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LEVI-STRAUSS, Claude. O suplício do Papai Noel

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O suplício do Papai Noel 
Tradução Denise Bottmann
Claude 
Lévi-Strauss
O suplíciO dO papai NOel
5As festas de Natal de 1951 ficarão marcadas na França 
por uma polêmica que encontrou grande repercus-
são junto à imprensa e à opinião pública e introduziu 
um tom de inusitado azedume no clima geralmente 
alegre dessa época do ano. Há vários meses as auto-
ridades eclesiásticas, na voz de alguns prelados, já 
manifestavam sua desaprovação à importância cada 
vez maior que as famílias e os comerciantes vinham 
dando à figura do Papai Noel. Elas denunciavam uma 
preocupante “paganização” do dia de Natal, desvian-
do o espírito público do sentido propriamente cristão 
dessa comemoração, em favor de um mito sem va-
lor religioso. Tais ataques aumentaram nas vésperas 
6 7
que condenara Papai Noel como usurpador e herege. Ele foi 
acusado de paganizar a festa de Natal e de se instalar como 
um intruso, ocupando um espaço cada vez maior. Censuram-
no, sobretudo, por ter-se introduzido em todas as escolas pú-
blicas, de onde o presépio foi meticulosamente banido.
Às três horas da tarde do domingo, o infeliz velhi nho de 
barbas brancas pagou, como muitos inocentes, por um erro 
cujos culpados eram os que aplaudiram a execução. O fogo 
queimou suas barbas e ele se esvaiu na fumaça.
Ao final da execução, distribuiu-se um comunicado 
cujos principais termos eram:
Representando todos os lares cristãos da paróquia, dispostos 
a lutar contra a mentira, 250 crianças, reunidas diante da porta 
principal da Catedral de Dijon, queimaram o Papai Noel.
Não se tratou de um espetáculo, e sim de um gesto simbó-
lico. Papai Noel foi sacrificado em holocausto. De fato, a menti-
ra não pode despertar o sentimento religioso na criança e não 
é, de modo algum, um método educativo – que outros digam e 
do Natal; com maior discrição, mas igual firmeza, 
a Igreja Protestante uniu sua voz à da Igreja Católica. 
Cartas de leitores e artigos nos jornais já vinham de-
monstrando de maneiras variadas, geralmente con-
trárias à posição eclesiástica, o interesse despertado 
pelo assunto. Por fim, o ponto culminante ocorreu 
em 24 de dezembro, durante uma manifestação que 
foi descrita pelo repórter do jornal France-Soir nos se-
guintes termos:
papai NOel é queimadO NO átriO da catedral 
de dijON diaNte de criaNças de OrfaNatOs
Dijon, 24 de dezembro (enviado do France-Soir)
Papai Noel foi enforcado ontem à tarde nas grades da Cate-
dral de Dijon e queimado publicamente em seu átrio. Essa 
execução espetacular se realizou na presença de várias cente-
nas de internos de orfanatos. Ela contou com o aval do clero, 
8 9
Praça da Libertação e que a elas se pronunciará do alto do edi-
fício da prefeitura, onde circulará sob as luzes dos projetores.
O cônego Kir, prefeito de Dijon, preferiu não tomar par-
tido neste caso delicado.
No mesmo dia, o suplício do Papai Noel ocupou todas 
as manchetes; não houve um jornal que não comentas-
se o episódio, e alguns – como o já citado France-Soir, 
que, como se sabe, é o de maior circulação na França 
– chegaram a lhe dedicar um editorial. De modo geral, 
a atitude do clero de Dijon foi criticada, e aparente-
mente a tal ponto que as autoridades religiosas jul-
garam conveniente bater em retirada, ou pelo menos 
guardar certa reserva; no entanto, dizem que nossos 
ministros estão divididos a respeito da questão. Os ar-
tigos, em sua maioria, são cheios de dedos: é tão bo-
nito acreditar em Papai Noel, não faz mal a ninguém, 
as crianças se divertem tanto e guardam lembranças 
escrevam o que quiserem e façam de Papai Noel o contrapeso do 
Père Fouettard.1
Para nós, cristãos, o Natal deve continuar a ser o festejo que 
comemora o nascimento do Salvador.
A execução de Papai Noel no átrio da catedral foi ava-
liada de diversas maneiras pela população e despertou vivos 
comentários mesmo entre os católicos.
Além disso, essa manifestação intempestiva corre o risco 
de ter conseqüências não previstas por seus organizadores.
O assunto divide a cidade em dois campos.
Dijon aguarda a ressurreição do Papai Noel assassinado 
ontem no átrio da catedral. Ele ressuscitará hoje às 18 horas, 
na prefeitura. Com efeito, um comunicado oficial anunciou 
que ele convocava as crianças, como em todos os anos, para a 
1 Personagem do folclore francês que castiga as crianças que se 
comportam mal.
10 11
são eles, em Dijon e em outras partes, que passam por 
defensores do Papai Noel ameaçado. Papai Noel sím-
bolo da irreligião, que paradoxo! Pois nesse episódio, 
é como se a Igreja adotasse um espírito crítico ávido 
por franqueza e verdade, enquanto os racionalistas po-
sam de guardiães da superstição. Tal aparente inversão 
de papéis basta para sugerir que o singelo episódio en-
cobre questões mais profundas. Estamos diante de uma 
manifestação sintomática de uma acelerada evolução 
das crenças e dos costumes, primeiro na França, mas 
certamente também em outros países. Não é todos os 
dias que o etnólogo encontra uma ocasião tão propícia 
para observar, em sua própria sociedade, o crescimen-
to súbito de um rito, e até de um culto; de pesquisar 
suas causas e estudar seu impacto sobre as outras for-
mas de vida religiosa; enfim, de tentar compreender a 
quais transformações globais, ao mesmo tempo men-
tais e sociais, se associam as manifestações visíveis so-
deliciosas para a maturidade etc. Na verdade, fogem 
à questão em vez de respondê-la, pois não se trata de 
justificar as razões pelas quais as crianças gostam de 
Papai Noel, e sim as razões pelas quais os adultos o 
inventaram. Seja como for, são reações tão unânimes 
que, a essa altura, é inquestionável a existência de um 
divórcio entre a opinião pública e a Igreja. Embora seja 
um episódio mínimo, o fato é importante, pois, desde a 
Ocupação, o desenrolar da história na França apontava 
uma progressiva reconciliação entre a religião e uma 
opinião pública em larga medida descrente: prova disso 
é a presença, nos gabinetes do governo, de um partido 
político tão claramente religioso como o MRP.2 Por si-
nal, os anticlericalistas tradicionais deram-se conta da 
inesperada oportunidade que lhes era oferecida: agora 
2 Sigla de Mouvement Républicain Populaire, partido democrata-
cristão fundado por Georges Bidault em 1944.
12 13
as campanhas do Exército da Salvação erguendo nas 
ruas e nas praças seus caldeirões como se fossem poti-
nhos de pedintes; por fim, as pessoas vestidas de Papai 
Noel para receber os pedidos das crianças nas gran-
des lojas de departamentos. Todos esses costumes que, 
poucos anos atrás, pareciam pueris e barrocos aos 
franceses que visitassem os Estados Unidos, como um 
dos sinais mais evidentes da profunda incompatibili-
dade entre as duas mentalidades, agora se implanta-
ram e se aclimataram na França com uma facilidade e 
uma amplitude que se tornam assunto a ser estudado 
pelo historiador das civilizações.
Nesse campo, como em outros, estamos assistindo 
a uma vasta experiência de difusão, não muito diferente 
daqueles fenômenos arcaicos que estávamos acostuma-
dos a estudar nos exemplos distantes do briquet à piston 3 
3 Acendedor de fogo por fricção.
bre as quais a Igreja – com forte tradição nesses assun-
tos – não se enganou, pelo menos enquanto se limitava 
a lhes atribuir um valor significativo.
* 
*
 *
Há cerca de três anos, ou seja, desde que a atividade 
econômica voltou quase ao normal, a comemoração do 
Natal assumiu na França uma dimensão desconhecida 
antes da guerra. Esse desenvolvimento, tanto por sua 
importância material quanto pelas formas em que se 
apresenta,certamente é resultado direto da influên cia 
e do prestígio dos Estados Unidos. Assim, vimos surgir 
os grandes pinheiros, montados nos cruzamentos ou 
nas avenidas principais, iluminados à noite; os papéis 
decorativos para embrulhar os presentes de Natal; os 
cartões de boas-festas, e o costume de expô-los em 
cima da lareira dos destinatários na semana fatídica; 
14 15
inegável, mas não traz consigo razões suficientes para 
explicar o fenômeno. Enumeremos brevemente as 
mais evidentes: há muitos americanos na França, os 
quais comemoram o Natal à sua maneira; o cinema, os 
digests, os romances e também algumas reportagens 
da grande imprensa tornaram conhecidos os costu-
mes americanos, e estes gozam do prestígio atribuído 
à potência militar e econômica dos EUA; tampouco se 
exclui a conjectura de que o Plano Marshall tenha fa-
vorecido, direta ou indiretamente, a importação de al-
gumas mercadorias ligadas ao rito natalino. Mas tudo 
isso não basta para explicar o fenômeno. Costumes 
importados dos EUA impõem-se a camadas da popu-
lação que lhes desconhecem a origem; os meios ope-
rários, onde a influência comunista poderia desacredi­
tar tudo o que traz a marca made in USA , os adotam 
com a mesma disposição dos demais. Assim, em vez 
de uma difusão simples, cabe invocar aquele processo 
ou da pirogue à balancier.4 Mas é mais fácil e ao mesmo 
tempo mais dífícil estudar fatos que se desenrolam sob 
nossos olhos, tendo como palco nossa própria socieda-
de. Mais fácil, porque a continuidade da experiência 
está salvaguardada, com todos os seus momentos e cada 
uma de suas nuances; e também mais difícil, porque são 
nessas raríssimas ocasiões que percebemos a extrema 
complexidade das transformações sociais, mesmo as 
mais tênues; e porque as razões aparentes que atribuí-
mos aos acontecimentos nos quais somos atores são 
muito diferentes das causas reais que neles nos deter-
minam algum papel.
Assim, seria simplista demais explicar o desenvol-
vimento da comemoração do Natal na França apenas 
pela influência dos Estados Unidos. O empréstimo é 
4 Canoa rústica com um apoio lateral, que era usada em todo o 
Sudeste Asiático e na Polinésia.
16 17
tética e exprime uma disposição afetiva que já existia, 
só não dispunha de meios de expressão. Ao escolhê-lo, 
a dona de casa não adota diretamente (como o fabri-
cante) um costume estrangeiro, mas esse costume, tão 
logo é reconhecido, estimula nela o nascimento de um 
costume igual.
Em segundo lugar, não se pode esquecer que a 
comemoração natalina, já antes da guerra, estava 
em processo ascendente na França e em toda a Euro-
pa. Isso estava relacionado, inicialmente, à melhoria 
progressiva do nível de vida, mas também a motivos 
mais sutis. Com as características que conhecemos, 
o Natal é uma festa essencialmente moderna, apesar 
dos múltiplos traços arcaizantes. O uso do visco não 
é, pelo menos em primeira instância, uma herança 
druídica, pois parece ter voltado à moda na Idade Mé-
dia. O pinheiro de Natal não é mencionado em parte 
alguma antes de certos textos alemães do século XVII; 
tão importante que Kroeber, o primeiro a identificá­lo, 
chamou de “difusão por estímulo” (stimulus diffusion): 
o costume importado não é assimilado, mas funcio-
na como um catalisador, ou seja, provoca com a sua 
presença o surgimento de um uso semelhante que já 
estava potencialmente presente no meio secundário. 
Ilustremos esse ponto com um exemplo diretamente 
relacionado ao nosso tema. O industrial fabricante de 
papel que vai aos Estados Unidos, a convite dos colegas 
americanos ou como membro de uma missão econô-
mica, constata que lá fabricam papéis especiais para 
os pacotes de Natal; ele adota a idéia, e temos aí um fe-
nômeno de difusão. A dona de casa parisiense que vai 
à papelaria do bairro comprar o papel necessário para 
embrulhar seus presentes vê na vitrine papéis mais 
bonitos e de melhor acabamento do que aqueles que 
costumava usar; ela ignora totalmente os costumes 
americanos, mas esse papel satisfaz uma exigência es-
18 19
maneira significativa, em seu Dictionnaire historique des 
institutions, moeurs et coutumes de la France (segundo o 
próprio autor, uma adaptação do Dictionnaire des anti-
quités nationales de Sainte Palaye, 1697-1781): “O Natal 
[...] foi, durante vários séculos e até uma época recente 
[grifo nosso], a ocasião de festas em família”; segue-se 
uma descrição das festas de Natal no século XVIII, que 
não parecem ficar atrás das nossas. Assim, estamos 
diante de um ritual cuja importância flutuou bastante 
ao longo da história; teve apogeus e declínios. A forma 
americana é apenas sua encarnação mais moderna.
Aliás, essas rápidas indicações bastam para mos-
trar que, diante desse tipo de problema, é preciso des-
confiar das explicações demasiado fáceis que apelam 
automaticamente aos “vestígios” e às “sobrevivências”. 
Se nunca tivesse existido um culto às árvores nos tem-
pos pré-históricos, que se prolongou em várias tradi-
ções folclóricas, a Europa moderna certamente não te-
ele segue para a Inglaterra no século XVIII, e chega à 
França apenas no século XIX. O dicionário Littré pare-
ce conhecê-lo pouco ou sob forma muito diferente da 
nossa, pois o define (no verbete Noël) com a designa-
ção: “Em alguns países, de um ramo de pinheiro ou de 
azevinho com diferentes enfeites, guarnecido princi-
palmente de balas e brinquedos para serem dados às 
crianças, que fazem uma tremenda festa”. A variedade 
de nomes dados ao personagem incumbido de distri-
buir os brinquedos às crianças – Papai Noel, São Nico-
lau, Santa Claus – também mostra que ele é resultado 
de um fenômeno de convergência, e não um protótipo 
antigo conservado por toda parte.
O desenvolvimento moderno, porém, não é uma 
invenção: ele se limita a recompor peças e fragmentos 
de uma antiga comemoração, cuja importância nun-
ca foi totalmente esquecida. Se a árvore de Natal para 
Littré é quase uma instituição exótica, Cheruel nota de 
20 21
cente é a crença que situa sua morada na Groenlândia, 
possessão dinamarquesa (o que obriga o país a man-
ter uma agência de correio especial para responder 
às cartas de crianças do mundo inteiro), e o mostra 
viajando em um trenó puxado por renas. Consta que 
esse aspecto da lenda se desenvolveu principalmente 
na última guerra, devido à presença de tropas ameri-
canas na Islândia e na Groenlândia. E, no entanto, as 
renas não estão ali por acaso, visto que existem docu-
mentos renascentistas ingleses mencionando troféus 
de renas durante as danças de Natal, antes de qual-
quer crença em Papai Noel, e quem dirá da formação 
de sua lenda.
Assim, fundem-se e refundem-se elementos muito 
antigos, introduzem-se novos, encontram-se fórmulas 
inéditas para perpetuar, transformar ou reviver usos 
de velha data. Não há nada de especificamente novo – 
sem jogo de palavras – no renascimento do Natal.
ria “inventado” a árvore de Natal. No entanto – como 
mostramos mais acima –, ela é uma invenção recente. 
Essa invenção, porém, não nasceu do nada.
Pois outros costumes medievais são plenamente 
comprovados: a chamada lenha de Natal (que inspirou 
um bolo natalino em Paris), um tronco espesso para 
arder a noite toda; os círios de Natal, com uma di-
mensão própria para a mesma finalidade; a decoração 
das casas (desde as Saturnais romanas, sobre as quais 
voltaremos a falar) com ramos verdes: hera, azevinho, 
pinheiro; por fim, e sem nenhuma relação com o Na-
tal, os romances da Távola Redonda mencionam uma 
árvore sobrenatural recoberta de luzes. Em tal con-
texto, a árvorede Natal surge como uma solução sin-
crética, isto é, concentra num só objeto exigências até 
então dispersas: árvore mágica, fogo, luz duradoura, 
verde persistente. Inversamente, Papai Noel, em sua 
forma atual, é uma criação moderna, e ainda mais re-
22 23
no periódico, pertence mais à família das divindades; 
as crianças prestam-lhe um culto em certas épocas do 
ano, sob a forma de cartas e pedidos; ele recompensa 
os bons e priva os maus. É a divindade de uma cate-
goria etária de nossa sociedade (categoria etária, aliás, 
suficientemente caracterizada pelo fato de acreditar 
em Papai Noel), e a única diferença entre Papai Noel e 
uma verdadeira divindade é que os adultos não crêem 
nele, embora incentivem as crianças a acreditar e man-
tenham essa crença com inúmeras mistificações.
Papai Noel, portanto, é em primeiro lugar a ex-
pressão de um status diferenciado entre as crianças, 
de um lado, e os adolescentes e adultos, de outro. Des-
te ponto de vista, ele se liga a um vasto conjunto de 
crenças e práticas que os etnólogos estudam na maio-
ria das sociedades, a saber, os ritos de passagem e de 
iniciação. De fato, são raros os agrupamentos huma-
nos em que as crianças (às vezes também as mulhe-
Por que, então, ele desperta tanta emoção, e por 
que é em torno da figura de Papai Noel que se concen-
tra a animosidade de algumas pessoas?
* 
*
 *
Papai Noel veste-se de vermelho: é um rei. A barba 
branca, as peles, as botas e o trenó evocam o inver-
no. É chamado de “papai” e é idoso: encarna, portanto, 
a forma benevolente da autoridade dos antigos. Tudo 
isso é bastante claro, mas em que categoria ele deve 
ser classificado, do ponto de vista da tipologia religio-
sa? Não é um ser mítico, pois não há um mito que dê 
conta de sua origem e de suas funções; tampouco é um 
personagem lendário, visto que não há nenhuma nar-
rativa semi-histórica ligada a ele. Na verdade, esse ser 
sobrenatural e imutável, fixado eternamente em sua 
forma e definido por uma função exclusiva e um retor-
24 25
o Père Fouettard etc.5 É extremamente significativo o 
fato de as mesmas tendências educacionais que hoje 
proíbem o apelo a essas “katchina” punitivas enalte-
çam a figura benevolente do Papai Noel, em vez de 
englobá-lo na mesma condenação, como permitiria 
supor o desenvolvimento do espírito positivo e racio-
nalista. Sob este aspecto, não houve racionalização 
dos métodos pedagógicos, pois Papai Noel não é mais 
“racional” do que o Père Fouettard (neste ponto a Igreja 
tem razão): assistimos a um deslocamento mítico, e é 
isso que requer explicação.
É fato consumado que os ritos e mitos de iniciação 
têm uma função prática nas sociedades humanas: eles 
ajudam os mais velhos a manter a ordem e a obediência 
entre os mais novos. Durante o ano todo, invocamos a 
5 Personagens do folclore francês usados para assustar as crianças, 
como os equivalentes brasileiros Cuca e Bicho Papão.
res) não estão, de uma maneira ou de outra, excluídas 
da sociedade dos homens pela ignorância de certos 
mistérios ou pela crença – cuidadosamente alimen-
tada – em alguma ilusão que os adultos se reservam 
o direito de desvendar em um instante oportuno, sa-
cramentando assim o momento em que as gerações 
jovens se integram ao mundo deles. Por vezes, tais ri-
tos guardam uma semelhança surpreendente com os 
ritos que estamos examinando agora. Como não notar, 
por exemplo, a analogia entre Papai Noel e as katchina 
dos índios do sudoeste norte-americano? Esses per-
sonagens fantasiados e mascarados encarnam deuses 
e ancestrais; voltam periodicamente à aldeia para 
dançar e para punir ou recompensar as crianças, e 
dá-se um jeito para que elas não reconheçam os pais 
ou parentes sob o disfarce tradicional. Papai Noel cer-
tamente pertence à mesma família, com outros cole-
gas agora postos em segundo plano: o Croquemitaine, 
26 27
vinho, hera, visco – com que decoramos nossas casas. 
Hoje são meros adornos, mas outrora, pelo menos em 
algumas regiões, eram objeto de uma troca entre duas 
parcelas da população: na véspera do Natal, na Ingla-
terra, até o final do século XVIII, as mulheres faziam 
o chamado gooding, isto é, saíam pedindo de casa em 
casa, e ofertavam ramos verdes aos que colaboravam. 
Encontraremos as crianças na mesma situação, e cabe 
notar que elas, no peditório de São Nicolau, às vezes 
se vestiam de mulher: mulheres, crianças, ou seja, em 
ambos os casos, não-iniciados.
Ora, trata-se de um aspecto muito importante dos 
rituais de iniciação que nem sempre recebeu atenção 
suficiente, mas que esclarece melhor sua natureza do 
que as considerações utilitárias mencionadas no pará-
grafo anterior. Tomemos como exemplo o ritual das 
katchina dos índios Pueblo, já citado. Se não se revela 
às crianças a natureza humana dos personagens que 
vinda de Papai Noel para lembrar às crianças que a ge-
nerosidade dele será proporcional ao bom comporta-
mento delas; e o caráter periódico da distribuição dos 
presentes é útil para disciplinar as reivindicações in-
fantis, para reduzir a um período curto a época em que 
elas têm realmente o direito de exigir presentes. Mas 
esse enunciado simples basta para mostrar como são 
insuficientes os quadros da explicação utilitária. Pois 
de onde vem a idéia de que as crianças têm direitos, 
e que tais direitos se impõem de forma tão imperiosa 
aos adultos que estes são obrigados a elaborar mitos 
e rituais custosos e complicados para conseguir con-
tê-los e limitá-los? Logo percebemos que a crença em 
Papai Noel não é apenas uma mistificação agradavel-
mente imposta pelos adultos às crianças; é, em larga 
medida, o resultado de uma negociação muito onerosa 
entre as duas gerações. Ocorre com o ritual inteiro o 
mesmo que com as folhagens verdes – pinheiro, aze-
28 29
para intimidá-las. Eu diria antes que é pela razão con-
trária: é porque elas são as katchina. Elas são excluídas 
da mistificação porque representam a realidade com a 
qual a mistificação precisa estabelecer uma espécie de 
compromisso. O lugar delas é outro: não com as másca-
ras e os vivos, mas com os deuses e os mortos; com os 
deuses que são os mortos. E os mortos são as crianças.
Acreditamos que essa interpretação pode ser apli-
cada a todos os ritos de iniciação e mesmo a todas as 
ocasiões em que a sociedade se divide em dois grupos. 
A “não-iniciação” não é apenas um estado de privação, 
definido pela ignorância, pela ilusão ou por outras co-
notações negativas. A relação entre iniciados e não-ini-
ciados tem um conteúdo positivo. É uma relação com-
plementar entre dois grupos, sendo que um representa 
os mortos e, o outro, os vivos. Durante o ritual, aliás, é 
comum que os papéis se invertam várias vezes, pois a 
dualidade engendra uma reciprocidade de perspecti-
encarnam as katchina, será apenas para que os temam 
ou respeitem e se comportem de acordo com isso? Sim, 
sem dúvida, mas esta é apenas a função secundária do 
ritual, pois existe outra explicação, que o mito origi-
nal esclarece perfeitamente. Este mito explica que as 
katchina são as almas das primeiras crianças indígenas, 
que se afogaram dramaticamente num rio à época das 
migrações ancestrais. Assim, as katchina são ao mes-
mo tempo prova da morte e testemunho da vida após 
a morte. E não é tudo: quando os antepassados dos 
índios atuais finalmente se estabeleceram na aldeia, 
conta o mito que as katchina vinham visitá-los todos os 
anos e, ao ir embora, raptavam as crianças. Os índios, 
desesperados com a perda dos filhos, conseguiram que 
as katchina ficassem no além, em troca da promessa 
de representá-lasuma vez por ano com danças e más-
caras. Se as crianças são excluídas do mistério das 
katchina, não é primeiramente e nem principalmente 
30 31
teúdo dos mitos que servem para fundá-los. Mas uma 
análise diacrônica nos levaria ao mesmo resultado. 
Pois os folcloristas e os historiadores das religiões ad-
mitem de modo geral que a origem distante de Papai 
Noel se encontra no Abade de Liesse, o Abbas Stultorum, 
o Abade do Desregramento, que traduz fielmente o in-
glês Lord of Misrule, personagens que, durante um certo 
período, são reis do Natal, e nos quais reconhecemos 
os herdeiros do rei das Saturnais da época romana. 
Ora, as Saturnais eram as festas das larvae, isto é, dos 
mortos por violência ou abandonados sem sepultura, 
e por trás do velho Saturno, devorador de criancinhas, 
alinham-se como imagens simétricas o bom velhinho 
Noel, benfeitor das crianças; o Julebok escandinavo, 
demônio chifrudo do mundo subterrâneo que traz pre-
sentes para elas; São Nicolau, que as ressuscita e lhes 
dá presentes, e, por fim, as katchina, crianças mortas 
precocemente que renunciam ao papel de assassinos 
vas que, como espelhos colocados frente a frente, pode 
se repetir ao infinito: se os não-iniciados são os mortos, 
eles também são super-iniciados; e se, como também 
ocorre com freqüência, são os iniciados que personifi-
cam os fantasmas dos mortos para assustar os neófitos, 
é a estes que caberá, num estágio posterior do ritual, 
dispersá-los e impedir que retornem. Sem prosseguir 
nessas considerações, que nos afastariam de nosso ob-
jetivo, basta lembrar que, na medida em que as crenças 
e os ritos ligados a Papai Noel derivam de uma sociolo-
gia iniciática (e sobre isto não restam dúvidas), trazem 
à tona, para além da oposição entre crianças e adultos, 
uma oposição mais profunda entre mortos e vivos.
* 
*
 *
Chegamos à conclusão precedente por uma análise pu-
ramente sincrônica da função de certos rituais e do con-
32 33
sobrevivem sem motivo. Quando sobrevivem, é menos 
pela viscosidade histórica do que pela permanência 
de uma função que a análise do presente deve per-
mitir esclarecer. Se demos um lugar de destaque aos 
índios Pueblo em nossa discussão, é justamente por-
que a ausência de qualquer relação histórica imagi-
nável entre as suas instituições e as nossas (se exce-
tuarmos algumas influências espanholas tardias, no 
século XVII) mostra claramente que, nos ritos nata-
linos, estamos diante não só de vestígios históricos, 
mas também de formas de pensamento e comporta-
mento que derivam das condições mais gerais da vida 
em sociedade. As Saturnais e a comemoração medie-
val do Natal não trazem consigo as razões definitivas 
de um ritual de outra maneira inexplicável e despro-
vido de significação, mas fornecem um material com-
parativo útil para extrairmos o sentido profundo de 
instituições recorrentes.
de crianças para se tornarem aquelas que distribuem 
castigos e presentes. Acrescentemos que o protótipo 
arcaico de Saturno, tal como as katchina, é um deus da 
germinação. De fato, o personagem moderno de Santa 
Claus ou de Papai Noel resulta da fusão sincrética en-
tre várias figuras: o Abade de Liesse, bispo-menino 
eleito sob a invocação de São Nicolau, e o próprio São 
Nicolau, cuja festa deu origem direta às crenças rela-
tivas às meias, aos sapatos e às chaminés. O Abade de 
Liesse reinava no dia 25 de dezembro; São Nicolau, no 
dia 6 de dezembro; os bispos-meninos eram eleitos no 
dia dos Santos Inocentes, ou seja, 28 de dezembro. O Jul 
escandinavo era comemorado em dezembro. Somos 
remetidos diretamente à libertas decembris de que fala 
Horácio, e que Du Tillot, no século XVIII, invocou para 
ligar o Natal às Saturnais. 
As explicações pelas sobrevivências são sempre 
incompletas, pois os costumes não desaparecem nem 
34 35
gar, é uma reunião e uma comunhão: a diferença entre 
classes e estados fica temporariamente abolida, escra-
vos ou servos sentam-se à mesa dos senhores e estes se 
tornam seus servidores; as mesas, fornidas com abun-
dância, estão abertas a todos; homens e mulheres ves-
tem as roupas uns dos outros. Mas, ao mesmo tempo, o 
conjunto da sociedade se reparte ao meio: a juventude 
forma um corpo autônomo, elege seu soberano, o bispo 
da juventude ou, como na Escócia, o Abbot of Unreason; 
conforme indica o título, os jovens entregam-se a con-
dutas enlouquecidas que se traduzem em abusos con-
tra o resto da população e que, como sabemos, assu-
mem, até o Renascimento, as formas mais extremas: 
blasfêmias, roubos, estupros e mesmo assassinatos. No 
Natal, como nas Saturnais, a sociedade funciona em 
um ritmo duplo de solidariedade acentuada e de antago-
nismo exacerbado, e essas duas características aparecem 
como um par de oposições correlatas. O personagem 
Não surpreende que os aspectos não-cristãos da 
festa de Natal se assemelhem às Saturnais, dado exis-
tirem boas razões para supor que a Igreja tenha esco-
lhido a data de 25 de dezembro (em vez de março ou 
janeiro) para o dia de Natal a fim de que a comemo-
ração natalina substituísse as festas pagãs celebradas 
primitivamente em 17 de dezembro, mas que, no final 
do Império, duravam uma semana, ou seja, iam até o 
dia 24. De fato, desde a Antigüidade até a Idade Média 
as “festas de dezembro” apresentam as mesmas carac-
terísticas. Primeiro, a decoração das casas com folha-
gens verdes; depois, os presentes trocados ou dados às 
crianças; a alegria e os festejos; por fim, a confraterni-
zação entre ricos e pobres, senhores e servos.
Sob uma análise mais detida, surgem algumas 
analogias estruturais igualmente marcantes. Como 
as Saturnais romanas, o Natal medieval oferece duas 
características sincréticas e opostas. Em primeiro lu-
36 37
sonagem real se tornou um personagem mítico; uma 
emanação da juventude, simbolizando seu antagonis-
mo em relação aos adultos, fez-se símbolo da idade 
madura, tradução da disposição benévola em relação 
à mocidade; o apóstolo das más condutas é incumbido 
de sancionar as boas condutas. Os adolescentes aberta-
mente agressivos com seus pais são substituídos pelos 
pais, que se ocultam sob barbas postiças para cobrir as 
crianças de presentes. O mediador imaginário substi-
tui o mediador real e, ao mesmo tempo em que muda 
de natureza, começa a operar no sentido contrário.
Afastemos desde já algumas considerações que 
não são essenciais ao debate, mas que correm o risco 
de semear confusão. A “juventude”, como categoria 
etária, desapareceu em larga medida da sociedade con-
temporânea (embora há alguns anos estejamos assis-
tindo a certas tentativas de reconstituição ainda mui-
to recentes para que saibamos em que vão resultar). 
do Abade de Liesse realiza uma espécie de mediação 
entre esses dois aspectos. Ele é reconhecido e até en-
tronizado pelas autoridades regulares; sua missão é 
comandar os excessos, mantendo-os dentro de certos 
limites. Qual a relação entre esse personagem e sua 
função, de um lado, e, de outro, o personagem e a fun-
ção de Papai Noel, seu descendente remoto?
Cabe distinguir aqui, cuidadosamente, entre o 
ponto de vista histórico e o ponto de vista estrutu-
ral. Historicamente, como dissemos, o Papai Noel da 
Europa Ocidental, com sua preferência pelas chaminés 
e pelos sapatos, resulta pura e simplesmente de um 
deslocamento recente da festa de São Nicolau, assimi-
lada à comemoração de Natal, três semanas mais tarde. 
Isto explica porque o jovem bispo se transforma num 
velho, mas apenas em parte, pois as transformações 
são mais sistemáticas do que o acaso das conexões 
históricase de calendário nos faria admitir. Um per-
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Rise up, good wife, and be no’swier (lazy)
To deal your bread as longs you’re here;
The time will come when you’ll be dead,
And neither want nor meal nor bread.6
Mesmo que não dispuséssemos desta indicação preciosa, 
e daquela, não menos significativa, sobre o disfarce que 
transforma os atores em espíritos ou fantasmas, tería-
mos outras, derivadas do estudo dos peditórios infantis. 
Sabemos que eles não se limitam à época do Natal.7 Ocor-
rem durante todo o período crítico do outono, quando a 
noite ameaça o dia tal como os mortos acossam os vivos. 
6 Em tradução livre “Vai, minha senhora – nada de preguiça! –,/ 
Repartir teu pão enquanto estás viva./ Dia virá em que estarás bem 
morta,/ Sem precisar de pão nem de compota”. Citado por J. Brand, 
Observations on Popular Antiquities. Londres [s.n.], 1900, p. 243.
7 A esse respeito ver A. Varagnac, Civilisation traditionnelle et genre 
de vie. Paris: Albin Michel, 1948, pp. 92, 122 et passim. 
Um ritual que outrora se distribuía entre três grupos 
de protagonistas – crianças, jovens, adultos – hoje en-
volve apenas dois grupos (pelo menos no que se refere 
ao Natal): os adultos e as crianças. Assim, a “desrazão” 
do Natal perdeu em larga medida seu ponto de apoio; 
ela se deslocou e, ao mesmo tempo, se enfraqueceu: no 
grupo dos adultos, ela sobrevive apenas na véspera do 
Ano Novo, e, na noite de São Silvestre, na Times Square. 
Mas examinemos, então, o papel das crianças.
Na Idade Média, as crianças não aguardam, em pa-
ciente expectativa, a descida de seus brinquedos pela 
chaminé. Geralmente disfarçadas, e agrupadas em ban-
dos, e por isso chamadas em francês arcaico de guisarts 
(“disfarçados”), elas vão de casa em casa, cantando e 
apresentando seus votos, recebendo em troca doces e 
frutas. É significativo que evoquem a morte para fa-
zer valer seus créditos. Assim, na Escócia setecentista, 
cantavam esses versos:
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de Natal, os mortos, cobertos de presentes, deixam os 
vivos em paz até o próximo outono. É revelador que 
os países latinos e católicos, até o século XIX, tenham 
colocado a ênfase em São Nicolau, isto é, na forma mais 
moderada da relação, ao passo que os países anglo-saxões 
costumam desdobrá-la em suas duas formas extremas 
e antitéticas: o Halloween, em que as crianças fazem o 
papel de mortos para extorquir presentes dos adultos, 
e o Natal, em que os adultos presenteiam as crianças 
exaltando-lhes a vitalidade.
* 
*
 *
A partir daí, esclarecem-se as características aparen-
temente contraditórias dos ritos natalinos: durante 
três meses, a visita dos mortos aos vivos tornou-se 
mais e mais insistente e opressiva. Assim, no dia da 
despedida pode-se permitir festejá-los e lhes oferecer 
As coletas natalinas começam várias semanas, geral-
mente três, antes do Natal, estabelecendo assim uma li-
gação com os pedidos rituais, igualmente sob disfarces, 
da festa de São Nicolau, que ressuscitou as crian ças mor-
tas; suas características ficam ainda mais evidentes no 
primeiro peditório da estação, o de Hallow-Even (que, por 
determinação eclesiástica, ficou marcado para a véspe-
ra do Dia de Todos os Santos), no qual as crianças, como 
ainda hoje acontece nos países anglo-saxões, perseguem 
os adultos vestidas de fantasmas e esqueletos, até que os 
adultos comprem a tranqüilidade de volta com alguns 
presentes miúdos. O avanço do outono, desde seu come-
ço até o solstício, que marca o resgate da luz e da vida, é 
acompanhado, no plano ritual, de um trâmite dialético 
cujas principais etapas são: o retorno dos mortos, suas 
ameaças e perseguições, o estabelecimento de um mo-
dus vivendi com os vivos feito do intercâmbio de serviços 
e presentes, e, por fim, o triunfo da vida, quando, no dia 
42 43
o de mortos. Não surpreende, pois, que o Natal e o Ano 
Novo (seu duplo) sejam festas de presentes: a festa dos 
mortos é, na essência, a festa dos outros, visto que o 
fato de ser outro é a primeira imagem aproximada que 
podemos construir a respeito da morte.
Temos agora condições de responder às duas 
pergun tas colocadas no início deste ensaio. Por que o 
personagem do Papai Noel ganha espaço, e por que 
a Igreja observa esse movimento com preocupação?
Vimos que Papai Noel é o herdeiro e, ao mes-
mo tempo, a antítese do Senhor da Desrazão. Essa 
transformação indica, em primeiro lugar, uma melho-
ria de nossas relações com a morte; para ficarmos qui-
tes com ela, já não cremos ser necessário permitir-lhe 
periodicamente a subversão da ordem e das leis. Agora, 
a relação é regida por um espírito de benevolência le-
vemente desdenhosa; podemos ser generosos, tomar a 
iniciativa, pois é apenas uma questão de lhe oferecer 
uma última ocasião de se manifestar livremente, ou, 
como diz tão fielmente o inglês, to raise hell [“soltar os 
demônios”]. Mas quem pode personificar os mortos 
numa sociedade de vivos, a não ser todos os que, de 
uma maneira ou de outra, não estão completamente 
integrados ao grupo, ou seja, que participam daquela 
alteridade que é a própria marca do supremo dualis-
mo, o dualismo entre os mortos e os vivos? Assim, não 
admira ver os estrangeiros, os escravos e as crianças 
como os principais beneficiários da festa. A inferiori-
dade na condição política ou social e a desigualdade 
etária são, deste ponto de vista, critérios equivalentes. 
De fato, dispomos de inúmeros testemunhos, sobre-
tudo nos países escandinavos e eslavos, que desvelam 
como característica própria da festa de Ano Novo ser 
ela uma ocasião de oferecer alimento aos mortos, na 
qual os convivas desempenham o papel de mortos, tal 
como as crianças desempenham o de anjos, e os anjos, 
44 45
não podemos compartir plenamente a ilusão, mas o que 
justifica nossos esforços é que, alimentada em outrem, 
ela nos oferece pelo menos uma oportunidade de nos 
aquecer à chama acesa nessas jovens almas. A crença 
que inculcamos em nossos filhos de que os brinquedos 
vêm do além oferece um álibi ao movimento secreto 
que nos leva a ofertá-los ao além, sob o pretexto de dá-
los às crianças. Dessa maneira, os presentes de Natal 
continuam a ser um verdadeiro sacrifício à doçura de 
viver, que consiste, em primeiro lugar, em não morrer.
Certa vez, Salomon Reinach escreveu com muita 
profundidade que a grande diferença entre as religiões 
antigas e as modernas consiste no fato de que “os pa-
gãos rogavam aos mortos, ao passo que os cristãos ro-
gam pelos mortos”.8
8 S. Reinach, “L’Origine des prières pour les morts”, in Cultes, mythes, 
religions, tomo 1. Paris: Ernest Lerou, 1904, p. 319.
presentes e até brinquedos, ou seja, símbolos. Mas esse 
enfraquecimento da relação entre mortos e vivos não se 
dá em detrimento do personagem que encarna tal rela-
ção: diríamos, pelo contrário, que ele até se desenvolve 
melhor. Essa contradição seria insolúvel se não admitís-
semos que outra atitude em relação à morte continua a 
avançar entre nossos contemporâneos: talvez feita não 
do modo tradicional de espíritos e fantasmas, e sim do 
medo de tudo o que a morte representa, em si mesma 
e para a vida, em termos de empobrecimento, aridez 
e privação. Observemos os ternos cuidados que temos 
com Papai Noel, as precauções e os sacrifícios que 
aceitamos para manter seu prestígio intocado junto às 
crianças. Não será porque, lá no fundo de nós, ainda per-
siste a vontade de acreditar, por pouco que seja, numa 
generosidade irrestrita, numa gentileza desinteressada, 
num breve instante em que se suspende qualquer re-
ceio, qualquer inveja, qualquer amargura? Sem dúvida, 
46 47
Semdúvida, há uma grande distância entre a pre-
ce aos mortos e a prece repleta de conjurações que, 
todos os anos e cada vez mais, dirigimos às crianças 
– encarnação tradicional dos mortos – para que, acre-
ditando no Papai Noel, elas consintam em nos ajudar a 
acreditar na vida. Mas deslindamos os fios que teste-
munham a continuidade entre essas duas expressões 
de uma mesma realidade. A Igreja não está errada 
quando denuncia na crença em Papai Noel o bastião 
mais sólido e um dos campos mais ativos do paganismo 
no homem moderno. Resta saber se o homem moderno 
não pode também defender seus direitos de ser pagão. 
Por fim, uma última observação: há um longo caminho 
das Saturnais até o bonachão Papai Noel; durante a jor-
nada, parecia ter­se perdido definitivamente um tra-
ço essencial, talvez o mais arcaico das Saturnais. Pois 
Frazer já mostrou que o próprio rei das Saturnais é o 
herdeiro de um protótipo antigo que, depois de per-
sonificar o rei Saturno e se entregar a todos os exces-
sos durante um mês, era solenemente sacrificado no 
altar de Deus. Graças ao auto-de-fé de Dijon, eis o herói 
reconstituído em todas as suas características, e não 
deixa de ser um dos grandes paradoxos desse curioso 
episódio que, pretendendo acabar com Papai Noel, os 
eclesiásticos de Dijon não tenham feito mais do que 
restaurar em sua plenitude, após um eclipse de alguns 
milênios, uma figura ritual cuja perenidade, a pretexto 
de destruí-la, coube justamente a eles demonstrar.
Sobre o autor
CLAUDE LÉVI-STRAUSS nasceu em 28 de novembro de 1908. For-
mou­se em Direito e Filosofia na Sorbonne. Aos 26 anos tornou­
se um dos primeiros professores da recém-criada Universidade 
de São Paulo. Nesse período (1934-35) fez expedições entre os 
Bororo, os Kadiwéu e os Nambikwara, mais tarde recontadas em 
Tristes trópicos (1955). Em 1959 ingressou no Collège de France, 
onde fundou o Laboratoire d’Anthropologie Sociale. Foi um 
dos criadores da revista L’Homme (1961). Em 1973, passa a fa-
zer parte da Academia Francesa. Publicou, entre outros clássi-
cos, As estruturas elementares do parentesco (1949), O pensamento 
selvagem (1962) e as Mitológicas (1964-71). Em 2008 teve sua obra 
incluída na coleção Pléiade, da editora Gallimard.
Claude Lévi-Strauss na Cosac Naify
Antropologia estrutural
Mitológicas 1: O cru e o cozido
Mitológicas 2: Do mel às cinzas
Mitológicas 3: A origem dos modos à mesa
De perto e de longe (entrevistas a Didier Eribon)
© COSAC NAify, 2008
© CLAuDE LéVi-StRAuSS, 1952
Coordenação editorial 
CASSiANO ELEk MAChADO e fLORENCiA fERRARi
Preparação
LuiS DOLhNikOff
Revisão
AuGuStO MASSi e REGiANE M. P. BARBOzA
Projeto gráfico
ELAiNE RAMOS
COSAC NAify
Rua General Jardim, 770, 2o. andar
01223-010 São Paulo SP
tel [55 11] 3218 1444
www.cosacnaify.com.br
Atendimento ao professor [55 11] 3218 1473
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CiP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lévi-Strauss, Claude [1908-]
O suplício do Papai Noel
título original: Le père Noel supplicié
tradução: Denise Bottmann
São Paulo: Cosac Naify, 2008
iSBN 978-85-7503-754-6
1. Antropologia estrutural 2. Papai Noel 3. Signos e símbolos – 
Aspectos religiosos – Cristianismo i. título.
08-11109 CDD-299
Índices para catálogo sistemático:
1. Papai Noel: Rito natalino: Antropologia estrutural 299
Esta edição é uma homenagem aos cem anos 
de Claude Lévi­Strauss. Foram impressos, em 
novembro de 2008, 5.000 exemplares em papel 
alta alvura 120 g/m2, pela RR Donnelley. A fonte 
utilizada foi a Gentium, de Victor Gaultney.

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