
Fundamentos de História do Direito
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em que a propriedade coletiva tinha em sua base o entendimento de que a comunidade predominava sobre o indivíduo. O que conta é a comunidade, e, sendo assim, a terra pertence ao grupo todo, tanto aos vivos quanto aos mortos, visto que a crença, nesses tempos, sustentava que os mortos permaneciam de certa forma ligados às condições terrenas. Sendo a propriedade da terra coletiva, pertencendo ao grupo social em sua totalidade, os objetos que o homem fabrica para seu uso pessoal começam a receber uma conotação de propriedade individual, privada. A relação que se estabelece entre o proprietário e tais utensílios particulares, bem como entre o grupo e a terra, é recheada por um vínculo místico limito forte, conferindo à propriedade a característica de ser algo sagrado. Essa forma de propriedade coletiva da terra e a forma da propriedade privada móvel vai com o tempo transformar-se, principalmente quando da organização da comunidade política territorial em contrapartida à comunidade política de tipo gentílico que até então prevalecia. Nasce o Estado, que inverte, ao privilegiar juridicamente o indivíduo, as relações existentes, ou seja, já não mais conta a coletividade em relação ao indivíduo, mas o inverso, o indivíduo singular agora é o centro referencial. Estabelece-se também a divisão entre a propriedade privada e a propriedade pública. Fustel de Coulanges afirma que as crenças tiveram papel fundamental na determinação das leis, das instituições, ou, ainda, que a nossa intcli gência modifica-se século após século, sendo que \u201cesta está sempre evoluindo, quase sempre em progresso e, por este 7 Preferiu-se uma divisão centrada mais nos pressupostos da abordagem da história da propriedade do que da forma clássica da divisão da mesma em \u201cidades\u201d, como, por exemplo, a divisão histórica da propriedade em: a) a propriedade primitiva e antiga; b) a propriedade medieval; e c) a propriedade moderna. Assim o faz com competência LEVY, Jean-Philippe. História da propriedade. Trad. Fernando Guerreiro. Lisboa: Estampa, 1973. motivo, nossas instituições e nossas leis estão sujeitas a flutuações da inteligência humana\u201d. 8 Ocupam lugar central na obra desse autor as crenças que os homens nutrem em determinado momento histórico. Em A cidade antiga, quando os homens viviam em tribos familiares, o culto aos antepassados mortos criava uma religião essencialmente doméstica, que era hereditária. A crença de \u201cplantão\u201d sustentava que com a morte as pessoas passavam a ter uma segunda existência, mas ela se dava aqui, junto e ao lado dos vivos, daí toda a ritualização com as oferendas, o fogo sagrado, etc. Os corpos e a alma continuavam unidos após a morte. Em resumo: a crença primitiva é uma religião doméstica que cultua permanentemente os mortos familiares. É interessante como Coulanges amarra a questão da religião doméstica e a propriedade privada da terra: De todas essas crenças, de todos esses costumes, de todas essas leis, resulta claramente que foi a religião doméstica que ensinou o homem a apropriar-se da terra e assegurar-lhe seu direito sobre a mesma. 9 Sustenta o autor em referência que, ao tratar-se das antigas populações da Itália e da Grécia, sempre houve a propriedade privada da terra em contraste com as populações que teriam tido a terra em comum, como os germanos, entre os quais cada membro da tribo ganhava um lote numa partilha anual dos campos para cultivo, sendo assim proprietários apenas da colheita e não da terra; ou entre os tártaros, que admitiam o direito de propriedade apenas no tocante ao rebanho. Apesar das diferenças, existia a idéia da propriedade privada, e para o autor decorre basicamente da organização estrutural da religião doméstica: Há três coisas que, desde as mais remotas eras, se encontram fundadas e estabeleci das solidamente pelas sociedades grega e italiana: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade; três coisas que apresentaram entre si manifesta relação e que parece terem mesmo sido inseparáveis. 10 Cada família, nessa época remota, tinha os seus próprios deuses, adorados apenas por ela, uma vez que os deuses eram os antepassados que só a ela protegiam. Daí ser de 8 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 8. 9 COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 55. 10 COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 50. propriedade exclusiva o culto e conjuntamente a terra que compõe a área de cultivo. 11 É importante notar que esta propriedade privada da terra é da família, de um culto, de uma religião. Família esta composta por duas ou três mil pessoas, isto é, diferente da família, moderna que reflete o resultado histórico de um processo de redução. Como a religião doméstica estava ligada também a um espaço territorial, não se comunicando com outra religião, de uma outra família, a propriedade é inalienável. Entende Coulanges que \u201cnão foram as leis, porém a religião, que a princípio garantiu o direito de propriedade. Cada domínio estava sob a proteção das divindades domésticas que velavam por ele\u201d.12 Como a família não pode renunciar aos seus deuses, neste culto aos antepassados, não pode renunciar à propriedade da terra em que os vivo e os mortos de uma mesma família habitam. 13 Outro vínculo entre a religião dos antigos e a propriedade da terra dá-se com o estabelecimento dos cemitérios familiares: A família apropriou-se da terra, sepultando nela os seus mortos, fixando-se lá para sempre. A sepultura estabelecia o vínculo indissolúvel da família com a terra; isto é, a propriedade. 14 Nesses séculos, bem anteriores ao advento do cristianismo, a propriedade particular é de uma grande família, tanto que ainda na Lei das XII Tábuas, quanto à expropriação por dívidas, não é permitido que a propriedade seja confiscada em proveito do credor: O corpo do homem responde pela dívida, mas não a terra, porque esta é inseparável da família. Será bem mais fácil escravizar o ho mem do que tirar-lhe um direito de propriedade, que pertence mais à família do que a ele próprio; o devedor está nas mãos do seu cre' dor: a sua terra, de algum modo (sic), acompanha-o na escravidão. 15 11 \u201cA família está vinculada ao altar e este, por sua vez, encontra-se fortemente ligado ao solo; estreita relação se estabeleceu, portanto, entre o solo e a família. Ai deve ser sua residência pem1anente, que jamais abandonará, a não ser quando alguma força superior a isso a constranja. Como o lar, a família ocupará sempre esse lugar. O lugar pertence-lhe; é sua propriedade, propriedade não de um único homem, mas de uma família, cujos diferentes membros devem vir, um após outro, nascer e morrer ali\u201d (COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 50). 12 COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 54. 13 De tão forte a estreita ligação entre a religião doméstica e a propriedade privada da terra, o autor a ilustra com os objetos que serviam para delimitar a propriedade, denominados de \u201ctermos\u201d: \u201cColocado o termo na terra, estava pois, por assim dizer, a religião doméstica implantada no solo, indicando que este solo permanecia, para todo o sempre, propriedade da família. Mais tarde, com a ajuda da poesia, considerou-se o termo como deus distinto e pessoal\u201d (COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 54). 14 COULANGES, Fustel de. Op. cit., p. 54. 15 \u201cEm artigo da Lei das XII Tábuas, que trata do devedor insolvente, lemos