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I A mente inconsciente e o funcionAmento do cérebro 1 A mente como um iceberg a hIStórIa dO INcONScIeNte A noção de que o comportamento humano e o pensamento consciente sofrem influência de qualidades internas da mente tem longa história, re- montando na tradição ocidental a Hipócrates e Galeno. Hipócrates propôs a hipótese, desenvolvida mais extensamente por Galeno, de que quatro tempe- ramentos básicos (melancólico, sanguíneo, fleumático e colérico), baseados em humores corporais, moldariam o comportamento em conjunção com o pensamento consciente. A mesma divisão entre influências inconscientes bio- logicamente baseadas e o pensamento consciente é descrita por Kant 2 mil anos mais tarde, em sua distinção entre o temperamento e o caráter moral, instância que permitiria o controle consciente do comportamento. A visão sobre o inconsciente durante esses dois milênios sofreu altera- ções em detalhes de acordo com as mudanças nas metáforas sobre a mente, mas esteve sempre presente no pensamento humano. Como aponta Robinson (1995) em sua revisão sobre a história das ideias em psicologia, indepen- dentemente do sistema teórico utilizado, observadores do comportamento humano sempre acharam necessário distinguir as influências internas que são ocultas e precisam ser inferidas (sejam chamadas de destino, temperamento ou alma) e aquelas que são transparentes, experimentadas diretamente pelo sujeito e abertas à introspecção. Embora as cren- ças sobre a importância relativa das influências conscientes e inconscientes tenham grande va- riação ao longo do tempo, a percepção essencial de que somos movidos por forças subterrâneas às quais não temos acesso consciente acompa- nha a humanidade em uma multiplicidade de versões. No final do século XIX e no início do século XX, enquanto Wundt e Titchener tentavam, sem sucesso, fundar uma psicologia científica baseada na introspecção, voltada ao acesso consciente da mente, Freud seguia um A percepção essencial de que somos movidos por forças subterrâneas às quais não temos acesso consciente acompanha a humanidade em uma multiplicidade de versões. 22 Marco Callegaro caminho inverso. Ele construiu uma teoria sobre o inconsciente, cujo mérito foi essencialmente reunir, organizar e desenvolver as ideias que estavam cir- culando na literatura em um sistema unificado. O escritor Dostoiévski, por exemplo, foi considerado por Freud como o grande psicólogo do século XIX, exercendo uma influência fundamental em sua obra e em suas ideias sobre o inconsciente. aS trêS revOluçõeS Freud comparou o impacto de suas observações sobre o inconsciente no pensamento humano a duas outras revoluções paradigmáticas: a derrubada do geocentrismo e do antropocentrismo pré -darwiniano. Segundo Freud, a hu- manidade sofreu o abalo de reconhecer que a Terra não é o centro do univer- so, e que o homem não é o centro da evolução. Hoje sabemos que habitamos um pequeno planeta gravitando ao redor de uma estrela periférica, inserida entre incontáveis galáxias do vasto universo. Graças a Charles Darwin, sabemos também que somos apenas mais uma espécie animal que habita o planeta, cuja anatomia, fisiologia, comportamen- to e processos mentais foram gradualmente desenhados pela seleção natural. Fazemos parte do ramo primata da árvore da vida e constatamos que nossa espécie não representa o ápice ou o objetivo último da evolução. A terceira revolução, o terceiro grande golpe no “narcisismo” humano seria, para Freud, a remoção da vida mental consciente do centro da atividade psíquica por meio das descobertas da psicanálise, as quais ressaltaram o papel das motivações inconscientes na determinação do comportamento humano. Podemos concordar com Freud sobre o papel revolucionário da compreensão do inconsciente, mas discordar de seu modelo. Este livro enfoca a terceira revolução que acontece com a ascensão de um novo modelo do inconsciente, e as implicações dos achados são mais extensas e impactantes do que Freud poderia imaginar. O gênio literário de Freud e o vigor de sua capacidade argumentativa fascinam até hoje gerações de estudantes interessados em entender o compor- tamento e suas torrentes subterrâneas inconscientes. A descrição perspicaz de casos clínicos, entremeada de teorização sobre os mecanismos psicodinâmicos inconscientes, popularizaram as obras de Freud como a principal referência sobre o assunto. Nenhuma teoria ou nenhum sistema em psicologia ofereceu, naquela época, visão alternativa comparável à psicanálise em sua tentativa de elucidar o inconsciente. No entanto, é inexato afirmar que Freud “descobriu o inconsciente”. Embora este seja um equívoco comum, é uma suposição que desconsidera a história do pensamento humano. A discussão sobre motivações inconscien- tes tem pelo menos 2 mil anos na literatura e na filosofia. Antes de Freud, O novo inconsciente 23 dezenas de pensadores já haviam se debruça- do sobre essa faceta enigmática do comporta- mento humano, levantando hipóteses ricas e in- teressantes. Henry Ellenberger (1981), em seu monumental livro A Descoberta do Inconsciente, levanta um panorama completo do clima in- telectual que cercou pensadores como Freud e Jung, mostrando, de forma elegante e sem qualquer desprestígio, que tais autores, na verdade, descobriram muito pouco em termos de insight individual – seu mérito foi a habilidade de organizar e sistematizar ideias sobre o inconsciente que estavam no ar há muito tempo. Podemos afirmar corretamente que Freud é o pai do conceito de incons ciente freudiano (ou dinâmico) – foi realmente ele quem enunciou hipóteses sobre a atividade psíquica consciente e inconsciente que hoje estão no cerne do que conhecemos como teoria metapsicanalítica. Mas tal formulação só foi possível com as influências dos muitos autores que antecederam o des- bravamento do inconsciente e influenciaram de forma decisiva a mente de Freud – ele se ergueu nos ombros de outros pensadores (Ellenberger, 1981). A originalidade da obra freudiana está em oferecer uma concepção própria dos processos inconscientes, pois o tema em si era discutido com frequência na literatura por filósofos, dramaturgos, poetas e romancistas. Como todos os pensadores, Freud estava mergulhado em um contexto histórico, cultural e intelectual, e esse contexto o ajudou a moldar suas ideias. A atmosfera cultural (ou Zeitgeist, expressão do alemão que literalmente significa “espírito do tempo”) envolvia uma era vitoriana na qual a metáfora para a mente era o apogeu da tecnologia daquela época: a máquina a vapor e seus mecanismos hidráulicos. Embora hoje essa tecnologia não nos impressione mais, o chamado “modelo hidráulico” exerceu forte influência na teoria de Freud, bem como nos sistemas teóricos dos contemporâneos Karl Marx e Konrad Lorenz – a metáfora era a dinâmica de fluidos através de vasos comunicantes (Robinson, 1995). Nesta perspectiva histórica, torna -se mais compreensível o modelo cria- do por Freud para o processamento inconsciente. Sua visão sobre o incons- ciente envolve as instâncias psíquicas que postulou do Id (conjunto de pulsões sexuais e agressivas que procuram cegamente sua expressão e satisfação), a maior parte do Superego (a consciência e o ideal do eu) e parte do Ego (pro- cessos que lidam com a realidade e os mecanismos de defesa que mediam conflitos entre a realidade, o Id e o Superego). A metáfora fundamental que permeia todo o modelo é a de um sistema hidráulico cujos fluidos (no caso, Antes de Freud, dezenas de pensadores já haviam se debruçado sobre essa faceta enigmática do comportamento humano, levantando hipóteses ricas e interessantes. A atmosfera cultural en‑ volvia uma era vitoriana na qual a metáfora para a mente era o apogeu da tecnologia daquela época:a máquina a vapor e seus mecanismos hidráulicos. 24 Marco Callegaro pulsões e energia psíquica) procuram descarga (prazer) e são canalizados ou bloqueados por defesas ou sublimações. Freud tinha talento literário e suas ideias foram difundidas de modo persuasivo, tornando -se amplamente disseminadas. Embora outras teorias na psicologia tenham procurado propor conceitos alternativos, nenhum deles chegou perto de substituir efetivamente a penetração do inconsciente dinâ- mico em nossa cultura – o jargão psicanalítico sobre motivações inconscientes é onipresente na literatura, no cinema, na poesia e nas ciências humanas e sociais. Em questões relacionadas ao inconsciente, a maioria das referências é direcionada ao inconsciente dinâmico, e a simples ideia de utilizar outro referencial para entender os fenômenos inconscientes causa surpresa. A cren- ça corrente mais amplamente disseminada é a de que a psicanálise é a única teoria possível sobre o inconsciente. Apesar da forte influência na cultura oci- dental do conjunto de hipóteses levantadas por Freud, o inconsciente dinâmico da psicanálise foi considerado insuficiente como teoria cientí- fica por não ser verificável, um requisito funda- mental para a ciência. A evidência sobre os prin- cipais componentes do inconsciente freudiano não pode ser observada, mensurada com preci- são ou manipulada experimentalmente, tornando as hipóteses infalsificáveis (Hassan, 2005). É importante notar que, embora a teoria do inconsciente dinâmico seja infalsificável como um todo, isso não impede os pesquisadores de adaptarem os conceitos para permitir uma verificação empírica, ou de bus- carem correspondência entre determinados aspectos da teoria e os dados de pesquisa contemporânea, como fez o psicólogo Martin Erdelyi (1985) em seu clássico Psychoanalysis: Freud’s cognitive psychology (Psicanálise: a psicologia cognitiva de Freud). Por essas razões, o inconsciente dinâmico convive com um paradoxo curioso, pois, apesar de ser extensamente popular, sofre rejeição pela maior parte da comunidade científica pela dificuldade de verificação empírica. Os cientistas precisam testar e submeter à crítica as teorias examinadas, por mais convincentes e elegantes que se apresentem. O conhecimento sobre o incons- ciente dinâmico assume características religiosas se acreditamos em seus pos- tulados sem poder verificar ou refutar suas predições, de alguma forma direta ou indireta. Em função dessa impossibilidade de uma avaliação crítica frente a um teste de realidade, o inconsciente dinâmico restringiu -se aos domínios das instituições psicanalíticas, isolando -se cada vez mais do corpo do conhecimento científico corrente, particularmente das neurociências (Kandel, 1999). Embora para a maioria das pessoas o inconsciente psicanalítico seja o único inconsciente possível, podemos aceitar a ideia de processos mentais inconscientes sem recorrer, necessariamente, à teoria psicanalítica. Uma vi- O inconsciente dinâmico da psicanálise foi consi‑ derado insuficiente como teoria científica por não ser verificável, um requi‑ sito fundamental para a ciência. O novo inconsciente 25 são geral dos resultados das últimas décadas de pesquisa nas ciências do cérebro e do comporta- mento revela um quadro fascinante sobre o fun- cionamento da mente humana: a maior parte do processamento realizado pelo cérebro huma- no é inconsciente, e só temos acesso consciente a um resumo editado e nada fidedigno dessas informações. Essa nova visão que emerge das neurociências cognitivas converge para uma conceituação moderna e cienti- ficamente testável sobre o inconsciente – um novo modelo de inconsciente, o qual foi sistematizado recentemente (Hassin, Uleman e Bargh, 2005) e cha- mado de novo inconsciente. Neste livro, será apresentado um panorama histórico da ascensão do novo modelo do inconsciente. O novo inconsciente oferece uma solução ele- gante para o dilema epistemológico de validar o conceito de inconsciente (re- conhecendo as preciosas contribuições da psicanálise, cujos estudos clínicos e naturalísticos foram pioneiros) e, ao mesmo tempo, de apresentar formas de estudá -lo cientificamente. A evolução dos métodos de investigação nas ciên- cias do cérebro e do comportamento começa a permitir que seja possível tes- tar experimentalmente, de forma direta ou indireta, algumas hipóteses sobre a mente inconsciente. Hoje em dia, é possível escanear o cérebro de sujeitos, medir suas variações nas ondas cerebrais, registrar sua resposta eletrogalvâ- nica de pele durante tarefas cuidadosamente desenhadas para investigar o processamento inconsciente ou expor estímulos durante centésimos de se- gundo, bem abaixo da percepção consciente, para estudar seus efeitos no comportamento. Podemos aprender muito sobre os processos inconscientes ao observar os efeitos de lesões em certos circuitos cerebrais específicos, como nas síndro- mes neuropsicológicas que examinaremos. Enquanto a psicologia evolutiva, a etologia e a teoria da evolução fornecem ricas hipóteses sobre as origens do autoengano e de mecanismos de defesa, a psicologia social e comparativa, a an- tropologia e a primatologia apontam as raízes dos comportamentos morais e do controle social do comportamento. O novo inconsciente sintetiza o avanço nas ciências do cérebro e do comportamento e a revolução silenciosa conduzida por milhares de labora tórios de neurociências cogni- tivas no estudo dos mecanismos neurais. É possí- vel dizer que é o inconsciente das neurociên cias, embora como modelo sistematizado ainda seja pouco conhecido, uma vez que o conceito é mui- to recente – somente em 2005 foi lançada a prin- cipal pu bli cação que cunhou a expressão “novo inconsciente” e reuniu a pesquisa realizada na área (Hassin, Uleman e Bargh, 2005). A maior parte do pro‑ cessamento realizado pelo cérebro humano é inconsciente, e só te‑ mos acesso consciente a um resumo editado e nada fidedigno dessas informações. O novo inconsciente sinte‑ tiza o avanço nas ciências do cérebro e do compor‑ tamento e a revolução silenciosa conduzida por milhares de laboratórios de neurociências cogniti‑ vas no estudo dos meca‑ nismos neurais. 26 Marco Callegaro O tOPO dO IceBerg Uma metáfora sedutora nos ensinamentos da psicanálise é a compara- ção da consciência com o topo de um iceberg. A maior parte do iceberg está oculta abaixo da superfície da água, embora somente o topo (cerca de um dé- cimo do volume total) seja visível. No entanto, são as correntes subterrâneas que movem o bloco de gelo, da mesma forma que nossas motivações incons- cientes impelem nosso comportamento. Essa visão cativante é endossada pela neurociência cognitiva atual – boa parte de tudo que se passa em nossa mente está oculto de nossa consciência. Como afirma o neurocientista cognitivo V. S. Ramachandran (2002, p. 198), “a mais valiosa contribuição de Freud foi a descoberta de que a mente consciente é simplesmente uma fachada e de que você é completamente inconsciente de 90% do que realmente se passa em seu cérebro”. A metáfora é precisa, mas o entendimento das razões que levam a este fenômeno por meio da ótica das neurociências difere da tradicional teoria psicanalítica, que oferece tanto descrições de fenômenos amplos do comporta- mento humano como explicações teóricas. Embora seja uma tarefa difícil dese- maranhar a descrição da complexa teoria psicanalítica, atualmente é possível levantar novas hipóteses explicativas, sob o enfoque do arcabouço teórico do novo inconsciente, para os interessantíssimos fenômenos do inconsciente que a psicanálise descreveu, assinalando as convergências e as divergências entre os dois modelos. Neste livro, abordaremos fenômenos como repressão, trans- ferência e contratransferência, mecanismosde defesa, capacidade de insight, entre outros que pertencem tradicionalmente ao domínio da psicanálise, mas sob o ângulo do novo inconsciente. Se concordarmos com a metáfora da mente como um iceberg, surge o problema de identificar o tamanho relativo da parte escondida abaixo da su- perfície (o processamento inconsciente) e do topo (a consciência). Estudos realizados por pesquisadores interessados em avaliar a capacidade de pro- cessamento humano (revisados por Norretranders, 1998) lançam luz a esta intrigante questão. A informação foi medida em bits, de forma a permitir comparações entre diferentes modalidades (visual, auditiva, tátil, etc.), e a quantidade de informação dos sentidos somados foi considerada a capacidade total de processamento. Nosso sofisticado sistema visual sozinho responde pelo processamento de 10 milhões de bits por segundo, enquanto todos os outros sentidos somam mais 1 milhão de bits a cada segundo. Ou seja, nosso inconsciente processa um total de 11 milhões de bits a cada segundo. A capacidade de processamento da consciência é fraca em termos de comparação e depende da tarefa desempenhada (Norretranders, 1998), como ler silenciosamente (máximo de 45 bits por segundo, o que corresponde a al- O novo inconsciente 27 gumas palavras), ler em voz alta (cerca de 30 bits por segundo), multiplicar dois números (apenas 12 bits por segundo). Se adotarmos uma média de 50 bits a cada segundo (um valor considerado otimista) como a capacidade de processamento consciente, chegamos à conclusão surpreendente de que o processamento inconsciente é cerca de 200 mil vezes maior do que o cons- ciente (Dijksterhuis, Aarts e Smith, 2005). Ou seja, o topo visível do iceberg ocupa apenas uma parte entre 200 mil do volume total abaixo da superfície. Processamento consciente Processamento inconsciente FIgura 1.1 Metáfora do Iceberg utilizada por Freud para descrever o funcionamento men‑ tal, onde o processamento consciente é comparado à superfície visível e o processamento inconsciente equivale à maior parte oculta sob a superfície.
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