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91988374 LEBRUN Gerard Sobre Kant

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BIBLIOTECA PÓLEN
Para quemnão quer confundir rigor com rigidez, é fértil considerarquea
filosofianão é somenteumaexclusividadedessecompetentee tituladotécnico
chamadofilósofo.Nemsempreelaseapresentouempúblicorevestidadetrajes
acadêmicos,cultivadaem viveirosprotetorescontra o perigo da reflexão:
a própria crítica da razão, de Kant, com todo o seu aparatotecnológico,
visava,declaradamente,libertar os objetosda metafísica do "monopóliodas
Escolas".
o filosofar, desdea Antiguidade,temacontecidona forma defragmentos,
poemas, diálogos, cartas, ensaios, confissões, meditações,paródias,
peripatéticospasseios, acompanhadosde infindável comentário,sempre
recomeçado,e atéos modelosmais clássicosde sistema(Espinosacomsua
ética,Hegelcomsualógica,Fichtecomsuadoutrina-da-ciência)sãoatingidos
nessepróprio estatutosistemáticopeloparadoxoconstitutivoqueosfaz viver.
Essa vitalidadedafilosofia,emsuasmúltiplasformas, é denominadorcomum
dos livros desta coleção, que não se pretendedisciplinarmentefilosófica,
mas,justamente,portadoradessesgrãos de antidogmatismoqueimpedemo
pensamentodeenclausurar-se:umconviteà liberdadeeàalegriada reflexão.
RubensRodriguesTorresFilho
Gérard Lebrun
SOBREKANT
Organização
Rubens RodriguesTorresFilho
Tradução
JoséOscar de Almeida Marques
Maria Regina AvelarCoelho da Rocha
RubensRodrigues TorresFilho
ILUMJtt'uRAS
BibliotecaPólen
Dirigidapor RubensRodrigucsTorresFilho e Márcio Suzuki
Títulosoriginais
Humcct.l'ast.ucedeKant,De I'crreurà I'aliénat.ion,Le rôledeI'cspacedansIaformat.ion
deIapcnséedeKant.,L'appro/ündisSClllcnt.dc IaDissertationde 1770dansIaCritique
deIa RaisonPure,L'aporétiqucdeIachoscCllsoil,La troisiellleCritiqueouIathéologie
retrouvéc,La raisonpratiqucdansIa Critiquedu.fugemem
Copyright~)/993
GérardLcbrun
Copyright©destaedição
Edit.oraIluminurasLIda.
Projetográficodacoleçàoe capa
Fê
sobreVénusbleue(1957),pigmcnt.opuroe rcsinasint.éticasobrepoliést.er[54,2x 25,5
em],Yves Klein (coleçãoparticular).
!'reparaçàodetextoe revisào
Celia Cavalheiro
Revisão
AlexandreJ. Silva
(Est.elivro segueasnovasregrasdoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.)
CIP-BRAStL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L498s
Lebrun,Gérard, 1930-1999
SobreKant/ GérardLebrun ; organizaçãoRubensRodriguesTorresFilho;
traduçãoJosé OscarAlmeidaMarques,Maria ReginaAvelarCoelhodaRocha,
RubensRodriguesTorresFilho. -
(3.reimpr.].- São Paulo: Iluminuras,2010.- (BibliotecaPólen)
ISBN 85-85219-52-1
I. Kant, Immanuel,1724-1804.I. TorresFilho, RubcusRodrigues,1942-
11.Título. m.Série.
SUMÁRIO
Humee aastúciadeKant,7
Doerroàalienação,13
opapeldoespaçonaelaboraçãodopensamentokantiano,23
oaprofundamentodaDissertaçãode /770
na CríticadaRazãoPura,37
A aporéticadacoisaemsi,53
A terceiracríticaouateologiareencontrada,73
A RazãoPráticanaCríticadoJUlZO, 99
08-3994.
12.09.08 16.09.08
CDD: 193
CDU: 1(43)
008736
,
\
2010
EDITORA ILUMINURAS LTDA.
RuaInácioPereiradaRocha,389- 05432-01I - SãoPaulo- SP - Brasil
Te!'/ Fax: 55113031-6161
iluminuras@i1uminuras.com.br
www.iluminuras.com.br
HUME E A ASTÚCIA DE KANT1
Eraumavez,emKbnigsberg,umprofessordemetafísicaque
falavaaseusalunosdaAlma,doMundoe deDeus.Leu umdia
umcéticoescocês,DavidHume,"o maisengenhosodetodosos
céticos"- eessaleiturao levoucomohojesediz,acolocar-seem
questão,aquestionar-see interrogar-sea si próprio.Perguntou-
se se eramesmoumaciênciao queensinava.Perguntou-sese
algumaínfimaproposiçãogeralqueproferiaemsuasaulasera
verdadeiramentenecessária,se enunciavaalgo cuja falsidade
fosse impossível."Toda mudançanecessitade uma causa",
por exemplo.É realmentenecessáriaestaproposição?Sim -
responder-se-á- eu não sei,desdesempre,queumabola de
hilharqueseachaemmovimentodeveterrecebidoumimpulso?
() problema- replicavaHume- é quenãoé essaa questão:
o que lhe perguntoé se a simplesnoçãode "movimentoda
bola"envolvejá ade"impulso"e se,pormeroraciocínio,antes
de qualquerexperiência,vocêpoderiadescobrirestacontida
naquela.E considereda mesmamaneiraqualquerconexão:
"solidez" e "peso", "calor" e "chama"... Incansavelmente,
Humenospergunta:- Diga-mea razãoprecisaporquevocê
pensacomoinseparáveisde direitoessesconteúdosdistintose
desligados.Essaconexãodedireito- acrescenta- euo desafio
<lencontrá-Ia:vocêsópoderá,vencidopelocansaço,invocarasua
experiênciapassadae adetodososhomens.Mas umarepetição
dl~experiênciajá garantiualgumaveza necessidadeabsolutade
<llgumarelação?É aexperiênciaquetornanecessárioumteorema
degeometria?Ora,quandosetratadefatoseeventos,vocênunca
ohteráo equivalentedessacertezageométrica...
I () I!s(adodeS. Paulo. Suplemento"Cultura", 12/12/197
7
SeKantfoi "despertado"porHumedoseu"sonodogmático",
é que nãoachounada a responderao desafiolançadonesses
termos.Hume- disseele - provou"de maneirairrefutável"
queé inconcebívelqueaexistênciadeumacoisaB devaresultar
necessariamenteda existênciade uma coisa A. Teve, pois,
"todaa razão"emconcluirquea ideiadehaverumarelaçãode
causalidadeentreessascoisas(forado nossoespíritoque,por
hábito,forjaestarelação)é "umamentirae umailusão".
Na vidacotidiana.aliás,istoé de escassaconsequência:os
homenslogoseresignarãoa saberquea merarazãonuncalhes
permitirialigar "calor" e "chama".Mas Kant eraprofessorde
metafísica.E queserá,desdeentão,do metafísico,daqueleque
fala de noçõesdasquaisnãotemosexperiênciasensívele que,
por isso,nãopodesequerfundarnaobservaçãoasrelaçõesque
estabeleceentreessasnoções?Quedireitoteráa pretenderque
"Deusé a causado mundo"(ou: a "infraestrutura"a causada
"superestrutura")?Nenhum,éclaro.É oqueconcluíaHume,com
perfeitacoerênciaE éporissoquealeituradeHumenãoproduziu
emKant o efeitodeum despertador,maso deumacampainha
de alarme.Hume, incontestavelmente,haviadestruído"o que
atéaquise chamoumetafísica";mashaviaele extirpado,com
isso,todapossibilidadedemetafísica?É verdadequeapósHume
nossoslivrosdeteologianãosãomaisquecastelosdecartas.Será
possível,entretanto,que os conteúdossuprassensíveis,como
"Deus","a liberdade",sejamnoçõesabsolutamentedesprovidas
desentido?Nãodeveserassim...
E, contudo,oqueresponderaHume?Searazão,sozinha,não
mepermitesequerampliaro conceitoquetenhodeumobjetoda
experiência,o queserá,afortiori, dosobjetosqueestãoalémda
experiência?Se o conhecimentodo sensívelnãopode,quando
muito,meconduziramaisdoqueafrágeisconstatações,quenada
têmdenecessário("todavezqueum corpopermaneceexposto
ao sol, aquece-se"),como produzir enunciadosnecessários
referindo-seaosuprassensível?Quemnãopodeo mínimo,nãoé
capazdomáximo...A questãoestá.pois,decidida:nãohá,para
nós,suprassensível.
Ainda queestaconclusãoescandalize,nãobastaescondero
rosto.É precisorespondera Hume.MostrarqueHumepecou,
8
por precipitação,ao proclamara total impotênciada razão.E,
paracomeçar,é precisoretomara suaanálisedo conhecimento
do sensível.
Sejao juízo seguinte:"o sol é, por sualuz, causado calor
deumcorpo."Semdúvida,seeunãosoubesse,porexperiência
(porouvir dizer,parao cegode nascença),queháum sol e há
corpos,nuncapronunciariaestejuízo. Mas significaisto que
a ligaçãoque ele enunciaseja apenasimpostapelo hábito?
Poderiaeu emitiressejuízo se fosseapenasum ser educado
pelas minhasexperiênciase não um animal racional? Em
outraspalavras,nãoé a razãoque me obrigaa instauraraqui
umaconexãoinseparável?.. Se conseguisseprovarisso,então
apossibilidade,pelomenos,da metafísicaestariaa salvo,pois
euteriamostradoque,foradamatemática,aindacabeumsaber
de origemracional... Mas Kant,ao queparece,é justamenteo
últimoquepossaministraressaprova,pois acabade conceder
quasetudoa Hume- reconhecendocomestequedo conceito
de umacoisaA nuncasetirará,pelamerarazão,o conceitode
umacoisaB. Depoisdisso,comomostrar,semincoerência,que
a causalidadeé umaprescriçãosurgidada razãoe antecipadora
daexperiência?
É horade avisaro leitorque,atéaqui, narreiessahistória
guiando-mepelorelatodeKant:odespertarangustiado,adúvidainsuportável...Ora, pode-seduvidarde que todo estedrama
intelectualtenhajamaisocorridoda maneiracontadapor Kant,
essemestredo suspense.Atravésdele,admiremosantesa mais
insidiosa(e a mais deslumbrante)das retiradasestratégicas
que se possaefetuarnessaarteda guerraideológicachamada
"'ilosofia":Kant fingecederemtudo,porqueseráo únicomeio
denãocederemnada.
(~verdadequeacausalidadenãoéuma"condiçãoinscritanas
\'(lisas":salvopor intervençãode um Deus exmachina,como
';nia possívelqueum conceitonascidoda nossarazão ("B é
I) c()nsequenteconstantedeA") fosseresidirnascoisas,istoé,
l'11!scresque,pordefinição,existemfora denossarazão?Toda
;1 ('rítica da RazãoPura é escritaparaconvencer-nosde que,
qll,lIldo conhecemosou formulamosum conhecimento,nada
dl'svcndamosde"Seremsi", nãodeciframosumtextoqueteria
9
sidogravado"nascoisas",comopretendiamosmetafísicosdesde
Platão.Penetrarpornossarazãonascoisas...Pretensãofanfarrã,
queHumeteveoimensoméritoderefutar.Masacreditouquetodo
conhecimentoracionaldeobjetossetornava,comisso,ilusório
- o queeraatribuirdemasiadahonraà metafísicanascidade
Platão.Em suma,Hume só teriatodaa razãoseo platonismo
não tivessesido um contode fadas.Se pudéssemosacederao
Ser - ao Ser semfragor,luminoso,tal comoDeuso domina
peloolhar- é verdadequenadapoderíamosadivinhardasleis
queregemesseestranhoreino.Sobessaluz demasiadointensa,
ficaríamoscegos- enadaconheceríamosanãosertateando,por
experiência.O quenoscontouHume,aseupesar,éo verdadeiro
passeioforadaCaverna- eéporissoque,nojuízo deKant,este
demolidordavelhametafísicapermaneceligadopassionalmente
aela,comoo algozà suavítima.
Mas larguemosPlatão.- E, ao invésde nosevadirmosdo
sensível,afundemoscom Kant no sensíveltal como é, quer
dizer, tal como é preciso que seja. "Pobres filhos da Terra"
quesomos,nuncafrequentaremosas coisas- é verdade.Mas
essaé umaboanova,pois taiscoisas,afinal,comoHumetão
bem viu, nuncaofereceriamrelaçãonecessáriaà inspeçãode
nosso espírito.Ora, tudo se passade maneirainteiramente
diversacomosobjetosquesurgemdoespaçoedotempo- com
estesconteúdosfeitosparaserempercebidos,imitados,medidos
por homens.Sãomeras"sombras",banidasparaforadacriação
divina,estácerto;masésomentenesseclaro-escuro,desdenhado
pelos metafísicos,que estamos,por princípio, em pays de
connaissance.Sim: porprincípio.Paraqueum conteúdoesteja
relacionadocomigoemposiçãode objeto(sejaelequalfor: os
arranha-céusquevejodaminhajanela,estejornalquevocêlê),
deveestarjá submetidoa certasregrasuniversais- semo que
nãoserianadaparavocênemparamim.Águaquefervessesem
euacendero fogoseriasonhoenão,um"objeto",poisumevento
só se diz "objetivo"se a mudançaqueexpõeremete,segundo
umaregradeterminável,aumeventoantecedente.
Concedidoisso, dá paraver o que se ganhaao passarda
coisa-em-sido metafísicoaoobjetode experiência,cujo rosto,
por assimdizer,já seachadesenhadopelasleis imprescritíveis
10
quedeterminamo quedevesera experiênciasensível?Ganha-
-se o direitode dizer que há pelo menosum país - o dos
homens- onde a causalidaderesultaser precisamenteuma
relaçãoessencialentreosobjetos,poisque,semela,nãohaveria
"objetos".É por issoqueHumeeraapenasumcontrametafísico,
e nãoumcríticoda metafísica.Desafiava-nosa encontrarentre
os coisasumaconexãonecessária(quesó poderiaserteológica
ou mágica).Tinharazão-- mascoma ressalvadequea relação
decausalidadeseencontranumlugardistintodaqueleondeele
justamentecontastavaa suaausência.Comotodanoçãoracional
leórica,elasóé manifestanaorigemdo sensível,enquantoeste
//ão é um caos.Como todanoçãoracionalteórica,ela é essa
antidesordeminauguralpela qual os conteúdossensíveissão
articuladosdeumavezpor todas,sobo nomede "objetos",de
modoa nuncamaisnosdesconcertarem.
"Se alguém,dizia Hume,pudesseabstrairtudoo que sabe
ou viu, seriacompletamenteincapaz,consultandoapenassuas
própriasideias,dedeterminarqueespéciedeespetáculoouniverso
deveser... "Não, respondeKant.Um conceitoracionalcomoa
causalidade,pelomenosnocasodosobjetosdaexperiência,não
(:umapalavravazia,e,nessaregiãopelomenos,oentendimento,
longede ser cópia autenticadade minhasexperiências,é o
"II/l'lteuren scene"da experiência.E, como o entendimento
humanoé,pois,o delegadodeumpoderde legislaçãoreferente
aos"objetos"(a palavraeruditaé transcendental),é permitido
('sperarquea razãopura, isto é, desligadado sensívele, por
conseguinte,incapazde nos fazer conhecero que quer que
sej;l,possuapelo menos,tambémela,umaindependênciae um
poder.Estádesbravadoo caminho,a cujo termose dissiparão
"asdiliculdadesquepareciamopor-seaoteísmo".É pelomenos
IlI'llllilido esperarque a palavra"Deus" venhaa guardarum
""1111110.Comoqueríamosdemonstrar.
/'()is (: isto mesmoqueestáemjogo, só isto estáemjogo
11l"';seajustedecontas:Kantdefendea ciênciaenquantoprática
lI/I 'io//i1j apenaspara ressalvaros direitosda razão em geral
e Iloladamenteo direitode pensar,se não de conhecero
o'lIll1aSS('nsÍvel.- Esse"em-jogo"foi amenamentedissimulado
.I l'nal:()('Sdccscolares,aoselhesensinarqueapossibilidadedas
11
ciênciasdanatureza,diabolicamenteminadaemEdimburgo,fora
salvain extremisem K6nigsberg,poucosanosdepois.Tocante
lendauniversitáriaque só temum defeito:crerna palavrade
KantquandodeploraqueHumetenhasidocapazdeseresignar
à falênciadaciênciaMuito penaríamosàcatadeumúnicotexto
emqueHumeconfessassereduzira"ficções"as'leisdanatureza
e pulverizaras ciências.Este newtonianoconvictonadatinha
de um DoutorFantásticoda episteme.Sua verdadeiraaudácia
- vertiginosa,é verdade- foi libertaro saberdo sistemade
segurançaideológicachamado"razãouniversal".Foi pensarque
umaproposição,parasercient~fica,nãoprecisainscrever-senum
lagosquejá tivesseorganizadoo Serou o "fenômeno".E, este
desafioradical,Kantnãoo enfrentou...
A partirdaí,comodizerqueelesalvouaciênciacontraHume?
O queKantsalvoupor umtempo,deslocandoaudazmente- e
genialmente- o platonismo,foi a razãouniversal,essafigura
derradeiradeDeus,a maissorrateira- queos procedimentos
científicos,narealidade,podemperfeitamentedispensar.O que
exorcizoufoi a imagemdeumaciênciaadulta,quefuncionasse
semgarantianem"fundamento"e,nemporisso,seportassemal.
AssiméqueKant,"retardadordoateísmo",foi canonizadocomo
salvadorda"ciência",e Hume,esseespíritolivre,permaneceu,
paraumatradiçãocondescendente,como"o maisengenhosode
todososcéticos".Históriaedificante,daquala liçãoatiraréque
é precisoacabarcomo mitoda"Ciência"parasetercertezada
eliminaçãodomitode"Deus",equenãoháateísmoconsequente
semdestruiçãode todasas fórmulasde "saberuniversal".Eu
dissemesmo:todas.
12
DO ERRO À ALIENAÇÃO'
Na Reflexão 3.707, intitulada:"Certeza e incertezado
conhecimentoem geral", Kant escreve:~ Ainda que as
coisassejamem si mesmascertamenteo que são, tem-seo
direitode falarde uma incertezao~jetiva,na medidaem que
nosso conhecimento,na sua condiçãode limitado,encontra
forçosamente,nascoisasqueconhece,relaçõesqueé incapazde
determinar."Seo diâmetroaparentedeumaestrelaéconhecido,
massuadistânciaé desconhecida,a verdadeiragrandezadessa
estrelapermaneceincerta- aindaquedessaincertezapor si só
nãopossanascernenhumerro".E prossegue:os limitesdenosso
conhecimentodãocontadenossaignorância,masabsolutamente
11<10bastamparatornar inteligívela possibilidadedo erro. É
illlpossível,ao contrário,emitirjulgamentoserrôneosenquanto
S('estácientedenãoestaremcondiçõesdejulgar.- Kantlimita-
,"l~a retomaraquiumtemaclássico:ali ondetenhoconsciência
deminhaignorância,nãoháerropossível.DesdeoTeeteto,estava
l'iammenteindicadaalinhadivisóriaentresabere ignorância:"É
illlpossívelqueaquelequesabealgonãoo saibaequeaqueleque
II.Ú)o sabeo saiba."(I 88b)
Disto,Platãoconcluíaa impossibilidadedo erro.A opinião
LiI"a, seexistisse,consistiriaemtomaras coisasquese sabem
IItlI coisasque se ignoram- ou, ainda,em confundirduas
(lIiS;IS qneseconhecem... Fórmulasvaziasdesentido,umavez
qlll' foi lraçadaa fronteiraentreSabereNão-saber,entrecerteza
(' 11I('('rleza.E todaa estratégiade Sócrates,na continuaçãododl;ilogo,consisteemmostrarquenãohánenhumaexplicaçãodo
('ITOqnenãonosfaça,nofinaldascontas,recairnessaaporia,-
111-'10 illl'dilo.
13
nenhumasutilezaquepermitaescamoteara oposiçãoabsoluta
entre"saber"e "nãosaber".É bemprematuroojúbilo deTeeteto
quandoSócratesdistingueo fatodepossuir(tochechtethai)e o
fatodeter(toéchein)aciência.À primeiravista,asoluçãoparece
elegante:osconteúdosdosaberseriamentãocomopássarosque
euterianomeuviveiro;aoquererapanhá-los,poderiaacontecer-
mepegarum"li" emlugardeum"12" - comoumpombodo
matoemlugardeumapomba(199a-b).Na realidade,acrescenta
Sócratesdepronto,essasoluçãonãonosfaz avançarumpasso:
osconteúdosdeconhecimentonãosãocomopombasquepassam
depressademaise sobreosquaiseufechariaamãoaoacaso.Se
apanhoum pombodo matoem lugarde umapomba,isso é a
provadequeambossãopássaros;seconfundoumconceitocom
outro,issoprovaquenãoconheçonemumnemo outro...
No entanto,essa distinçãoentre ter e possuir permitirá
atribuiraoerroum estatuto,umavezqueele foi transformado
numadistinçãoentreconstatare julgar. Essa é a soluçãodo
Sofista(262-263).Se se consenteem não restringiro lagos à
constataçãode um "fato atômico",a umanominaçãobrutade
o queé - e simfazê-Iosurgirquando(e somentequando)eu
atribuoa um sujeitoo queeleé, entãoo errovoltaa tornar-se
compreensível.Inencontrávelenquantoeraprocuradono nível
dosmerosconteúdos-- quenãopodemseraquiloquenãosão,
representaraquiloquenãorepresentam,- o erroadquireum
sentidononíveldaarticulaçãodosconteúdos:o erronãopodia
serumapercepçãoaberrante;seráagoraumjulgamentoinfeliz.
Se nãopossotomarTeetetopor Teodoro,quandoos conheçoa
ambos,possojulgar,emcompensação,que"Teetetovoa", isto
é, atribuir-lheumpredicadoquenãolhecompete.Com o lagos
predicativo,abre-seumespaçonoqualosabsurdosnãosãomais
ontologicamenteimpensáveiseondeasdistorçõesdesentidonão
sãomaisalucinações:como benefíciodo jogo entreconteúdo
representativoejulgamento,pode-sedizer,semserlouco,aquilo
quenãoseverifica.
É essadiferençaqueDescartesinvocanaQuartaMeditação.
Em si mesmasformadascomo conteúdosrepresentativos,as
ideiasnadatêmdefalso;apenastêmmaisoumenosderealidade
objetiva.de pesode ser.O logro começaquandoafirmoalém
14
daquilo que me permite a realidadeobjetivadessasideias
inocentes:"E é nestemauusodo livrearbítrioqueseencontra
a privaçãoqueconstituia formadoerro."2A desproporçãoentre
:1infinidadedo livre arbítrioe a limitaçãodo entendimento,eis
a fontedo erroe a explicaçãodo paradoxoquefaz com que,
l'mboraignorando,possamossem mentirafalar a linguagem
daquelequesabe.Ou, maisexatamente,o erroprovémde uma
certadisplicênciadessavontadesoberana.Em relaçãoao saber
c aonão-saber,elaé ind(j'erente.De umatal "indiferença",cabe
unicamentea mimfazerbomusoe abster-me"deformularmeu
juízo sobreumacoisa,quandonão a concebocom suficientc
darezaou distinção."Mas tambémbasta-meum momentode
dcsatençãoparaformularumjuízo temerário,pois, por força
da "indiferença",a vontadepodefazer-secaprichosa:ali onde
nenhumarazão"mepersuadedeumacoisamaisdoquedeoutra
(...) se seguequesouinteiramenteindiferentequantoa negá-Ia
ou assegurá-Ia,ou mesmoaindaa abster-mededaralgumjuízo
aesterespeito"(§ 11).
Tocamosaqui a razão"positiva"do erro? Não. Descartes
l'Xplica sim o mecanismo,mas empenha-seem normalizar
i,-;soquepoderiapassarpor umfenômenopatológicoempleno
coraçãodo saber."Não tenhomotivode melastimar"seDeus
111l'dotou de um entendimentofinito: "Não tenho também
IllOIÍvode melastimardo fatode mehaverdadoumavontade
IlIais amplaqueo entendimento(...) enfim,nãodevotambém
1;lIl1entar-medequeDeusconcorracomigoparaformaros atos
dl'ssavontade,istoé,osjuízosnosquaiseumeengano..." (§ 13).
N;io há nenhumculpado,pois, na origemdessamalversação;
1Il'IIIJumade minhasfaculdadesé responsávelpelo erro, mas
~,()IIIl'nteo usoquedelasfaço- o "Juízo" no sentidokantiano.
1';II('l-equeDescartesnosdeixaentrever- comaindiferençada
\l}lIlade- umarazão,quepoderiaserpositiva,parao erro,mas
',()lIll'ntepara,logoemseguida,minimizá-Iaatéseuanulamento.
I' l' porisso,finalmente,que,seultrapassoo limitealémdoqual
',L' tornaimprudenteafirmar,só possoculparpor isso minha
Ilropriadistração...
1("111"I kSl''Irll's. Meditaçijes,trad.Jacó Ginsburge BentoPradoJr., "Os Pensadores",
(.lll'llla IIIl'dil'lção.~ 13,
15
Certas passagensde Kant retomamessasafirmaçõesde
Descartes:"emcertosentidobemsepodefazerdoentendimento
o autordoserros,ou seja,( ) porfaltadaatençãodevidaaessa
influênciadasensibilidade( ) A natureza,porcerto,nosnegou
muitosconhecimentos,elanosdeixa,a respeitodetantascoisas,
emumainevitávelignorância;maso erroelanãocausa.A este
nosinduznossoprópriopendor(Hang)ajulgaredecidir,mesmo
ali onde,porcausadenossalimitação,nãoestamoscapacitados
a julgar e decidir,'"Restasaber,porém,se essadistraçãonão
é tornadapossívelpor um enceguecimentomaisprofundo.É
surpreendentenotarqueoerro,entreosclássicos,jamaisvaialém
daquiloqueKant denomina"errode absurdo"(Ungereimtheit)
ou "erro inepto"(abgeschmackte):"Um erroondea aparência
estámanifestaatémesmoparao entendimentocomum(sensus
communis)denomina-seumainépciaou absurdo.(...) Um erro
ineptopode-setambémchamarumerroaoqualnada,nemsequer
a aparência,servecomodesculpa."4Nietzschenotaráissoe não
pouparáde seussarcasmosessadesvalorizaçãosistemáticado
erro:
o conceitodo erro exprimiria,de direito,o que pode acontecer
de pior ao pensamento,isto é, o estadode um pensamentoseparado
da verdade.Tambémaqui, Nietzscheaceitao problematal como é
expressodedireito.Mas,justamente,ocaráterpoucosériodosexemplos
correntementeinvocadospelosfilósofosparailustraroerro(dizer"bom
dia, Teeteto"quandose encontraTeodoro,dizer 3 +2 =6) mostra
suficientementequeesseconceitodeerroé somentea extrapolaçãode
situaçõesde fato artificiais,puerisou grotescas.Quemdiz: 3 +2 =6,
senãoacriançanaescola?Quemdiz "bomdia,Teeteto",senãoo míope
ouo distraído?5
Por queescolhertaisexemplos?Talvez,justamente,porque
são suficientementeinsignificantespara não nos despertaro
desejodeinvestigarsenãohaveriaumarazãopositiva- aquela
queKantreclamanaReflexão3.707,nossopontodepartida."Do
fatodequenãoconheçocertascoisasnãosesegueaindaqueeu
, lmmanuelKant,Logik,einllandbuchzu Vorlesungen("Lógica deJasche"),Nocolavius,
Kiinigsberg,1800;AkademieAusgabe,v. IX; Introdução,VIII; A 78,79; IX, 54.
4 Logik, A82; IX, 56-57.
5 GilIes Deleuze.Nietzscheet ia Philosophie.Paris: PUF, 1970,p. 120.
16
p(),~~acmitirumfalsojuízo." De ondevem,então,o erro?Qual
(' ;1polênciaqueo engendra?Serátãocerto,nofinaldascontas,
lIl'"clenasceapenaspor inadvertência?
()uc a opiniãofalsasejaoutracoisa,diferenteda ignorância,
IIllio mundoadmite,desdeo TeetetodePlatão.Masqueelaesteja
('lIraizadaemumpoderpositivo,eisaí, também,algoquetodos
1('íll1amemdissimular.Seriaadmitirqueo homemestáseparado
tI;1 verdadeporumadistânciadedireito:prefere-selançaro erro
liacontade lapsose quiproquós,futilizar"psicologicamentc"o
Ill'gativo,e assimdesviar-sedele,Na QuartaMeditação,escreve
(1IIcroult,o objetivoda investigação"é explicaro erro como
privação,porumacombinaçãodefatorespsicológicostalquesua
1IIIpcrfeiçãopositiva,indiscutívelnaalmahumana,nãoenvolva
Ill'lIhumado pontode vistametafísico."('Querdizer:desdejá a
"psicologia"estavaencarregadade fornecerálibis (teológicos,
ailldanãosociais)e de dissimularas contradiçõesconceituais.
I": pelamesmarazãoquenãosequerreconhecerumapotência
()lIlológicanaorigemdoerroequeseescolhemsempreoscasos
Illaisbenignosparailustraro erro.É precisoqueafalsaopinião,
IIIIJavezreconhecida.nadamaissejasenãoumdesviomínimo,um
('xlraviosemconsequências,talquelhebasteumgolpedebastão
pararegressaraojuízo verdadeiro;é precisoquea falsaopinião
Idlllaismefaçaperdertotalmentedevistaaesferanaqualminha
:ilinnaçãoseráseguramenteadequadaà ideia.
Releia-seo finaldaQuartaMeditação:nãopodehaveroutras
('alisasdo erro,alémdasqueacabodeexpor,garanteDescartes.
'" 'ois,todasasvezesqueretenhominhavontadenoslimitesde
Illl'lI conhecimento,detalmodoqueelanãoformulejuízoalgum
~,I'II;IOa respeitodas coisasque lhe são clarae distintamente
Il'prcsentadaspelo entendimento,nãopodeocorrerqueeu me
<'I/gol/e ..."7 Oerro,talcomoacabadeserdescrito,foi,pois,talhado
",()I! mcdidaparaquepermaneçaintacto(exigênciasuprema)esse
',I,11) dc certeza.A possibilidadedo errofoi determinadade tal
111I)doqueapossibilidadedeumconhecimentoindubitavelmente
I','n/odeiroesteja salvaguardada,Por que indubitavelmente
vndadciro?"Não podeocorrerqueeumeengane;porquetoda
~LlIli:ll (iucroulc Descartesselonl'Ordre desRaisons,v. I, p. 311.
" I l>, N,is sublinhamos.
17
concepçãoclaraedistintaésemdúvidaalgoderealedepositivo,
eportantonãopodetersuaorigemnonada.,,"xAs ideiasclarase
distintastendo,assim,necessariamenteDeusporautore fiador,
é óbvio que os julgamentosque se regulamunicamentepor
elassão,deofício, "verdadeiros".Qualé,nessefinaldefrase,a
exigênciaessencial?O latimdeDescarteso mostramelhorquea
traduçãofrancesa,queo dilui:
...guiaomnisclaraetdistinctaperceptioproculduhioestaliquid...
Háumaregiãoondenãopossoconhecersemconheceraliquid,
istoé, "algo"e "algoqueé", Em suma,Descartes,aoconceder
direitode cidadaniaao erro,nadamais faz senãorestringiro
campoqueo TeetelodePlatãodesdobravaemsuauniversalidade.
Curiosamente,comefeito,a linguagemqueDescartesfalapara
justificar sua concepçãodo erro é a mesmaque,no Teeteto,
anunciaaimpossibilidadedoerro,o nascimentodolet-motivque
liquidarátodasastentativasdedarumsentidoàfalsaopinião.
- Aquelequejulga algonãojulga algodeuno?
- Necessariamcnte.
- Mas quemjulga algodeunonãojulga algoqueé?
-Concedo.
- Aquele,pois, quejulga o quenãoénãojulga nada... Ora, não
julgarnadaépurae simplesmentenãojulgarY
Na QuartaMeditação,Descartescontinuaa reconhecera
validadedesseprincípio- "Julgar algoé julgar algode ente"
- maslimitaessavalidadeaocampodasideiasdistintas,detal
modoqueo erro,fora dessecampo,toma-seconcebível:basta
queeu meabandoneaoscaprichosde minhavontadeparaque
meujulgamentodeixede confiarunicamentenasideiasclaras
e distintas.Graçasa essaconcessão- permitidapela"análise
8 Ibidem.
')PIatão,Teeteto,[89a.Eis aquio textogrego,como destaquedojogo depalavras:
- Ho dededoxázonouchHÉN géTI doxázei?
-Anánche.
- Ho d'hénti doxázonouchÓN TI?
-Symchorõ.
- Ho árame ón doxázonOUDEN dóxázei... Allà menhó Ge mcdendoxázontó
parápanoudedoxázei.
18
I,,;i,'olúgica"- O erropode,pois,serreconhecido,eaconclusão
do 'Ii'cleto podeseredulcoradasemqueo princípiodela seja
:lil,dado.O racionalismoevitaa "escolhaembaraçosa"na qual
,')iinalesacabavaacuandoTeeteto:"Ounãoháfalsaopinião,oué
possívelnãosabero quesesabe.Qualdosdoisvocêescolhe?-
Vi ,cêpropõeumaescolhaembaraçosa,Sócrates.- E noentantoo
,1I)'Umentoperiganãonospermitirconservarosdois..." (196c-d).
I(,t!asasteoriasclássicasdo erro- foraa de Espinosa- são
kitas paraforneceraTeetetoarespostaque,naqueledia,elenão
,'lIcontrou.Pararecusaro dilemade Sócratese tero direitode
di/,l~r:o erroexiste,aindaquesejaimpossívelconhecere não
,'ollhecer,ao mesmotempoa mesmacoisaDão-nos,assim,os
i it,isaomesmotempo:acompreensãodoerroeagarantiadeque
11:1umsaberdoser,Dá-secontadeumfato - queseriaabsurdo
1)'1I0rar- conservandoembora,à custade umalimitação,um
I'/"illclpioqueseriaperigosoabandonar.
Por que,exatamente,perigoso?Por quecontinuara admitir
,'OlllOum dogmaqueo juízo "verdadeiro"diz respeitoàquilo
queée quenãosejulga (propriamentefalando)daquiloquese
i)'lIora?Perguntaristo é perguntar,soboutraforma,por queo
,'ITOnãopassadeumpseudojulgamento,nascidodenossainércia
" d•.llossapreguiça,e porquenãotemcabimentoinvestigarsua
I,I/;ÍO"positiva".
"latãoindicamuitoclaramenteporqueesseprincípionãodeve
s,'r postoemquestão:seo recusássemos,a queconsequências
,',stranhasnão seríamosconduzidos?"Isso de que temos o
:,:liler,ignorá-Io,não por ignorância,maspelo próprio saber
qlle se temdele (meagnomosyne,allà te heautouepistéme)
( ..) como não seriao cúmuloda desrazão(ou polle alogia)
,',',S:lalmaque,uma vez nascidaparaa ciência,não conhece
Il.ld<le ignoratudo?" (I 99d), O pensamentoclássicoem sua
1III;II1imidadedá razãoa estaslinhas de Platão- e a teoria
i li) ,'ITO,desdeo Sofista,tempor tarefaevitartaisparadoxos:
,nlo, é possívelenganar-se,massempre"por inadvertência",
11l'11Iporqueignoro, nemporqueconheço(com o auxílio da
111li ikrença da vontade,de nossadistraçãoe algunsavatares
p';j('olúgicos),Assim o erro,fenômenoperiférico,nãopõeem
, ,IIIS<l<Il~struturado Saber.
19
Mas estasoluçãoé mesmosatisfatória?E não teria sido
preferívelficar com a posição do Teeteto?"Uma vez que,
sobretodasas coisasque sabemosou que não sabemos,em
nenhumtermodestaalternativaaparececomopossíveljulgar
falsamente."(188c)É issoquesugerea Reflexão3.707.Como
julgar falsamenteenquantose ignora?É precisosemprevoltar
a esseponto."É impossívelqueseerrenisto,enquantoseestá
conscientede quenãoseestáaptoa julgar."Se seadmiteque
todojuízo é determinaçãodo seremsi, quetodosos conteúdos
sãointegralmentepartilháveisentreo Sabereo Não-saber,então
não há erro possível:o Sócratesdo Teetetoe Espinosatêm
razão.E Espinosa,ainda,estavabemfundamentadopararejeitar
desdenhosamentea psicologiacartesianada vontade:não se
trapaceiacomaontologia.
Em contrapartida,seo erroexiste- e eleexiste,- entãoé
umaontologianovaqueéprecisoestabelecer,nãoparadarconta
deleposteriormente,masparafazer-lhejustiça.Mesmoque,com
isso, se devamaceitaras consequênciasestranhasacarretadas
por essarecusa:"Isso mesmode quetemoso saber,ignorá-Io,
nãopor ignorância,maspeloprópriosaberquesetemdele..."
Essahipótese,Platãoadavaporfantástica.Ora,elabempoderia
designaro verdadeirolugardo erroe suanaturezaprofundaO
erro,comovimos,eradificilmentepensávelenquantose devia
inseri-Ioemum Saberjá asseguradode seudireito- e só era
possívelinseri-Ioali introduzindouminsignificantegaguejarno
discursoquedizoSer.MastudomudariaseesseSaber-testemunha
constituíssejustamentea ignorânciaemplenocoraçãodosaber
("ignorarpelo próprio saberque se tem"),quePlatãojulgava
inimaginável,sea Ciênciadequeos clássicosfaziama medida
denossasdistraçõesfosseesseNão-saberquesedáaaparência
domaiselevadosaber.
EssaslinhasdePlatãolocalizamcombastanteexatidão- à
reveliado autor- o conhecimentoenceguecidopelapretensão
quetemdeatingir"averdadeiraessência"(cf.186c).Dequeserve,
então,travestiro erroemumacrispaçãopsicológica?Ele nãoé
o efeitode umatemeridadeirrefletida,masdeumaignorância
inconsciente:nãoconsisteem afastar-semomentaneamentedo
saberdoSer,masempôr,semexame,queháumsaberdo Sere
20
I fi I!',; sl~mprepossívelvoltaraoverdadeiro"comparandonossos
, IIl1ill'cimentoscomo objeto."10
Assim Kant inverteo problema.A Ciência.pretensamente
tI Illi/, do erro-distração,toma-seo melhorexemplodo erro-
,llIs{/o. A falsidadenão é maisumafalta com relaçãoa uma
\ndade sempresegura(desdequeeu presteatenção),masum
tI,'sl"lIidoquantoà fragilidadedo saber.Doravante,o falso não
tinI" maisserbuscadonasAparênciasfacilmentecorrigíveisda
Vidaquotidiana,masnaAparênciabemmaisenraizadaqueleva
,I Illetafísicoa decidirsemmesmoperguntar-sequaissãoseus
1llllIos."O erro é possívelunicamentepor uma inconsciência
1lllIwissenheit)da indeterminação(objetiva)do conhecimento"
" ,"porissoqueeleémelhordetectadopelagravidadedofilósofo
'1111"pelaleviandadedo sensocomum.
Tentemosmediro alcancedessainversão:
10)Atéentão,sesehaviareduzidoo erroaosseuscasosmais
Iwllignos,eraparasalvaguardaro dogmadavalidadeontológiea
lIi/lllml dojuízo, istoé, aquiloqueKantdenominaa Aparência
(dl'l"/.,'ehein)e em queele vê o princípiosupremode todosos
nros, desdeo mundoqueeu proclamofinito ou infinitoatéo
h;lstiioqueme aparecequebradodentroda águaOs clássicos
',I I ,"scolhiamexemplos"psicologizáveis"de errosporquenão
'>IIS;lvamounãopodiamelucidaresseprincípio.
.~O) Compreende-seentãoque o pensamentoclássico,na
1,'lIialivadeaclimataro Falso,só podiaproduzircompromissos
',,'111rigor: pretendiadar um conteúdoao erro em nomeda
;\p;m3nciaque esteescondia.Por isso evitavao dilema do
1;'l'fl'fo,que é possívelformulardestemodo:ou o erro não
t'\ isle,ou a Razãoé falseadapelaAparência(ignorae sabeao
IIH'SIIlOtempo).Os clássicos,estes,tentaramexplicarpor que
li hOlllempodementirde boa fé (o erroexiste)semquehaja
111"1,' limapotênciaqueo levea mentira si mesmo(aAparência
, lIll.slilllCionalé inimaginável).
\") I~o homemde ciência que, como tal, está melhor
I'Il",snvadodo erro,umavez quedeveforçosamentelevarem
, t tlllaa "incertezaobjetiva".Já Aristótelesobservavaque não
11.1 :,olislllano raciocíniomatemáticoenquantoestepermanece
,,, 1,,,,"1 I ,\lI',ik. À-X3.
21
conformeaseusprincípios.A erísticacomeçaquandoodiscurso,
pondoemjogo os "princípioscomuns",produz"a aparênciade
aplicar-seàcoisaemquestão".I!
4°) Qual é o estatutodo "erro" em Kant? Essa questãoé
ingênuasepor "erro"seentendeo conceitopsicológicoforjado
peloracionalismoparadarcontadapossibilidadedeseriludido.
Depoisde Kant, a filosofianãotemmaisnecessidadede uma
explicaçãopsicológicadomecanismodeerro,masdeumacrítica
dasofísticanaturalemtodosos seusníveis:"Paraevitarerros,é
precisoprocurardescobrire explicara fontedeles,a aparência.
Isso foi o quepouquíssimosfilósofosfizeram.Eles procuraram
somenterefutaros erros,semindicara aparênciada qualeles
seoriginam."12Há urnafalsidadeno coraçãodo conhecimento,
quenãoéacidental,assimcomohá,nohomem,umaduplicidade
inconsciente.A máfé, a falsaconsciência,a tolicesubstituirão
assim,na antropologiado séculoXIX, as confusõesingênuas
entreo 11e 12,o pombodo matoe a pombaDepoisde Kant,
o errodeixade serumainabilidadeparatornar-seum destino.
Sabe-seo partidoqueNietzscheirá tirardessametamorfose.
TraduçãodeRuhensRodriguesTorresFilho
II Aristáteles,RefutaçôesSc!flstieas,171b-c.
12 Kant,L0l!ik, IX, 56.
22
() PAPEL DO ESPAÇO NA ELABORAÇÃO
DO PENSAMENTO KANTIANO'
() quepodeo filósofodizerdesériosobreo EspaçoeoTempo,
'i11l'de nãovátomardeempréstimoaomatemático,aofísico,ao
,",Ida ou aopsicólogo?Nãoserágrandecoisa,é evidente.Não-
]',',pccialistapor profissão,o filósofo,se for honesto,padecede
11'1'muitoqueaprendercomos especialistase poucascoisasa
di/cr-Ihes,queelesjá nãosaibam.
Serápreciso,pois,tersaudadedo tempoemqueos filósofos
1'1';1111aomesmotempocientistas?Seriaingenuidade.Sehojeos
(1l"lltistasnãotêmmaisnecessidadenenhumadosfilósofosnem,
'.'lhrdudo,desefazerfilósofos,énamedidaemqueseusmétodos
•...1;10em ordem,seusconceitossãouniversalmenteadmitidos
" a,~querelascientíficasrareiam.Que apareçamcontradições
l'll.~l~da teoriados conjuntos,em matemática,no começodo
',(Tulo),quenasçamcontrovérsias(problemadahereditariedade
(I" adquirido,em biologia),e bemdepressao cientistavoltaa
IOlllar-sefilósofo,Outroindíciodomesmofatonósencontramos
110favordequegozamasciênciashumanasjuntoaosfilósofos
d,'hojeemdia:nãoseráporqueestasestãonomesmoestadode
11;i1huciamentoedeinsegurançaemqueseencontravamocálculo
lIi1illilcsimalno séculoXVII e a mecânicano séculoXVIII? A
Iilo~;oliaé a polêmicadas ciênciasquandoestasestãopouco
"Iallmadaso bastanteparadarlugarapolêmicas:inseparávelda
IUV('lltul!edasciências,afasta-sedelasquandoatingema idade
.lilulla,c pode-sedizer,penso,queo interessefilosóficooferecido
1101'Ulllaciênciamedecombastanteexatidãoseuinacabamento
]01110l'iGncia.Essarelaçãoambíguaentreciênciae filosofiaé
111'\lc'lIwtlilo.
23
coisabemdiferentede umaseparaçãoestanque,bemdiferente
dessadissociaçãoentreosdoissaberescomaqualestamosagora
acostumados.
Pensoqueéprecisoreagircontraessecostume-- e,seescolhi
umassuntoaparentementetécnico:"O papeldanoçãodeEspaço
naelaboraçãodopensamentodeKant",nãofoi comaintençãode
darumaauladeHistóriadaFilosofia,masparamostrar,a partir
dedoisexemplosprecisos,tiradosdedois momentosdiferentes
do pensamentodeKant,queumadoutrinafilosóficadignadesse
nomenãoseconstróijamaisnoníveldaespeculaçãotãosomente,
Os conceitoskantianos,porexemplo,sãosempreo resultadode
umaconfrontaçãoentreas noçõescientíficasdo seutempoe
a interpretaçãoque se podedar-lhes;conceitos"estratégicos",
destinadosasuperarascontradiçõesdaatualidadeenãoaedificar
umsistemafilosóficoamais.
O exemplodeKanté interessanteporoutroaspectoainda,na
medidaemquesepodefazerremontara Kantessadissociação,
de queacabamosde falar,entrefilosofiae ciências.Imputando
o dogmatismoda filosofiaclássicaa umaimitaçãodo método
matemático,imitaçãoque consideraruinosapara a filosofia;
opondofilosofiae matemáticacomodois modosinconciliáveis
dosaberracional,Kantanuncia,comtodacerteza,entrefilosofia
eciênciadanatureza,entreRazãoeEntendimento,odivórcioque
Regelviráconsagrar.E noentanto,sea filosofiatranscendental
não tempor objetoprimeirofundara verdadeda física e da
matemática,massimpermitira constituiçãodeumametafísica
comociênciadignadessenome,nãoé menosverdadequeelaé
tambémumajustificaçãoda verdadedasmatemáticase de sua
aplicabilidadeà natureza;e quea doutrinakantianado espaço,
porexemplo,longedeseruma"opinião"filosóficaentreoutras,
estánaintersecçãodeproblemaslevantadospelaciênciado seu
tempo.SeseparássemosKantdessepanodefundocientífico,não
somenteestaríamostraindoaverdadehistórica,mastambémnos
expondoavernafilosofiatranscendentalummonumentogenial,
masgratuitoeparadoxalGostaríamosdetentarmostrarquenão
é assim,buscando,portrásdaletradealgunstextosclássicosde
Kant,aspolêmicasdasquaiselesadquiremsuasignificaçãodas
motivaçõesquenelesseentrecruzam.
24
* * *
()s historiadoresda filosofiafalamde um período"cético"
ti" K:lI1tque,de 1762a 1770,precederiao adventoda filosofia
,"lica, da qual a Dissertaçãode 1770seriaanunciadora.Na
I,'alidade,é bastanteartificiallançara obrade 1770na conta
ti" lal ou tal "período",poisnelapode-severtantoo esboçodo
,111icismoquantooápicedoperíododito"cético".Deresto,oque
',I' ('lIlendepor"ceticismo"?Ceticismoa respeitodametafísica?
,')1111:masemquesentido,exatamente?
Melhor seriafalar,quantoa esseperíodo,de um embaraço
ti" Kantperantea metafísica,embaraçodoqualnãochegamosa
"',l'iarecertodasasrazões.Osmetafísicos,comoLeibniz,legislam
" "tlecidem"noabsolutoapropósitodoinfinito,docontínuo,das
',lIilslâncias- massemoferecer-nosgarantianenhumadesuas
,lilII11ações,Mais queisso: Kant, queé em primeirolugarum
I I<'lIlistanewtoniano,nãoreconhece,nomundocujaeconomiaa
1II\'Ial'ísicanosdescreve,o sistemadepontosmateriaisgovernado
I)('1:1lei da atração,queé o mundode Newton,É desteponto
')lI<'sc devepartir:há um momentoem queKant, apóshaver
1I'lllatloemsuamocidadeconciliarconfusamenteduasimagens
ti"1IIIIIIdo(adeLeibniz,adeNewton),ousareconhecerquetoda
I< 111:11ivadeconciliaçãoé vãe superficialequesetratamenosde
, I IIH'i1iarquedecompreenderporqueaconciliaçãoéimpossível.
I'IS:IÍo núcleodo"ceticismo"kantiano:"Nãomeatenhoanada,
,':.l"I'evceleem 1767aHerdeI',e,comumaprofundaindiferença
1'''1minhas próprias opiniões e pelas de outrem, inverto
I1 "qll(~lItementetodasas minhasconstruçõese considero-asde
t"dllSos lados,buscandoaquelaquemepermitiráteresperança
ti" :llillgiraverdade,"A conciliaçãoentreo mundometafísicode
I ,'i1l1lizc asexigênciasdasciênciasexatasé impossível.
11111único exemplo,SegundoLeibniz, o espaço,que nos
,11'.IIl'('('comoumaextensãodivisívelemensurável,emrealidade
" IIIl'l'alllcnteuma ordem intelectual,conjuntodas relações
11I'.lllllltlaspor Deus entreas mônadas."O espaçonãoé nada
',,'111:\'scoisas,senãoapossibilidadedepô-Ias."Kantcomenta,na
I', 11('1ll/ri/o de1770:"O espaçodesapareceriainteiramente,pois,
'111.i1It1osesuprimemas coisas,e só seriapensávelnosatuais."
25
Ora, seassimé, o espaçoeuclidianoé um conceitooriundoda
experiênciaperceptivae os axiomasgeométricosnão passam
deconstruçõesindutivas,de modoqueé precisodizer:"Jamais
descobrimosatéagoraum espaçoencerradopor duasretas",e
não:"Duas retasnãopodemencerrarum espaço."Se Leibniz
temrazão,a geometriaeuclidiananãoé umaciênciauniversale
necessária,masumaespéciedefísicaintuitiva.SeLeibniztemrazão,
asnoçõesgeométricasnãosãoextraídasdaverdadeiranatureza
doespaço,masforjadasarbitrariamente- opiniãocontraaqual
Kantseinsurgiadesde1763.E, em 1768,no opúsculoPrimeiro
Fundamentoda Diferençadas Regiõesno Espaço, pretendia
forneceraosgeômetrasum"fundamentoconvincenteparapoder
afirmarcomaevidênciaquelhesé costumeiraa realidadedeseu
espaçoabsoluto."Linguagemqueeraainda"pré-crítica",já que
Kantadmitiaumespaçoabsoluto"independentedaexistênciade
todamatéria".Mas o importantenãoestáaí: Kant,paradefender
o espaçoabsolutode Newtone dos geômetras,vai doravante
empreenderumacríticaradicaldas tesesleibnizianassobreo
espaço.A publicação,em1765,dosNouveauxEssaisdeLeibniz
sófezengajá-loaindamaisnessavia.
Para Leibniz, a extensão,quer dizer, o espaçocontínuo
dos geômetras,é um "fenômeno"(no sentidopejorativode
"aparência")."Todaa continuidadeé umacoisa ideal" - e o
espaçoquantitativoe mensurávelnãopassadeumaimaginação
bemfundada (uma vez que a distânciaespacialtraduzuma
relaçãoqualitativadeordementreassubstâncias),mas,enfime
sobretudo,umaimaginação.Por queLeibniz sustentaessatese?
Talé a questãoqueKant vaicolocar-se.E é porcolocar-seessa
questão,portentardesentranharo pressupostoquetornasofística
atesedeLeibniz,queKantcriticaLeibniz,noverdadeirosentido
dapalavracriticar.É essareflexãocríticaquemuitosmanuais
estãotraindoquandonosdizem:"Leibnizpensavaque...Depois
Kantpensouque..." - comoseKanttivessecontentadocomopor
à opiniãoleibnizianaumaopiniãokantiana:a doutrinakantiana
do espaçonascequandoKant seperguntapor queLeibniz não
poderiaterrazãoe nãoporqueKant teriadecididoqueLeibniz
estavaerrado.- Por que, então,a continuidadedo espaço
geométricoé, segundoLeibniz,algodeirreal?
26
Porquea própriaideia de contínuoé contraditória.Como
determinarocontínuo?Porumnúmerofinito?Seriaabsurdo,pois
chamamoscontinuidadea propriedadedasgrandezasdenãoter
nenhumapartequesejaamenorpossível.Porumnúmeroinfinito?
Destavez,éapróprianoçãoqueéabsurda,comoLeibnizprovou
diversasvezes:nãohá númeroinfinitoexistenteematocomoo
totalacabadodetodasasunidades,comoo últimotermodasérie
naturaldos números.Assim, nãosendoexprimívelo contínuo
nemporumnúmerofinitonemporumnúmeroinfinito,bemsevê
quesetratameramentedeumanoçãobastardaecontraditória.A
ideiadecontínuodesmoronae,comela,avalidadedageometria
euclidianacomosaberuniversale necessário.
Entretanto,consideremoscom atençãoo segundotermodo
dilema:o infinitoatualé umanoçãoabsurda.- Certamente,diz
Kant, Mas nãoseriaporqueo entendemoscomoum maximum
numérico,"umaquantidadetal queé impossíveloutramaior",
o queé efetivamenteabsurdoe contradiza próprianoçãode
quantidade?Paradizê-lodeoutromodo:sesedecidedeantemão
queo infinitoatualéumamultitudedeunidadesmedidaporum
númeroinfinito(entendidoelemesmocomoo maiordetodosos
números),nãoé surpresaquesepossaconcluirpeloabsurdode
tal conceito.- O mesmonãosedá,porém,se seentendepor
infinitoatualumconjuntonãomensurável,umaquantidade"que,
quandoreportadaa umaunidadede medida,é maiorquetodo
número."Ouentão:"aquilocujarelaçãoàunidadeéinexprimível
por um número."Com esta nova definição,o infinito atual
continuairrepresentável- masépelomenosconcebível.
Os leibnizianos, assimilando de imediato "infinito" e
"multitudemaximum",cometemum sofisma.Mas por que o
cometem?Porquese recusama dar um sentidoa umanoção
como a de totalidadeinfinita - querdizer,porque,de fato,
julgam inconcebível,no absoluto,aquilo que é tão somente
não-representávelna intuição,contraditóriode direito aquilo
queé tãosomenteimpossívelde fato.Com relaçãoàs leis do
conhecimentointuitivo,umanoçãotal comoa de "totalidade
infinita" é contraditória Mas devemos concluir dessa
contradição,paranósevidente,queháumacontradiçãológica,
noabsoluto?
27
É certoque tudo o que implica uma contradiçãológica é
impossível;maséfalsosustentarquetudoaquiloquenosparece
impossívelimplica forçosamentecontradição.É falso decidir
automaticamentequeumanoçãoé absurdapor nãopodermos
construí-Ianemrepresentá-Ianaintuição."Tudoo queé incom-
preensívelnãodeixade ser",já dizia Pascal.Assim, em lugar
de rejeitar simplesmentecomo contraditórioo conceitode
"totalidadeinfinita",diremostãosomente,commaiorprudência,
quenóshomensnãopodemosrepresentar-nosumamultitudea
nãosercomoumaquantidadee que,emvistadisso,quandonos
falamdeumTodoinfinito,nóstraduzimosnaturalmentepor"uma
quantidademaximal"- edenunciamosnissoumabsurdo.Maso
absurdoestánatraduçãoimprudentee inconscientequefazemos
dessanoção:não estána noçãomesma.O absurdoestáem
acreditarquenãopodehavermultitudequenãosejaquantitativa,
obtidapelaadiçãosucessivadeunidadeaunidade...
Detenhamo-nosnestacrítica,feitaporKantnaDissertaçãode
1770, à críticaleibnizianado infinitoatual.Ela requeralgumas
observações.
1°)Kant nos diz, em suma:nãodevemosjamaispensara
priori que aquilo que parececontraditórioa nossosolhos é
contraditórioem si; nãodevemosconfundiro impossívelpara
nós com o contraditório.Para melhorprovar a contradição,
arriscamo-nosentãoa escorregarparasofismas.E é bemissoo
queocorreaqui.A noçãonospareceabsurdaemsi porquenósa
interpretamosespontaneamentecomoumanoção- quantitativa,
semperguntar-nossetemoso direitode pressuporum infinito
atualquantitativo.Ora, se o númeroe a quantidadesão tão
somenteregrasde nossoconhecimentointuitivo,o metafísico
não temo direitode estabelecerumacomummedidaentreo
infinito- objetoforadenossoalcance- e osobjetosdenosso
conhecimentointuitivo,quantitativoefinito.Nãotemodireitode
escrever,comoescreviaLeibniz,que"a aritméticaeageometria
deDeusé a mesmaquea doshomens,excetoquea deDeusé
infinitamentemaisextensa"(LeibnizaoLandgrave,setembrode
1690).
2°) Desde 1770,esse temada incomensurabilidadeentre
o finitoe o infinitotorna-seo tema,por excelência,destruidor
28
Ii
f'
~it
~
da metafísicacIássica.Se Leibniz tivesserazão,dissemos,o
contínuogeométriconãopassariade umailusãoe a geometria
deumsaberempírico.Mas,paraqueLeibniztivesserazão,seria
precisoquetivéssemoso direitode raciocinarsobreo infinito
emtermosquantitativos,querdizer,emtermosdeconhecimento
humano.Seserecusaesteúltimopressuposto- eéesseosentido
da tesesobrea incomensurabilidadeentrefinito e inflnito-
entãoLeibnizestáerrado:pode-seconceber,senãorepresentar,
umTodoinfinito;acontinuidadenãoé umanoçãoinsustentável
e a geometriaeucI idianareadquireseu sentidode verdade,a
despeitodametafísica.
(Observemosaquique,ao explicitara funçãodessateseda
incomensurabilidade,suscitadapelanoçãodeespaçoeuclidiano,
nãopretendemosdarcontadaorigemdessaideianopensamento
de Kant Issoé outraquestão- quenosremeteriaaosescritos
geográficose cosmológicos,emparticularà Teoriado Céu de
1755,ensaiodeaplicaçãodosprincípiosmecânicosdeNewton
à cosmologia.Ali Kantjá insistena ideiadequeseriairrisório
pretendermedira infinidadedo mundo:"Não nosaproximamos
maisda infinidadedapotênciacriadorade Deusseencerramos
o espaçoem umaesferadescritacomo raio da Via Lácteaou
sequeremoslimitá-Iono interiordeumglobodeumapolegada
de diâmetro.Tudo aquilo que é finito, tudo aquilo que tem
limitese umarelaçãodeterminadaà unidadeestáigualmente
distanciadodoinfinito..."É bomnotarqueaideiasegundoaqual
nãopodemos"decidir"sobreo infinito,longede ser,no século
XVIII, uma ideia retrógradae obscurantista,é umamáquina
de guerracontraa metafísica,queacompanhao nascimentoda
cosmologiacomociênciaequepodeserreencontradaemBuffon
e nosenciclopedistas.)
3°) Kant nãonos diz melancolicamentena Dissertaçãode
1770quenósestamoscondenadosaummododeconhecimento
intuitivo.Diz-nos, sobretudo,quepode haveroutromodo de
conhecimento,quenãoa intuição,outramaneirade encararo
infinito,quenãoaquantitativa- masqueessapossibilidadenos
é recusadano nível da intuição.Não temos,pois, o direitode
parecercompreendero inflnitoemtermosquesósãoválidospara
a esferade nossoconhecimentohumano.É o adventoda ideia,
29
retomadacommaisclarezanaobracrítica.de quea metafísica
eraumfalsoSaberabsoluto.Sepretendiaevadir-sedasfronteiras
denossoconhecimento,erapordesconhecerquetodoequalquerconhecimentohumano,a começarpelaprópriametafísica,está
essencialmentelimitadoà esferado finito.Só quea metafísica
o ignoratão bemque interpretatodosos nossosconceitos(o
infinito,porexemplo)comosepudéssemos"decidir"sobresuas
propriedadestãosomentepelasforçasde nossarazão.A crítica
kantiana,pelocontrário,nosdirá:nãosejamvítimasdo caráter
essencialmenteintuitivodoconhecimentohumano;guardem-sede
afastarcomocontraditórioemsiaquiloqueIhespareceimpensável
noníveldaintuição.Nessesentido,é tãofalsofazerdeKantum
"partidáriodaintuição"quantodeMarx um"economista"oude
Freudum"pansexualista":eledescobree,muitasvezes,denuncia
aintuiçãonocoraçãodenossoconhecimento(descobre-amesmo
quandoadenunciacomofontedeilusões),assimcomoosoutros
descobremo econômicoe a sexualidadeno coraçãode nossa
condição,paradesmascararsuasciladas.- Falso, igualmente,
oporKantao"racionalismo",já queumracionalismocomoo de
Leibniz é paraeleo conhecimentohumanoquandoseempolga
a pontodeesquecersuaamarraintuitivae deacreditarquepode
decidirnoabsolutoquantoà verdadee à falsidadedosconceitos
- enquanto,defato,"decide"sempreemrelaçãoa seusistema
dereferência.
40)A recusado axioma"tudoo queé impossível(paranós,
narealidade)é contraditório"significaquenãodevemosjulgar
a verdadede umanoçãopelapossibilidadeou impossibilidade
de construí-Iana intuição- quenãodevemosafastara noção
de "Todo infinito"só porque,para nós,umasériecomoa dos
númerosnaturaisnãopodejamaisseracabada.Kantrecusabem
menoso racionalismoque o intuicionismo,doutrinasegundo
a qualnãosepodeconferirvalidadeao objetode um conceito
a nãoserquandosepodeconstruí-Iopor um númerofinitode
operações.E nisto,aliás,ele se encontracom Pascal:"Não há
geômetraquenãocreiaoespaçodivisívelaoinfinito.Nãosepode
sê-IosemesseprincípiomaisqueserhomemsemalmaE, não
obstante,nãohánenhumdelesquecompreenda(entenda-se:que
possaefetuar)umadivisãoinfinita...Nãoépornossacapacidade
30
de conceberessascoisasquedevemosjulgar de suaverdade."
()por-seao racionalismoclássico,cortaro saberhumanodo
Absoluto,nãoé ser irracionalista.É, pelo contrário,preservar
o fundamentodaciência- nocaso,emPascalcomoemKant,
da Geometria.Para melhorafirmara verdadeda Geometria
c do contínuogeométrico,ambosrecusamsubmetera ciência
à jurisdiçãoda metafísicae mostramqueo metafísicosó tem,
sobreo cientista,umúnicoprivilégio:o dafaltadeescrúpulos.
* * *
De queos conceitoskantianostenhampor objetofundara
verdadedosconceitosdaciênciamodernaeliberarogeômetraou
o físicodetodocomplexodeinferioridadeperanteo metafísico,
dissopodemosencontraroutraprovaem um momentoulterior
do pensamentode Kant a elaboraçãoda noçãodefenômeno.
Esta é às vezesapresentadacomo uma noçãoobscurantista,
expostasoba formapérfidaqueé a seguinte:"Não podemos
conhecersenãofenômenosejamaisatingirascoisasemsi."Não
digo queestafrase,tal e qual,sejafalsa;no entanto,deforma
completamenteo pensamentokantiano.Paracompreenderisso,
é precisopartir,destavez,dareflexãosobrea físicamatemática
_ maisparticularmente,deumtextodosPrimeirosPrincípios
Metafisicosda Ciênciada Natureza:CapítulolI, Observação2
aoTeorema4.
A matemáticapressupõeadivisibilidadeinfinitaoucontinui-
dadedo espaço.Como a matemáticapodeaplicar-seà matéria
contidanoespaço,épreciso,pois,queessamatéria,tambémela,
sejainfinitamentedivisívelempartesdasquaiscadauma,por
suavez,é matériaOra,o metafísiconosobjetará;"Se a matéria
é infinitamentedivisível,entãoelasecompõedeumaquantidade
infinitadepartes,atualmentedadas;recaímosassimno absurdo
do infinitoatual;é portantoimpossívelquea matéria,e também
o espaçoquea contém,sejamdivisíveisao infinito."Mas não
podemosaceitarestaconclusãodometafísico.Por duasrazões:
I ") "negarque o espaçoseja divisível ao infinito é uma
vã tentativa,pois raciocinaçõessutis nada podemcontra a
matemática";
31
2()) aindaqueseadmitisseacontinuidadedoespaçogeométrico
semadmitiradamatéria.aconsequênciaseriaigualmentegrave:
apossibilidadedeumafísicamatemáticaseriaininteligível.
Vocêsestãovendo,pois,queaindaaquisetratadesalvaguardar
os fundamentosde uma ciência contra os argumentosdo
metafísico.Diremosentãoqueamatériasecompõeefetivamente
de umaquantidadeinfinitade partesatualmentedadas?Não:
acabamosde verqueessasnoçõesde quantidadeinfinitaatual
e de númeroinfinitosão absurdas.E não se tratade assumir
os paradoxosquea metafísicadenunciana ciência,mas,pelo
contrário,demostrarquesãofalsosparadoxos.- A únicasaída
consiste,portanto,em reexaminara proposiçãodo metafísico:
"Seamatériaé infinitamentedivisível,entãoeladevecompor-se
deumaquantidadeinfinitadepartesatualmentedada."O aparente
rigordessaproposiçãoestáaoabrigodetodaprova?
Formulemos a questão mais polemicamente:sob que
condiçõesessaproposiçãoé falsa?Sob quecondiçõespode-se
sustentara divibilidadeinfinitada matéria(indispensávelpara
a física) semconceber,absurda-mente,a matériacomouma
quantidadeinfinitaatual(o queequivaleriaà expressão"círculo
quadrado")?Sob quecondiçõesteriaeu o direitode dizer:"A
matériaé infinitamentedivisível,masnãosecompõerealmente
deumaquantidadeinfinitadepartes"?
Aqui, mais uma vez, Kant fará entrarem jogo a lei da
incomensurabilidadeentreas noçõespuramenteintuitivase as
noçõespuramenteintelectuais.Dizíamosagorahápouco:éfalso
aplicaraumconceitopuramenteintelectual- o Todoinfinito-
a lei daintuição.Podemosdizeragoraemsentidoinverso(eesta
expressão"emsentidoinverso"mereceriaumlongocomentário,
poisresumeo deslizamentoqueseproduziuentreaDissertação
de 1770e a obra crítica a partir de 1781):é injustificado
raciocinarsobrea matériaquepreencheo espaçocomosobre
umasubstânciametafísica.- Poistudoo quevemoséquenossa
divisãodamatériapodeir tãolongequantoa levemose queela
nãotemtermoúltimo;masisso nãonos autoriza.de nenhum
modo,afinal,aafirmarqueamatériaéumatotalidaderealmente
infinita,que se compõerealmentede um númeroinfinito de
partes:"É verdadequeadivisãoseestendeaoinfinito,masnunca
32
estádadacomoinfinita;porquea divisãoseestendeao infinito,
nelaseseguequeaquiloqueé divisívelcontenhaumainfinidade
departesemsi e foradenossarepresentação..."
Paradizê-Iodeoutromodo:aproposiçãodometafísicosótem
rigorporqueelepressupõe(semdizê-Io)queoespaçoeamatéria
sãocoisasjá dadas,um conjuntode partesjá enumeradaspor
Deus.Seafísicamatemáticaépossível(esabemosquesim),seo
metafísicoestáerrado,éessepressupostoquedeveserrecusado,
poisénelequeseinfiltrao sofisma.Ora,recusaressepressuposto
consisteemsustentarquea matériasensívelnãoestádadaantes
queeuaconheça,queelanãocontémpartesantesqueeuadivida
Numapalavra,queelaéfenômeno.E nãocoisaousubstânciaOra,
afirmaçõesqueseriamabsurdasnoníveldassubstânciasdeixam,
justamente,desê-Io,noníveldasnão-substfmcias.Taléo sentido
dadoutrinadafenomenalidadedoespaçoedamatéria:ummeio
defundaradivisibilidadeinfinitaevitandoo paradoxodoinfinito
atual,subtraindoaometafísicoumajurisdiçãousurpadasobrea
física matemática.O Físico, comoo Geômetraagorahápouco,
sabecomcertezaquea matériaé infinitamentedivisível;Kant
poderiaterdito parafraseandoPascal:"Não sepodeser físico
semesseprincípiomaisqueserhomemsemalma".
O papeldo filósofonãoconsiste,pois, em provarao físico
queeletemrazão,masemcolocaraoabrigodetodososataques
possíveisdametafísicadogmática"umteoremadoravantefísico".
"Dissosesegue,diráaCríticadaRazãoPura,queosfenômenos
em geralnãosãonadafora de nossasrepresentações."E Kant
acrescenta:aquelesque não tivessemsido convencidospela
exposiçãomesmadessadoutrinado fenômenoo serão,talvez,
por essaprovaindireta.De nossaparte,pensamosque"a prova
indireta"nosinstruimelhorsobrea origeme a funçãodanoção
defenômenoe nosfaz compreenderqueo "idealismo"kantiano
é bemmenosumateoriado conhecimentoqueumaestratégia
antimetafísica.
* * *
Tomeideliberadamenteessesdois momentosdiferentesdo
pensamentokantianoporqueelesmostramcomodoisconceitos,
33
puramentefilosóficosemaparência(o corteentrea intuiçãoe o
pensamentoeo caráterfenomenaldamatéria)sãoduassoluções
(obtidaspor ummecanismoanálogo)paradois problemasque
se colocavama Kant 1") comosalvaguardara continuidadedo
espaçogeométricoe, com isso,a geometriacomociência?-
2°)comosalvaguardaradivisibilidadeinfinitadamatériae,com
isso,a físicamatemáticacomociência?
A soluçãodessesdois problemasimplicava,em dois níveis
diferentesa ruína da metafísicaclássica,que Kant denomina
"dogmática".Era precisoescolherentre,de umlado,adoutrina
leibnizianado mundosubstanciale, de outro, as concepções
do espaçoe da matériaimpostospela geometriae a física É
essaescolhaque tempor nome"idealismotranscendental"e
que,fazendosoçobrarno misticismoe no contode fadastodo
o passadofilosóficode PlatãoatéLeibniz, inauguraa filosofia
moderna.
É curioso, para um leitor de Kant, ver o quantoesse
movimentodepensamentoexemplar,essaatençãominuciosaaos
requisitoseàscondiçõesdepossibilidadedaciênciadeEuclides
e de Newtonforamquasesempreignoradose deformados--
comoo denunciadorda metafísicafoi por suavezdenunciado,
superficialmente,como"metafísicoidealista".Deve-seimputar
essefenômenoaodesconhecimentodostextos?Não.É maisgrave.
Deve-severnissoa revanchedametafísicacontraa ciênciae a
filosofiaatentaàssuasexigências.Regelcomeçouporescarnecer
o "escrúpulocrítico"deKant - masRegel foi tambémaquele
quedemonstravadiaIeticamentequenãopodemexistirmaisde
seteplanetas,no mesmoanoem que se descobriaum oitavo.
ComRegelrecomeçaapretensãometafísicaderegerasciências
ou de fazerconcorrênciaa elas;assim,comparandoa precisão
kantianacomo romantismohegeliano,nãohácomoimpedir-se
deexperimentaraquiloqueVuilIeminchamadesentimento"de
umamargosaberdedecadência".Kantabriaumaoutravia,mais
modestaemaisdifícil: refletirsobreosconceitos- como,aqui,
odeespaço- parapô-Iosemacordocomaverdadedasciências
deseutempo.
Um últimoreparo.Ao expormuitoparcialmentea função
quedesempenhouo espaçonaelaboraçãoda filosofiade Kant,
34
IIÚO pretendisustentarquesepodeaindahojeserkantiano(por
(~xemplo,apósas geometriasnão-euclidianas).Acredito,pelo
contrário,que a melhor homenagemque possamosprestar
aos pensadoresclássicos é lê-Ios e compreendê-Ios, com-
preendendoao mesmotempopor que, hoje, não podemos
maissernemaristotélicosnemcartesianosnemkantianosnem
marxistascomoteríamossido na épocaem queessesautores
viviam. Quis dizer, mais simplesmente,pautando-mepelo
exemplodeKant,que,desdeKant,a verdadeirafilosofiazomba
dametafísica,Nãoqueeuentendapor"(llosof1a"umpositivismo
sumário:massim a crítica,constantementeretomada,de toda
metafísica(incluindo,aliás,o positivismo),o questionamento
dos dogmas e das falsas evidênciasem nome dos quais
preferimossuspeitardos resultadoscientíficose nãode nossos
preconceitos.Kanttinharazãoaoprotestarcontraaquelesqueo
chamavamsumariamentede"idealista";nãosomenteporqueessa
denominaçãoimplicaum contrassenso("O idealismoconsiste
emsustentarquenãoháoutrosseresalémdosserespensantes...
Pode-sechamarminhadoutrinade idealista?É justamenteo
contrário.");massobretudoporqueessecontrassensoérevelador
de umaincompreensãoaindamaisprofundade suasintenções,
queeleresume,nosProlegômenos,doseguintemodo:"proteger
o geômetra(e o físico) contratodasas chicanasde umarasa
metafísica,no quediz respeitoà realidadeobjetivaindiscutível
de suasproposições,por maisestranhasqueessasproposições
possamparecera umatal metafísica,porqueela nãoremonta
atéasfontesdosprópriosconceitos."Pode-seperguntarsehoje
nãoestamosvendoressurgiresseconflitoentrea metafísicae as
ciências,nãomaisapropósitodoespaçoedamatéria- mas,por
exemplo,apropósitodautilizaçãodasmatemáticasnasciências
humanas,queos filósofosdesprezamem nomeda "liberdade
do homem".Ora, o grandeméritode Kant é mostrar-nosque
háumamaneiraquenãoé nemcientificistanempositivistade
defenderascertezasdaciênciacontraasobjeçõesdasideologias
e de ajustarao nívelda razãoas noçõescientíficasnovas,"por
maisestranhasquepossampareceràmetafísica".
TraduçãodeRubensRodriguesTorresFilho
35
oAPROFUNDAMENTO DA
DISSERTAÇÃO DE 1770
NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA'
Em que medidaa Dissertaçãode 1770abre caminhoà
Crítica?
Em que proporçãodeve-sesituá-Iaaindasobrea vertente
"pré-crítica"?
O certoé queestadivisãodá origema muitasdificuldades.
Apesarde onzeanossepararemas duasobras,a maioriados
intérpretesconcordaemconhecerqueaDissertação,emalguns
pontos,vaimaisalémdoquesimplesmenteanunciaraCrítica:os
elementosdasduasprimeirasAntinomiasjá seachamexpostos
aí, a doutrinado caráteridealdo tempoe do espaçojá é algo
adquirido...Éverdadeque,em1770,aindanãosetratadacondição
de possibilidadede um conhecimento"a priori" (a expressão
"a priori" nãoé sequerpronunciada),masa impressãogeralde
queserequermuitopoucoparaqueo autordaDissertaçãose
torneaqueleda Critica, nãoé menor.Mas, o quesignificaeste
muitopouco?Antesdetudo,refere-seaoestágiodos"númenos"
ou "inteligibilia"que,em 1770,Kant aindase obstinaa tratar
comoobjetosdosabereaosquaisdáumlugarpositivodooutro
ladoda grandelinha divisóriatraçada,doravante,por cimado
"conhecimentosensível".Se fosseisto, Kant teriaempregado,
portanto,onzeanosparadecidirque"noumenorumsciencianon
datur",e queo únicoconhecimentointelectualválidoé aquele
queseexercenoslimitesdaintuiçãosensível,sobreo terrenoda
possibilidadedaexperiênciaOnzeanosparaabjurarametafísica
I EstudossobreKant- Cadernosda UnE, Brasília, 1980.
37
especial.Onzeanosparaatravessaresterubicão:seria,contudo,
pordemaislongo.Poracaso,serácertoqueKantnuncaatravessou
o Rubicãono pontoondeumatradiçãopositivistaou idealista
marcousuapassagem?Gostariadetentarmostrar,confrontando
algunstextos,queKantfoi conduzido,daDissertaçãoà Critica,
a modificar,semdúvida,a relaçãodo sensívele do inteligível;
estaevolução,porém,nãoé aqueladeum metafísicorenegado,
comosepoderiacrer,queseconverteria,camufladamente,emum
positivismoqualqueravantla lettre;estarupturacomo espírito
ainda "metafísico" (no sentido tradicional)da Dissertação
consistemaisemumaprofundamentodoqueemurnaruptura.
Em 1770,comosesabe,Kantproclama,comalarde,contra
Leibniz e Wolff, a originalidadee autonomiado conhecimento
intuitivo.Mas porque,precisamenteele,convidao metafísicoa
levar,cuidadosamente,emconta,adiferença"totogenere"entre
osprincípiosdomundosensíveleosdomundointeligível?É que
o desconhecimentodestadistinçãofoi, peloquesepodecrer,a
fonteprincipaldosdesviosdametafísica.Por nãosetervistona
"sensitivacognitio"senãoumsaberaindadesordenadoeconfuso
dascoisas,o qualseriareservadoao"inteIlectus"manifestarem
todapureza,os metafísicosnãosederamaotrabalhodeindagar
queinfluênciadisfarçadapoderiaexercersobreseusjuízoso fato
depertenceremaomundosensível.
Vítimas desteintelectualismoingênuo,nãoperceberamque
muitasvezesequasesemprefalavamcomofilhosdaterra,quando,
então,eles própriosjulgavamestarpousadossobrea "ratio"
divina.Semperceber,tomam"os limitesquecircunscrevemo
espíritohumanoporaquelesquelimitama essênciamesmadas
coisas"2,detalmodoquemuitasproposiçõesmetafísicassão,o
maisdasvezes,juizosprecipitados.Crê-sedecidirsobreo ser,
mascomoconsiderao espaçoeo tempo"comocondiçõesdadas
emsi e primitivas"3,estadecisãoétomadaemfunçãodenossos
hábitosintuitivos.Acha-seimpossívelo contínuoou o infinito
atual "porque a representaçãodestesé impossívelsegundo
as regrasdo conhecimentointuitivo"e que "irrepresentável
2 Diss. & I. Ak - Ausg. 11,399/tr.Mouy. p. 23.
J Ibid. & 2. lI, 391/tr.p. 27.
38
c impossível significam usualmentea mesma coisa"4.A
f)issertação,em compensação,não se cansade nos recordar
queum conceitoquenãoé realizávelintuitivamentenãoé,por
issomesmo,contraditórioemsi e podeconservarumsentidode
ordemintelectual.
Esta convicçãoestáexpressa,o melhorqueé possível,na
crítica que Kant dirige aos detratoresdo infinito atual (quer
dizer, aos futurospartidáriosda Teseda Ia Antinomia).Que
sustentameles,estesneoaristotélicos?Que nãohá quantidade
senãofinita (omnismultitudoactualisest dabilis numero)5.É
inegável,respondeKant,paranós,todaquantidadeé produzida
por interação,sucessivamente,detalmodoqueumaquantidadeatualé necessariamenteumaquantidadequepodeserpercorrida
emumtempofinitoenãosaberíamoscompreenderdistintamente
uma"multitudo"quefosse,aomesmotempo,atuale infinita.Ao
invés,porém,deconcluirqueo infinitoatualnãoé representável
sobaformadeumtodoobtidoemsérie,osfinistastranspõempara
as coisasemgeral umaimpossibilidadequenãoé, entretanto,
relativasenãoà lei denossasensibilidade- e decretam,assim,
queo infinitoatualé impossívelemabsoluto.Tal é o sofisma
típico quecometemossob a "sugestãodo sensível":negamos
toda validadea um conceitosemconsiderarquenão fizemos
senãojulgá-lo à basede sua traduçãosensível.Recusamoso
infinito atualporque,comoobservavaEspinosa,traduzimo-Io,
espontaneamente,comouma"multitudomáxima"quedeveria
medir"omaiordetodososnúmeros"(noçãoseguramenteabsurda)
e nemsequernosocorrea conjecturade queumentendimento
dotadodeintuiçãointelectuale nãosensível,talvezfossecapaz
de"compreenderdistintamente,deumsó golpe,umamultitudo
semaaplicaçãosucessivademedida"6.
Infinitoe totalidadesãopensados,portanto,comonoçõesem
si inconciliáveis... É emnomedestepostuladoaventureiroque
J Ibid. & I. lI, 388/tr.p. 21.
5 "Como todaquantidadee qualquersérienãoé conhecidadistintamente,a nãoserpor
coordenaçãosucessiva,o conceitointelectualde quantidadee de multidãosurge
somentecom a ajudadesteconceitodetempoe nuncachegaà completezaa nãoser
quea síntesepossaseracabadaemtempofinito",(& 28 11,415)c1'.& I, nota11,388.
ó Ibid., & I. 11,388.
39
li:
"a maiorparte"dosmetafÍsicosproclamaa finitudedomundono
espaçoenotempo,porqueafinitude,emconsequência,permanecerá
a únicarepresentaçãorazoáveldo mundocomototalidade.Ora,
diz Kant,estaconclusãorevela,novamente,umaignorânciatotal
dadiferençaentreo sensívele o inteligível.De ondesurge,com
efeito,estaprescriçãoquenoslevaa estabelecero mundocomo
totalidade.Certamente,nãodoconhecimentosensível.No sensível
nãofazemossenãoacrescentarindefinidamenteunidadeàunidade
- e asúnicas"totalidades"quepodemosconstituirsãoobtidas
arbitrariamentepelainterrupçãodestaprogressão.Nãoé,pois,a
práticado sensívelqueimpõeestanoçãode totalidadecompleta
(oÂov) quefascinaAristóteles:no sensível,nãofazemossenãoa
aprendizagemdo lXTIELPOV, no sentidoaristotélico,aquiloforado
qualhásempreindefinidamentealgumacoisa...7•
A noçãode completudenãopodeser,portanto,senãoum
ideal puramenteracional,um "rationisquoddamproblema".
Os metafísicos,porém, pouco cuidadososem consignaras
noçõesàs suasorigens,nãohesitame é, pois, no senslveLque
colocamo universocomofinito,quantoàmassae àsuahistória.
No sensível:querdizer,lá ondeexatamentenãotêmo direito.
Se se comportassem,verdadeiramente,como metafÍsicos,no
sentidoliteraldotermo,atribuiriamafinitudesomenteaomundo
compostodesubstânciassimples,istoé,aum"mundointelectual"
completamentediferentedo mundo sensível.Somenteneste
domínioéqueasuarepresentaçãodomundofinitoseriaválida...
O ecodestateseencontrar-se-áemtodosostextosulterioresonde
KantentendedefenderLeibnizcontraseusdiscípulosedesculpá-
10 (a custode muitaginástica)do pecadodo "dogmatismo".
"Como acreditarqueum matemáticotãograndetenhaquerido
formaros corposde mônadase o espaçode partessimples?
Ele nãopensavano mundodoscorpos,masem seusubstrato,
paranós incompreensível,o mundointeligívelqueestáapenas
na ideia da razão..."8. A leiturade Leibniz, seguramente,não
7 Sobre a impossibilidadede fazer aparecero conceitodo todo "segundoas leis do
conhecimentointuitivo",cI. & I, II 338.
B Eberhard.VIII, 248/tr.Kempt.p. 105.- É bastantepicantever que Fichte apoia-se
nestahermenêuticacavalheiraquando aplica a Kant o mcsmo procedimentode
40
f
I
t
valeriaumahorade esforço,senãotivessetidoem menteesta
distinçãofundamentalentreosdoismundos- ouantes,entreo
mundointelectuale o universofísico9•Por faltadestadistinção,
osmetafÍsicoscomportaram-sesemprecomofísicosabusivos.
À primeiravista,poderiaparecerque estacondenaçãoda
metafÍsica"tal como reinou até aqui" prefiguraa Dialética
Transcendental.Confrontando,porém,os textosde 1770que
acaboderesumir,demaisperto,coma DialéticaTranscendental
eespecialmentecoma IaAntinomia,experimentam-sealgumas
surpresas.
Em primeirolugar, em 1781,Kant nãodenunciamaisuma
inconsequênciaqueos metafísicosteriamcometidopor terem
permanecido,semperceber,sob a fascinaçãodo sensível.Na
raiz dasAntinomias,maisdoqueumairreflexão,háumailusão
inevitávelinscritananaturezadoespíritohumano.
Em segundolugar,estailusãonãoeradevida(comoo erro
observadona Dissertação)a umadistorçãodespercebidaque
a sensibilidadeimporia às "leis do entendimentopuro". É
sintomático,por exemplo,queKant,ao comentara Teseda Ia
Antinomia,tomecuidadoemfazerobservarqueestanãocontém,
de modoalgum,o sofismaquedenunciavaa Dissertação:os
querejeitamo infinitomatemáticonãosefatigammuito... eles
chamamamultitudeinfinitadenúmeroinfinito,noçãoquedizem
serabsurda,oqueémuitoclaro,mascombate-seaísomentecom
assombrasdoespírito...10.A teseda1aAntinomiaevitaproceder
tão cavalheirescamente.Ela sustentaque por faltade admitir
um começoou um limitedo mundo,deve-seintroduzira ideia
contraditóriade um todoquenãopodeseracabadosenãopor
umasíntesesucessiva.Observaçãopertinente,seo finitistanão
secresse,porconsequência.autorizadoadizermaisdoquesabe,
interpretação:quandonãosepodechegaraumaexplicaçãocoercntesegundoa letra,
torna-seobrigadoa explicarcontimneo espírito... O próprio Kant dá umexemplo
notavelmenteconvincentedainterpretaçãoconformeo espíritoemumainterpretação
deLeibniz cujastesestodasseapoiamsobrea seguintepremissa:"pode-secrerque
Leibniz tenhaqueridodizer istoou aquilo?"(//0 lnt. a La DoutrinedeIa Science,tr.
philomenkoz.p. 285.jin).
')Sobrcestadisjunçãodo mundoe universo,ef.& 28.11,416/tr.p. 81.
11) Diss. & I,nota,11,338.
41
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111:
istoé,exatamentequeo mundotemumcomeçoeumlimite.Em
todocaso,observemosque,sea teseé falsa.nãoé emrazãoda
sugestão"estética"queviciavao argumentofinitistatalcomoo
expunhaaDissertação.
Em terceirolugar, Kant abandona- pelo menosno nível
dasAntinomiasmatemáticas- a soluçãodecompromissoque
propunhaem 1770:o finitistateriarazãocomrespeitoaomundo
inteligível,o infinitistano universosensívelI I. Kant observaaté
queos partidáriosdaTesenãotêm,absolutamente,o direitode
subtrair-seaosabsurdosdecorrentesdanoçãodeumtempovazio
queseriaanterioraomundoedeumespaçovazioqueo conteria,
pretenderestar falando de um "principium" incondicionado
do mundoe não de um começoreferenteà existênciaou de
um limitedadopelaexperiência.Este subterfúgio(exatamente
aquelequeIhesofereciaaDissertação)nãoadiantarianada- e
ospartidáriosdaAntíteseobjetam,comrazão,queacosmologia
serefereaoconjuntodosfenômenosenãoa"nãoseiquemundo
inteligÍvel"12.Em síntese,não se tratamais de convidaros
finitistasa limitarsuasargumentaçõesaomundomonadológico.
Parececlaro,portanto,quesejaagoraumaoutrasub-repção
e atéumasub-repçãodesentidoinversoquetornaa cosmologia
falaciosa.
Não é maisa influênciadisfarçadada sensibilidadequenos
levaadeformarasnoçõesinteligíveis:é,aocontrário,aexigência
intelectualque nos desorienta.Doravanteo maior pecadodo
entendimentohumanoécrerquesuasasserçõestêmsentidopara
os fenômenos,quando,na realidade,nãotêm(ou melhor,não
teriam)anãoserparaas"coisasemgeral".Referia-me,hápouco,
aostextosemqueKant tentadesculparLeibniz, afirmandoque
11 Kant,é verdade,nãoafirmaa infinidadedo "universo",masatribuisomenteà"sugestão
do sensível"a afirmação(ilegítima)de suainfinidade.Mesmo na Teoriado céuas
consideraçõessobrea infinidadeda forçacriadorade Deus não sãodesprovidasde
ambiguidade:é umaquestão"que tem aindanecessidadcde explicação",diz ele
então,sabcrcomoa infinidadede Deusserelacionaàsinfinidadesquedelederivam
(I, 310).ComoobservaWernerGent(Ph. desRaumesundderZeit) (11,p. 14),parece
queKant sustentaantesa ilimitação(Grenzenlosigkeit)do universofenomenal,que
seriacomoo reflexodaessênciadivina.
12 KRV AK. Ausg.B-461/tr.TP. p. 343.
"estegrandehomem"nãopodia,na Monadologia,certamente
falar do mundosensível.Há, porém,outra série de textos,
provavelmentemais sinceros,onde Kant repreendeLeibniz,
vivamente,pornãotervistoqueo conhecimentosensívelé "um
mododeconhecimentoradicalmentediversode todoconceito"
- e,porestarazão,terdecididosobreascoisasemgeralà vista
de seusimplesconceito,comose suastesesconservassemseu
valoremrelaçãoaosfenômenos.Ora,esteé, naverdade,o pior
desviodosmetafísicos:trataros objetossensíveiscomocoisas.
"Emborapudéssemosdizer, sinteticamente,algumacoisa das
coisasem si peloentendimentopuro(o queé impossível),isto
nãosepoderiaaplicardenenhummodoaosfenômenos,quenão
representamcoisasem si ("Auf Erscheinungen,Welchenicht
Dingeansichselbstvorstellen")ll.
Ora. é estaconfusão,"natural"ao espírito humano,que
vai produziras Antinomias.Começamospor obedecera uma
prescrição"lógica",em si inatacável:"Quandoo condicionado
é dado,a sérieinteiradascondiçõesé dadatambém"14.Como
estainjunçãonãocomportanenhumareferênciaaotempo,nada
nos impede,seguramente,depensaro conjuntodascondições
como sendodado.A desgraçaé que continuamosa aplicar,
imperturbavelmente,esta prescriçãoquando se trata deste
"conjunto"muitoespecíficoqueé (ou queseria)o detodosos
objetosdos sentidos,"sempreocupar-nosse a estipulaçãodo
incondicionado,no fenômeno,conservaum sentido"... Esta
análise,que Kant coloca no limiar das Antinomias,mostra
por si só queo "dogmatismo"sobreo qual a crítica lançaa
responsabilidadenãoémais,emabsoluto,aopiniãopreconcebida
sobreo queaDissertaçãochamavaaatençãoininterruptamente.
Dogmatiza-se,em 1770,porquecrê-se falar das coisas em
absoluto,ao passoque nossodiscursosó tem sentidosob o
horizontedo sensível.Em 1781,é acrençasuperficial,segundo
aqualpodemosfalaràvontadedascoisasemgeral,quenosleva
a decidir,sempensar,sobreo sensível.Em 1770,o metafÍsico
eradescrito,sobretudo,comoumsujeitoestético,semo saber,
13 Ibid. B - 334/tr.p. 241.
14 [bid.B - 437/tr.p. 329.
queem consequênciadisso,tinhasemprediscorrido,a tortoe
a direito,sobreos objetosinteligíveis.Em 1781,o metafísico
tomou-seumlógicoimpenitentequedesconheceaespecificidade
ontológicadosfenômenos.
Operou-seum deslizamento,portanto,do qual não é fácil
se aperceber.À primeira vista, seguramente,a explicação
poderiaparecerfácil. Poder-se-ia,simplesmente,dizer que
durante9 anos de preparaçãoda Crítica, Kant perdeutoda
ilusãocom respeitoao "mundoencantado"dos metafísicose
quereconheceu,enfim,claramente,quenão há conhecimento
racional(a priori) senãodos fenômenos... Esta resposta,sem
dúvida, não é falsa. Fornece-nosela, contudo,a dimensão
da mudançaque se efetuou? Trata-sede que Kant tenha
abandonadoo conhecimentodo suprassensível?Não nos
esqueçamosqueasideiascosmológicasnãosãotranscendentes,
isto é, nãose referemaosnúmenos,massomenteao conjunto
dos fenômenosl5•A pretensãoda razão,na ocorrência,nãoé,
portanto,de maneiraalguma,forjarum objetoalémdo mundo
sensível,massimplesmente"estimulara sínteseatéa um grau
quesuperetodaexperiênciapossível"'6.Kant, em 1781,pôde,
portanto,apagardo mapado sabero mundosubstancialfrito
(queaDissertaçãoabrigavaaindanointeligível).Nestadecisão,
porém,não poderiaexplicara Antinomiacosmológica,queé
devidaa umailusãorelativaao mundosensível... Com certeza,
a situaçãoseriamaissimplesse Kant tivesseabolidoo mundo
monadológico,colocando,aomesmotempo,o universosensível
comoinfinito,Schopenhauerteriaqueridoqueassimfosse.Eles
nosassegura,atémesmo,queissoé,justamente,o "impensado"
de Kant. Segundoele,é unicamentea tesefinitistaque"põea
hipóteseerrôneadeumtodocósmicoexistindoemsi" - e ela,
e unicamenteela,é falaciosa.Kant estavacegoou demáfé ao
serlevadoa distinguirsuaprópriaposiçãodaqueladaAntítese:
15 "Ainda que (as ideias) não ultrapassamo objeto,quer dizer, o fenômenoquantoà
espécie,mas que se relacionemsimplesmentecom o mundo sensível(não com
os númenos),elas impulsionam,contudo,a sínteseaté um grau que superatoda
experiênciapossível,desortequesepodechamá-Iastodasmuitoexatamente,a meu
ver,conceitosdemundo(Weltbegriffe)"(B-44/tr.p. 334).
16 B-44/tr.p. 334.
44
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na realidade,quandoresolveuasAntínomiasmatemáticasnão
fez senão "confirmaras Antíteses,determinandomelhor a
• - 17exposlçao...
Ora, como paraprevenirestaleitura,Kant pede-nospara
notarquea refutaçãocríticadafinitudedo mundoé "conduzida
de maneirabemdiferentedaprovadogmáticadaantítese",que
"apresentavao mundosensívelcomoumacoisadadaemsi, em
sua totalidade"ls... e, em consequência,conduziaa colocara
infinidaderealdomundo(oquenãodesagradaaSchopenhaeur).
Se Kantmantémdistâncianoquerespeitaà Antítesenãoé nem
paraagradar,nempor leviandade,maspor umarazãoquejulga
fundamental:quandoa Antíteseafirmaque há regressãoin
infinitumnasériedosestadosdomundo,eleconcluidagrandeza
do mundoàquelada regressão,comose aquelafossealguma
coisade independentedesta.Em vezdelimitar-sea afirmarque
a regressãonãoencontralimitesquenãopossasuperar,ela lhe
dá apercorrerumagrandezasemlimites.Istoequivalea dizer
quesupõesero mundosensívelumacoisadadaquea regressão
iria repetirou decalcar.Ou ainda;quea Antítese,tantoquanto
a Tese,cedeà ilusão "quenascedo fato de quese aplicoua
ideiada totalidadeabsoluta,quenãotemvalorsenãoenquanto
condiçãodascoisasemsi,aosfenômenos;estesexistemsomente
na representação,quando formam uma série, na regressão
sucessiva- nãopoderiamexistirdeoutramaneira(sonstaber
garwichtexistieren)"19.Eis porqueos adversárioschegama um
acordo,pelomenos,sobreestaestranhaexpressão:"O conjunto
dosfenômenos"...De que"conjunto"setrataria,umavezquese
decidereger-sesópelasíntesesucessiva?E paraqueseinterrogar
sobreum "ser" que não seriadadoantesde nossaoperação?
Nestascondições,importapoucoquea Antíteseseabstenhade
qualquerreferênciasub-reptíciaa"nãoseiquemundointeligível".
O importanteé quefala, tambémela,do fenômeno,supondo-o
desligadodoconhecimentoquedeleadquiro.O importanteéque
elavisao fenômenosobo mododoemsi.
17 Schopenhauer.Mundocomovontade.p. 627(tr.PUF).
I~13- 549/tr.p. 388.
I') 13- 534/tr.p. 381.
45
A estaaltura,compreende-semelhorquenãobasta,demaneira
alguma,paradizer-sekantiano,confinaroconhecimentoracional
nos limitesda objetividadesensível.É preciso,antesde mais
nada,estipularqualéa realidadequeatribuoaestes"sensibilia"
- e isto,tantomais,quea linguagem,infalivelmente,nosinduz
emerro.
Quandodigo:"encontram-senoespaçoestrelasquesãocem
vezesmaisdistantesqueasvejo"20,subentendo,naturalmente,que
estesobjetosprecedemaprogressãoempíricaquemeconduzirá
atéeles.Estabeleço-os,naturalmente,comocoisase Ihesconfiro
umarealidadetranscendental... É inevitávelquetododiscurso
sobreo sensível,fiquetão"dogmático"comoaMonadologiade
Leibniz.Porqueplatonizarnãoé apenasarrogar-seo direitode
evocarumoutromundo.Não seescapaa Platãotãofacilmente
- e permanece-seplatônicosempreque se desconhece(por
faltadeumainvestigaçãotranscendental)quehádoispontosde
vistapossíveissobreaquiloquesedesignade "objeto":umdo
emsi e outrodofenômeno21•É estedesconhecimentoquenos
levaaaplicarnossosconceitosàs"coisasemgeraleemsi",quer
dizer,a fazerdelesum usotranscendental(e, subsidiariamente,
transcendente).Na origemdo desvio"dogmático"há,antesde
tudo,estaincapacidadede consideraras coisassobestesdois
pontosdevista- estainsensibilidadeàdiferençadecontextura
entre fenômenose coisas. Seria melhor, talvez, aqui, dizer
simplesmentecoisasdoquecoisasemsi,tantoanoçãotradicional
decoisaemsi (tal,porexemplo,comoFichteacriticará)parece
estarligadaa umadeterminaçãopositiva:aquiloqueno objeto
é a maisdo queo fenômeno- ou ainda:aquiloquesedeve
20 B -- 524/tr.p. 375.
21 " •••csteexamenãoéfactívelsenãocom conccitosc princípiosqueadmitimosapriori,
contantoqueosencaredemaneiraquccstcsmcsmosobjetospossamserconsiderados
de umaparte como objetosdos scntidosc do cntcll(!imentoparaa experiência,de
outrapartecomoobjetosqucsósãopcosadosraraarazãoisoladaequeseesforçam

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