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-J .— f%( 0 2 0 ) CAPÍTULO III A SOCIEDADE l ) O PROBLEMA DA ONTOLOGIA SOCIOLÓGICA Embora seja a sociedade, a vida coletiva, o conceito básico não somente da sociologia como também das diversas ciências sociais, não é contudo um conceito pacífico. Não somente é um conceito plurívoco seja nas mãos do soció- logo, seja nas mãos do vulgo, como também a questão magna do seu ser, da sua essência, é tema que vem sendo discutido pelos teóricos até os nossos dias. A esse respeito, de modo aproximado ao que ocorreu na filo- sofia medieval com o problema dos universais, também no plano da ontologia sociológica os teóricos se dividem em nominalistas e rea- listas. No primeiro campo, estão os sofistas, os liberais e os anarquis- tas, e quantos colocam o indivíduo em plano anterior à sociedade, considerando esta última em termos contratualistas e individualistas como mero agregado de indivíduos. Do outro lado da barricada, estão os organícistas e transperso- nalistas políticos de todos os tempos, inclinados a colocarem o Es- tado, a sociedade e as instituições em plano superior ao dos indiví- duos, considerados nessa perspectiva, como partes do todo e a ele vinculados por ligações essenciais orgânicas. No plano da ciência sociológica, essas duas posições ontológicas são representadas na famosa polémica de Gabriel Tarde, nominalista, e Émile Durkheim, realista. Para Tarde a sociedade não passa de mera soma de consciên- cias individuais, e, como na soma, as parcelas e o resultado têm de ser da mesma natureza — daí que só se possa somar quantidades no- 136 M A C H A D O N E T O mogêneas — a sociedade seria uma natureza de ordem psicológica como os elementos de que se compõe, — Se tirarmos os indivíduos, qu; restará da sociedade? inda- gava Tarde: Para responder, ele próprio. — Nada! Contra essa tese psicologista e nominalista se opunha Durkheim, ao propor a substituição da palavra soma, na formulação de Tarde, pela expressão mais a propósito de síntese, tomada de empréstimo ã terminologia química. Os elementos componentes eram de na- tureza psicológica — tal não poderia negar o sociologismo durkhei- miano — mas, o seu conjunto, a sua síntese daria um composto novo c diferente — o social. Tal o enunciado do que poderíamos deno- minar o teorema de Durkheim. Para comprovar esse teorema, Durkheim lançava mão dos fatos, argiiindo que tanto o social é diferente do individual, do psíquico, que aquele aluava sobre este, obrigando a vida individual a se comportar de acordo a certos cânones socialmente estabelecidos e vigentes — os fatos sociais. Ora, se, mesmo quando eu quero falar outra língua que não a vernácula com os meus concidadãos — para ficarmos num exemplo do próprio Durkheim — a sociedade mais cedo ou mais tarde vai se opor a esse meu desígnio, sentindo eu a necessidade de mudar de atitude graças às imensas dificuldades que hei de encontrar pelo caminho, no trato com os concidadãos que não entendem a língua estrangeira em que me dirijo a eles, então, o inegável é que, se a sociedade me coage a mudar de opinião e de atitude mental, ela é superior a mim como indivíduo; se é superior, é exterior, é outro que não eu, que não o meu psiquismo individual, donde podemos concluir que o social é diverso do psíquico. Até aí — enquanto provava a diversidade do social face ao psí- quico — reparo aJgum poderia ser oposto à correia demonstração durkheimiana. Desse reparo ele se faz credor, porém, extremando essa verdade patente que logrou demonstrar, substancializou o social como algo substantivamente diverso dos indivíduos, exagero que, aliás, já estava implícito em sua ideia de síntese química. Se bem observamos, o que se passa entre o psiquismo individual e a realidade social é coisa bem diversa da síntese química. Nesta, a realização da síntese anula e faz desaparecer os elementos componentes. Na- quele caso anterior, porém, os indivíduos que compõem a sociedade se formam em tal composição uma realidade nova — o coletivo — capaz em certos casos extremos (a massificação, por exemplo) de absorver inteiramente o individual, essa realidade, no comum das circunstâncias não anula a vida individual, que, em muitos casos se conserva tão independente das volições e valorações coletívas S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 137 que p°de assumir as figuras variadas do anti-social — o delinquente, o revolucionário, o génio projetado para o futuro etc.. . Na comparação química de que Durkheim se serve para aplicar ao caso, o oxigénio e o hidrogénio deixam de existir como subs- tâncias isoladas a partir do momento em que se dá a síntese. Temos então água, um líquido, em cujo seio nada mais há de gasoso. Ora, isso não ocorre na suposta síntese social de Durkheirn. Os indivíduos formadores da sociedade não desaparecem, mas, penetrados em maior ou menor escala pelas estruturas do coletivo eles continuam desfrutando de uma vida individual e autêntica que em alguns casos pode até se afirmar como anti-social. Isso prova que a metáfora durkheimiana é excessiva e que a consciência coletiva, longe de ser algo substantivo e apartado do indivíduo é um modo de ser adjetivo da vida individual. A socie- dade, o coletivo é, poís, um ser modal que se dá nos indivíduos, um modo de ser da única vida efetiva que nos é dada, a vida individual. Nem mera relação entre vidas individuais como pretendia Tarde, nem ser substantivo como pretendia Durkheim com sua teoria da consciência coletiva. Essa a lição que a sociologia contemporânea nos pode proporcionar, graças à crítica que Max Weber, Georg Simmel, Georges Gurvitch e Recaséns Siches, levaram a efeito a respeito daquela exagerada teoria durkheimiana. Em vez de uma consciência coletiva substantiva e exterior aos indivíduos, uma consciência coletiva que é a dimensão social do eu individual e que em cada indivíduo abrangerá uma zona maior ou menor conforme seja a força de sua personalidade individual e o grau de sua socialização. S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 139 2) SOCIEDADE E INDIVÍDUO Posta nesses termos a questão prévia da ontologia sociológica, poderemos agora indagar em maior profundidade o estilo das re- lações em que se encontram o indivíduo e a sociedade. Se já deixamos assente que o social é algo que temos de viver, fatalmente, na única vida efetiva e substantiva que nos é dada, a vida individual, indaguemos agora qual o grau dessa penetração do coletivo ou do social em cada um de nós e qual a parte do individual autêntico que nos é dado viver, A tal questão poderíamos responder com o estudo das camadas componentes da personalidade individual, onde anotaremos o ele- mento biopsíquico individual e a dose de coletivo que está injetada em nosso eu. Se somos uma natureza biopsíquica que vive em sociedade, os ingredientes de que se compõe nossa personalidade não podem deixar de se constituir desses elementos formadores de nossa natureza. Assim é que poderíamos, inspirados em estudo análogo de Recaséns Siches desvendar a seguinte série de extratos de nossa personalidade. 1 -- Fatores biológicos constitucionais. 2 — Grau de desenvolvimento biológico (idade). 3 — Fatores biológicos adquiridos: alimentação, bebidas, tó- xicos, doenças etc. 4 — Fatores psíquicos constitucionais (tipo psicológico). 5 — Fatores psíquicos adquiridos: automatismos, complexos, vivências. . . 6 — Fatores sociais e culturais. Esse último nível em que se situa a consciência coletiva poderia ser ainda subdividido em: a) um social genérico, responsável pela formação de nossa natureza humana, o que Cooley nos ensina ser inoculado em nosso eu por influência dos grupos primários, cujo estilo de relações com os indivíduos não tem sido grande- mente alterado no curso da história, e t) um social, ou melhor, cultural específico que decorre do nosso particular enquadramento nessa específica sociedade em que vivemos,caracterizada por tais e quais caracteres culturais e não os de outros tempos ou outros ambientes culturais. A esse último ingrediente poderíamos denomi- ná-lo cultural ou histórico. Embora numericamente os elementos de ordem biopsicológica sejam superiores, o certo é, porém, que o ingrediente sócio-cultural de nossa personalidade é o dominante, como os mais variados e objetivos exemplos que a vida nos expõe a cada passo, no-lo podem provar. Tomemos um exemplo-limite e que temos à mão, agora mesmo, enquanto esse trabalho vai sendo escrito. Este livro, que levará na capa o meu nome e sobre que, depois de publicado, as leis de meu país me vão conferir direitos de autoria, em que medida ele pode ser considerado, realmente, como meu? Começa que o escrevo numa língua que não inventei, dominando — ainda que pobremente, e essa deficiência é minha — uma técnica da escritura que também não foi criação minha, divulgando e comen- tando ideias que são um património universal de cultura por mim assimilado graças a uma pluralidade de inventos sociais divulgadores de ideias: aulas, livros, revistas, jornais, conferências, palestras, diálogos, correspondências etc. Se, do plano espiritual, passamos, agora, ao material, minha dependência do ambiente social em que vivo é ainda maior. Começa que o escrevo à noite, o que envolve uma iluminação artificial para cuja existência toda uma tradição de progressos e invenções técnicas está implícita e todo um exér- cito de trabalhadores está, agora mesmo, convocado para mante-la. Se recordo que escrevo sobre papel e com o auxflio de uma caneta- tinteiro usando uma tinta industrializada, e que depois esse texto ;.erá datilografado pela pertinaz e devotada paciência de minha esposa, e que adiante será remetido a um editor que contratará a sua impressão com uma tipografia, onde operários e máquinas, os tnais diversos e especializados, farão o milagre da letra de forma, então teremos todos de dar razão ao olhar cético de meus filhos, incapazes ainda de apreenderem esse mistério de transubstanciação que transforma miseráveis folhas de papel rabiscadas e borradas em limpos e multiplicados livros, olhar com que eles me ferem toda vez que eu lhes apresento um novo livro como obra minha. 140 A . L . M A C H A D O W E T O Mas, não precisamos ir tão longe para comprovar a nossa dependência do coletivo em matéria como essa de ordem intelectual em que cada um é tão cioso de suas ideias e seus descobrimentos. Se os autores de hoje fôssemos dignos da modéstia inicial de um Pitágoras, então seria mais justo que substituíssemos, no frontispí- cio, o nome do autor pelo índice onomástico.. . Mesmo o génio, a individualidade marcante por excelência, mesmo esse terá, por força, de dever mais à coletividade do que a esta é capaz de proporcionar de pessoal e inédito, o que, de fato, não passará de uma combinação mais ou menos original e inteligente de um universo de elementos exógenos, herdados do património universal da civilização. Se Leibniz ou Newton tivessem nascido entre os índios brasi- leiros, que apenas sabiam contar até cinco, o mais que poderiam ter alcançado seus génios incomparáveis seria a criação de uma numeração decimal, se é que não se realizariam plenamente na condição de argutos pajés, hábeis no manuseio das ervas e na arte esotérica de espantar os maus espíritos e propiciar os deuses ocul- tos por irás da fúria dos elementos. Se é verdade que é de tal monta o débito de cada indivíduo para com o ambiente social que o cerca, a contrapartida dessa verdade é, porém, bastante favorável à personalidade individual, pois todo progresso e toda mudança cultural surge, na sociedade, graças aos condutos da criação individual. Não foi a sociedade europeia do século XVII que inventou o cálculo infinitesimal, embora o fato de que aqueles dois indivíduos geniais nascidos em tal século o tivessem inventado paralelamente deixe claro o quanto a herança cultural vigente na época estava madura para tão grande descobrimento. O indivíduo é o fermento criador da mudança cultural e do progresso. "Sociedade alguma, como um todo, produziu jamais uma ideia", escreve o antropólogo social Ralph Linton I. Somente através do cristal de uma vida individual, pode o conjunto da herança coletiva refletir um ângulo criador. Por isso escreve Recaséns que "tales mutaciones y desarrollos no los realiza Ia cultura por si misma, sino que se producen por Ia nueva interferência de nuevas vidas individuales, Ias cuales reela- boram y re-crean Io que antes había sido elaborado por otros" 2. 1. RALPH LJNTON, Estúdio dei Hombre, 3.' ed., Fondo de Cultura Económica, México, 1956, pág. 105. 2. Luís RECASÉNS SICHES, Lecciones de Sociologia, Ed. Pomia, Mi- xico, 1948, pág. 286. S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 141 g verdade que, para tais criações o indivíduo tem que se enfrentar com a inércia coletiva que se lhe há de apresentar sob forma de uma reação de oposição à novidade por ele proposta. Se consegue empalmar o poder grupai, a força da opinião pública, e colocá-los a serviço de sua inovação, logo conseguirá um certo número de sequazes que imitarão o modo novo, e, por esse caminho, poderá lograr a transformação pretendida por sua originalidade. Quando não consegue o favor social, sua inovação poderá ser rechaçada, não sendo raros os casos, na história da cultura, de ideias e criações originais que não lograram vigência jamais e de outras tantas que, embora valiosas, apenas lograram o aplauso coletivo quando já muitos anos ou, talvez, séculos se tenham passado que o aventuroso inovador estava morto, suas ideias sendo, então, desen- terradas do olvido em que tinham caído, o que lhes proporciona, a esses homens antecipados à sua época, uma espécie de glorificação posi mortem. Essa é a difícil passagem do fato individual — criação de uma vida humana pessoal, embora com a colaboração da herança coletiva — para o interindividual — quando a nova moda, a nova crença ou a nova teoria passa a ser assumida por um número cada vez maior de indivíduos que instauram a inovação em suas vidas autênticas, embora ela fosse criação original de outros eu — para o fato coletivo — instância já definitivamente social, em que o traço cultural novo, perdidas as características personalísticas com que ocorreu inicial- mente numa vida pessoal originária, e assumidas as notas coletivas do impessoal e genérico, passa a se impor como um estilo anónimo que a sociedade propõe, de maneira coativa, como solução de certa instância ou urgência básica da convivência humana a todos os indivíduos participantes dessa mesma convivência. Assim nascem os fatos sociais, desde as mais triviais relações até as mais egrégias instituições. Assim surgem para a vida coletiva, desde um modo novo — e, a princípio, sofisticado — de saudar um companheiro até as grandes organizações da vida coletiva, as instituições todas, o próprio governo e as normas jurídicas. Exemplifiquemos com esse último caso, com o fato social jurí- dico que socialmente se apresenta, em sua forma normativa, como o exemplo-limite da instituição coativa, servido que é — como veremos adiante — pela coerção social mais decidida e mais forte, porque revestida da forma da imposição inexorável ou da sanção organizada e incondicionada. Suponhamos uma sociedade em que o sistema de casamento adotado pelos costumes jurídicos imemoriais tenha sido, até então, a poligamia. Vamos admitir que a monogamia era, aí, 142 A. L. M A C H A D O N E T O um casamento para escravos, párias ou miseráveis: para todos q^ não linham condições económicas ou sociais de manter mais que uma só esposa. Por certo que, em tal sociedade, o que o costume impõe como sistema preferencial, elegante, do "bom-tom", respei- tado e acatado por todos — mesmo pelos pobres coitados que 0 olham de longe, com mal disfarçada inveja, incapazes que são de sustentar mais deuma companheira — será a instituição da poli- ginia. Polígamos serão, aí, os chefes políticos, os sacerdotes, os nobres, os guerreiros, os burgueses, enfim, a fina flor da sociedade, a sua nata, e o que dela se aproxime. Mas, vamos supor ainda que, um dia, no seio mesmo dos des- possuídos, surja um Cristo, e que, à base de sua pregação moral ou religiosa, ele valorize a instituição da monogamia, considerando-a a mais moral ou a mais de acordo com a lei divina, ou algo por este estilo. Por certo que a sociedade — e, dentro dela, especial- mente, a sua elite, porque mais diretamente atingida nos seus inte- resses, direitos e privilégios — irá opor, ao profeta dos pobres, uma reação talvez tenaz e impiedosa. Se não há condições objetivas — especialmente económicas — para que a inovação logre vigência, por certo ela será rechaçada sem maiores repercussões. Mas, se condições objetivas existem que tendam a favorecer a mudança proposta — se, por exemplo, uma transformação social ou ecológica determinou ou vem determinando que a prática da poligamia se apresente agora como um costume assaz dispendioso, difícil de manter mesmo para os mais ricos — não será impossível que as valorações coletivas vão, aos poucos, transformando-se, e que, em breve, os costumes jurídicos ou as próprias íeis vão ratificar a prática da monogamia como único sistema matrimonial válido e garantido pela sociedade. Assim, interatuam sociedade e indivíduo. Este último nasce, cresce e vive no meio social, e sofre, de logo, o influxo socializador desse meio em que se vai formando a sua personalidade. Se, para efeito apenas didático, personificássemos a sociedade, diríamos que seu intuito é lograr a socialização integral de todos os indivíduos que a compõem. Mas, esse intento é frustrado em muitos pontos, a socialização integral sendo, mesmo, uma meta impossível, além de indesejável de um ponto de vista ético, porque seria a vitória da massificação e, com ela, do marasmo e da imobilidade mais absolu- los. Como certas zonas da vida individual não chegam a ser intei- ramente socializadas, elas operam o milagre da inovação, tendo que contar, embora, com a oposição da inércia social que, ao menos inicialmente, irá atuar contra a novidade sempre intranqiiilizadora e perturbadora da tradicional acomodação coletiva. Se logra, porém, S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 143 nono social da consciência coletiva de maneira coercitiva. é em suas linhas muito gerais, a mecânica da mteracao do social e do individual. CAPÍTULO Hl SOCIEDADE E DIREITO 1) OS VÁRIOS SABERES JURÍDICOS Representante ilustre da filosofia jurídica, contemporânea, que reivindica a fundamentação da autonomia de uma série de inda- gações de caráter filosófico-jurídico, por oposição às concepções posi- tivistas e evolucionistas que durante a passada centúria tentaram absorver as questões filosófico-jurídicas na problemática das várias ciências que tematizam o jurídico, desde suas obras de juventude, Recaséns se tem preocupado, seja com a fundamentação e sistemati- zação da problemática filosófica do direito, seja também com a classificação e diferenciação dos vários saberes jurídicos de caráter científico. Desde, portanto, Los Temas de Ia Filosofia dei Derecho \e 1943, até Vida Humana, Sociedad y Derecho2, sua obra mais mo- derna e mais conhecida, passando pelos Estúdios de Filosofia dei Derecho3, que agregou ao compêndio de Giorgio dei Vecchio, pelo Tratado General de Sociologia4, e chegando até o mais recente Tratado General de Filosofia dei Derecho'', Recaséns tem se ocupado constantemente de estabelecer as relações e as distinções entre os vários saberes jurídicos. 1. Luís RECASÉNS SICHES, Los Temas de Ia Filosofia de Derecho en Perspectiva Histórica y Vision de Futuro, Ed. Bosch, Barcelona, 1934, Caps. I e II. 2. Luís RECASÉNS SICHES, Vida Humana, Sociedad y Derecho — Fun- damentación de Ia Filosofia dei Derecho, Ed. Porrúa, 3-' ed., México, 1952, Cap. I, n." 3. Esta é a edição mais completa e, pois, definitiva da obra; a primeira edição é de 1940. 3. GIORCIO DEL VECCHIO y RECASÉNS SICHES, Estúdios de Filosofia dei Derecho, 2 vols., Ed. LHeha, México, 1946, págs. 25-81. 4. Luís RECASÉNS SICHES, Tratado..., cit., Cap. XXXI, ns. l e 2; cf., também, Lecciones.. ., cit., Cap. XL, n"? 1. 5. Luís RECASÉNS SICHES, Tratado General de Filosofia dei Derecho, Ed. Fornia. México 1959, Cap. III, n." 5. W! A. L. M A C H A D O H t T O Nessa última formulação, Recaséns, aceitando o tridimensiona- lismo do Prof. Miguel Reale, acata também a divisão tripártite dos estudos jurídicos, seja no plano empírico (ciência), seja no filosófico: "El Derecho, como norma humana con vivência formal, será estudiado filosoficamente por Ia Teoria General o Fundamental dei Derecho, y cientificamente será estudiado por Ia Ciência Jurídica Dogmática o Técnicos de Ias diversas partes de un orden jurídico positivo. "El Derecho, considerado como un conjunto de peculiares echos humanos sociales, será estudiado filosoficamente por Ia Culturología lurídica, y cientificamente por Ia Sociologia dei Derecho, en tér- minos generales, y por Ia Historia dei Derecho, en sus concreciones particulares. "Los ternas axiológicos sobre el Derecho serán estudíados, filo- soficamente por Ia Estimativa Jurídica, y en cuanto a Ias aplicacio- nes concretas y particulares por Ia Política dei Derecho"*. Embora seja esta a última formulação do problema em Recaséns, antes de aderir ao esquema de Reale a sua exposição era mais explícita, detendo-se nos pormenores da diferenciação de perspectivas de cada um dos saberes jurídicos. Por esse motivo, vamos acom- panhar as suas exposições anteriores, pois sendo mais explícitas quanto ao tema das in te r-relações, melhor contribuem para o escla- recimento da localização da sociologia jurídica no sistema das ciên- cias do direito. Assim é que, nos Estúdios que acompanham a tradução da obra de Giorgio dei Vecchio, encontramos uma melhor caracterização do cometimento teórico de cada um dos grandes saberes jurídicos e de seus respectivos cultores: a ciência dogmática do direito, a sociologia e a história do direito e, finalmente, a filosofia jurídica; tarefas, respectivamente, do jurista, do sociólogo e do historiador do direito e, por fim, do jusfilósofo ou filósofo do direito. Do jurista, enquanto puro jurista e não mais que isso, dirá Recaséns que expõe qual é o direito vigente, como devemos enten- dê-lo, interpretá-lo e aplicá-lo, não podendo deter-se, nessa condição de puro jurista, na explicação da essência do jurídico e de suas formas e supostos fundamentais, nem empreender a tarefa estima- tiva ou valorativa do ordenamento vigente, que há de aceitar dogmática mente 7. 6. Luís RECASÉNS SICHES, Tratado General de Filosofia..., cit.f pág. 162. 7 GIORGIO DEL VECCHIO, apud Lufs RECASÉNS SICHES, Filosofia ..-, cit.,].? vol. pág. 30. S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 403 Suas tarefas — todas dogmáticas — serão: encontrar a norma vigente; interpretá-la; construir a estrutura da instituição; e, final- mente, sistematizar o ordenamento em seu conjunto 8. Bem outra é a perspectiva empírica do sociólogo e do historia- dor do direito. Enquanto o jurista move-se no campo de uma ciência normativa e, como tal, ciência de ideias ou do logos, no entender tanto de Recaséns como da epistemologia jurídica norma- tivista ou racionalista, o sociólogo e o historiador do direito enfren- tam realidades empíricas, condutas humanas objetivas, vida humana objetivada, que tratarão, generalizadora ou individualizadoramente, consoante a diversa índole de suas respectivas ciências. Se, na pers- pectiva da ciência dogmática do direito, este era encarado como puro sentido, como pura norma, na perspectiva empírica da sociologia e dfl história do direito, ele nos aparece sob a forma de fato social. Já a filosofia jurídica teria portemática a indagação da verdade radical sobre o direito, dirá Recaséns em nítidos termos ortegueanos *>. E a temática dessa verdade radical sobre o direito será, em con- sonância com a condição de objeto cultural do direito, a um tempo ontológica e axiológica. Daí que desde Los Temas de Ia Filosofia dei Derecho, a Vida Humana, Sociedad y Derecho e ao Tratado General de Filosofia dei Derecho, Recaséns venha mantendo uma divisão"bipartida da filosofia jurídica — Teoria Geral ou funda- mental do Direito (ser) e Estimativa Jurídica (dever ser, valor). 8. láem, ibidem, págs. 32-33. 9 láem, ibidem, pág. 60. 2) O SER JURÍDICO Embora constituindo uma investigação radical acerca do direito, investigação de caráter ontológico e, pois, integrante do que nosso autor denomina "Teoria Fundamental do Direito", a questão do ser jurídico importa de maneira singular à análise jurídica do raciovita- lismo, malgrado a sua natureza extra-sociológica, porque filosófica. É, pois, como jusfilósofo, e não como jurista, sociólogo ou historiador do direito que Recaséns, liberto dos preconceitos positi- vistas que assolavam as mentes durante a passada centúria, irá enfrentar o problema do ser do direito. Seu primeiro objetivo será o de localizar o direito entre os demais fenómenos do universo. — Qual o ser do direito? Será esta, pois, sua presente interrogação. O mesmo de uma estrela ou de uma árvore? (ser físico?). Ò de uma paixão ou de uma volição? (ser psíquico?). O de uma figura geométrica ou o de um conceito? (ser ideal?). O de um valor como o bem, a justiça, o belo? Será um ser substantivo? Um acidente? Mera relação entre outros seres? Na procura de ordenar essas questões para melhor respondê-las, Recaséns serve-se de uma teoria dos objetos que distingue: o ser (substantivo, acidente, relação) sob as formas do ser real (material e psíquico) e ideai, além de o valor e a cultura, tudo isso envolvido pela realidade radica] — mi vida — composta do eu e do mundo ou circunstâncias, em que todos esses objetos se radicam. Que o direito não se situa em a natureza física, garante-nos o seu caráter significativo, de que carece, em absoluto, o mundo natural. Também pela mesma razão, não será o direito uma forma do ser psíquico, embora o direito em seu exercício faça funcionar os mecanismos psicológicos de que resultam os fatos psíquicos. Indagando se o direito seria um ser ideal, Recaséns, por incluir na esfera da idealidade o mundo dos valores não pode deixar de confessar que o direito tem algo que ver com esse mundo, embora assinale que ele não é apenas um valor: "El Derecho no es Ia pura idea de Ia justicia ni de Ias demás calidades de valor que aspire a realizar; es un ensayo — obra S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 40'j humana — de interpretación y de realización de esos valores, apli- cados a unas circunstancias históricas" 10. Embora todo direito represente uma tenta.tiva ou ensaio de ser direito justo, não se confunde com o valor da justiça. Para obviar essa diferenciação, bastaria que assinalássemos a possibilidade real do direito injusto, que, se não é como deveria ser, não deixa, todavia, de ser direito. A região do real em que o direito irá localizar-se é na região da vida humana objetiva, onde, aliás, Ortega e Recaséns já haviam situado "este humano naturalizado" que é o coletivo. No direito, di-lo-á patentemente Recaséns, ocorrem as mesmas notas que carac- terizam o coletivo, o social, e ainda em grau muito mais acentuado, sendo ele, assim, a máxima forma de vida coletiva em intensidade e plenitude u. O mesmo grau de inautenticidade que assinalamos no coletivo e ainda com caracteres de maior relevo ocorre na vida do direito. Aí, jamais tropeçamos com homens individuais de carne e osso, mas sempre com o cidadão, o estrangeiro, o funcionário, o particular, o vendedor, o comprador, o contribuinte, o arrecadador, enfim, categorias abstraias, tipos, cristalizações funcionais, dirá, ilustrativa- mente, Recaséns 12. " . . . dei Derecho podemos decir" — conclui Ortega — "que es un produto humano (y, portanto, histórico), que consiste en una forma normativa de Ia vida social, que apunta a Ia realización de unos valores" 13. E isso nos conduz a outro ponto de fundamental significação para uma análise mais detida da sociologia raciovitalista do direito, que é o estudo das relações e distinções existentes entre o direito e as demais normas sociais. 10. Luís RECASÉNS SICHES, Vida Humana..., cit., pág. 57. 11. Idetn, ibidem, pág. 129. 12. Idem, ibidem. 1 3 . Idem, ibidem. pág. 148. 3) O DIREITO E AS DEMAIS NORMAS SOCIAIS Entre os modos da conduta coletiva, destacam-se os usos, quer entendidos em seu significado genérico, como toda forma de vida objetivada e socializada, por meio da qual podem manifestar-se sentidos não normativos ou normativos, quer no seu sentido, que abarca unicamente esses últimos, que Recaséns vem ultimamente dis- tinguindo em usos e costumes, conforme exerçam uma simples pres- são ou uma certa obrigatoriedade, reservando a designação de hábitos sociais para os usos não normativos 14. Entre os primitivos, geralmente, um uso indiferenciado incor- pora os elementos, hoje bem distintos, do direito, da moral, e das normas do trato social, além de normas técnicas, religiosas, polí- ticas, higiénicas etc. Exemplos históricos dessa norma indiferenciada são a Sitte germânica, o Dharma hindu, a Themis grega e o Fas romano. Com a diferenciação das sociedades e de seus setores culturais, diferenciação suscitada pelo processo civilizatório, vão se diferen- ciando objetivamente as diversas normas. Hoje essa diferenciação é viável, embora não seja tarefa das mais fáceis, como o comprova o grande número de teorias e critérios distintivos propostos. Entre a moral e o direito, Recaséns apresenta numerosos critérios, entre os quais salienta aquele que mais se ajusta à funda- mentação raciovitalista por ele próprio proporcionada à filosofia jurídica. Trata-se de que, enquanto a moral tem por sujeito o homem individual, que ela orienta no sentido de sua vida autêntica, o direito, como acima está anotado, refere-se ao eu socializado, que procura regular no sentido que convenha à convivência humana em dada sociedade. Do ângulo sociológico esta distinção poderia ser anulada, anotando-se apenas que a moral de que se fala em sociologia não é a moral pessoal ou individual, aquela de que o próprio indivíduo é o legislador, pois tal não seria tema de sociologia. A moral de que falam os sociólogos e a que importa ao sociólogo do direito é a moral coletiva, que, como fato social, será, fatalmente, coercitiva e nunca, pois, autónoma. 14. Luís RECASÉNS SICHES, Tratado cit., pág. 204. S O C I O L O G I A J U R Í D I C A Se se resumisse a esse critério, Recaséns não teria realizado qualquer contribuição à sociologia das normas, pela simples razão acima apontada, de que a moral referida não é a mesma que importa ao sociólogo — a morai coletiva. Todavia, a contribuição de Recaséns à distinção das normas não se limita a esse nível ontológico. Ele alcança o nível exterior e objetivo da sociologia ao assinalar que a imposição inexorável é a nota peculiar ao direito e que se acha absolutamente ausente das demais regras sociais, seja a moral (coletiva) sejam as normas do trato social 1-\o agora a diferenciação entre o direito e as nor- mas do trato, Recaséns observa que as últimas valem diversamente para diversos círculos dentro de uma sociedade. Da moral, as normas do trato podem distinguir-se pela sua heteronomia e exterioridade, o caráter eminentemente social destas tornando-se patente ao observarmos que elas não funcionam para o indivíduo isolado: "a solas, en el aislamiento de mi cuarto, yo no puedo ser decente ni indecente, decoroso ni indecoroso, conveniente ni inconveniente, cortês ni descortês" lfl. Nesse ponto outra vez voltamos a uma consideraçãoextra-socio- lógica da moral, pois da moralidade social evidentemente não se poderá dizer que não seja heterônoma e exterior como fato social que é. Melhor seria, certamente, do ângulo sociológico que aqui nos importa, que Recaséns tivesse fundamentado sua distinção na maior significação social das normas morais e na mais forte reação que a sociedade reserva à transgressão das mesmas. Todavia, há que dizer-se, em homenagem ao nosso autor, que ele não se propõe uma distinção sociológica, no texto que estamos acompanhando, mas uma distinção ontológica, em cujo plano a moral que se quer con- siderar é a pessoal ou autónoma. Desgraçadamente, porém. Reca- séns não aborda essa questão em seus textos sociológico-jurídicos, ra- zão pela qual temos de ater-nos aos seus textos filosófico-jurídicos para a pesquisa dessa diferenciação das normas, tema de tão signi- ficativa relevância para uma sociologia do direito. 15. Por imposição inexorável, RECASÉNS entende a possibilidade que Comente ao direito é atribuída, da execução forçosa. Contra os que argumen- tam com a pena e a indenização como outros tipos de sanção jurídica, diversos da execução forçosa, RECASÉNS observa que tais sanções são apenas substi- tutivos para o caso de que a forma primária e peculiar, que é a execução forçosa lenha-se feito impossível de fato. Cf. Luís RECASÉNS SICHES, Vida. ., cit., pág. 206. 16. Idem, ibidem, pág. 199. 4) OBJETO E TEMÁTICA DA SOCIOLOGIA JURÍDICA O objeto da sociologia jurídica de Recaséns, já o consideramos acima como o direito em sua projeção de fato social, como a vida humana objetivada em sua forma mais acentuadamente social. "En efecto, el Derecho en su producción, en su desenvolvimiento, en su cumplimiento espontâneo, en Ias transgresiones que sufre, en su aplicación forzada, en sus proyecciones prácticas, se muestra como un conjunto de hechos sociales", escreve Recaséns 17. Tomando o direito nessa sua projeção social, a sociologia ju- rídica como ciência generalizadora — por oposição à história do direito, outra disciplina científica que aborda o jurídico nesse mesmo sentido de fato social — procura elaborar leis gerais acerca das relações causais que enlaçam sociedade e direito. É verdade que o estudo monográfico de caráter sociológico- jurídico não tem condições de generalização por limitar-se ao estudo de um caso e faltar-lhe assim o conhecimento das suficientes evi- dências empíricas para estender as relações observadas à generalidade dos casos reais ou possíveis. Isso viu Recaséns quando estabeleceu a distinção entre sociologia e sociografia jurídicas18. Não obstante, a sociografia jurídica é momento essencial da construção de uma sociologia jurídica, tanto como a pesquisa é condição e momento essencial de toda ciência de objetos reais. É somente graças às verificações singulares realizadas em estudos sociográfico-jurídicos que a sociologia do direito pode fundamentar empiricamente suas genera- lizações. Tentando generalizações acerca das relações sociedade-direito, a sociologia jurídica desdobra-se em dois âmbitos ou campos de estudo: "A) — El Derecho, que es en un determinado momento consti- tuye el resultado de un complejo de factores sociales. B) — El De- recho, que desde un punto de vista sociológico es un tipo de hecho social, actua como una fuerza configurante de Ias conductas, bien moldeándolas, bien interviniendo en ellas como auxiliar e como pa- 17. Luís RECASÉNS SICHES, Tratado.,., cit., pág. 546. 18. Cf. Luís RECASÉNS SICHES, Lecciones . . . , cit., págs. 672-673. S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 411 lança, o bien preocupando en cualquiera otra manera el sujeto agente" 18. Desse modo, cabe atribuir à sociologia jurídica um estudo de como o direito, enquanto fato social, representa um produto de pro- cessos sociais, e outro estudo que vem a ser o exame dos efeitos que o direito, assim socialmente constituído, exerce sobre a sociedade. Seguindo uma tradição temática dominante na sociologia jurídica Recaséns desenvolve mais os temas contidos na letra A, que, por isso, em seguida ocuparão predominantemente nossa atenção e nossa análise. 19 Luís RECASÉNS SICHES. Tratado..., cit., pág. 547- S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 413 5) AS URGÊNCIAS SOCIAIS E O DIREITO Norma social que é, o direito não surge à toa na sociedade, mas para satisfazer a imprescindíveis urgências da vida. Ele é fruto de necessidades sociais e existe para satisfazê-las, evitando, assim, a desorganização social. Umas dessas necessidades básicas é a resolução de conflitos de interesses. Malgrado a sociedade tente continuamente, através do processo de socialização, o completo enquadramento social dos indi- víduos, nem todos ficarão igualmente socializados, mas, ao contrário, o composto das predisposições pessoais (biopsíquicas) e das coerções grupais vai produzir uma símese diferenciada, de tal modo que os indivíduos vão alimentar interesses divergentes e às vezes contra- postos. Uma das funções sociais básicas do direito será realizar a icgu- lamentação desses interesses, via de regra, conflitantes. Segundo Recaséns, o modo como o direito reguía tais interesses é o seguinte: 1 -- Classificando os interesses opostos em duas categorias: os que merecem proteção e os que não a merecem. 2 -- Estabelecendo uma hierarquia de prioridade e^tre os es- quemas de possível harmonização ou compromisso entre interesses parcialmente opostos. 3 -- Definindo os limites dentre os quais tais interesses devem ser reconhecidos e protegidos, mediante princípios jurídicos que são congruenlemente aplicados pela autoridade jurisdicional ou admi- nistrativa, caso tais princípios não sejam aplicados espontaneamente pelos particulares. 4 -- Estabelecendo e estruturando uma série de órgãos para: ú) declarar as normas que servirão como critérios para resolver tais conflitos de interesse; b) desenvolver e executar as no-mas; c) ditar normas individualizadas aplicando as normas gerais aos casos concretos 2(l, Se, de um modo geral, é este o comportamento do direito, quais serão os interesses sociais em disputa é algo que variará de lugar para lugar e de época para época, consoante uma larga série de variáveis, tais os fatores espirituais, naturais económicos, faiores de situação e dinamismo coletivo e fatores políticos. E como esses fatores estão permanentemente em mudança e inter-relação, a tarefa que a ordem jurídica exerce no regular os interesses em choque não é nunca uma tarefa conclusa, mas sempre in fieri. Também a organização do poder político é, nas sociedades su- periores, em que já se nota a diferenciação social de governantes e governados, uma importante função social do direito. Atribuindo ao poder político o monopólio do uso da força, o direito cria o órgão do poder capaz de regular e compor os interesses em disputa na sociedade. E essa regulamemaçáo do poder não poderá evitar uma consequente legitimação do mesmo, além de uma sua limitação, o que cria uma esfera de liberdade jurídica que irá colocar uma larga margem de condutas sob o arbítrio do indivíduo. O tema das urgências sociais a que acode o direito é concluído com a classificação ou tipologia dos interesses que demandam pro- teção jurídica. Segundo Recaséns, tais interesses podem ser classifi- cados em dois grupos: interesses de liberdade e interesses de coopera- ção. Os primeiros dizem respeito ao estar livre de interferências em uma série de aspectos da vida; os segundos referem-se à ajuda ou assistência que pode ser obtida de outras pessoas, grupos ou institui- ções, e são muitos os interesses que não podem ser atendidos sem tal cooperação. 20 Idem, ibidem, págs. 548-549; cf-, também, "Lãs Funciones dei De- recho en Ia Vida Social", in Tratado General de Filosofia..,, cit, Cap. VIII. 6) MOTIVAÇÕES SOCIAIS BÁSICAS DO DIREITO Outro tema sociológico-jurídico de significação básicaé o das motivações originárias do direito. Segundo nosso autor, a motiva- ção radical do direito, o porquê fundamental que movimenta o homem, impelindo-o a regular pelo direito a vida do grupo é a neces- sidade vital de segurança e certeza. Embora todo ordenamento ju- rídico seja um ensaio de direito justo, e ainda as pessoas que a ele estão sujeitas tenham profundas divergências a respeito do programa de justiça que ele tenta realizar, a sua motivação básica não é o valor mais alto da justiça, mas esses valores mais elementares da certeza e da segurança. Garantindo certeza e segurança, o direito permite a vida, dando base à existência e permitindo que as pessoas saibam a que ater-se, embora esse algo possa ser vivenciado por elas como talvez injusto. Todavia, uma certa margem de incerteza e insegurança são condições da mudança e do progresso; e o direito, sob pena de esclerosar-se numa crosta imóvel a comprimir a espontaneidade da vida, necessita conter certa margem de insegurança e incerteza. E essa margem comumente existe, em alguma medida quanto ao con- teúdo concreto das decisões judiciais nos casos futuros, bem como na incessante atividade legislativa que pode modificar para o futuro as regras do jogo de interesses. "Para comprender y explicar el proceso social de formación y de desenvolvimiento dei Derecho" — comenta, em conclusão, Reca- séns — "es preciso tener a Ia vista esos dos aspectos que acabo de sefíalar: el hecho de que los hombres ai producir Derecho tratan de dar certeza y seguridad a determinadas relaciones interhumanas; y el hecho de que a pesar de que el orden jurídico tiene una función estabilizadora de determinadas relaciones sociales, sin embargo, no puede substraerse a Ias necesidades de cambio, suscitadas por el cambio social, por el nacimiento de nuevas necesidades, por Ia modi- ficación de antiguos menesteres, por Ia aparición de nuevas cir- cunstancias" S1. 21. Luís RECASÉNS SICHES, Tratado..., cil., pág. 556. 7) O DIREITO E O PODER SOCIAL Regulado, legitimado e justificado o poder político, não con- cluem aí as relações do direito com o poder. Há, por cima e por fora do poder político institucionalizado, uma espécie de poder social que mantém íntimas relações com o direito e por meio desse poder há que explicar o mecanismo sociológico da vigência. E nesse poder social e nas disputas que por ele se travam que se funda não apenas a vigência das normas atuais como o apareci- mento de novas normas. Compondo as linhas mestras de um sistema em ordenamento jurídico, a constituição pode fundamentar normas legais de diversos conteúdos, conteúdos esses que vão ser postos pela parcela da opinião pública que conseguiu impor sua vontade e seus interesses nos par- lamentos ou nas outras instituições legislativas que socialmente se- jam dadas. Também o poder regulamentar dessas normas legais será aluado por esse poder social através dos grupos de pressão dessa e daquela facções. E mesmo quando a norma legal já está regulamentada, cabem pressões da opinião pública sobre juizes, tribunais e funcionários administrativos a quem está afeta a aplicação das normas aos casos particulares. Casos há mais ostensivos, em que a própria norma deixa ao poder social a sua complementação, tal como se dá quando a norma refere conceitos eminentemente sociais como pudor, bons costumes, bom pai de família, pessoa nimiamente pobre etc. . . Assim se esclarece que, sob o ordenamento jurídico-positivo vi- gente existe uma realidade social que, além de produzi-lo inicial- mente, o mantém em vigência e o vai reelaborando sucessivamente de maneira constante e que o condiciona em todos os momentos de sua vida. Há, portanto, um poder social que dá origem ao sistema jurídico e atua incessantemente em sua manutenção c modi- ficação. E esse poder social, Recaséns, como Ortega, assinala que não se pode confundir com um fenómeno de pura força, por tratar-se antes de um poder espiritual — vigência, dirá Manas — mais que de uma força física ou de uma violência que se impõe. 8) FATORES DE PRODUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO Se passarmos a uma atitude analítica em face desse poder social conformador, mantenedor e modificador do direito, poderemos dis- tinguir, com Recaséns, entre os dados constantes da matéria social e os dados variáveis. Por fatores constantes há que entender aqueles que estarão presentes em qualquer forma de vida social, ainda que com conteúdo diverso em cada caso. Assim, contaremos entre essas constantes, o sentimento de justiça, as ideias de castigo e prémio, enfim, todas aquelas formas básicas em que se manifesta mais ou menos cons- tantemente a universalidade do aparato biopsíquico do homem des- de que socializado. Mais significativa quer parecer-nos a análise dos dados variáveis da matéria social. Entre esses, Recaséns anota: a) realidade de uma série de relações sociais que não estão convenientemente regu- ladas pelo direito, elenco evidentemente variável, de sociedade para sociedade e de época para época; b) tendências e correntes que ainda não lograram vigência, mas pugnam por isso; c) representa- ções axiológicas que têm as pessoas que compõem o grupo; d) mútuas correlações entre o direito e os outros produtos da cultura como a economia, a religião, a arte, a técnica, o conhecimento etc.; e) fenómenos de organização espontânea como o direito consuetu- dinário; /) necessidades e fins da vida humana que estejam pres- sionando em dado momento. A esse estudo dos fatores de produção e transformação do direito, Recaséns faz seguir-se breve referência ao tema das inter- relações entre as sociedades globais e o direito, aí aproveitando as análises de Max Weber no estudo que este faz das relações entre as formas típicas de dominação (tradicional, carismática e racional) e o direito. Completando esse estudo, Recaséns aproveita o título de um artigo de Ripert sobre as forças conservadoras e renovadoras do direito, artigo cujos lineamentos gorais acompanha, prosseguindo na S O C I O L O G I A 417 análise das forças sociais que atuam sobre a legislação, em particular analisando a ação da opinião pública, o entrechoque de interesses, a ação dos grupos de pressão e dos partidos políticos, bem como a ação dos próprios juristas como técnicos e ideólogos. S O C I O L O G I A J U R Í D I C A 4! 5 9) A AÇÃO REGULADORA DO DIREITO SOBRE A SOCIEDADE Até aqui vínhamos acompanhando a elaboração teórica de Recaséns Siches enquanto ela se situa naquele primeiro momento dos estudos de sociologia jurídica que se detém na análise do con- dicionamento que a sociedade exerce na formação, manutenção e transformação do direito. Todavia, o próprio Recaséns o reconhe- ce, não conclui aí a tarefa da sociologia jurídica, embora a ênfase e a incidência maior dos sociólogos do direito esteja nesse aspecto. Há ainda a considerar a relação inversa, ou seja: a influência que o direito constituído exerce sobre a sociedade em seu todo, como um fator social a mais e nada despiciendo. Essa é a parte menos evoluída da sociologia do direito, e Recaséns não foge à regra obser- vável nesse aspecto. Também ele é aqui muito menos fecundo e criador do que no outro campo de estudos. As ideias gerais que como um esquema de análise propõe o nosso autor a respeito da influência do direito sobre a sociedade podem ser resumidas nos seguintes itens. Depois de formalmente posta uma nova norma como, por exemplo, quando da promulgação e publicação de uma nova lei, se formalmente ela passa a viger e, pois, a obrigar, a partir de então, sociologicamente abre-se aqui uma tríplice possibilidade, a saber: a) A nova lei é violentamente repelida pelos que a ela esta- riam formalmente obrigados, sujeitos estes que não apenas deixam de cumprir a lei como até rebelam-se publicamente contra a sua aplicação; é um caso de revolução ou motim embora limitada a um pequeno aspecto doordenamento. Será um puro fenómeno de sociologia do poder se a rebeldia será vitoriosa ou, ao contrário, punida. Vitoriosa, a lei nova cairá em desuso ou será substituída por outra que vírá em concordância com as reivindicações dos re- beldes. Se a rebeldia é punida e a lei nova se impõe, desloca-se a hipótese para o caso que vamos estudar adiante no item c. b) Sem que haja rebeldia ostensiva a lei nova não tem eficácia e nasce letra morta (dessuetudo), ou, adiante, um costume lenta- mente a vai derrogando (costume ab-rogatório). (Esta última hi- pótese não é contemplada por Recaséns mas nem por isso é menos provável, embora doutrinariamente repelida pelas concepções racio- nalistas da ciência jurídica.) c) A lei nova é acatada de modo geral pelos cidadãos. Nesse último caso, que é o mais frequente e normal, impõe-se a análise do problema do reconhecimento das normas jurídicas, que Bierling colocou na problemática da ciência e da filosofia jurídica e que ali estaria desenquadrada, por tratar-se de nítido problema sociológico-j u rídico. Por que as pessoas acatam as normas? Tal o interrogante que a problemática sociológica do reconhecimento se propõe investigar e responder. Em linhas muito gerais, esses porquês são diversos, entre eles contando-se as convicções éticas, e o puro medo à sanção. Assim, por exemplo, muitos cidadãos, precatados de seu dever moral, acatam as novas normas porque elas se casam plenamente com suas exigências éticas. Outros há que, embora não cheguem a essa escrupulosa análise da coincidência do dever jurídico com os deveres que sua consciência reconhece como morais, mas, prezando a ordem e a paz, aderem à nova norma como algo melhor que a anarquia e a falta de alguma regulamentação das condutas. Outros, ainda, sem sequer tais considerações pragmáticas, por puro temor das sanções. Outros ainda, não querendo submeter-se à nova lei, mas tomando as sanções que a sua infração acarreta, encontrarão meios ardilosos de burlá-las, sem que sejam castigados. Por fim, outros ainda existem que não adaptarão seu comportamento à nor- ma e serão alcançados pela sanção, seja que reconheçam ou não a conveniência ou a presteza dela. Finalmente, há que esclarecer que o reconhecimento pode ser direto ou indireto. Nos casos esquematizados acima tínhamos em vista o reconhecimento direto, em que o indivíduo reconhece ou nega reconhecimento a cada disposição normativa tendo em vista o seu conteúdo. No comum, porém, o reconhecimento é indireto, pois, não ha- verá alguém, nem o maior perito em legislação, que conheça per se iodas as normas vigentes em dado momento. O reconhecimento dá-se, assim, em bloco, pois o indivíduo acata o ordenamento ou aceita o poder social em que ele se funda. Finalmente, cabe aqui uma palavra de apreciação final acerca da sociologia raciovitalista aplicada ao direito. Se é verdade que o grande do raciovitalismo é a originalidade e a fecunda lucidez de 420 A. L. MACHADO NETO sua filosofia da existência, o que o próprio Recaséns aplicou com grande êxito à filosofia do direito22, não há negar que a fecundidade dessa filosofia da razão vital tem benéficas influências sobre a teoria sociológica, particularmente graças à sua teoria do coletivo, que per- mite uma minudente análise do que é individual, do que é interindi- vidual e do que é coletivo em minha vida. Sob esse aspecto, quanto à aplicação desses esquemas categoriais à vida social do direito, a crítica que poderíamos fazer a Recaséns extravasa do âmbito empírico da sociologia do direito para situar-se no âmbito mais radical da ontologia jurídica É que, seguindo as pegadas de Ortega, que não tinha maior compromisso profissional com o jurídico, e que o viu, assim, de fora, identificando-o como um aspecto mais visível e, mesmo, gros- seiro do social, Recaséns não viu, por isso, no direito, senão a norma, essa, sem dúvida, uma objetivação de conduta, além de um juízo de dever ser. Não pôde, por isso mesmo, dar ao direito a eminente dignidade de um modo especial de ser de mi vida como vida vivente, o que a teoria egológica, nesse ponto uma aplicação mais coerente da filosofia existencial ao direito, pôde ver, daí tirando extraordi- nárias e insuspeitadas consequências até aqui acantonadas na ciência jurídica e na sua filosofia. Todavia, a concepção raciovitalista aplicada ao direito, encontra no método da razão vital uma sutilização do aparato cognoscitivo da compreensão, que é, como vimos, o método que o próprio Reca- séns reconhece como válido para as ciências de objetos culturais. Num campo próximo à sociologia jurídica —, a análise das vigências sociais - - Julián Marías logrou o que até aqui consideramos a melhor utilização do método raciovitalista aplicado a temas sociais. Se a sociologia jurídica de Recaséns não alcança o nível de origi- nalidade da análise empreendida por Marías em La Eslrucfura Social, há que levar em conta o caráter dídático e, pois, mais expositivo e programático do que propriamente original e criador de seus escritos sobre a matéria. 22. Sobre a filosofia jurídica do raciovitalismo cf. A. L. MACHADO NETO, Sociedade e Direito na Perspectiva da Razão Vital, Liv. Progresso EA., Bahia, 1957 Impressão e acabamento Editora SARAIVA Unidade Gráfica 'Av. AmSncioGaiolii. 1146 Guarulhos-SP
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