
Fundamentos de História do Direito
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imortalidade era essencialmente uma prerrogativa real, mas acabou-se por considerar que a imortalidade seria conferida a todos que pudessem imitar esses ritos.\u201d WHITROW, G.J. O tempo na história - concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 38-39. previsível: ao contrário do fenômeno verificado no Egito, os rios da Mesopotâmia \u201ctêm com- portamento muito menos uniforme que o Nilo. Os habitantes da antiga Mesopotâmia eram obrigados a enfrentar variações climáticas, ventos cortantes, chuvas torrenciais e enchentes devastadoras, que escapavam a seu controle\u201d.21 Disso decorria a impossibilidade de credo em um ritual de fundo cíclico quanto à vida e à morte. Enquanto no Egito \u201co faraó simbolizava o triunfo de uma ordem divina inabalável sobre as forças do caos, na Mesopotâmia a monarquia representava a luta de uma ordem humana, com todas as suas ansiedades e fragilidades, para se integrar ao Universo\u201d.22 Essa variação no sistema de crenças terá reflexos na política e na economia desses povos do Oriente próximo. 3.2 Política A principal característica comum da organização política das civilizações aqui analisadas consiste no fato de que ambas desenvolveram a monarquia como forma de governo. As diferenças, entretanto, neste terreno, são muito mais evidentes. A primeira dessas distinções diz respeito à dicotomia fragmentação/ unidade do poder político. No Egito, desde a consolidação da unificação dos reinos do Sul e do Norte (c. 3100 a.C.) até o final dos períodos de predomínio persa (525-404 e 343-332 a.C.) e início da dominação romana (30 a.C.), consolidou-se uma monarquia unificada, com um poder central bastante definido, titularizado pelo faraó, e com uma capital instalada em determinada cidade do reino (que podia ser Mênfis, Tebas, Sais, entre outras). Ainda que alguns períodos de instabilidade interna ou invasão externa possam ter abalado a vida política do reino, é notável a durabilidade da estrutura centralizada do antigo Egito. 23 Num período de aproximadamente 3000 anos - observa José das Candeias Sales -, é extraordinário \u201co fato de, durante todo esse tempo, a tendência de concentração política ter sempre conseguido sobrepor-se à tendência de fragmentação favorecida pela própria configuração longitudinal do país\u201d.24 Conclui, então, o 21 Idem, p. 43. No mesmo sentido, CARDOSO, Ciro Flamarion. Antigüidade oriental- política e religião. Op. cit., p. 40. 22 WHITROW, G.J. O tempo na história - concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Op. cit., p. 44. 23 Havia, convém notar, uma divisão administrativa no reino egípcio. O território era dividido em \u201cnomos\u201d, expressão que pode ser traduzida como \u201cdistrito\u201d, ou \u201ccircunscrição administrativa\u201d. Cada nomo preservava ritos e divindades próprias, sua extensão territorial variava em razão das fronteiras externas do reino e havia um governador (nomarca) designado pelo poder central. Mesmo quando o nomarca possuía, eventualmente, certa liderança política e autonomia administrativa, a regra, no Egito antigo, era a centralização do poder. Não havia, ao menos de forma duradoura, questionamento e desafio do poder do faraó pelos representantes dos nomos. Cf.: ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade - a literatura no Egito faraônico. Op. cit., p. 408. 24 SALES, José das Candeias. A ideologia real acádica e egípcia - representações do poder político pré- clássico. Lisboa: Estampa, 1997, p. 19. mesmo autor: \u201cmais extraordinário ainda é o fato de, durante os mais de três milênios, a realeza egípcia nunca ter sido verdadeiramente posta em questão\u201d.25 Evidentemente, a experiência política na Mesopotâmia era diversa; desde seus primórdios, essa civilização optou pela fundação de cidades - comumente designadas cidades- estado - com alto grau de independência. Cada cidade tinha seu governante, seus órgãos políticos, e, muitas vezes, seu próprio exército. Logo, na região da Suméria havia as cidades de Ur, Uruk, Lagash e Larsa, entre outras; na Babilônia, além da cidade do mesmo nome, podem ser mencionadas Kutha, Kish, Borsipa; na região da Acádia, além da capital homônima, as cidades de Esnunna e Sippar. E, por fim, na Assíria, as cidades de Nínive, Assur e Nuzi tinham algum destaque. Todas essas cidades possuíam soberanos e divindades próprios. É nítido, então, o contraste entre unidade do exercício do poder político, no antigo Egito, e a fragmentação desse poder entre as várias cidades da Mesopotâmia. 26 Uma segunda distinção deve ser citada, e diz respeito ao papel conferido aos soberanos. Talvez por influência da regularidade nas manifestações da natureza - especialmente das águas do Nilo -, e a criação de um rito de imortalidade a ser cumprido pelo faraó (imitando o deus Osíris), consagrou-se, no Egito, a concepção de que o monarca não era um simples representante divino na Terra. Ele era o próprio deus. Trata-se do fenômeno intitulado teofania. Como descrito por Ciro Flamarion Cardoso, \u201cO rei, chamado faraó (per- aa: a \u201egrande casa\u201f ou \u201epalácio\u201f), rei-deus, encamação do deus Hórus e - sistematicamente a partir da V dinastia, embora o título apareça antes - filho do deus solar Ra, entre muitos outros títulos, era o mais absoluto dos monarcas\u201d.27 De modo absolutamente contrário - e cabe recordar, aqui, as diferenças no comportamento das águas dos rios que ocupam papel central nas duas civilizações -, na Mesopotâmia, com a instabilidade natural já descrita e a fragmentação do poder político entre vários monarcas (os quais, freqüentemente, guerreavam entre si), era simplesmente impos- sível fundar a dominação do rei com base na assunção de uma divindade. Na verdade, a monarquia, nas cidades do Tigre e do Eufrates, assumiu um caráter mais humano. O rei era, tão-somente, um representante de deus (a divindade escolhida pela cidade) na terra. E, nesse contexto, estava também submetido a limitações e contingências típicas de qualquer ser 25 SALES, José das Candeias. Op. cit. 26 Ver, a esse respeito, BRAUDEL, Fernand. Memórias do Mediterrâneo \u2013 Pré-história e Antigüidade. Trad. Teresa Antunes Cardoso et. al. Lisboa: Terramar, 2001, p. 86-87. 27 CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete olhares sobre a Antigüidade. Op. cit., p. 79. Vale transcrever, ainda, um excerto de uma das obras mais antigas da literatura, uma ode fúnebre intitulada \u201cTextos das pirâmides\u201d: \u201cO rei dá ordens, o rei concede dignidades, o rei distribui as funções, o rei dá oferendas, o rei dirige as oblações - pois tal é, de fato, o rei: o rei é o único do céu, um poderoso à frente dos céus!\u201d. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. Antigüidade oriental - política e religião. Op. cit., p. 43. humano. Um interessante ritual praticado na Babilônia ressalta essa característica. 28 3.3 Economia No plano da economia, há dois aspectos comuns que são essenciais, até mesmo como elementos distintivos entre a evolução dos povos que habitavam a Mesopotâmia e o Egito e daqueles que estavam além de suas fronteiras: a utilização do solo para plantio e o crescente emprego da navegação como meio de transporte de mercadorias. No entanto, é fundamental ressaltar que o Egito era rico em vários produtos de origem mineral - ouro, cobre, sílex, ametista e granito para construção -, mas pobre em madeira, que era importada da região da Fenícia, por meio do porto de Biblos. 29 Além disso, as condições de irrigação e drenagem do solo eram bastante favoráveis na extensão do Rio Nilo, 30 ao passo que na Mesopotâmia havia carência, em regra, de minerais (com exceção do cobre) e o solo, ainda que bastante