Buscar

Controle Social, Sistema Penal e Direito Penal Zaffaroni e Pierangeli

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 10 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 10 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 10 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

CAPÍTULO I 
 
CONTROLE SOCIAL, SISTEMA PENAL E DIREITO PENAL 
 
 
I - Controle social e sistema penal 
 
 
1. O delito como "construção" e como "realidade" 
 
Se dispensamos o código e as leis penais e formulamos uma pergunta 
indiscreta à realidade social, não necessitamos maior aprofundamento para 
percebermos que nada há em comum entre a conduta de quem emite um cheque sem 
provisão de fundos e a de quem ataca uma mulher e a estupra, isto é, que se trata de 
duas ações com significado social completamente distinto. 
O único traço em comum entre essas duas condutas é que ambas estão 
previstas na lei penal, ameaçadas legalmente com uma pena, submetidas a um 
processo de verificação prévio, institucionalizado através de funcionários públicos, pelo 
qual seus autores podem ser privados de liberdade em uma prisão. Isto basta para 
demonstrarmos que "o delito" não existe sociologicarnente se prescindimos da solução 
institucional comum. Na realidade social existem condutas, ações, comportamentos que 
significam conflitos que se resolvem de um modo comum institucionalizado, mas que 
isoladamente considerados possuem significados sociais completamente diferentes. 
Não é só isso o que observamos, mas, também em relação às mesmas 
condutas que geram conflitos com soluções institucionais idênticas, vemos que as 
instituições operam de um modo diferente: o estupro e o homicídio costumam ser 
divulgados pêlos jornais; as emissões de cheques sem fundos não, como tampouco os 
furtos. Ademais, o curioso é que na imensa maioria dos casos a solução comum 
institucional não se justifica: o receptor do cheque quer cobrá-lo e se não é bem-
sucedido dá por encerrado o assunto; a vítima de furto quer recuperar a coisa ou parte 
dela e pode deixar de fazer a delação que prejudique este objetivo; a vítima de estupro 
pode não querer denunciar para não submeter-se à desonra pública. Na realidade, se 
cada cidadão fizesse um rápido exame de consciência, comprovaria que várias vezes 
em sua vida infringiu as normas penais: não devolveu o livro emprestado, levou a toalha 
de um hotel, apropriou-se de um objeto perdido etc. Em sã consciência, cada um de 
nós tem um "volumoso prontuário", Os juizes incrementam-no diariamente, ao 
subscrever falsamente declarações como prestadas em sua presença e nas quais 
jamais estão presentes. Os serventuários da Justiça certificam diariamente várias 
destas falsidades ideológicas. 
Poder-se-á afirmar que tais ações não são delito ou que são delitos 
levíssimos. No entanto, há numerosíssimas condenações penais por fatos análogos e 
ainda mais insignificantes: furto de uma xícara de café barata por parte de um servente 
da limpeza; apropriação de duas latas de pêssegos por um empregado; negativa do 
motorista do ônibus urbano a deter-se em uma parada para que desça um passageiro; 
furto de uma folha de um talonârio de cheques inútil, referente a uma conta encerrada; 
etc. 
 
 
A isso se acrescenta que, no panorama geral do mundo, a máxima 
quantidade de dano causado ao maior número de pessoas, ao menos no século XX, 
não provém daqueles que são detectados e classificados como "criminosos" ou 
"delinquentes", mas de órgão dos Estados, em guerra ou fora dela (Guinney-
Wildeman). Do ponto de vista jurídico não resta dúvida de que o armamentismo que 
desemboca na "dissuasão nuclear" configura um conjunto de ações preparatórias de 
crimes de guerra, como demonstrou recentemente o professor da Universidade Católica 
de Louvain Jacques Verhaegen; porém ninguém é criminalizado por isto, embora pela 
estrutura jurídica da NATO sejam competentes as autoridades judiciais dos Estados 
Unidos e da Europa. Por outro lado, chama também a atenção que, na grande maioria 
dos casos, os que são chamados de "delinquentes" pertencem aos setores sociais de 
menores recursos. Em geral, é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo 
estão povoadas de pobres. Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às 
quais se qualifica como "delinquentes" e não, como se pretende, um mero processo de 
seleção das condutas ou ações qualificadas como tais. 
Quanto ao mais, ações nada desejáveis ou imorais e conflitivas existem 
muitas: ter relações sexuais com uma prostituta e não pagar-lhe o preço combinado; 
não pagar o salário ao empregado; não pagar a conta da luz elétrica; etc. Contudo, no 
primeiro caso não se pode buscar nenhuma solução por via institucional; no segundo a 
solução deve ser procurada mediante uma ação trabalhista; e no terceiro o fornecedor 
age unilateralmente interrompendo o abastecimento. Isto é, nem todas as ações imorais 
ou indesejáveis e conflitivas abrem a possibilidade de uma solução penal. 
Isso significa que em qualquer situação conflitiva a solução punitiva do 
conflito é somente uma das soluções possíveis. Um autor contemporâneo exemplifica 
com o caso de cinco estudantes que moram juntos e um deles, em certo momento, 
golpeia e quebra o televisor. Cada um dos restantes analisará o acontecimento à sua 
maneira e adotarã uma atitude diferente. Um, furioso, declarará que não quer mais viver 
com o primeiro; outro reclamará que pague o dano ou compre outro televisor novo; 
outro afirmará que seguramente não está em seu perfeito juízo; e o último observará 
que, para que tenha lugar um fato desta natureza, algo deve andar mal na comunidade, 
o que exige um exame comum de consciência (Hulsman). Estas diferentes reações 
mostram quatro estilos diversos para resolver um conflito: o punitivo, o reparatório, o 
terapêutico e o conciliatório. 
A primeira destas possíveis soluções, ou seja, a punitiva, admite duas 
variáveis: a exclusão desse estudante do grupo (eliminatória), e a de atingi-lo 
diretamente (retributiva). A primeira delas, a eliminatória, confunde-se, muitas vezes, 
com a terapêutica: isolar uma pessoa pelo resto de sua vida, num manicômio, equivale 
à sua destruição. Obviamente, trata-se de uma punição sob um discurso ou pretexto 
terapêutico. 
Por outro lado, nem todos os conflitos que atualmente se resolvem pela via 
punitiva têm sido sempre resolvidos de urna única maneira. Os conflitos aparecem e 
desaparecem na história, e, enquanto persistem, também ostentam soluções 
diversificadas. O concubinato atualmente não constitui um conflito, mas houve tempos, 
não muito distantes, em que o era e admitia solução punitiva. A homossexualidade 
continua a ser um conflito, como nos demonstra a luta dos movimentos gays. Não 
obstante, dessas soluções punitivas terríveis e absurdas (morte, castração etc.) passou-
se para as punições não formais (arbitrariedade policial, por exemplo), e a propiciarem-
 
 
s e soluções conciliatórias. As bruxas não mais são levadas à fogueira; ou se lhes 
reconhece poderes paranormais, do que resulta para elas um certo prestígio social, ou 
são consideradas enfermas e se busca uma solução terapêutica. Não obstante, a 
solução punitiva dos conflitos possui um inquestionável efeito negativo, que consiste na 
exclusão das outras soluções possíveis. Quando se opta pela punição 
institucionalizada, o conflito não poderá ser solucionado por nenhuma outra via. 
Em síntese: ações conflitivas de gravidade e significado social muito 
diversos se resolvem por via punitiva institucionalizada, mas nem todos os que as 
realizam sofrem essa solução, e sim unicamente uma minoria ínfima deles, depois de 
um processo de seleção que quase sempre seleciona os mais pobres; outras ações 
conflitivas se resolvem por outras vias institucionalizadas e outras carecem de solução 
institucional; a solução punitiva (eliminatória ou retributiva) é somente uma alternativa 
que exclui a possibilidade das outras formas de resolver os conflitos (reparatória, 
terapêutica e conciliatória). Como se não bastasse isso, as ações que abrem a 
possibilidade de solução penal de maior gravidade são cometidas pêlos próprios 
Estados que institucionalizamtais soluções. 
Nestas condições, tem-se total impressão de que "o delito" é uma 
construção destinada a cumprir certa função sobre algumas pessoas e a cerca de 
outras, e não uma realidade social individualizável. Já veremos se esta impressão é 
verdadeira, mas o certo é que, com esta constatação tão simples, ninguém mais pode 
contentar-se com meras respostas formais ao encarar a pretensão de saber "algo" a 
respeito do direito penal. 
 
 
2. Conceito e formas de controle social 
 
O homem sempre aparece em sociedade interagindo de maneira muito 
estreita com outros homens. Reúnem-se dentro da sociedade em grupos permanentes, 
alternativa ou eventualmente coincidentes ou antagónicos em seus interesses e 
expectativas. Os conflitos entre grupos se resolvem de forma que, embora sempre 
dinâmica, logra uma certa estabilização que vai configurando a estrutura de poder de 
uma sociedade, que é em parte institucionalizada e em parte é difusa. 
O certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com 
grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores 
mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com 
essa estrutura, se "controla" socialmente a conduta dos homens, controle que não só se 
exerce sobre os grupos mais distantes do centro do poder, como também sobre os 
grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar sua própria conduta para não 
debilitar-se (mesmo na sociedade de castas, os membros das mais privilegiadas não 
podem casar-se com aqueles pertencentes a castas inferiores). 
Deste modo, toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e 
económico) com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na 
qual, logicamente, podem distinguir-se graus de centralização e de marginalização. Há 
sociedades com centralização e marginalização extremas, e outras em que o fenómeno 
se apresenta mais atenuado, mas em toda sociedade há centralização e 
marginalização do poder. 
 
 
Esta "centralização-marginalização" tece um emaranhado de múltiplas e 
proteicas formas de "controle social" (influência da sociedade delimitadora do âmbito de 
conduta do indivíduo). Investigando a estrutura de poder explicamos o controle social e, 
inversamente, analisando este, esclarecemos a natureza da primeira. 
O âmbito do controle social é amplíssimo e, dada sua proteica configuração 
e a imersão do investigador no mesmo, ele nern sempre é evidente. Este fenómeno de 
ocultamente do controle social é mais pronunciado nos países centrais do que nos 
periféricos, onde os conflitos são mais manifestos. De qualquer modo, inclusive nos 
países periféricos, o controle social tende a ser mais anestésico entre as camadas 
sociais mais privilegiadas e que adotam os padrões de consumo dos países centrais. 
Assim, por exemplo, os meios de comunicação social de massa induzem 
padrões de conduta sem que a população, em geral, perceba isso como "controle 
social", e sim como formas de recreação. Qualquer instituição social tem uma parte de 
controle social que é inerente a sua essência, ainda que também possa ser 
instrumentalizada muito além do que corresponde a essa essência. O controle social se 
exerce, pois, através da família, da educação, da medicina, da religião, dos partidos 
políticos, dos meios de massivos de comunicação, da atlvidade artística, da 
investigação científica etc. 
O controle social se vale, pois, desde meios mais ou menos "difusos" e 
encobertos até meios específicos e explícitos, como é o penal (polícia, juizes, agentes 
penitenciários etc.). A enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social 
demonstra que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos 
democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenómeno e 
não unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explícito. 
Assim, para avaliar o controle social em um determinado contexto, o 
observador não deve deter-se no sistema penal, e menos ainda na mera letra da lei 
penal, mas é mister analisar a estrutura familiar (autoritária ou não), a educação (a 
escola, os métodos pedagógicos, o controle ideológico dos textos, a universidade, a 
liberdade de cátedra etc.), a medicina (a orientação "anestesiante" ou puramente 
organicista, ou mais antropológica de sua ideologia e prática) e muitos outros aspectos 
que tornam complicadíssimo o tecido social. Quem quiser formar uma ideia do modelo 
de sociedade com que depara, esquecendo esta pluridimensionalídade do fenómeno de 
controle, cairá em um simplismo ilusório. 
 
 
3. Saber e controle social (saber e poder) 
 
Tradicionalmente se repete o princípio positivista, segundo o qual quanto 
maior é o saber, maior é o poder, que para nós se tornou "lógico". Parecia uma verdade 
incontestável que o homem com mais conhecimentos científicos tinha mais poder, 
sobretudo considerando os êxitos tecnológicos de nossa civilização industrial. 
Entretanto, a estas alturas da História, o que parece inquestinonável é o contrário: é o 
poder que condiciona o saber. 
É inquestionável que no mundo há uma estrutura de poder que se vale de 
ideologias que em grande parte são "encobridoras" ou "de ocultação", ou francamente 
"criadoras da realidade". O certo é que nossa civilização industrial chegou, em sua 
corrida em busca de um permanente aumento de produção, a um ponto em que se 
 
 
teme seriamente pela viabilidade futura da vida no planeta, que não só está ameaçado 
por explosivos nucleares capazes de arrasá-lo, ou pelo perigo de urna guerra química 
ou biológica, mas também por uma acelerada destruição dos bosques, esgotamento de 
recursos não renováveis e crescente poluição da atmosfera e dos mares, sem contar 
corn a contaminação radioativa. Nesta situação, se destinam mais de quinhentos 
bilhões de dólares anuais - cifra que cresce acumulativãmente em 8% a cada ano - a 
armamentos, enquanto morrem de fome anualmente quarenta milhões de crianças, e 
muitos milhões mais jamais alcançarão um desenvolvimento completo da inteligência 
em virtude de carências alimentares nos primeiros anos de vida. A isto soma-se o fato 
de que os países centrais realizam experiências biológicas que podem permitir ao 
poder central condicionar a evolução futura do homem e das espécies animais e 
vegetais e criar toda classe de híbridos através da engenharia genética. 
As estruturas do poder mundial, tanto no mundo malchamado "ocidental" 
(capitalista ou de economia descentralizada) como no chamado "oriental" (comunista ou 
de economia centralizada), reconhecem países centrais e países periféricos. O controle 
social, em cada um desses países, será diferente, segundo se trate de países de 
economia descentralizada (capitalistas) ou estatal ou centralizada e, ainda, entre os 
periféricos, segundo seu grau e momento de desenvolvimento (economia rural, em vias 
de industrialização etc.). Em cada um deles, o poder gerará, condicionará, fomentará ou 
será inclinado a explicações ou versões da "realidade" que, em forma de ideologias 
(sistemas de ideias, isto é, com conteúdo não pejorativo) abarcarão também as 
ideologias científicas. Toda ciência é ideológica (porque qualquer saber é ideológico) e 
o poder, em cada caso, a manipulará segundo convenha à sua conservação, 
privilegiando uma ideologia e descartando (ou reprimindo, limitando o desenvolvimento 
ou ocultando) as que considere perigosas ou negativas para ela. 
Por maior que seja a aparência de seriedade e assepsia de uma ideologia, 
sempre será uma ideologia. A ilusão científica de "objetividade" não passou de um 
elemento sedativo e anestésico que hoje não tem rnais utilidade. 
Quando, hoje, nos apercebemos de que a sociologia surgiu numa forma 
organicista, porque se constituía numa necessidade para a burguesia europeia que, 
então no poder, tinha de desvencilhar-se da carga ideológica do liberalismocentralista, 
ou quando descobrimos que a harmônica construção da antropologia primitiva provém 
de teses racistas nas versões de Gobineau ou Spencer, que tornavam a ideologia de 
justificação dos empreendimentos colonialistas ingleses ou franceses, não podemos 
deixar de encontrar sérias analogias entre estas "ciências" pretensiosamente "objetivas" 
e a alquimia e a astrologia. 
Com maior razão, isto se torna evidente quando se trata do conhecimento 
que versa sobre o próprio controle social, como o é o de que nos ocupamos. Decorre 
precisamente disso a enorme confrontação ideológica que se opera no campo das 
ciências penais e em seu iniludível tratamento. 
A América Latina se encontra entre os países periféricos, ou seja, na 
injustiça social que se gera em nível internacional, como resultado da divisão 
internacional do trabalho (exemplarmente criticada na Encíclica Laborem Exercens), 
nossas sociedades apresentam características particulares que se revelam em seu 
controle social c em seus sistemas penais, e delas mais adiante nos ocuparemos. Não 
obstante, ao explicar nosso direito penal - como parte do controle social -, se passam 
por alto estas características, tratando de importar ideologias massivamente. Por outro 
 
 
lado, a mesma posição periférica nos impediu de elaborar um desenvolvimento 
ideológico próprio, o que nos mantém em posição tributária das ideologias dos países 
centrais. 
Há autores - tanto em nossa área como fora dela - que, em razão do grande 
choque ideológico que se opera no campo jurídico, afirmam que o conhecimento 
jurídico não tem caráter científico. Sem pretender entrar neste debate, o certo é que o 
fenómeno que revelam é comum a todo saber relacionado mais ou menos diretamente 
com o social, e de modo algum é exclusivo do Direito. De outra parte, nem sequer as 
ciências mais distantes do social ficam à margem da manipulação ideológica: na 
Biologia, o evolucionismo simplista foi a base ideológica do racismo, justificação 
cientificista do colonialismo; na Física, o mecanicismo foi a base do determinismo 
positivista, ideologia típica das camadas sociais mais beneficiadas com a 
industrialização. 
 
 
4. Características da manipulação ideológica 
 
O poder instrumentaliza as ideologias na parte em que estas lhe são úteis e 
as descarta quanto ao resto. Deste modo, recolhe do sistema de ideias de qualquer 
autor a parte que lhe convém, com o qual lii-qüentcmente tergiversa. Assim, o 
autoritarismo não tomou de Hegel a parle liberal, e sim a exaltação do Estado; o 
racismo não tomou do evolucionismo as advertências prudentes, mas ostentou uma 
"ortodoxia" evolucionista jamais sustentada com seriedade por seus criadores; lis 
tendências teocráticas tomam das espiritualistas tudo o que faz a resignação em função 
da justiça do "além", esquecendo que quase todas estas afirmam que é seu 
pressuposto o obrar justo neste mundo; o psicologismo quietista toma de Freud ou das 
outras correntes psicana-lílicas o seu aspecto de "técnica", mas passam por alto os 
contextos sociológicos originários etc. 
Esta característica da manipulação ideológica tem um duplo efeito: a) gera 
em alguns a impressão superficial - e infantil - de que os criadores de cada ideologia 
foram ou são uma espécie de génios do mal, que vivem buscando o modo de 
proporcionar argumentos de justificação ao poder. Este infantilismo analítico leva a 
afirmações absurdas de que Kant era um obsessivo, Hegel um delirante, Freud um 
traumatizado, as religiões "ópio dos povos" etc.; b) por outro lado, se originam 
intermináveis disputas acerca do que quis verdadeiramente cli/cr cada autor, corrente 
ou personagem, sobre a base certa de que geralmente não disse o que o poder 
pretende pôr em seus lábios. Estas discussões são as que provocam inflamados 
manifestos demonstrativos de que Nietzsche não disse o que Hitler entendeu, que Marx 
não disse o que Stalin o fez dizer etc. 
Não devemos esquecer que, em definitivo, não se pode atacar as 
"ideologias" pelo mero fato de serem o que são, a não ser que aclaremos o que 
entendemos por "ideologia", porque o vocábulo é equívoco. Há vários sentidos 
pejorativos de "ideologia", que podem ser sintetizados ern dois conceitos fundamentais: 
a) napoleônico, segundo o qual "ideologia" é o produto de uma especulação carente de 
realismo (algo parecido com "utopia"); b) o marxista, segundo o qual "ideologia" é 
sempre uma superestrutura que encobre a realidade. Nós não usamos "ideologia" em 
nenhum destes sentidos, mas em um sentido não pejorativo, segundo o qual "ideologia" 
 
 
é "Ioda crença adotada para o controle dos comportamentos coletivos, iMilendendo por 
'crença' uma noção que vincula a conduta e que l>mle ou não ter validez objetiva" 
(Abbagnano). Neste sentido, que u crença ou sistema de ideias tenha ou não validez 
objetiva não afeta o ciirtíter de ideologia, mas é uma questão que deve ser esclarecida 
pela "critica da ideologia". 
Concebida neste sentido não pejorativo, ao campo da ideologia pertencem 
todas as criações da cultura, desde as mais inteligentes e sublimes até as mais 
aberrantes. O que acontece é que, por regra geral, o poder recolhe deste jardim as 
flores mais aberrantes e as ervas daninhas e folhas secas do resto. Mas isto não 
autoriza a rechaçar toda a cultura universal, nem a crer que cada criador ideológico é 
um maléfico psicopata que toma a seu cargo a tarefa de justificar os crimes do poder. 
Justo é assinalar que a verdade não pode expressar-se por inteiro em seus 
conceitos, simplesmente porque a verdade é infinita e a conceituação - isto é, a 
ideologia - é um recurso finito. Portanto, toda referência ideológica à verdade, 
inevitavelmente, sempre é parcial. Trata-se de um limite inerente à natureza mesma da 
ideologia. Quando se pretende superá-la, afirmando ideologicamente "a" verdade 
absoluta, excede-se o marco das possibilidades humanas, de maneira nem sempre 
intencional. A única forma de não cair neste erro é a humildade, ou seja, o 
reconhecimento da parcialidade de todo o conhecimento. 
 
 
5. Os direitos humanos e o controle social 
 
Ao longo da História sempre existiu uma ou várias ideologias encarregadas 
de explicar e justificar cada uma das atrocidades cometidas. Assim, o genocídio 
indígena americano ou o tráfico de milhões de homens africanos tiveram suas 
ideologias de justificação, como também o teve o colonialismo mais cruel e explorador. 
Quando já não se pôde subjugar a um povo afirmando a superioridade do conquistador 
ou do colonizador sobre base religiosa, se "inventou" a antropologia, para reafirmar que 
as sociedades colonialistas eram mais "evoluídas" que as colonizadas, argumento com 
o qual se encobriram todas as empresas de exploração colonial do século passado e 
que foi vendido a todas as oligarquias dos nossos países latino-americanos. 
O certo é que entre 1939 e 1945 desencadeou-se o mais cruel e 
generalizado conflito bélico entre as potências mundiais, com um saldo de milhões de 
mortos e as piores atrocidades cometidas. Elementos ideológicos recolhidos do 
biologismo deram o discurso de justificação ao hitlerismo; a "ditadura do proletariado" 
marxista e a utopia da sociedade sem classes ou comunismo brindaram os 
instrumentos Ideológicos de justificação do stalinismo; o liberalismo do século XVIII c 
começos do século XIX foi, junto com a teoria da necessidade, a ideologia de 
justificação do aniquilamento nuclear das populações civis de Hiroshima e Nagasaki. 
Cada atrocidade foi cometida em nome da "humanidade" e da "justiça". 
Cada um dizia que queria "libertar" o homem (o "super-homem" criador do "mito 
democrático", ou libertar todos os homens da exploração do capital ou do Estado). 
Cada ideologia tinha "sua" ideia do homem e, na medida em que a realizava, tudo 
estava justificado pela necessidade, Daí nenhuma delas poder deter-seem obstáculos 
formais e se orientar por seu próprio "direito natural". 
 
 
No auge do horror bélico, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia das 
Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como "ideal 
comum a ser alcançado por todos os povos e todos os homens". A Declaração 
representa uma baliza ou limite aos "direitos naturais". Não em vão se havia observado 
que devia plasmar uma "ideologia prática" (Maritain). Desde então a Declaração e todos 
os alicerces em plena construção de um sistema internacional de garantias aos Direitos 
Humanos vão configurando o limite positivo do que a consciência jurídica universal 
pretende impor às ideologias que regem o controle social em todas as nações. Por 
certo que ainda está muito longe de aperfeiçoar-se, mas, indiscutivelmente, vai-se 
criando uma baliza jurídica positiva que serve de referência, 
Pode-se alegar que as violações de direitos humanos são múltiplas e 
terríveis, o que é indiscutível, mas o certo é que hoje o poder tem de cometê-las mais 
abertamente, pois já não há ideólogos sérios que se atrevam a sustentar um "direito 
natural" que as implique, sem envergonhar-se. E absurdo pensar que uma lei ou limite 
legal detenha, por efeito mágico, o poder. Mas, muito mais absurdo seria negar que 
esse limite serviu e serve para desmascará-lo mais facilmente. Não podemos negar que 
hoje também há ideologias genocidas, como a que pretende impor o controle da 
natalidade ao "terceiro" e ao "quarto mundo", sob a ameaça de interromper toda ajuda 
de alimentos, ou mesmo a ideologia do "equilíbrio pelo terror", mas não é possível 
negar sua evidente aberração. 
A Declaração Universal se complementa com outros instrumentos 
internacionais que contribuem para o aperfeiçoamento de sua função de limite 
ideológico: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos tlc 16 de dezembro de 
1966 (em vigência desde 23 de março de 1976), a Carta de Direitos e Deveres 
Económicos dos Estados de 12 de dezembro de 1974, a Declaração Americana de 
Direitos e Deveres do Homem, de Bogotá, 1948; a Convenção Americana sobre 
Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José de Costa Rica de 1969 etc. 
Estes instrumentos devem ser levados em conta em qualquer interpretação que se faça 
do direito penal positivo interno, que não pode entrar em contradição com eles. Estes 
documentos têm criado, mediante uma base positiva, uma consciência jurídica 
universal. Pouco importa que alguns países não tenham ratificado todos eles, posto 
que, de fato, eles atuam universalmente, e nenhum país pode considerar-se 
desvinculado de seus princípios que, em definitivo, estão sistematizados na Carta das 
Nações Unidas e na da Organização dos Estados Americanos. 
 
 
6. A importância do controle social institucionalizado ou formalizado 
 
É lógico aspirar a que todo o controle social respeite os Direitos Humanos, 
mas cabe perguntarmos qual é a importância que tem o sistema penal no controle 
social. Por certo que não tem a importância que o discurso jurídico ordinário lhe atribui, 
ocupando um lugar mais modesto, ainda que esta afirmação escandalize a muitos 
juristas formados no idealismo ou no positivismo jurídico. Muito mais modesto ainda é o 
lugar que cabe ao direito penal. 
Vimos que a enorme amplitude que tem o controle social, que pode ser 
difuso (meios de massa, família, rumores, preconceitos, modas etc.) ou 
institucionalizado (escola, universidade, psiquiátrico, polícia, tribunais etc.). Dentro do 
 
 
controle social institucionalizado há uma forma punitiva que não se reduz ao 
formalmente punitivo (sistema penal), mas que abarca qualquer outro controle social 
que na prática opera punitivamente, em que pese o discurso não punitivo. Tal é o que 
frequentemente sucede com a psiquiatria ou com a institucionalização de velhos: entre 
instrumentos elétricos de tortura e eletrochoques não costuma haver muita diferença; a 
institucionalização de velhos pode ser uma ameaça punitiva contra a sua falta de 
produtividade. Ainda que sejam muitas as possíveis formas de controle social punitivo 
(realmente punitivo) com discurso não punitivo (formalmente não punitivo), cabe ter 
presente que sempre que o controle social opera por meio de institucionalização de 
pessoas (manicômios, asilos, orfanatos), se revela uma séria possibilidade de punição 
real que é necessário investigar. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O sistema penal é a parte do controle social que resulta institucionalizado 
em forma punitiva e com discurso punitivo (apesar de que frequentemente, inclusive 
neste âmbito, se tratou de encobrir tal discurso, ainda que de forma grosseira, dado o 
inquestionável da realidade punitiva). Dentro do sistema penal, como veremos de ime-
diato, o direito penal ocupa somente um lugar limitado, de modo que sua importância, 
embora inegável, não é tão absoluta como às vezes se pretende, especialmente 
quando dimensionamos o enorme campo de controle social que cai fora de seus 
estreitos limites. Para evitar os enganos onipotentes, que levam à produção de efeitos 
 
 
paradoxais por via de ficções, é indispensável ter presente a todo momento, estes 
limites e es panorama.

Outros materiais