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Areia Ancestral - Rogério Ferreira

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Prévia do material em texto

Artigo publicado na revista Carta Fundamental, nº 68, em maio de 2015 
 
Areia Ancestral 
Desenhos oriundos da tradição africana, os sona ensinam uma nova forma 
de trabalhar conceitos da geometria 
 
Rogério Ferreira * 
 
 
Desenhos na areia, carregados de significados ancestrais, estarão no centro 
das atenções neste tema de aula. Trata-se dos sona (plural de lusona), 
desenhos oriundos da prática cotidiana dos povos Cokwe, Luchazi, 
Ngangela, entre outros social e culturalmente relacionados a estes. 
Residentes no leste de Angola e em regiões vizinhas, na Zâmbia e na 
República Democrática do Congo, estes povos trazem consigo saberes 
milenares que ensinam ao mundo diferentes modos de organizar e difundir 
conhecimento. 
 
 
 
A região da tradição africana sona é uma área de grande concentração do 
movimento de escravização, via tráfico transatlântico, para o Brasil. Este 
fato nos leva a um questionamento inicial para reflexão: Por que muito dos 
conhecimentos Cokwe, Luchazi e Ngangela foram e continuam sendo 
invisibilizados no território brasileiro se os mesmos são parte fundante da 
cultura brasileira, na diversidade em que esta se manifesta? 
No Brasil, currículos escolares que fogem desta questão ou simplesmente a 
obscurecem, mostram-se insensíveis à própria história do país, além de 
ferirem diretamente a lei 11645/08 que determina o estudo da história e 
cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino 
fundamental e de ensino médio tanto públicos quanto privados. Como 
consequência, valores antiéticos que durante séculos sustentaram 
movimentos de colonização por todo o mundo permanecem sendo 
alimentados via educação escolar. 
Para superar esse quadro, currículo não pode ser compreendido como 
elemento estático, isento, mas sim como prática social, histórica, cultural e 
política. Problematizar a realidade vivida é papel educativo, portanto torna-
se contraditória uma visão curricular que não busca mobilizar, criticamente, 
o espaço sociocultural em que se contextualiza. 
Para construção dos sona, seja com traços na areia seja com pintura na 
parede da casa, inicialmente é feita uma rede de pontos. Nesta rede, os 
desenhos são formados utilizando uma ou mais linhas que, dinamicamente, 
enlaçam os pontos. Como exemplo, iremos partir de uma pequena rede 2 x 
3, apresentando um dos processos mais simples da tradição sona para 
formação de figuras: 
 
 
 
Como recurso didático para compreensão da formação do lusona, podemos 
utilizar um retângulo (‘caixa espelhada’) em torno dos pontos, como mostra 
a figura abaixo: 
 
 
 
As linhas do lusona são traçadas como se fossem raios de luz refletindo em 
paredes espelhadas (bordas do retângulo), formando sempre um ângulo de 
45º, conforme mostra o processo a seguir: 
 
 
 
Ao final do processo, o seguinte lusona é obtido: 
 
 
 
É interessante notar que este lusona utiliza um único fio, isto é, se o 
desenharmos em uma folha de papel, então utilizaremos um único traço, 
sem retirar o lápis da folha. Mas será que isso sempre ocorre? Vejamos um 
exemplo a mais, partindo, agora, de uma rede de pontos 2 x 4: 
 
 
 
O processo de formação do lusona está representado a seguir: 
 
 
 
Chegamos, então, ao seguinte lusona: 
 
 
 
A representação em azul e vermelho no processo de formação do desenho 
objetiva evidenciar a necessidade de se utilizar dois fios. Logo, neste caso, 
não é possível chegarmos à configuração final sem retirar o lápis da folha 
de papel. 
Com estes dois exemplos, uma nova pergunta surge: como, antes de 
desenhar um lusona, podemos definir o número de fios que será utilizado? 
Podemos assim respondê-la: 
 
Se a malha de pontos é m x n, sendo m e n 
números naturais, então o número de fios é o 
Máximo Divisor Comum (MDC) de m e n. 
 
Em nosso primeiro exemplo (2 x 3), temos que MDC (2,3) = 1, portanto foi 
utilizado um único fio. No segundo exemplo (2 x 4), o MDC (2,4) = 2. 
Consequentemente, neste caso foram utilizados dois fios. Com raciocínio 
análogo, conclui-se que, se a malha é 2 x 5, então será utilizado um único 
fio, se é 3 x 3, serão utilizados três fios, se é 2 x 6, 2 fios e assim por diante. 
O fato de o MDC de m e n ser o definidor do número de fios a ser utilizado 
na formação de um lusona m x n equivale a uma interessante interpretação 
geométrica que pode ser evidenciada a partir da seguinte pergunta: Qual é a 
malha quadrada de maior dimensão que decompõe uma malha de pontos m 
x n? Ou, em outras palavras: Qual é o quadrado de maior área que 
decompõe o retângulo cuja malha de pontos é m x n? 
Voltemos a malha 2 x 3 de nosso primeiro exemplo. As linhas pontilhadas 
da representação abaixo nos ajudam a observar que o quadrado de maior 
área que decompõe o retângulo abriga uma malha 1 x 1 : 
 
 
 
Analogamente, podemos observar que o quadrado de maior área que 
decompõe a malha 2 x 4 de nosso segundo exemplo é o quadrado que 
abriga uma malha 2 x 2: 
 
 
 
Em síntese, temos: 
 Na malha 2 x 3, utiliza-se um único fio. Esse fato pode ser alcançado 
tanto pelo fato de o MDC de 2 e 3 ser igual a 1 quanto pelo fato de a 
maior malha quadrada que decompõe a rede original de pontos ser a 
malha 1 x 1. 
 Na malha 2 x 4, utiliza-se dois fios. Esse fato pode ser alcançado 
tanto pelo fato de o MDC de 2 e 4 ser igual a 2 quanto pelo fato de a 
maior malha quadrada que decompõe a rede original de pontos ser a 
malha 2 x 2. 
 
Portanto, temos dois caminhos para saber de antemão quantos fios serão 
utilizados em um lusona construído numa rede de pontos m x n. O primeiro 
se resume ao cálculo do MDC de m e n. O segundo é caracterizado pela 
busca da maior malha quadrada que decompõe a rede de pontos original do 
lusona. Estes caminhos promovem um fértil diálogo entre a tradição sona e 
conteúdos de matemática comumente presentes nos currículos escolares da 
educação básica, criando uma alternativa pedagógica que transcende um 
tratamento escolar frio e desmotivador. 
É importante ressaltar que os sona vão muito além dos dois exemplos que 
nos serviram de motivação até aqui. Muitos dos desenhos desta tradição 
africana são construídos em um misto de uso de técnicas de enlace de 
pontos com desenhos de característica mais livre. O significado e as 
técnicas de confecção dos desenhos são da esfera de ação de especialistas 
(akwa kuta sona), mestres da cultura compromissados com a continuidade 
do conhecimento sona. Por isso, uma ação contínua dos akwa kuta sona é 
ensinar aos jovens desde os aspectos mais primários dos desenhos até às 
técnicas mais complexas. 
 
 
 
 
Figuras reconstruídas a partir das imagens publicadas no livro 
Geometria Sona de Angola – matemática duma tradição africana, de Paulus Gerdes 
 
Porém os sona não se resumem a técnicas de desenho. Constituem parte 
viva da tradição cultural. Dizem respeito a saberes construídos ao longo do 
tempo, provérbios, mitos, acontecimentos, animais, jogos, entre muitas 
outras variantes de conhecimento. Cada lusona traz consigo muito de arte, 
educação e filosofia, constituindo fonte de sabedoria ancestral que mantém 
viva a cultura. Cada desenho conta uma história, revive um fato histórico, 
cuida da memória cultural coletiva, enfim, faz do chão arenoso e úmido 
meio próprio de comunicação do povo, prática educativa de riqueza 
incomensurável. 
Ao colocar em foco os desenhos sona na aula de matemática, o professor 
pode contribuir para a valorização de saberes historicamente 
marginalizados por processos de colonização. Mas, para isso, não deverácolocar uma matemática livresca no cume da prática educativa. 
Hierarquizar conhecimentos não é um caminho a ser buscado. Um 
movimento intercultural em que conhecimentos dialogam horizontalmente 
a favor da formação crítica dos estudantes pode ambientar um rico espaço 
pedagógico. 
Diferentemente dos dois exemplos iniciais trabalhados neste texto, muitos 
sona possuem configurações em que os fios nem sempre se cruzam após 
serem refletidos nas paredes imaginárias da ‘caixa espelhada’. É como se 
um miniespelho fosse posicionado no caminho do raio, levando-o a desviar 
sua rota. A ilustração abaixo mostra um sona construído com três 
miniespelhos imaginários. 
 
 
 
Observe que os ‘miniespelhos’ são os geradores dos laços que não se 
tocam. É importante ressaltar que o desenho do lusona que se encontra fora 
da ‘caixa espelhada’, com acabamentos curvos, é a configuração que se 
verifica na realidade. Os ‘miniespelhos’ têm importante função estética na 
construção dos sona. Por meio deles, efeitos artísticos diferenciados podem 
ser alcançados, oferecendo ao desenhista múltiplas alternativas de 
produção. Observe ainda que são utilizados quatro fios para confecção 
deste lusona, mostrando que a presença de ‘miniespelhos’ não permite a 
aplicação do MDC para determinar o número de fios a ser utilizado. 
Deve ficar claro que tanto a ‘caixa espelhada’ quanto os ‘miniespelhos’ são 
recursos didáticos utilizados a fim de interpretar as técnicas de desenho 
utilizadas na tradição sona. Na realidade, eles não existem, pois os 
desenhos são feitos a mão livre, evidenciando uma incrível habilidade 
humana enraizada na cultura. 
E se a ‘caixa espelhada’ tiver um formato não retangular como a 
apresentada abaixo? Que lusona será obtido? Esse desafio fica para você, 
leitor, na expectativa de que sua diversão com os sona esteja apenas 
começando. 
 
 
 
Este texto não poderia ser finalizado sem dizer que o principal estudo dos 
sona, de modo dialogado com a matemática, foi realizado por Paulus 
Gerdes, educador e investigador da etnomatemática que se dedicou 
amplamente a valorizar ideias arraigadas em práticas culturais de povos 
vitimados por processos de colonização. Gerdes faleceu no dia 11 de 
novembro de 2014. Certamente, os raios de luz lançados por sua 
sensibilidade e por seu respeito aos saberes locais irão cada vez mais 
iluminar educadores que trabalham a favor da requalificação das relações 
interculturais por todo o mundo. Ao Paulus, in memoriam, deixamos esse 
singelo artigo como homenagem. 
 
* Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Investigador 
da etnomatemática, doutor em Educação e mestre em Matemática.

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