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CAPÍTULO I CONTROLE SOCIAL, SISTEMA PENAL E DIREITO PENAL I - Controle social e sistema penal 1. O delito como "construção" e como "realidade" Se dispensamos o código e as leis penais e formulamos uma pergunta indiscreta à realidade social, não necessitamos maior aprofundamento para percebermos que nada há em comum entre a conduta de quem emite um cheque sem provisão de fundos e a de quem ataca uma mulher e a estupra, isto é, que se trata de duas ações com significado social completamente distinto. O único traço em comum entre essas duas condutas é que ambas estão previstas na lei penal, ameaçadas legalmente com uma pena, submetidas a um processo de verificação prévio, institucionalizado através de funcionários públicos, pelo qual seus autores podem ser privados de liberdade em uma prisão. Isto basta para demonstrarmos que "o delito" não existe sociologicarnente se prescindimos da solução institucional comum. Na realidade social existem condutas, ações, comportamentos que significam conflitos que se resolvem de um modo comum institucionalizado, mas que isoladamente considerados possuem significados sociais completamente diferentes. Não é só isso o que observamos, mas, também em relação às mesmas condutas que geram conflitos com soluções institucionais idênticas, vemos que as instituições operam de um modo diferente: o estupro e o homicídio costumam ser divulgados pêlos jornais; as emissões de cheques sem fundos não, como tampouco os furtos. Ademais, o curioso é que na imensa maioria dos casos a solução comum institucional não se justifica: o receptor do cheque quer cobrá-lo e se não é bem- sucedido dá por encerrado o assunto; a vítima de furto quer recuperar a coisa ou parte dela e pode deixar de fazer a delação que prejudique este objetivo; a vítima de estupro pode não querer denunciar para não submeter-se à desonra pública. Na realidade, se cada cidadão fizesse um rápido exame de consciência, comprovaria que várias vezes em sua vida infringiu as normas penais: não devolveu o livro emprestado, levou a toalha de um hotel, apropriou-se de um objeto perdido etc. Em sã consciência, cada um de nós tem um "volumoso prontuário", Os juizes incrementam-no diariamente, ao subscrever falsamente declarações como prestadas em sua presença e nas quais jamais estão presentes. Os serventuários da Justiça certificam diariamente várias destas falsidades ideológicas. Poder-se-á afirmar que tais ações não são delito ou que são delitos levíssimos. No entanto, há numerosíssimas condenações penais por fatos análogos e ainda mais insignificantes: furto de uma xícara de café barata por parte de um servente da limpeza; apropriação de duas latas de pêssegos por um empregado; negativa do motorista do ônibus urbano a deter-se em uma parada para que desça um passageiro; furto de uma folha de um talonârio de cheques inútil, referente a uma conta encerrada; etc. A isso se acrescenta que, no panorama geral do mundo, a máxima quantidade de dano causado ao maior número de pessoas, ao menos no século XX, não provém daqueles que são detectados e classificados como "criminosos" ou "delinquentes", mas de órgão dos Estados, em guerra ou fora dela (Guinney- Wildeman). Do ponto de vista jurídico não resta dúvida de que o armamentismo que desemboca na "dissuasão nuclear" configura um conjunto de ações preparatórias de crimes de guerra, como demonstrou recentemente o professor da Universidade Católica de Louvain Jacques Verhaegen; porém ninguém é criminalizado por isto, embora pela estrutura jurídica da NATO sejam competentes as autoridades judiciais dos Estados Unidos e da Europa. Por outro lado, chama também a atenção que, na grande maioria dos casos, os que são chamados de "delinquentes" pertencem aos setores sociais de menores recursos. Em geral, é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo estão povoadas de pobres. Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se qualifica como "delinquentes" e não, como se pretende, um mero processo de seleção das condutas ou ações qualificadas como tais. Quanto ao mais, ações nada desejáveis ou imorais e conflitivas existem muitas: ter relações sexuais com uma prostituta e não pagar-lhe o preço combinado; não pagar o salário ao empregado; não pagar a conta da luz elétrica; etc. Contudo, no primeiro caso não se pode buscar nenhuma solução por via institucional; no segundo a solução deve ser procurada mediante uma ação trabalhista; e no terceiro o fornecedor age unilateralmente interrompendo o abastecimento. Isto é, nem todas as ações imorais ou indesejáveis e conflitivas abrem a possibilidade de uma solução penal. Isso significa que em qualquer situação conflitiva a solução punitiva do conflito é somente uma das soluções possíveis. Um autor contemporâneo exemplifica com o caso de cinco estudantes que moram juntos e um deles, em certo momento, golpeia e quebra o televisor. Cada um dos restantes analisará o acontecimento à sua maneira e adotarã uma atitude diferente. Um, furioso, declarará que não quer mais viver com o primeiro; outro reclamará que pague o dano ou compre outro televisor novo; outro afirmará que seguramente não está em seu perfeito juízo; e o último observará que, para que tenha lugar um fato desta natureza, algo deve andar mal na comunidade, o que exige um exame comum de consciência (Hulsman). Estas diferentes reações mostram quatro estilos diversos para resolver um conflito: o punitivo, o reparatório, o terapêutico e o conciliatório. A primeira destas possíveis soluções, ou seja, a punitiva, admite duas variáveis: a exclusão desse estudante do grupo (eliminatória), e a de atingi-lo diretamente (retributiva). A primeira delas, a eliminatória, confunde-se, muitas vezes, com a terapêutica: isolar uma pessoa pelo resto de sua vida, num manicômio, equivale à sua destruição. Obviamente, trata-se de uma punição sob um discurso ou pretexto terapêutico. Por outro lado, nem todos os conflitos que atualmente se resolvem pela via punitiva têm sido sempre resolvidos de urna única maneira. Os conflitos aparecem e desaparecem na história, e, enquanto persistem, também ostentam soluções diversificadas. O concubinato atualmente não constitui um conflito, mas houve tempos, não muito distantes, em que o era e admitia solução punitiva. A homossexualidade continua a ser um conflito, como nos demonstra a luta dos movimentos gays. Não obstante, dessas soluções punitivas terríveis e absurdas (morte, castração etc.) passou- se para as punições não formais (arbitrariedade policial, por exemplo), e a propiciarem- s e soluções conciliatórias. As bruxas não mais são levadas à fogueira; ou se lhes reconhece poderes paranormais, do que resulta para elas um certo prestígio social, ou são consideradas enfermas e se busca uma solução terapêutica. Não obstante, a solução punitiva dos conflitos possui um inquestionável efeito negativo, que consiste na exclusão das outras soluções possíveis. Quando se opta pela punição institucionalizada, o conflito não poderá ser solucionado por nenhuma outra via. Em síntese: ações conflitivas de gravidade e significado social muito diversos se resolvem por via punitiva institucionalizada, mas nem todos os que as realizam sofrem essa solução, e sim unicamente uma minoria ínfima deles, depois de um processo de seleção que quase sempre seleciona os mais pobres; outras ações conflitivas se resolvem por outras vias institucionalizadas e outras carecem de solução institucional; a solução punitiva (eliminatória ou retributiva) é somente uma alternativa que exclui a possibilidade das outras formas de resolver os conflitos (reparatória, terapêutica e conciliatória). Como se não bastasse isso, as ações que abrem a possibilidade de solução penal de maior gravidade são cometidas pêlos próprios Estados que institucionalizamtais soluções. Nestas condições, tem-se total impressão de que "o delito" é uma construção destinada a cumprir certa função sobre algumas pessoas e a cerca de outras, e não uma realidade social individualizável. Já veremos se esta impressão é verdadeira, mas o certo é que, com esta constatação tão simples, ninguém mais pode contentar-se com meras respostas formais ao encarar a pretensão de saber "algo" a respeito do direito penal. 2. Conceito e formas de controle social O homem sempre aparece em sociedade interagindo de maneira muito estreita com outros homens. Reúnem-se dentro da sociedade em grupos permanentes, alternativa ou eventualmente coincidentes ou antagónicos em seus interesses e expectativas. Os conflitos entre grupos se resolvem de forma que, embora sempre dinâmica, logra uma certa estabilização que vai configurando a estrutura de poder de uma sociedade, que é em parte institucionalizada e em parte é difusa. O certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com essa estrutura, se "controla" socialmente a conduta dos homens, controle que não só se exerce sobre os grupos mais distantes do centro do poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar sua própria conduta para não debilitar-se (mesmo na sociedade de castas, os membros das mais privilegiadas não podem casar-se com aqueles pertencentes a castas inferiores). Deste modo, toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e económico) com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na qual, logicamente, podem distinguir-se graus de centralização e de marginalização. Há sociedades com centralização e marginalização extremas, e outras em que o fenómeno se apresenta mais atenuado, mas em toda sociedade há centralização e marginalização do poder. Esta "centralização-marginalização" tece um emaranhado de múltiplas e proteicas formas de "controle social" (influência da sociedade delimitadora do âmbito de conduta do indivíduo). Investigando a estrutura de poder explicamos o controle social e, inversamente, analisando este, esclarecemos a natureza da primeira. O âmbito do controle social é amplíssimo e, dada sua proteica configuração e a imersão do investigador no mesmo, ele nern sempre é evidente. Este fenómeno de ocultamente do controle social é mais pronunciado nos países centrais do que nos periféricos, onde os conflitos são mais manifestos. De qualquer modo, inclusive nos países periféricos, o controle social tende a ser mais anestésico entre as camadas sociais mais privilegiadas e que adotam os padrões de consumo dos países centrais. Assim, por exemplo, os meios de comunicação social de massa induzem padrões de conduta sem que a população, em geral, perceba isso como "controle social", e sim como formas de recreação. Qualquer instituição social tem uma parte de controle social que é inerente a sua essência, ainda que também possa ser instrumentalizada muito além do que corresponde a essa essência. O controle social se exerce, pois, através da família, da educação, da medicina, da religião, dos partidos políticos, dos meios de massivos de comunicação, da atlvidade artística, da investigação científica etc. O controle social se vale, pois, desde meios mais ou menos "difusos" e encobertos até meios específicos e explícitos, como é o penal (polícia, juizes, agentes penitenciários etc.). A enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenómeno e não unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explícito. Assim, para avaliar o controle social em um determinado contexto, o observador não deve deter-se no sistema penal, e menos ainda na mera letra da lei penal, mas é mister analisar a estrutura familiar (autoritária ou não), a educação (a escola, os métodos pedagógicos, o controle ideológico dos textos, a universidade, a liberdade de cátedra etc.), a medicina (a orientação "anestesiante" ou puramente organicista, ou mais antropológica de sua ideologia e prática) e muitos outros aspectos que tornam complicadíssimo o tecido social. Quem quiser formar uma ideia do modelo de sociedade com que depara, esquecendo esta pluridimensionalídade do fenómeno de controle, cairá em um simplismo ilusório. 3. Saber e controle social (saber e poder) Tradicionalmente se repete o princípio positivista, segundo o qual quanto maior é o saber, maior é o poder, que para nós se tornou "lógico". Parecia uma verdade incontestável que o homem com mais conhecimentos científicos tinha mais poder, sobretudo considerando os êxitos tecnológicos de nossa civilização industrial. Entretanto, a estas alturas da História, o que parece inquestinonável é o contrário: é o poder que condiciona o saber. É inquestionável que no mundo há uma estrutura de poder que se vale de ideologias que em grande parte são "encobridoras" ou "de ocultação", ou francamente "criadoras da realidade". O certo é que nossa civilização industrial chegou, em sua corrida em busca de um permanente aumento de produção, a um ponto em que se teme seriamente pela viabilidade futura da vida no planeta, que não só está ameaçado por explosivos nucleares capazes de arrasá-lo, ou pelo perigo de urna guerra química ou biológica, mas também por uma acelerada destruição dos bosques, esgotamento de recursos não renováveis e crescente poluição da atmosfera e dos mares, sem contar corn a contaminação radioativa. Nesta situação, se destinam mais de quinhentos bilhões de dólares anuais - cifra que cresce acumulativãmente em 8% a cada ano - a armamentos, enquanto morrem de fome anualmente quarenta milhões de crianças, e muitos milhões mais jamais alcançarão um desenvolvimento completo da inteligência em virtude de carências alimentares nos primeiros anos de vida. A isto soma-se o fato de que os países centrais realizam experiências biológicas que podem permitir ao poder central condicionar a evolução futura do homem e das espécies animais e vegetais e criar toda classe de híbridos através da engenharia genética. As estruturas do poder mundial, tanto no mundo malchamado "ocidental" (capitalista ou de economia descentralizada) como no chamado "oriental" (comunista ou de economia centralizada), reconhecem países centrais e países periféricos. O controle social, em cada um desses países, será diferente, segundo se trate de países de economia descentralizada (capitalistas) ou estatal ou centralizada e, ainda, entre os periféricos, segundo seu grau e momento de desenvolvimento (economia rural, em vias de industrialização etc.). Em cada um deles, o poder gerará, condicionará, fomentará ou será inclinado a explicações ou versões da "realidade" que, em forma de ideologias (sistemas de ideias, isto é, com conteúdo não pejorativo) abarcarão também as ideologias científicas. Toda ciência é ideológica (porque qualquer saber é ideológico) e o poder, em cada caso, a manipulará segundo convenha à sua conservação, privilegiando uma ideologia e descartando (ou reprimindo, limitando o desenvolvimento ou ocultando) as que considere perigosas ou negativas para ela. Por maior que seja a aparência de seriedade e assepsia de uma ideologia, sempre será uma ideologia. A ilusão científica de "objetividade" não passou de um elemento sedativo e anestésico que hoje não tem rnais utilidade. Quando, hoje, nos apercebemos de que a sociologia surgiu numa forma organicista, porque se constituía numa necessidade para a burguesia europeia que, então no poder, tinha de desvencilhar-se da carga ideológica do liberalismocentralista, ou quando descobrimos que a harmônica construção da antropologia primitiva provém de teses racistas nas versões de Gobineau ou Spencer, que tornavam a ideologia de justificação dos empreendimentos colonialistas ingleses ou franceses, não podemos deixar de encontrar sérias analogias entre estas "ciências" pretensiosamente "objetivas" e a alquimia e a astrologia. Com maior razão, isto se torna evidente quando se trata do conhecimento que versa sobre o próprio controle social, como o é o de que nos ocupamos. Decorre precisamente disso a enorme confrontação ideológica que se opera no campo das ciências penais e em seu iniludível tratamento. A América Latina se encontra entre os países periféricos, ou seja, na injustiça social que se gera em nível internacional, como resultado da divisão internacional do trabalho (exemplarmente criticada na Encíclica Laborem Exercens), nossas sociedades apresentam características particulares que se revelam em seu controle social c em seus sistemas penais, e delas mais adiante nos ocuparemos. Não obstante, ao explicar nosso direito penal - como parte do controle social -, se passam por alto estas características, tratando de importar ideologias massivamente. Por outro lado, a mesma posição periférica nos impediu de elaborar um desenvolvimento ideológico próprio, o que nos mantém em posição tributária das ideologias dos países centrais. Há autores - tanto em nossa área como fora dela - que, em razão do grande choque ideológico que se opera no campo jurídico, afirmam que o conhecimento jurídico não tem caráter científico. Sem pretender entrar neste debate, o certo é que o fenómeno que revelam é comum a todo saber relacionado mais ou menos diretamente com o social, e de modo algum é exclusivo do Direito. De outra parte, nem sequer as ciências mais distantes do social ficam à margem da manipulação ideológica: na Biologia, o evolucionismo simplista foi a base ideológica do racismo, justificação cientificista do colonialismo; na Física, o mecanicismo foi a base do determinismo positivista, ideologia típica das camadas sociais mais beneficiadas com a industrialização. 4. Características da manipulação ideológica O poder instrumentaliza as ideologias na parte em que estas lhe são úteis e as descarta quanto ao resto. Deste modo, recolhe do sistema de ideias de qualquer autor a parte que lhe convém, com o qual lii-qüentcmente tergiversa. Assim, o autoritarismo não tomou de Hegel a parle liberal, e sim a exaltação do Estado; o racismo não tomou do evolucionismo as advertências prudentes, mas ostentou uma "ortodoxia" evolucionista jamais sustentada com seriedade por seus criadores; lis tendências teocráticas tomam das espiritualistas tudo o que faz a resignação em função da justiça do "além", esquecendo que quase todas estas afirmam que é seu pressuposto o obrar justo neste mundo; o psicologismo quietista toma de Freud ou das outras correntes psicana-lílicas o seu aspecto de "técnica", mas passam por alto os contextos sociológicos originários etc. Esta característica da manipulação ideológica tem um duplo efeito: a) gera em alguns a impressão superficial - e infantil - de que os criadores de cada ideologia foram ou são uma espécie de génios do mal, que vivem buscando o modo de proporcionar argumentos de justificação ao poder. Este infantilismo analítico leva a afirmações absurdas de que Kant era um obsessivo, Hegel um delirante, Freud um traumatizado, as religiões "ópio dos povos" etc.; b) por outro lado, se originam intermináveis disputas acerca do que quis verdadeiramente cli/cr cada autor, corrente ou personagem, sobre a base certa de que geralmente não disse o que o poder pretende pôr em seus lábios. Estas discussões são as que provocam inflamados manifestos demonstrativos de que Nietzsche não disse o que Hitler entendeu, que Marx não disse o que Stalin o fez dizer etc. Não devemos esquecer que, em definitivo, não se pode atacar as "ideologias" pelo mero fato de serem o que são, a não ser que aclaremos o que entendemos por "ideologia", porque o vocábulo é equívoco. Há vários sentidos pejorativos de "ideologia", que podem ser sintetizados ern dois conceitos fundamentais: a) napoleônico, segundo o qual "ideologia" é o produto de uma especulação carente de realismo (algo parecido com "utopia"); b) o marxista, segundo o qual "ideologia" é sempre uma superestrutura que encobre a realidade. Nós não usamos "ideologia" em nenhum destes sentidos, mas em um sentido não pejorativo, segundo o qual "ideologia" é "Ioda crença adotada para o controle dos comportamentos coletivos, iMilendendo por 'crença' uma noção que vincula a conduta e que l>mle ou não ter validez objetiva" (Abbagnano). Neste sentido, que u crença ou sistema de ideias tenha ou não validez objetiva não afeta o ciirtíter de ideologia, mas é uma questão que deve ser esclarecida pela "critica da ideologia". Concebida neste sentido não pejorativo, ao campo da ideologia pertencem todas as criações da cultura, desde as mais inteligentes e sublimes até as mais aberrantes. O que acontece é que, por regra geral, o poder recolhe deste jardim as flores mais aberrantes e as ervas daninhas e folhas secas do resto. Mas isto não autoriza a rechaçar toda a cultura universal, nem a crer que cada criador ideológico é um maléfico psicopata que toma a seu cargo a tarefa de justificar os crimes do poder. Justo é assinalar que a verdade não pode expressar-se por inteiro em seus conceitos, simplesmente porque a verdade é infinita e a conceituação - isto é, a ideologia - é um recurso finito. Portanto, toda referência ideológica à verdade, inevitavelmente, sempre é parcial. Trata-se de um limite inerente à natureza mesma da ideologia. Quando se pretende superá-la, afirmando ideologicamente "a" verdade absoluta, excede-se o marco das possibilidades humanas, de maneira nem sempre intencional. A única forma de não cair neste erro é a humildade, ou seja, o reconhecimento da parcialidade de todo o conhecimento. 5. Os direitos humanos e o controle social Ao longo da História sempre existiu uma ou várias ideologias encarregadas de explicar e justificar cada uma das atrocidades cometidas. Assim, o genocídio indígena americano ou o tráfico de milhões de homens africanos tiveram suas ideologias de justificação, como também o teve o colonialismo mais cruel e explorador. Quando já não se pôde subjugar a um povo afirmando a superioridade do conquistador ou do colonizador sobre base religiosa, se "inventou" a antropologia, para reafirmar que as sociedades colonialistas eram mais "evoluídas" que as colonizadas, argumento com o qual se encobriram todas as empresas de exploração colonial do século passado e que foi vendido a todas as oligarquias dos nossos países latino-americanos. O certo é que entre 1939 e 1945 desencadeou-se o mais cruel e generalizado conflito bélico entre as potências mundiais, com um saldo de milhões de mortos e as piores atrocidades cometidas. Elementos ideológicos recolhidos do biologismo deram o discurso de justificação ao hitlerismo; a "ditadura do proletariado" marxista e a utopia da sociedade sem classes ou comunismo brindaram os instrumentos Ideológicos de justificação do stalinismo; o liberalismo do século XVIII c começos do século XIX foi, junto com a teoria da necessidade, a ideologia de justificação do aniquilamento nuclear das populações civis de Hiroshima e Nagasaki. Cada atrocidade foi cometida em nome da "humanidade" e da "justiça". Cada um dizia que queria "libertar" o homem (o "super-homem" criador do "mito democrático", ou libertar todos os homens da exploração do capital ou do Estado). Cada ideologia tinha "sua" ideia do homem e, na medida em que a realizava, tudo estava justificado pela necessidade, Daí nenhuma delas poder deter-seem obstáculos formais e se orientar por seu próprio "direito natural". No auge do horror bélico, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como "ideal comum a ser alcançado por todos os povos e todos os homens". A Declaração representa uma baliza ou limite aos "direitos naturais". Não em vão se havia observado que devia plasmar uma "ideologia prática" (Maritain). Desde então a Declaração e todos os alicerces em plena construção de um sistema internacional de garantias aos Direitos Humanos vão configurando o limite positivo do que a consciência jurídica universal pretende impor às ideologias que regem o controle social em todas as nações. Por certo que ainda está muito longe de aperfeiçoar-se, mas, indiscutivelmente, vai-se criando uma baliza jurídica positiva que serve de referência, Pode-se alegar que as violações de direitos humanos são múltiplas e terríveis, o que é indiscutível, mas o certo é que hoje o poder tem de cometê-las mais abertamente, pois já não há ideólogos sérios que se atrevam a sustentar um "direito natural" que as implique, sem envergonhar-se. E absurdo pensar que uma lei ou limite legal detenha, por efeito mágico, o poder. Mas, muito mais absurdo seria negar que esse limite serviu e serve para desmascará-lo mais facilmente. Não podemos negar que hoje também há ideologias genocidas, como a que pretende impor o controle da natalidade ao "terceiro" e ao "quarto mundo", sob a ameaça de interromper toda ajuda de alimentos, ou mesmo a ideologia do "equilíbrio pelo terror", mas não é possível negar sua evidente aberração. A Declaração Universal se complementa com outros instrumentos internacionais que contribuem para o aperfeiçoamento de sua função de limite ideológico: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos tlc 16 de dezembro de 1966 (em vigência desde 23 de março de 1976), a Carta de Direitos e Deveres Económicos dos Estados de 12 de dezembro de 1974, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, de Bogotá, 1948; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José de Costa Rica de 1969 etc. Estes instrumentos devem ser levados em conta em qualquer interpretação que se faça do direito penal positivo interno, que não pode entrar em contradição com eles. Estes documentos têm criado, mediante uma base positiva, uma consciência jurídica universal. Pouco importa que alguns países não tenham ratificado todos eles, posto que, de fato, eles atuam universalmente, e nenhum país pode considerar-se desvinculado de seus princípios que, em definitivo, estão sistematizados na Carta das Nações Unidas e na da Organização dos Estados Americanos. 6. A importância do controle social institucionalizado ou formalizado É lógico aspirar a que todo o controle social respeite os Direitos Humanos, mas cabe perguntarmos qual é a importância que tem o sistema penal no controle social. Por certo que não tem a importância que o discurso jurídico ordinário lhe atribui, ocupando um lugar mais modesto, ainda que esta afirmação escandalize a muitos juristas formados no idealismo ou no positivismo jurídico. Muito mais modesto ainda é o lugar que cabe ao direito penal. Vimos que a enorme amplitude que tem o controle social, que pode ser difuso (meios de massa, família, rumores, preconceitos, modas etc.) ou institucionalizado (escola, universidade, psiquiátrico, polícia, tribunais etc.). Dentro do controle social institucionalizado há uma forma punitiva que não se reduz ao formalmente punitivo (sistema penal), mas que abarca qualquer outro controle social que na prática opera punitivamente, em que pese o discurso não punitivo. Tal é o que frequentemente sucede com a psiquiatria ou com a institucionalização de velhos: entre instrumentos elétricos de tortura e eletrochoques não costuma haver muita diferença; a institucionalização de velhos pode ser uma ameaça punitiva contra a sua falta de produtividade. Ainda que sejam muitas as possíveis formas de controle social punitivo (realmente punitivo) com discurso não punitivo (formalmente não punitivo), cabe ter presente que sempre que o controle social opera por meio de institucionalização de pessoas (manicômios, asilos, orfanatos), se revela uma séria possibilidade de punição real que é necessário investigar. O sistema penal é a parte do controle social que resulta institucionalizado em forma punitiva e com discurso punitivo (apesar de que frequentemente, inclusive neste âmbito, se tratou de encobrir tal discurso, ainda que de forma grosseira, dado o inquestionável da realidade punitiva). Dentro do sistema penal, como veremos de ime- diato, o direito penal ocupa somente um lugar limitado, de modo que sua importância, embora inegável, não é tão absoluta como às vezes se pretende, especialmente quando dimensionamos o enorme campo de controle social que cai fora de seus estreitos limites. Para evitar os enganos onipotentes, que levam à produção de efeitos paradoxais por via de ficções, é indispensável ter presente a todo momento, estes limites e es panorama.
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