
nao veras pais nenhum ignacio de loyola brandao
Pré-visualização50 páginas
nunca mais foi retratado deste modo. Era ela, delicada e cordial, porém não passiva. Ao menos, não era passiva nos primei- ros anos. Será que eu a transformei de tal modo? Ou foram as situações à nossa volta? Adelaide via o mundo de um modo diferente do meu, gostava de tranqüilidade, da estabilidade, preocupava-se com a se- gurança. O mundo tinha valores sólidos que custavam a mudar. Po- dia-se aceitá-los, seguros de que durariam ao menos uma vida. E quando mudavam, existia toda uma preparação, as pessoas eram condicionadas, nada explodia subitamente, assustando. Valores sim- ples, às vezes. Algo assim como as festas populares onde as pesso- as costumavam usar alguma coisa feita de couro novo, ou de pano azul. Ou queimar palha benta para a chuva acabar. Costumes simples, cerimônias, rituais, hábitos, coisas que per- maneceram por séculos, passadas de avô, a pai, a filho, a neto, bisneto. Gestos familiares, espontâneos, falas, comidas. Permane- ciam. Deixavam uma impressão de solidez, favoreciam a serenidade, eram certeza. Continuação. Naquela mesma tarde compramos um porta-retrato, muito simples, em madeira clara, sem pintura, nem verniz. O espaço para a foto era maior, porém Adelaide colocou um passe-partout branco, agora amarelecido. Mas as tintas da fotografia continuam firmes, em seu tom pastel. Tranqüilo. Falta a mão em meu ombro. Falta a ligeira reprimenda ao jantar, porque costumo tomar a sopa, com ruído. Em vez da Patética e dos discos clássicos tem o rádio de pilha com músicas sertanejas deste homem que invadiu a casa. Querem tirar tudo daqui, preciso salvar o retrato de Adelaide. Fico impressionado comigo, quero o retrato, me revolto com a idéia de que vão tirá-lo. Adelaide continua desaparecida e me sen- to a remoer filosofias. Me irrito ante a perspectiva de perder a casa, os móveis, enquanto a perda maior, ela, me deixou insensível longo tempo. Ou foi pouco tempo? Não tenho noção de espaço, horas, dias, se- manas. Quanto se passou entre eu descobrir o furo e Adelaide me deixar? Não sei. Nem tem importância. Tadeu Pereira (preciso pro- curá-lo) tem razão. O que conta agora não são os dias e os meses, e sim situações e os acontecimentos. Por duas vezes pensei nestes homens que invadiram a casa. Com meu consentimento, reconheço. Não movo palha para expulsá-los, porque me fazem companhia. Aqui estamos, em comunidade. Precisamos uns dos outros e isto me reconforta. Acaso ou não, meu sobrinho me deixou gente inteligente. Podemos conversar, eles me trazem o mundo de fora. Um Brasil que existiu além das barreiras. Reconstituir os fatos. Adianta? E como disse o homem que costuma se sentar à ponta da mesa: "Lem- branças, para quê?" Que transformação elas podem operar no mundo diante de nós? Nenhuma. O sol está nascendo, passei a noite neste sofá, não sei se co- chilei, se fiquei ruminando. Apanho o retrato de Adelaide, enfio na gaveta da cômoda, entre camisas passadas, cuecas e meias. A ci- dade ainda em silêncio, não se ouve nada vindo do corredor. Teriam desistido? \u2014 Hoje à noite vem uma caminhonete. Você tem a tarde toda para arrumar as coisas, disse o homem que me parece ser o chefe. \u2014 Assim, de repente? Pensei que tivesse uns dias. \u2014 É uma operação de guerra, meu amigo. Temos de ganhar tempo. \u2014 Guerra? Você exagera. \u2014 Pode ser. De qualquer modo, a caminhonete só pode vir hoje. Por favor, arrume tudo que tem de arrumar. \u2014 E como é que você sabe que a caminhonete vem? Ninguém telefo- nou... \u2014 Enquanto você dormia, saí. Passei a noite fora, em busca dos contatos. Agora, fique vigiando, vou dormir. Tem café? A cozinha era uma bagunça, Adelaide morreria se estivesse aqui. Estou preocupado, pensando nesta mudança, nos móveis a selecionar. Gosto de tudo nesta casa, estou preso às mesas, cadeiras, piano, bibelôs, quadros, cômodas, armários, criados, mesas de centro, es- tantes, colunas para vasos. Enfim, ligado a toda esta tranqueira que entulha cada cômodo. Os vasos vazios em cima das colunas. Adelaide jamais permitiu plantas de plásticos, tinha horror delas, por mais perfeitas que fossem. Chegaram a fabricá-las com cheiros naturais, o que as tor- na espantosamente medonhas. Somente os muito ricos conseguem plantas naturais. São vendidas em galerias de arte, a preços insuportáveis. Uma planta vale mais do que as pinturas valiam, anos atrás. Nos leilões, trocam-se Pi- cassos por samambaias, Portinaris por avencas. Duke Lee por gerâ- nios. Oiticica por antúrios. Existem colecionadores, marchands. Estufas com ar-condicionado para o cultivo. Os donos dispõem de quantias extras de água. São privilegiados. Porque se descobrem alguém desperdiçando água, a- deus. Pode contar com o Isolamento, é fatal. Evidente que a lei não se aplica a uns poucos. As colunas de vasos desta casa eram da bisavó de Adelaide. Es- guias, de madeira escura, manchadas pela água. Quase em cada can- to, existe uma. Eu disse um dia a ela, retire o vaso, coloque um bibelô, é triste um vaso sem nada, inútil. Ela se recusou, tinha suas idéias. As colunas ficaram. Apesar de factício, o café cheira bem. Neste mundo não existe nada mais desenvolvido que a indústria de cheiros artificiais. Pe- na que não consigam eliminar essa atmosfera fedida que domina a cidade, a maior parte do tempo. Todavia, o gosto do café é nada, só cheiro mesmo. Tocam a campainha, o homem que costuma se sentar à Ponta da me- sa vai atender. Demora-se. Vozes abafadas. Volta com um papel na mão, sorriso irônico. Ele não precisa dizer, sei que foram os vi- zinhos outra vez. O que estarão tentando? O homem me estende o pa- pel. \u2014 Uma intimação. \u2014 Para quê? \u2014 Para nos apresentarmos ao Distrito. \u2014 Fazer? \u2014 Um depoimento. Diz que precisamos levar nossas Carteiras Pro- fissionais, provar que estamos empregados. \u2014 E se não provarmos? \u2014 E eu sei? Só que não vamos lá. É só a gente sair, os vizinhos arrombam a porta e se instalam. \u2014 E a intimação? \u2014 Deve existir milhares. Todo mundo denunciando todo mundo. E- les expedem, mas não devem ter tempo de verificar. Temos que jogar com a sorte. O bom do caos é isso, a ausência de controle, em to- dos os setores. O homem que está despachando intimações ganha para sentar-se à máquina e despachar. \u2014 É, mas você se esquece que os denunciantes devem estar em ci- ma, fiscalizando. Eles fiscalizam de graça, portanto o governo não precisa manter fiscais. \u2014 Não adianta. Se você não é fiscal, não tem autorização para fiscalizar. Cada Departamento age dentro de sua competência. \u2014 Mas você pode comprar os fiscais. \u2014 Isso pode. Aliás, só funciona assim. Eles compram e a gente recompra. Quem pode mais, chora menos. \u2014 Então, não vamos. \u2014 Pode rasgar isso. \u2014 Quanto papel jogado fora. \u2014 É uma indústria organizadinha. Gente que vive de reciclar pa- pel para o governo. Gente que imprime para o Esquema. Eles subor- nam os oficiais, para que estes intimem. E gastam papel. É todo um ciclo, por isso ninguém liga, as intimações são pró-forma. \u2014 Tenho medo. Quando é coisa oficial, nunca se sabe. \u2014 Você está sempre com medo. Se solta, velho. Descontraia. \u2014 Não sei, as coisas corriam bem, normais. De repente, não te- nho onde me segurar, fico nervoso, assustado. \u2014 Pois é, entendo bem. É toda a sua classe. Quando as grandes calamidades passaram a acontecer, ninguém ficou nervoso, ninguém moveu uma palha. Agora, estão assustados. \u2014 Você vive pregando sermão. Como se fosse o bom. Não me enche, tá bem? Aborrecido, dono da verdade, vomita regras, não suporto este sujeito por isto. E não porque se apossou de minha casa. Para cada situação tem um conceito, formula uma hipótese, sabe a resposta, emite uma sentença. E bobo sou eu que fico em dúvida, aceito o que ele me diz, me questiono. \u2014 A que horas vem a tal camionete? \u2014