
Economia e sociedade - Max Weber - vol2.
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eram racionalmente inter- pretados, estendidos e expandidos. Somente com isto o trabalho lógico-jurídico e construtivo alcançou a condição de se sobrepor sobre o fundamento do método puramente analítico. Com toda razão, Goldschmidt ressaltou a elasticidade extraor- dinária de conceitos jurídicos como locatio conductio, emptio venditio, manda- tum (especialmente também da actio quod iussu), depositum, e também a capaci- dade de absorção ilimitada da stipulatio e do constitutum, para a maioria dos negócios colocados hoje sob garantia jurídica mediante letras de câmbio ou ou- tras obrigações referentes a quantias fixas. O específico da lógica jurídica roma- na, tal como se desenvolveu a partir das condições formais dadas, fica particular- mente claro quando se compara a ela, por exemplo, a forma de procedimento da jurisprudência cautelar inglesa. Também ela utilizava freqüentemente, com maior audácia, determinados conceitos jurídicos para possibilitar, com sua ajuda, a queixa judicial relativa a situações de fato extremamente heterogêneas. Mas é óbvia a diferença que existe, por exemplo, quando, por um lado, os juristas romanos utilizam a categoria de iussus para construir a garantia pessoal de crédito e a ordem de pagamento, e, por outro, os ingleses derivam do conceito do delito de trespass a possibilidade de queixa para vários contratos, totalmente diferentes entre si. No último caso, são juntados assuntos juridicamente heterogêneos, para conseguir com rodeios a coação jurídica, enquanto, no caso dos romanos, situa- ECONOMIA E SOCIEDADE 99 ções de fato economicamente heterogêneas (externamente) e novas são subordina- das a um conceito jurídico adequado. É verdade que o caráter abstrato de muitos conceitos jurídicos considerados hoje especificamente "romanos" não é nada primiti- vo, nem se origina, em parte, na Antiguidade. Por exemplo, o conceito romano de propriedade, muito citado, foi somente um produto da desnacionalização do direito romano, para constituir um direito universal. A propriedade romana nacional não era, de modo algum, uma instituição regulamentada de forma particularmente "abs- trata", nem muito menos uma instituição uniforme. Somente Justiniano suprimiu as diferenças radicais, ou pelo menos reduziu-as a poucas formas, que apresentava o direito fundiário, e somente em conseqüência da extinção das antigas condições processuais e sociais da proteção interditaI sobreviveram, para a análise medieval do conteúdo conceituaI das Pandectas, as duas instituições de dominium e possessio como situações de fato totalmente abstratas. A situação não é muito diferente no caso de numerosas outras instituições. Sobretudo o caráter primitivo da maioria dos institutos jurídicos romanos genuínos não era muito mais abstrato do que o dos germânicos. A forma característica das Pandectas origina-se nas peripécias peculiares da forma estatal romana. A sublimação do próprio pensamento jurídico, no tocante a seu rumo, como resulta do que já dissemos, era em parte conseqüência das condi- ções políticas. E isto de modo diferente na época republicana e na imperial tardia. A peculiaridade técnica, extremamente importante, da justiça e da atividade dos con- sulentes era, como já vimos, em sua maior parte, um produto do domínio de honora- tiores republicano. Por outro lado, porém, este domínio não era muito propício a uma instrução propriamente jurídica dos funcionários públicos nobres, eleitos para curto prazo. O conhecimento das Doze Tábuas era desde sempre objeto do ensino escolar. Mas o conhecimento das leis era adquirido pelos funcionários romanos da época republicana sobretudo na prática. Seus consulentes cuidavam do resto. Ao contrário, a necessidade de estudos jurídicos sistemáticos era intensamente fomenta- da pela administração imperial com seus funcionários nomeados, sua racionalização e burocratização, sobretudo no serviço provincial. Entenderemos melhor esse efeito geral de toda burocratização da dominação mais tarde, num contexto mais amplo. Por faltar, por exemplo, na Inglaterra, atrasou-se nesta muito mais a racionalização sistemática do direito. Enquanto os consulentes, como honoratiores jurídicos, domi- navam a justiça romana, era também ali muito fraca a tendência à sistemática, e não ocorreu, sobretudo, a intervenção codificadora e sistematizadora do poder político. A queda da nobreza romana, sob os Severos, marca ao mesmo tempo a diminuição da importância do estamento dos respondentes e anda paralelamente à importância rapidamente crescente de rescritos imperiais para a prática judicial. A instrução jurídi- ca, oferecida na época tardia em escolas com concessão estatal, transformou-se dali em diante numa instrução literária, baseada nas obras dos juristas. A prática judicial trabalhava com estas como fontes autoritárias, e os imperadores estabeleceram nas chamadas "leis de citas", para os casos de dissensão, a decisão majoritária e a ordem hierárquica das obras jurídicas. As coleções de responsa ocupavam ali, portanto, o lugar das coleções de precedentes judiciais na common law. Esta situação condicio- nou a forma das Pandectas e a conservação, pelo menos, das partes nelas incorpo- radas da literatura jurídica clássica. 100 MAX WEBER § 5. Racionalização formal e racionalização material do direito. Direito teocrático e direito profano Significação e condições gerais do formalismo jurídico. - Racionalização material do direito: o direito sacro. - Direito indiano. - Direito chinês. - Direito islâmico. - Direito persa. - Direito judaico. - Direito canônico. Chegamos com nossas considerações ao problema importante, já tocado em algumas ocasiões, da influência das formas de dominação políticas sobre as qua- lidades formais do direito. Sua discussão conclusiva pressupõe, no entanto, a análise das formas de dominação, que faremos mais adiante. Mas algumas observações gerais. já podemos fazer aqui. A antiga justiça popu- lar, originalmente um procedimento expiatório entre os clãs, é por toda parte arrancada de sua primitiva irracionalidade formalista pela ação do poder princi- pesco e magistrático (proscrição, imperium) e, eventualmente, do poder sacerdo- tal organizado, sendo ao mesmo tempo fortemente influenciado por estes pode- res o conteúdo do direito. Essa influência difere de acordo com o caráter da dominação. Quanto mais o aparato de dominação dos príncipes e hierarcas era de caráter racional, administrado por "funcionários", tanto mais tendia sua influ- ência (no ius honorarium e nos meios processuais pretórios da Antiguidade, nas capitulares dos reis francos, nas criações processuais dos reis ingleses e do lorde Chanceler, no procedimento inquisitorial eclesiástico) a dar à justiça um caráter racional quanto ao conteúdo e à forma (ainda que racional em sentidos diver- sos), a eliminar meios processuais irracionais e a sistematizar o direito material, e isto significava sempre também: a racionalizá-lo de alguma forma. Entretanto, aqueles poderes tinham essas tendências racionais de forma unívoca somente onde os interesses de sua própria administração racional lhes indicavam este caminho (como o regime eclesiástico papal) ou então onde se encontravam numa aliança com poderosos grupos de interessados no direito, com forte empenho no caráter racional do direito e do processo, como as classes burguesas em Roma, no fim da Idade Média e na Época Moderna. Onde faltou essa aliança, a seculariza- ção do direito e o desenvolvimento de um pensamento jurídico rigorosamente formal ou pararam após os primeiros passos ou foram diretamente obstruídos. Isto se deve, em termos gerais, ao fato de que o "racionalismo", tanto dos hierar- cas quanto dos príncipes patrimoniais, é de caráter material. Não se aspira ao tipo mais preciso do ponto de vista formal-jurídico, ótimo para a calculabilidade das possibilidades e para a sistemática racional do direito e do procedimento, mas àquele que