo objetivo e subjetivo, não possui um valor em si no processo de
aprendizagem inventiva. O importante na experiência com o texto literário é que ele força uma
outra atenção, produzindo uma bifurcação dos estados atencionais, do pessoal ao impessoal.
É essencial o preparo cuidadoso da atividade de leitura a ser desenvolvida a cada
encontro. Após a seleção previa do texto, quem conduz a roda de leitura deve conhecêlo bem
para explorar seus pontos fortes, brincar, improvisar, comentar, enfim, produzir um campo de
variações em torno de certos momentos. A leitura deve ser realizada como trackinS, 3omo
habilidade de rastreio. A leitura em voz alta deve ser ela própria uma leitura atenta, com
retirada de si, sem ser completamente tomada pela intenção de ler para alguém. pla deve
expressar proximidade com o texto, intimidade. Ainda que seja uma leitura em voz alta para um
grupo de crianças, o que exige uma atenção ao que se passa em situação coletiva (conversas
J.
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paralelas, buúuriúo, evasão da atenção de alguns, etc) ela não pode jamais se esgotar nÌrÍrìa
leitura para outrem. A idéia é que na leitura em voz alta a experiência plena com o vivo do
t€xto gera contagio na roda.
Manter a atenção ao texto durante a leitura é o mais dificil. A concentração é na maioria das
vezes bastante fugaz, podendo perder-se a qualquer momento. A estratégia é, em primeiro
lugar, Le-?lizar a leitura em roda, em situação coletiva. A atenção ao texto e a atenção a si, que
ocorre em cada leitor, é reforçada pela atenção dos outros participantes da roda. A roda, como
rede de múltiplos fios, torna a relação com o texto mais forte e densa, compensando em grande
medida a tendência da atenção a voltar-se para o mundo pessoal, objetivo e subjetivo. A
atenção da criança ao texto e a atenção ao si virnral é reforçada quando esta mesma modalidade
de atenção é experimentada por outras crianças ou adultos. A escolha do texto revela-se, mais
uma vez, de extrema importância. O texto deve conter um vocabuliário relativamente conhecido
e abordar uma temática presente no território existencial. Para fazer acontecer a experiência
literária inédita e surpÍeendente é preciso plantá-la no seio de um plano coletivo de sentido,
constituído historicamente.
O encontro com o texto é o objetivo maior. A experiência liteúria não se explica apenas pelas
propriedades do texto nem somente pelo interesse ou atenção do leitor. E numa sintonia entre
a atitude de abeúrra do leitor para acolhê-la e as forças presentes no próprio texto que ela se
realiza. Por um lado, a atenção desprende-se de sua atividade de busca intencional e é
substituida por uma oufa. Não basta a mera desatenção à vida prática. A atitude de buscar
deve ser substituída,pela atitude de descobrir, de encontrar. Tal atitude cognitiva expressa-se
como uma disponibilidade para o encontro, como ì.rÍna abertura para o presente imediato, que
se furta à recognição, para o acolhimento do impessoal, que surpreende, afecta e põe problema.
Revela-se como uma Ìeceptividade ativa, mais do que uma passividade. Por outro lado, o texto
deve ser potente para ativar a experiência de encontro, que possui a forma de um circulo
criador. Dada a atenção, o próprio texto que faz sua parte. Ele puxa, funcionando como Ìun
atrator e, para o sujeito, tÍata-se de uma entrega, de urn deixar-se levar pela história, pelo ritmo,
pela matéria sonora. Pela ponta de presente, o texto puxa um movimento de leitura como
tracking, como rastreio, onde a atenção funciona rente ao texto.
4-
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Os signos da viotência e a úolência do signo
Como a oficina Lilração não aplicou um projeto pré-existente, as primeiras atividades
de leitura utilizaram textos que não obedeceram a um critério temático preciso, mas apenas ao
critério de ser um livro considerado interessante pelos estagiários que realizavam a oficina,
muitas vezes lido na sua própria infância. Notou-se que a atitude inicial das crianças frente aos
livros e à leitura foi antes de curiosidade e aproximação que de resistência e afastamento.
Lançavam-se sobre os livros, manipulando-os, muitas vezes de modo disperso e aleatório.
Neste aspecto, o livro não surgiu como um obstáculo, mas como um grande atrator para os
encontros de leitura. Já durante a fase inicial do trabalho foram diversas as situações em que a
experiência impessoal da arte esteve presente em sua plenitude. Em tais situações foi possivel
identificar o que denominamos acima de mudança de plano, ou seja, elas atestam a passagem do
plano da recognição de formas e significados para o plano da problematização, onde o encontro
com o texto se faz através de afectos e devires.
Um exemplo foi o efeito gerado pelo livro O equilibrisla de Fernanda Lopes de
Almeida. O texto narra a história de uma personagem que não possuía uma vida banal, t"açada
de antemão e que vai aos poucos desenhando e inventando o seu mundo até que, num certo
momento, não sabe onde está o chão. Como havia um único exemplar do livro, as crianças
deitaram-se a sua volta, observando atentamente as ilustrações. Como a própria distribuição do
texto na página e as imagens brincavam com o tema do equilíbrio, não obedecendo à posição
habitual para leitura, o liwo foi sendo girado aos poucos, para que a percepção pudesse seguir
explorando o movimento do texto e das figuras, em seus diversos ângulos. Subitamente, uma
cÍiança sentiu, ela própria, a quebra do equilíbrio, comentando a veÍigem gerada pela leitura,
levantando-se e rodando em torno do livro, potencializando assim a sensação. Neste caso, o
envolvimento com o texto pÍoduziu um movimento da subjetividade, ou antes um movimento-
subjetividadea, que correspondeu à referida mudança de plano, cujos efeitos se estenderam e
foram observados no movimento corporal. 
^ |
Outra situação a ser destacada ocorreu com a leitur a de 0 barbeiro e o coronel, de Ana ìi'{,'
Maria Machado. Trata-se de texto em prosa, mas que brinca com a Íepetição, o ritmo e a rima
das palavras, imprimindo musicalidade à leitura. O conteúdo da história é performatizado pelo
estilo da narrativa. A história é de um barbeiro que, para se safar de uma encÍenca, precisava
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sabeÍ quantos fios de cabelo havia na cabeça do coronel. O barbeiro sai aflito à procura de
alguém que lhe dê a resposta, mas as pessoas que encontÍa não fazem senão aumentar, num
movimento exponencial, o problema dos limites entre o contável e o inconúvel, o finito e o
infinito. Multiplicam-se as perguntas: quantos peixes existem no mar? Quantas estrelas
existem no céu? Quantos pensamentos podemos pensar? A leitura foi Íepetida e o grande
entusiasmo gerado pelo pÌoblema do barbeiro, que ao invés de se fechar numa solução,
ressurgia sempre mais emais potencializado, foi ainda maior na releitura e, ao final, a história
foi aplaudida. Registramos o comenúrio dos estagiários: "Hoje 'rolou"'. Rolou quer dizer
aconteceu, ocorreu a mudança de plano.
Com a continuidade dos encontros pode ser observado que muitos textos, por mais
inocentes, e mesmo dotados de poesia e lirismo, evocavam, por parte das crianças, associações
e comenúrios acerca de situações vividas marcadas por uma extrema violência. Por exemplo, o
livro Uma pena, uma saudade, de Francisca Nóbrega contava a história de uma relação de
amizade muito delicada entre uma menina e um colibri. Sua leitura evocou numa das meninas a
lembrança de sua amizade por sua cachorra, que havia sido brutalmente assassinada em sua
pÍesença, quando dois homens invadiram sua casa em busca de um relógio roubado.
Acrescentou, ao final do relato: "Não sei prá que ficar lembrando. Lembrar é ruim". O fato e
que as crianças foram trazendo fieqüentemente elementos dessa natureza para a roda,
suscitados pelos textos lidos. Foram também incontáveis as situações em que situações de
violência invadiram o trabalho da oficina. Brigas de todos os tipos, agressões verbais,
mordidas, sapatadas, lutas corporais e discussões, envolvendo crianças e estagiários, foram
presenciadas muitas vezes. Além disso, as próprias idas aos cortiços, no intuito de chamar
uma criança ou pedir permissão a alguns pais, foram determinantes para a constatação de que
aquelas crianças viviam numa atmosfera de violàrcia marcante.
As crianças gostavam tanto das almofadas coloridas da oficina que uma das meninas
sugeriu um dia: "Vocês deviam, além de fazer empréstimo de livros, fazer também empréstimo
de almofadâs. Então ficou decidido que haveria um projeto dedicado às almofadas. O liwo
Feito à mão de Lígia Bojunga foi escolhido para servir de base para o projeto, que incluiria a
confecção de almofadas, uma para cada membrc do grupo. Novos elementos são incorporados
e a rede se estende. Pessoas doam tecidos, um leva a linha, outro a agulha, outros dão o
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enchimento e lá vai o projeto, batizado de "Feito à mão". o texto de Ligia Bojunga fala de sua
experiência de criança, quando decide ser escritora brincando ao lado da mãe, enquanto estâ
costutava. A autora naÍTa que criou suas primeiras histórias a partir das brincadeiras com os
botões que ..moravam,'na caixa de costura de sua mãe e descreve o processo de criação'
envolvido tanto no ato de escrever quanto no de ler histórias, como uma relação com algo que
existe fora de si, como um simples botão. Conforme a tônica do texto' a atmosfera da leitura
combinava com a atmosfera do feito à mão, onde se observa uma lentificação do tempo, um
tempo desacelerado, tempo do cuidado (V. Kastrup,2000). O trabalho manual e delicado da
costura era desenvolvido com capricho. Ao final do trabalho, as crianças levaram as almofadas
para casa. Nos encontros subseqüentes freqüentemente chegavam pedidos de ajuda para algum
conseÍto das almofadas, como uma fita solta ou um pedaço de tecido descosturado,
demonstrando um grande zelo pelo trabalho realizado. Uma grande delicadeza marcava a
relação das crianças com as almofadas. Até que um dia uma cÍiança contou, um tanto
constrangida, que não poderia mais trazer a almofada para a oficina, pois ela estava manchada
de sangue. Perguntada pelo motivo, relatou que seu tio havia sido espancado no fim de semana
na praça em frente, quando saía de um baile funk. A almofada foi então utilizada para
acomodá-lo, já ensangüentado. Mais uma vez um signo da violência cortou o espaço da oficina
A presença constante das situações de violência conduziu à elaboração de um projeto
de leitura d9 textos relativos ao tema da rua, para serem lidos numa série de encontros 
, 
,
consecutivos. A crônica vista cansada, de otto Lara Resende produziu um dos mais fortes ï"
efeitos observados durante todo este período do trabalho, devendo ser destacado o fato de que
não se trata, em princípio, de um texto dirigido para crianças. A crônica discorre sobre o fato
de não enxergarmos coiSas que vemos diariamente. Começa fazendo uma critica ao escntor
ameriCano Hemingway, para quem deveríamos ver as coisaS como se fosse pela última vez O
autor considera tal idéia deprimente e desesperada e, em oposição, defende que deveríamos
olhar as coisas como se fosse pela primeira vez. A crônica relata a mone de um poneiro que,
após trinta e dois anos de trabalho no mesmo edificio comercial, só foi notado após sua morte.
Termina dizendo que a criança, como o poeta, vê o que o adulto normalmente não vê. Antes de
reiniciar a leitura, onde cada um leria um trecho, foi perguntado: "Por que o título é vista
cansada?" Falou-se da pressa, da rotina e do hábito, que impedem a percepção de muitas
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coisas. Falou-se também que teÍ vista cansada e usar óculos é "coisa de velho". Foi quando
surgiu o comentário de uma menina: "Aqui nós envelhecemos muito cedo. Temos que fazer
vista grossa para muitas coisas que acontecem aqui". Seguiu-se então uma seqüência
inintemrpta de histórias terriveis. Voltou o caso do tiro na cachorra, que puxou a questão das
fieqüentes invasões que ocorrem no cortiço, que lembrou outro cão assassinado, que fez um
gancho com o assassinato do pai de uma das meninas, quando estava preso, que foi associado à
violência nas prisões brasileiras, que foi o elo para comentaÍ que elas já tinham visto muita
gente morta, o homem esquartejado perto do jomaleiro, a mulher gorda encontrada morta na
caixa-d'água do cortiço, que trouxe a lembrança do rosto inchado, preto e irrecoúecível do pat
enforcado na prisão, que fez a filha ficar tão nervosa na hora que viu que pensou que fosse
morïer, que saiu correndo e quase foi atropelada. Cenas da mais crua violência, que tocaÍam e
desconcertarâm todos nós. A crônica de Lara Resende, produzindo um efeito inesperado, não
nos aproximou das crianças numa suposta tÍoca de experiências. Não saímos dali apenas mats
bem informados sobre sua dura realidade. Deixamos a oficina pensativos e assustados, como
quem lê um livro ou assiste um itlme de terror. Ao final do encontro, uma menina disse:
"Queria escrever um livro. Ele ia se chamar Casarão 27".
Cartografando os diferentes sistemas de signos, observou-se que os signos da violência são
caracterizados por um tempo que é instaurador de descontinuidade. Descontinuidade que é
cortante, abrupta e inesperada. O efeito subjetivo gerado é sobretudo o medo, pois são signos
assustadores, fiente aos quais experimenta-se também a impotência de contê-los, restando
como única saída evitar deparar-se com eles. Pode-se perceber também que, embora
extremamente presentes no cotidiano, os signos da violência jamais são banais ou indiferentes.
São sobretudo duros e cortantes, respondendo pela sensação de densidade e extrema saturação
do território. Entretanto, a violência experimentada na leitura da crônica de Lara Resende não
se limitou a produzir na menina o sentimento de medo, nem apenas a sensação de saturação.
Ela produziu um desejo de escrever sobre a o casarão 2J. Embora seja precitado avaliar sua
concretização futura, parece justo observar aí indícios do que denominamos de transposição
dos limites das formas subjetivas e do mundo. Notamos uma bifurcação no fluxo cognitivo
habitual. A violência experimentada não produziu acuo, mas um desejo de criação e a inclinação
a-uma mudança no si e no mundo.
t9
Um evento rnteressante ocorreu também a partir da poesia t,-ïo fixo, de lose ae 4l[
Arimathéia. Trata-se de uma poesia concreta, que expressa o mundo engolido pela fome, Sua
leitqra na roda levou um menino, ao fmal, a levantal-Se e plantaÍ uma bananeira, virando-se de
cabeça para baixo e equilibrando.se nas mãos com grande destreza, buscando realizar, com seu
próprio corpo,o eixo fixo de que falava a poesia. Situações como esta revelam um encontro
com o texto que ultrapassa o limite do entendimento do significado das palavras. A linguagem
liteúria aciona devires, conduzindo o leitor a uma experiência de contágio pelo texto. Nestes
momentos pudemos identificar uma experiência liteúria plena, onde se transpõem os limites da
recognição e a leitura mergulha o leitor no devir do texto. Mais uma vez, a experiência com a
literatuÍa impulsionou um movimgnto corpOral, naquele momento o corpo assumlu urna
atitude estética, criadora, perform alizando a idéia do texto.
Parece possível afirmar que nas situações descritas, o texto introduziu uma diferença,
gerando uma bifi.gcação no fluxo cognitivo habitual. Este tipo de experiência, possibilitada pela
liteíatura, foi tomada como produtora de efeitos subjetivos, atestando, por seu caráter
imediato, inesperado e surpreendente, a ausência do controle de um si mesmo. Por outro lado,
sugerem um efeito de inygnçi,o dg. mundo, pois a experiência transborda os limites do mundo
conhecido, apontando para sua abertura. Nesta medida, deve-se considerar que os signos da
arte retroagem sobre os demais sistemas de signos, transpondo limites e reconfigurando o si e o
mundo.
O método da cartografia detectou a pÍesença de diferentes sistemas de signos ou )-+
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semióticas - do capital, da sexualidade, da rua e da violência - que enceÌravam diferentes
modalidades de tempo, produziam diferentes efeitos sobre a subjetividade e portavam sentidos
diversos, apÍesentando também diversos cruzamentos e composições.
No caso em questão, os signos da violência foram aqueles que melhor encarnaram a
violência do signo, sua potência de pôr problema e fazer pensar. Concluiu-se que é preciso
distinguir dois tipos de violência: uma violência que destrói e uma violência que cria, que faz
criar. A violência destrutiva gera medo e assusta,. produzindo paralisia e fechamento da
cognição para a problematização. Sua recorrência responde pela saturação e asfixia da
subjetividade, despotencializando o processo de invenção de si e do mundo singulares e
diversificados. PoÍ outro lado, a violência criadora produz abertura do sistema cognitivo para
i ,
20
seguir as bifurcações que nele acontecem. Neste caso, os signos são violentos no sentido em
que, surpreendendo, forçam a subjetividade, fazem pensar diferentemente, impulsionam a ação
e acionam desejos. Os efeitos são distintos quando a violência e experimentada como susto ou
como surpresa. A violência destrutiva, ao gerar susto, atua como força centripeta, fechando os
limites da subjetividade e do teritório, enquanto a violência criadora, ao produzir surpresa,
atua como força centrífug4 concorrendo para a transposição dos limites atuais. O que atesta a
complexidade do tema é que ambas atingem a subjetividade de maneira inesperada. A primeira
é seguida de uma conduta de evitâção, enquanto a segunda faz apelo a um deixar-se levar, a uma
entrega, pois puxa e conduz por caminhos inéditos.
A dimensão ética da aprendizagem inventiva
O desenvolvimento e a continuidade do trabalho ao longo de 18 meses demonstraram que a
oficina de leitura constitui um dispositivo de aprendizagem inventiva ao utilizar a leitura de
textos literários como ocasião para a emergência de experiências de problematização. As
praticas de leitura em roda são instrumentos exercitam a atenção ao campo processual
subjacente às formas subjetivas e ao mundo constituído, funcionando como práticas que
favorecem a transposição dos limites do si e do mundo constituído, abrindo para novas
possibilidades. Pode ser observado que a situação de leitura em roda tem efeito positivo, mas
algumas vezes acentua ainda mais a dificuldade da concentração no texto, pois a fuga da
atenção de uma criança interfere diretamente e ocasiona muitas vezes a perda de sintonia de
todo o grupo. Uma das maiores dificuldades diz respeito ao tempo de espera da experiência
literária. Freqüentemente o texto não captura a atenção imediatamente, mobilizando afectos e
acionando devires. Concluiu-se que lg"r.g.^.ji9, entÌetanto, sustentar a leitura mesmo sem a
experiência afectiva, preparando e aguardando seu acontecimento. A naturezâ do texto e sua
potência de pôr problemas no interior de um plano coletivo de sentido, bem como a conduçào
da leitura tem papel importante para que esta não fique presa ao plano da recognição.
A Oficina Liwação colocou as crianças em contato regular e sistemático com livros que
veiculam textos literáriÕs, o que caracteriza este período como dando lugar a um processo de
aprendizagem inventiva. Pode ser confirmado que a experiência do presente imediato, que não
se confunde com a experiência recognitiva, de representação, é largamente facilitada por um
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processo de aprendizagem, conforme tem sido ouffas vezes destacado (H. Dreyfus,l992; V.
Kastrup, 2000, 2001). Além de sublinhar que o trabalho teve o sentido de criar possibilidades
para a inclusão das crianças na rede social de liwos e leitores, é justo apontar que a oficina de
leitura possibilitou bons encontros entre crianças e liwos.
A pniLtica da leitura na oficina revelou-se uma pção críticq no sentido em que ultrapassa os
limites do si mesmo e do mundo, surgindo no espaço entre dois limites ou constrangimentos.
P.or um lado, é limitada pela história de aprendizagem, dos acoplamentos, que configuram
esquemas de percepção e de ação. Por outro, está sujeita aos constrangimentos do presente.
Este duplo limite é constituído num movimento circular, onde um constÍange o outro, ao
mesmo tempo em que opera sua ultrapassagem. A invenção de problemas deve ser entendida
neste círculo cnador. Q problema não está no mundo, ele não é objetivo. Também não está no I
sujeito. Ele é configurado numa zona de encontro, no cíÌmpo movente da experiência de
problematização. Marcada pela circularidade, a aprendizagem gaúa nuances de auto-produção.
As noções de circularidade e auto-produção desdobram-se para o campo da ética. Varela
(1995) insiste na importância da abertura para o presente, para a imediatidade, como aspecto
essencial para o entendimento da competência ética. A aberflra para o presente imediato deve
ser tomada como abertura paÌa a colocação do problema enquanto pÍoblema, enquanto algo quc
não está solucionado, mas que é exigente de solução. A ação competente é aberta para a
problematização. A abertura para a imediatidade se faz com base numa história de
acoplamentos, num conhecimento corporificado. E na tensão entre passado e presente, entre
história e invenção, que o problema deve ser entendido.
A freqüência das crianças à oficina permitiu a imersão num contexto e a habitação de
um território de leitura. No entânto, não seria correto dizer que a aprendizagem que teve lugar
produziu um saber sobre a literatura. Em seu sentido mais importante, as púticas de leitura
parecem ter produzido uma atitude em relação à leitura e à literatura, que o termo grego ethos
serve para designar. Pois q erÀoglencerra o duplo senrido de costume e de valor. O primeiro
\.<1.'
designa re._gularidade, estabilidade, permanênci4; o se-gundo é um sentido apreciativo,
dgsignando um4_i4çtinaç!9. Estes dois sentidos configuram uma maneira de ser e de viveÌ. O
encontro com os textos liteúrios possibilitou que as crianças experimentassem o que Varela
(1995, p. 60) denomina "excesso de significação", escapando dos limites de sua constituição
22
histórica. A atitude em relação à leitura e à literatura, tanto no que diz respeito ao costume de
pÍaticálas quanto no que conceme ao valor que lhes é atribuído, ambos gerados no processo de
aprendizagem inventiva, diz respeito a uma certa relação da cognição com o presente em sua
condição de abertura dos limites da história. Vale a citação de Varela: "Seja qual for a coisa quese encontre, deve ser valorizada de um ou outro modo (agraúlvel, desagradrivel, indiferente) e
ter um efeito qualquer (atração, recusa, neutralidade). Esta valorização de fundo é inseparável
do modo como o evento do acoplamento depara com uma unidade perceptivo-motoÍa
funcionante, e suscita uma intenÇão (sentia-me tentado a dizer'desejo'), a qualidade única da
cognição viva" (idem, ibidem). É imponante notar que Varela identifica neste ponto, que
denominamos de dimensão ética, uÍn aspecto cognitivo, definindo-a como própria da cogtição
viva. A cognição surge então ampliada, incluindo a dimensão ética, tomando patente sua
aproximação com a noção de subjetividade. O problema do excesso de sigtificação Íeencontra
aquele da vacuidade do si mesmo. A escolha das crianças pelas práticas de leitura não foi fruto
de uma decisão consciente, mas se antecipa ao si e à deliberação da vontade. Os dados indicam
que as crianças foram levadas a freqüentar a oficina pela proximidade de sua moradia e também
pela sua localização no Casarão 57,já conhecido por suas atividades junto à comunidade local.
Por outro lado, habitando aquele território e praticando a leitura em roda, foram palco de
experiências de dessubjetivação que expandiram os limites do si e do domínio cognitivo
anteriormente constituído. As experiências no plano impessoal reconfiguram e expandiram em
seguida o campo das escolhas, numa circularidade inventiva. Recusa-se assim o raciocinro
determinista e da causalidade linear. Não há um objeto que ocupe o lugar de causa do processo *=--
€,subjetivaçlo. Há apenas práticas que se realizam e que têm a potência de transpor limites,
mas seus efeitos são envoltos num véu, furtândo-se à previsibilidade.
As pÍáticas de leitura da Oficina Livração devem ser compreendidas no exato sentido,'
de práticas de si ou de cuidado de si, que para Foucault (1995) inclui também o cuidado dos
outros. Um aspecto desta natureza foi o fato contado pelas crianças de que elas realizavam
rodas de leitura nos cortiços, levando a leitura às crianças menoÍes e utilizando livros tomados
emprestados na oficina. Estes movimentos de irradiação revelaram desdobramentos da Oficina
Livração para além de seu espaço, mas sua continuidade e seus efeitos exigiriam um
acompanhamento posterior do trabalho. Em realidade, a na,tüÍeza experimental do trabalho
23
realizado exige prudência quanto uma possivel generalização das estratégias de aproximação
das crianças com a literatura nos dias atuais.
O que parece, entretanto, consistente com a observação regular do trabalho da oficina é
que a prática da leitura de textos literários tornou-se familiar para as crianças. Ao mesmo
tempo, estas foram permanentemente confrontadas com a força de problematização dos signos
da arte. o trabalho da oficina Liwação indica uma direção ético-política para os trabalhos
comunirários. Ele pode ser dito uma 3,gao g9111g_4.i!í.qìa, mas deve-se destacar que a ação foi aí
uma ação crítica, num contínuo processo de superação de limites. A crítica surge no bojo da
ação e foí realuada aÍavés de práticas concretas, e não pela reflexão ou fazendo apelo a uma
consciência abstrata e universal como instância crítica. Mais uma vez, a circulmidade esteve
pÍesente. A escolha das práticas de leinua não parece caber na fórmula "eu escolho". Pode-se
dizer que as próprias crianças foram escolhidas quando a oficina foi instalada ao lado de onde
moravam, mas mantém-se o ponto de interrogação no meio do círcúo e o tema da escolha
parece explicitar-se pela formulação indeterminada do "escolhe-se". O "comum" da palawa
comunitário surge como o plano impessoal, a abertura para a diferença. Se há uma ética que daí
pode ser extraída ela deve ser chamada de uma ética do fazer implicado, resultado da habitação
de um território. A ética revela-se também - e este é o ponto especialmente interessante - uma
ética da saída de si, onde o saber revela-se sempre limitado e o sujeito é forçado a encontrar-se
com aquilo que se furta à Ìecognição e que ultrapassa sua história.
Referências bibliográiicas
Bergson, H. (1979) O pensamento e o movente. Introdução. Bergson. São Paulo: Abril
Cultural.
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Revista do Departamento de Psicologia da UFF, 14.2, pp.7 5-94.
' A idéia de um mecanismo circular foi desenvolvida em biologia por Francisco Varela e Humberto Maturaü(1990)' através do conceito de autopoiese. Quanto ao conceito de-cirsulo criativo utilizado para a explicagão dosprocessos òiologicos, cognitivos e sociais cf. Varela e. Dupuy (Orgs) IJnderstanding origi^ _
uiews on the origin of life, mind and socie4l. DordÍechíBoston{London: Kluwer AcaOãmic-puUüsnen,tSó2.
' A expressão foi utilizada numa conferÊncia apresentada no evento "subjetividade fora do sqieito", ocoÌrido noDepartamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, e- ouiubro de 2000.
' A idéi8 aparenJemente pâradoxal de uma experiência impessoâl ou pé-subjetivâ apaece formulada também no
empirismo radiacal de W. Jâmes, atrav& do conceito de experiêncii pur4 è ainda'nos textos de E. Husserl dafase genética 
_(1918-t92ó). No caso de Husserl, a gênese da consciêocia e do proprio viviAo g atriúulOa X
afecções e explicâda pelâ dinâmica daÌetenção e protenção, que constitui a exp€riência'do presente vivo. Cf. W.James La notion de conscience, pá osophie - llilliam Jãmes, r.64, earis, uiniur, teôl; e. trusút oe la$)nrhèse passive, Pais, Jérôme Millon,.l9 98; N. Depraz La cowcience - approches cro*arl, an ,miiqiíi ro
sciences cognitives, Paris, Annand Colin, 2001.
- A expressão morimento-subjetividade é utili?a.lâ aqú num sentido analogoao conceito de estilo-subjetividadeformulado por Silvia Tedesco no câmlo dos estudos iobre a linguagem. Tedesco adverte que falar de'um estilo
"da" subjetividade ainda seria comiderar a subjetividade co-õ ui.ra substância, enqu-io 
" "*pr"..áo ."tiio-subjetividade é Ínâis apropriada para acentuar seu carâter processual e ciador. cf. Esülisubiaividade....

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