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DR. NIETZSCHE, CURRICULISTA – COM UMA PEQUENA AJUDA DO 
PROFESSOR DELEUZE1 
Tomaz Tadeu da Silva (UFRGS) 
 
 A verdade como ficção, invenção e criação. Uma visão perspectivista e interpretati-
va do conhecimento. O conceito como produção e intervenção e não como descoberta 
ou reflexo. A insistência no caráter produtivo da linguagem. O privilegiamento da dife-
rença e da multiplicidade em detrimento da identidade e da mesmidade. Rejeição da 
transcendentalidade e da originariedade do sujeito. O caráter heterogêneo, derivado, das 
formações de subjetividade. A não-identidade do “sujeito” consigo mesmo. A opção por 
uma genealogia em prejuízo de uma ontologia. A pesquisa não das essências e das subs-
tâncias mas das forças e das intensidades. Insistência no “poder” de inventar, fixar, tor-
nar permanente e não na capacidade cognitiva de descobrir, revelar, desvelar. Contra o 
duvidoso gosto pela essência, uma declarada predileção pela aparência. Não a presença 
(do ser?), mas seu deferimento, sua diferença, seu retardamento, seu espaçamento. Hor-
ror ao pensamento da negação e da contradição. O devir em vez do ser. Não os valores 
mas sua valoração. Não a moral mas sua proveniência. 
 Eis aí um mapa, reduzido e incompleto, de alguns dos temas centrais daquela parte 
da teorização contemporânea denominada “pós-estruturalista” ou “pensamento da dife-
rença”. Esses temas estão hoje presentes nos mais diversos campos, da Teoria Literária 
à Filosofia, da Antropologia à Teoria do Cinema, da Sociologia à Teoria da Mídia. Eles 
representam mesmo uma importante e influente reviravolta em todo o campo da Teoria, 
uma reviravolta que se pode remontar ao início dos anos sessenta, mas cujos efeitos se 
tornaram mais notáveis nos últimos vinte anos. 
 Essa reviravolta se deve, sobretudo, a um grupo de pensadores franceses que, de 
forma variada mas seguindo um núcleo de temas que podem ser considerados comuns, 
questionam certos pressupostos da metafísica, da fenomenologia, da dialética, do mar-
xismo, do estruturalismo. Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida são fre-
qüentemente citados como os principais responsáveis pelo desenvolvimento e elabora-
ção desses temas que se pode sintetizar como constituindo a “temática da diferença”. 
 De uma forma ou de outra, os diferentes pensadores da diferença herdam alguns de 
suas mais importantes questões da filosofia de Friedrich Nietzsche. Grande parte dos 
 
1 E de alguns outros amigos (Jean Granier, Alfhonso Lingis, Michel Haar). 
 2
temas acima sintetizados está já presente na obra de Nietzsche: o perspectivismo, a 
visão interpretativa da verdade, a crítica do sujeito, o questionamento do pensamento 
identitário, a força e o poder como elementos formadores e constitutivos. 
 A teorização curricular contemporânea é um dos campos que tem sido decisivamen-
te afetado pelo pós-estruturalismo ou pelo pensamento da diferença. Pode-se verificar, 
em particular, uma forte influência das pesquisas de Michel Foucault, em suas diferen-
tes fases, enquanto, por outro lado, apenas se começa a descobrir a produtividade das 
elaborações teóricas de Deleuze ou Derrida. 
 É nesse contexto que talvez seja interessante perguntar-se o que a teoria do currículo 
pode aprender com o mestre que pode ser considerado o precursor das temáticas depois 
desenvolvidas pelos pensadores contemporâneos da diferença. Nietzsche nos deixou 
algumas importantes lições sobre a verdade e o conhecimento, sobre o sujeito e a subje-
tividade, sobre a força e o poder, sobre a moral e os valores. Se é verdade, como agora 
sabemos, que a teoria curricular está estreitamente envolvida com essas questões, não 
poderia ela tomar algumas úteis e proveitosas lições com o velho e bom professor Ni-
etzsche? Dr. Nietzsche, curriculista. Escutemos. 
Esperando o Professor Nietzsche: dever de casa 
 Mas antes um pequeno dever de casa. Esquematicamente, uma teoria do currículo 
deveria discutir, no mínimo, quatro questões centrais: a questão do conhecimento e da 
verdade; a questão do sujeito e da subjetividade; a questão do poder; a questão dos valo-
res. Ao denominá-las “questões” e ao enfatizar sua “discussão”, estamos já, de uma 
perspectiva pós-estruturalista, colocando alguns desses termos entre parênteses (“sujei-
to”, “verdade”, “valores”), definindo-os como objetos de uma problematização e não 
como pontos finais de uma busca pela essência. 
 O componente mais óbvio de uma teoria do currículo tem a ver com a questão do 
conhecimento e da verdade. Afinal, supõe-se que a questão central da teorização curri-
cular é “o que deve ser ensinado?”, o que, por sua vez, remete à questão mais ampla “o 
que constitui conhecimento válido ou verdadeiro?”. Tradicionalmente, essa última per-
gunta tem sido respondida remetendo-se a teorias do conhecimento ou a epistemologias 
no sentido estrito, isto é, a teorias que adotam, de uma forma ou outra, uma concepção 
do conhecimento como representação (“verdadeira”), como correspondência ou adequa-
ção a alguma suposta e pre-existente realidade, a alguma presumida coisa-em-si. O que 
a teorização pós-estruturalista em geral e, particularmente, a teorização pós-
 3
estruturalista sobre o currículo vai fazer é justamente problematizar essa concepção 
“realista” do conhecimento e da “verdade”, destacando, em oposição, seu caráter artifi-
cial e produzido. De qualquer forma, uma teoria do currículo não pode fugir da questão 
da verdade e do conhecimento. 
 Menos óbvia é a idéia de que uma teoria do currículo tem a ver com concepções de 
sujeito e subjetivação. Ao se concentrar na questão do conhecimento ou da transmissão 
cognitiva, tende-se a esquecer que todo currículo “quer”2 modificar alguma coisa em 
alguém, o que supõe, por sua vez, alguma concepção do que é esse “alguém” que deve 
ser modificado. Ao conceber um currículo, queremos que “alguém” passe a respeitar as 
leis do trânsito, modifique sua atitude em relação à prevenção da Aids, torne-se uma 
cidadã exemplar, transforme-se em uma trabalhadora produtiva. Da mesma forma, há 
uma série de pressupostos sobre a “matéria” sobre qual essas transformações se darão: 
processos mais ou menos conscientes; “matéria” mais ou menos plástica; participação 
mais ou menos ativa; efeitos de menor ou maior duração. Ou seja, todo currículo carre-
ga, implicitamente, alguma noção de subjetivação e de sujeito: “quem nós queremos que 
eles e elas se tornem?”; “o que eles e elas são?”. 
 O terceiro componente de uma teoria do currículo estará provavelmente ausente da 
maioria das abordagens tradicionais, sendo, em troca, essencial às abordagens críticas e, 
de maneira diferente, às perspectivas pós-estruturalistas: o poder. Mas toda teoria do 
currículo, no sentido contemporâneo, precisa ter alguma concepção sobre o que faz a 
coisa se mexer. O que motiva o processo todo? Por que esse conhecimento e não outro, 
por que essa concepção de verdade e não outra? Por que queremos que alguém se trans-
forme em uma coisa e não em outra? E por que pensamos nesse “alguém” como tendo 
um tipo de natureza e não outra? Trata-se de perguntas sobre o movimento; sobre o de-
vir, se quiserem. E a resposta, da perspectiva pós-estruturalista, à pergunta sobre o que 
faz tudo isso se mover é: o poder, as relações de poder. 
 Finalmente, por trás das questões sobre conhecimento e verdade, sujeito e subjetivi-
dade, há a questão mais ampla dos valores e dos critérios. Por que consideramos certos 
tipos de conhecimento e certos tipos de sujeito e subjetividade preferíveis a outros? Por 
que julgamos certos ideais de conhecimento e sujeito como desejáveis e outros como 
indesejáveis? Uma teoria do currículonão pode evitar a questão da valoração. Aqui, de 
novo, haverá uma grande distância entre as “soluções” tradicionais e as pós-
 
2 A idéia do que “quer um currículo” é da curriculista Sandra Corazza (no prelo). 
 4
estruturalistas. Enquanto para as abordagens tradicionais, a questão dos valores e dos 
critérios se apóia em alguma espécie de fundamento primeiro ou transcendental, para a 
perspectiva pós-estruturalista, a questão é saber de quem são os valores, para quem e 
para que servem. No primeiro caso busca-se um fundamento último para os valores; no 
segundo faz-se, nietzschianamente, uma pergunta genealógica sobre as forças por trás 
do processo valorativo. 
 Estamos agora, preparados, para as lições do Professor Nietzsche. Escutemos, pois, 
o que ele tem a nos ensinar sobre essas quatro inescapáveis questões de qualquer teoria 
do currículo. 
Primeira lição: verdade e conhecimento 
 Não existe, de um lado, um reino das aparências, das coisas sensíveis e, de outro, 
um reino das essências, das coisas inteligíveis, que seria a verdadeira realidade. A única 
“realidade” é a das aparências. Não há nenhuma verdade a ser descoberta ou revelada 
porque a única verdade é aquela que nós criamos. A verdade é uma coisa deste mundo. 
 A verdade não é uma questão de adequação – ou de correspondência – à “coisa-em-
si”, quer esta “coisa-em-si” seja definida como essência (metafísica), quer como exis-
tência empírica (positivismo). A verdade é, sempre e já, interpretação. E interpretar não 
quer dizer, neste caso, comparar um determinado texto com um critério externo, com 
uma medida extra-textual, mas simplesmente criar, inventar, fabricar. A interpretação é 
uma atividade produtiva. A interpretação é uma invenção. Quem interpreta não desco-
bre a “verdade”; quem interpreta a produz. Não se trata de uma atividade hermenêutica 
– descobrir um significado oculto, pre-existente; mas de uma atividade poética – criar 
um significado novo, inédito. 
 As diferentes interpretações são resultados de diferentes pontos de vista, de diferen-
tes posições, de diferentes perspectivas. Mas essas perspectivas não convergem para um 
ponto único, para uma perspectiva totalizante que as absorveria e as conciliaria como a 
perspectiva última e verdadeira, como a verdade. Não existe nenhum ponto único, ne-
nhuma perspectiva global e integradora. Só existem perspectivas – múltiplas, divergen-
tes, refratárias à totalização e a integração. As perspectivas são avessas à síntese, à as-
similação e à incorporação. Não há nada mais por detrás das perspectivas, para além 
delas. A verdade é isso: perspectivismo. 
 Ficções. Toda a verdade e todo conhecimento não passam de ficções. Duas adver-
tências, entretanto. Nesse caso, “ficção”, contrariamente à idéia tradicional que fazemos 
 5
de ficção, não remete a nenhuma oposição ficção/não-ficção, simplesmente porque 
ficção é tudo o que existe. Fazer ficções não é algo que fazemos nas horas de folga em 
que não estamos descobrindo a verdade. É a nossa única atividade. E depois não se trata 
de uma atividade desprezível, nem as ficções são um produto inútil. As ficções são a 
nossa vida. É a vida que nos impele a fabricar ficções. Elas são a nossa verdade. A nos-
sa única verdade. 
 A vontade de saber é vontade de permanência e fixação. Pára aí! O saber paralisa 
aquilo que, sem ele, seria insuportável: movimento, fluxo, corrente. Pelo saber, a maté-
ria em ebulição entra em estado de congelamento. O problema é que o saber tende a 
esquecer o estado de onde veio. O que era devir vira ser. O que era “será?” vira “é”. O 
que era transição torna-se final. O saber essencializa o que era (é!) puro vir-a-ser. 
 Conhecer é reduzir o diferente ao igual. É reunir os indivíduos em espécies, as espé-
cies em gêneros. Conhecer é buscar a semelhança na diferença para classificar. É caçar 
analogias para agrupar, circunscrever. O conhecimento abomina a diferença e ama a 
identidade. O conhecimento é um trabalho de depuração para eliminar todas as diferen-
ças espúrias e chegar ao cerne das “coisas”. Na variedade da diferença, o conhecimento 
só vê uma coisa: o mesmo. Extraídas e abstraídas toda as diferenças, o conhecimento 
converge inexoravelmente para o Uno e o conceito. O conceito: o triunfo do mesmo e 
do idêntico. Para o conhecimento, o diferente é, no fim das contas, igual. 
 De um outro ângulo, entretanto, conhecer não é descobrir, revelar, adequar. Conhe-
cer é atribuir sentido, dar peso, valorar. O conhecimento não existe num campo neutro, 
num campo livre de forças. Por isso, o conhecimento não está simplesmente ali (empi-
rismo, positivismo) ou lá (metafísica, transcendentalismo): o conhecimento é posto, 
imposto – ali ou lá. Dar sentido, valorar – conhecer – são atividades que exigem, impli-
cam a aplicação de forças. Puxa pra lá, puxa pra cá: sentidos. Dizer “é isso” não supõe a 
existência de um “isso”, mas a existência da capacidade, do poder, de dizer “é isso”. 
 As oposições, tal como todas as categorizações, não passam de convenientes simpli-
ficações. As oposições eliminam a gradação, a continuidade, a indistinção do mundo. 
Tal como as espécies, os gêneros, as classes, e o conceito, as oposições também relegam 
a diferença ao status do mero acessório, do simples acidente. Entre os pólos de uma 
oposição jazem os restos das diferenças relegadas ao estado de não-ser. A oposição ra-
dicaliza, extrema a diferença para melhor eliminá-la: um dos pólos é a sede da verdade, 
 6
da essência, da presença, do original; o outro, da falsidade, do acidente, da ausência, 
da cópia e do simulacro. 
Segunda lição: sujeito, subjetividade 
 Uma insistência metafísica: a crença na existência de um “eu” unificado e coerente, 
fixo e permanente, de um “eu” que é a origem e a causa da ação. O eu substancial, o ego 
transcendental, o cogito cartesiano colocam o sujeito no centro da ação. Se algo é feito 
presume-se que foi feito por alguém: o “eu”. Predicado, ação; logo sujeito, ator, autor. 
Fez. Quem fez? O “eu”, o sujeito. Apenas o hábito e a gramática, entretanto, é que nos 
fazem sediar e concentrar no eu e no sujeito uma constelação de forças que desbordam, 
em muito, aquele núcleo unificado que chamamos de “eu” ou sujeito. Trata-se menos de 
ligar um efeito (ação) a uma causa (sujeito) do que de registrar um acontecimento: 
“chove”. Antes a impessoalidade do “chover” que a atribuição de autoria do “eu fiz”. 
 O “eu penso, logo existo” cartesiano – ato inaugural da instauração do sujeito – é a 
expressão máxima dessa tirania da gramática. A fórmula provaria, supostamente, a exis-
tência do “eu”. Mas o “eu penso” não faz mais do que verificar a existência do ato de 
pensar. O “eu penso” não prova a existência do eu: apenas confirma que a gramática 
atribui a ação de pensar a um suposto “eu”. A existência do eu não é um “fato” provado, 
mas tão-somente uma suposição da gramática. De novo, é apenas um hábito gramatical 
que nos obriga a atribuir uma ação (neste caso, o pensar) a um suposto agente. 
 O sujeito não é uma substância, um elemento transcendental, um ponto original. Tal 
como as outras categorias da metafísica, o sujeito não passa de uma ficção que se carac-
teriza não por sua falsidade, mas por sua utilidade. A crença no sujeito permite estancar 
a instabilidade e a incerteza do incessante movimento, a insegurança e o terror do per-
manente devir. Ali, no turbilhão e na vertigem da corrente vital, um ponto de apoio que 
permite a ilusão da permanência e da unidade: o sujeito. Não saia de casa sem ele. 
 Primeiro artigo de fé da crença no sujeito: a identidade do eu consigo mesmo. De 
novo, o cogito cartesiano: o eu coincide com o pensamentosobre si. O eu é aquilo que 
ele pensa que é: eu=eu. Uma volta sobre si mesmo, uma volta em torno de si mesmo, 
uma viagem sem sair do lugar. A trajetória que pretendia mostrar a existência do sujeito 
volta ao lugar de onde partiu. Não saiu do lugar. É o eu validando a si mesmo, “provan-
do” sua existência pela tautológica afirmação de si mesmo. Nenhum espaço aqui para o 
desencontro, a divergência, a distância entre o eu pensado e o eu que pensa. A diferença 
 7
é devorada pela identidade. O espaçamento é coberto pela sobreposição. Fecha-se a 
brecha entre o “eu” e o eu que se pensa como eu. Sujeito: pura identidade. 
 Identidade, por sua vez, supõe, exige permanência. A permanência é a identidade no 
tempo, a identidade ao longo do tempo: o que é agora é igual ao que foi e igual ao que 
será. A crença no eu supõe a crença na sua estabilidade. Por outro lado, o caráter de 
permanência do sujeito é correlativo à sua definição como substância. Uma substância 
não muda, não flutua, não difere. Ela permanece igual, idêntica, ao longo de todas as 
suas manifestações. A crença num sujeito substancial implica a crença num núcleo es-
sencial que permanece idêntico ao longo de seus desdobramentos em diferentes disfar-
ces. A substância é o outro da diferença. O sujeito substancial é o outro do devir-sujeito: 
a afirmação de sua impossibilidade. 
 O retrato metafísico do sujeito não estaria completo, entretanto, sem o pressuposto 
de sua unidade. A unidade do sujeito é o correlato de sua permanência, de sua causali-
dade, de sua identidade, de sua substancialidade. Sem unidade seria impossível estabe-
lecer a permanência: na multiplicidade, que parte do sujeito permaneceria igual ao lon-
go do tempo?. Sem unidade não haveria causalidade: se houver muitos, como estabele-
cer a autoria? Sem unidade se desfaria a identidade: quem, num múltiplo, coincidiria 
consigo mesmo? Finalmente, unidade e substância implicam-se mutuamente: como sus-
tentar o caráter de substância em uma multiplicidade disparatada de eus? Em vez da 
unidade, pois, a multiplicidade do eu e do sujeito. 
Terceira lição: genealogia, valoração, valores 
 Valores: critérios para decidir o que, na conduta humana, é bom e o que é mau, o 
que é desejável e o que é indesejável. Reunidos, esses critérios formam a “moral”. A 
moral é universal: seus critérios valem para todos. É transcendental: os valores são de-
duzidos de algum princípio fundamental, inquestionável; são remetidos a algum ente 
supremo. A moral é eterna: não tem começo nem fim. O moralismo busca a origem 
primeira e o fim último dos valores. 
 A moral, entretanto, é muito mais ordinária que isso. Ela tem uma origem. Não uma 
origem primeira, fundacional. Não a origem dos grandes gestos, das solenes inaugura-
ções. Não a origem da outorga de tábuas da lei. Mas a origem mais terrestre, mais pro-
fana, mais cotidiana, do erro e da tentativa, da fraude e do engano, da sedução e da con-
quista, da persuasão e da dominação. A moral é mais da ordem da contingência que da 
ordem da transcendentalidade. 
 8
 O moralismo retira os valores da história e da contingência para alojá-los no in-
questionável e intocável reino do apriorístico e do axiomático. O valor expressa uma 
preferência, uma opção, uma possibilidade. Para o moralismo, entretanto, o valor é um 
campo antecipadamente fechado, interditado. Sua historicidade transforma-se em imobi-
lidade. Sua possibilidade em necessidade. Sua acidentalidade em essencialidade. 
 O moralismo, em suma, pergunta pela fonte última dos valores. Uma genealogia da 
moral, em contraste, pergunta pela valoração dos valores. Um valor não é um absoluto, 
um ente transcendental. Um valor tem sempre um sinal: o de mais (o de menos está re-
servado para seu oposto, o desvalor). Um tal sinal aponta para uma força, uma imposi-
ção, uma luta. A genealogia insiste em perguntar pelo sinal, o que significa perguntar 
pela valoração do valor. 
 A genealogia coloca o moralismo contra a parede: quem atribuiu este valor ao va-
lor? O valor é posto, imposto, instituído. A questão é: para quem o valor é um valor? O 
valor, tal como o conhecimento, não pertence ao campo da transcendência, mas ao cam-
po da invenção. A genealogia vai atrás das condições dessa invenção. Em que circuns-
tâncias criou-se determinado valor? Que forças estiveram em luta na sua criação e im-
posição? Por que esse valor e não outro? A genealogia não dá tréguas à tendência que o 
moralismo tem para a naturalização. 
 Puxar o tapete do moralismo não significa, entretanto, simplesmente renunciar a 
qualquer valor. Expor as condições de criação dos valores vigentes, sua arbitrariedade, 
sua historicidade, não significa sumariamente invalidá-los. Significa, em vez disso, tão-
somente situá-los, colocá-los em sua devida e respeitável posição de criaturas, de inven-
ções, de artefatos. Um valor deve saber o seu lugar. 
 A genealogia abre um espaço para a criação e a recriação dos valores; da “moral”, 
se quisermos. Afirmar o caráter histórico, acidental, contingente dos valores significa 
abrir a possibilidade de sua recriação. Novas circunstâncias, novas correlações de for-
ças: novos valores. Transmutação, transvaloração de todos os valores. 
 O genealogista é um imoralista. O moralista diz: “deves”. O imoralista pergunta: 
“quem diz que deve?”. O moralista pretende atribuir a opção por determinados valores a 
um universal “nós”. O imoralista pergunta: “nós quem?”. Ao menor questionamento da 
“moral”, o moralista evoca o perigo, o risco, a ameaça – à humanidade, à civilização, à 
cultura, à família. O moralista é o arauto do pânico – moral, é claro. Para o imoralista, 
em troca, a única coisa em risco são os valores do próprio moralista e o único pânico é o 
 9
do questionamento de sua própria existência. O moralista é um apocalíptico: não é para 
menos, pois seus valores – transcendentais, acima da história – estão sempre ameaça-
dos justamente pela história. O imoralista, pelo contrário, é um otimista: a criação de 
novos valores é um campo sempre aberto. O moralista paralisa(-se). O imoralista dança. 
Quarta lição: forças, vontade de poder 
 Já sabemos agora de cor o esquema metafísico. As coisas simplesmente existem, 
estão já e sempre aí. Sua presença no mundo é a evidência de sua nua e absoluta exis-
tência. Mas elas se apresentam de forma bruta, desordenada, caótica. É preciso explicar 
essa variedade, essa heterogeneidade, essa avassaladora diferença que as separa, recor-
rendo a algum princípio, a algum fundamento, a alguma essência que as unifique, que 
adense sua dispersão, que reduza sua distância. A tarefa do conhecimento consiste pre-
cisamente nisso: primeiro, passivamente registrar a presença das coisas; depois, sair em 
busca daquilo que está por detrás dessa presença, em busca da identidade que, ao se 
desdobrar, manifesta-se justamente como diferença. 
 E se pensássemos as coisas não como manifestações de essências anteriores, como 
originárias de princípios transcendentais, mas como o resultado de atos de invenção, de 
processos de criação? Se as víssemos não como simples presenças, mas como presenças 
forçadas, como presenças induzidas? O conhecimento não consistiria, então, na busca 
de uma adequação ou correspondência entre duas ordens de existência (aparência e es-
sência, sensível e inteligível, realidade e representação, conceito/pensamento e coisa-
em-si), mas na pesquisa daquilo que anima o ato de produção das coisas, no impulso 
que leva à sua criação, no fiat que as faz vir à luz. Em última análise, isso significa pen-
sar o conhecimento como criação, como invenção. 
 A criação não é, entretanto, um ato in-diferente, in-diferenciado, amorfo. As inven-
ções nãosão todas iguais. Uma invenção não é igual a outra qualquer. Elas não resultam 
de atos isolados de criação. Elas existem, elas passam a existir, como o resultado de um 
ato de força, de imposição de sentido. As forças, por sua vez, tampouco existem ou a-
gem isoladamente. Elas estão em ação em um campo de forças, o que significa dizer 
que uma força age sobre outra força, que aquilo que as movimenta é a diferença entre 
uma força e outra. É essa diferença que faz a diferença entre uma invenção e outra. As 
forças dão forma às criações, imprimem nelas sua marca, sua diferença. 
 Conceber o conhecimento em termos de interpretação e de correlação de forças sig-
nifica renunciar a qualquer busca pela “coisa-em-si”. Pensar na existência de uma coisa-
 10 
em-si equivale a pensar na existência de um mundo subtraído ao processo de atribui-
ção de sentido. A coisa-em-si só poderia ser, então, um sem-sentido ou um sentido fixo. 
Mas em qualquer ato de apresentação da coisa-em-si existe já um pôr-da-coisa-em-si, 
um posicionar-da-coisa-em-si, que aponta para a relação entre forças que colocou em 
movimento esse pôr e esse posicionar da coisa-em-si. A coisa-em-si está inseparavel-
mente amarrada ao sentido. 
 As forças que governam o conhecer e o interpretar podem, agora, ser melhor quali-
ficadas. Como forças em competição pela imposição de sentido a um mundo rebelde, 
refratário, elas obedecem a um impulso pelo domínio, pela supremacia, pela superiori-
dade. Sua dinâmica é movida pelo desejo – vital, impessoal, anônimo – de dominar. No 
centro do campo energético que movimenta o mundo está uma ânsia – vital, impessoal, 
anônima – de impor-se. Esse impulso, esse desejo, essa ânsia chama-se “vontade de 
poder”. 
 Podemos agora fechar o círculo. Conhecer é interpretar. Interpretar é dar sentido, 
impor uma ordem, uma forma, uma direção, é dar um sinal à massa informe e caótica 
das coisas do mundo. Interpretar não é revelar, descobrir, identificar, mas criar, inven-
tar, produzir. As interpretações, por sua vez, diferem porque elas procedem do encontro 
entre forças em conflito, em luta. Verificar a existência de diferentes interpretações e-
quivale a verificar a existência de diferentes estados das correlações entre forças. Se não 
houvesse diferenciais de força, a interpretação se fecharia sobre um único sentido e já 
não seria interpretação mas “natureza”. Finalmente, conhecer é vontade de saber e von-
tade de saber é vontade de poder. 
 Em vez, pois, de perguntar “o que é?”, perguntar “o que faz com que seja o que é?”. 
Buscar, antes, o impulso, o desejo, o motivo que faz com que as coisas tenham o sentido 
que têm do que sua essência, sua origem ou seu fundamento último. No lugar de uma 
ontologia, uma ciência das forças. Em vez de uma teoria do conhecimento, uma genea-
logia. 
O currículo segundo Nietzsche 
 Podemos, agora, voltar ao nosso mapeamento inicial sobre as questões centrais em 
torno das quais deve girar uma teoria do currículo ou, se quisermos, um currículo. O que 
significa conceber o currículo seguindo as linhas traçadas pelo Professor Nietzsche? 
Como seria uma teoria do currículo nietzschiana? Podemos imaginar, por um momento, 
como um divertido exercício, o atormentado, o alucinado, o inquieto filósofo de Sils-
 11 
Maria no papel de curriculista? Tenho o prazer de vos apresentar nosso colega, o Dr. 
Nietzsche. 
 Como sabemos, a teoria educacional – e a teoria curricular, em particular – é a mo-
rada da verdade, do sujeito e da moral. É o terreno privilegiado da metafísica. Aqui 
sempre houve solo fértil para toda espécie de essencialismos, para todos os apelos à boa 
vontade e aos bons sentimentos do sujeito humanista, para todas as linhagens de mora-
listas e salvadores da humanidade, para todos os projetos de aperfeiçoamento e melho-
ramento do humano e da humanidade. A promiscuidade entre metafísica e pedagogia é 
coisa bem antiga e persistente: veja-se, por exemplo, a intrigante continuidade entre a 
artificiosa pedagogia do diálogo socrático/platônico e as piedosas glorificações das vir-
tudes do diálogo nas pedagogias de inspiração freiriana ou habermasiana. Não podería-
mos, com uma mãozinha do Professor Nietzsche, dar uma leve sacudida nisso tudo? 
 Para começar, uma teoria curricular nietzschiana só poderia, é claro, ser uma teoria 
perspectivista. Na visão tradicional, seja ela metafísica ou positivista, o currículo é a 
experiência do encontro com um corpo de conhecimento fixo e imutável. Esse conhe-
cimento, por sua vez, é concebido por meio de alguma operação de correspondência, de 
adequação ou de reflexo. Correspondência ou adequação com uma imaginada essência 
(a versão metafísica) ou com uma suposta coisa-em-si (a versão positivista). O conhe-
cimento é, aqui, representação ou reflexo: re-apresentação, sob uma outra forma, de 
algo que o precede – lógica e juridicamente. Essa concepção representacionista do cur-
rículo e do conhecimento tem sua versão crítica: na visão marxista, por exemplo, inspi-
rada pelo conceito de ideologia, o currículo e conhecimento existentes só não corres-
pondem à verdade porque estão indevidamente distorcidos pelos interesses da classe 
dominante. 
 Ver o currículo como perspectivístico, em contraste, significa ver o conhecimento 
que está no seu centro não como a representação de algo que está para além dele, mas 
como uma versão ou uma interpretação particular dentre as muitas que poderiam igual-
mente ser forjadas ou fabricadas. Nessa visão, o currículo, tal como o conhecimento de 
que é constituído, é um tablete, uma lousa, uma superfície na qual inscreve-
mos/escrevemos tantas versões e interpretações quantas forem as que pudermos inven-
tar. Se o imaginarmos como uma lousa mágica, ao levantarmos a película que a recobre, 
encontraremos não a verdade que a aparência escondia, mas um novo espaço, totalmen-
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te em branco, no qual estaremos livres para escrever, a partir do zero, novas histórias. 
O currículo é, então, pura escrita, pura interpretação. 
 Ou o currículo será, talvez, em vez da imaculada concepção de uma verdade e de 
um conhecimento revelados, uma simples e ordinária operação de recorte e colagem. O 
recorte, tal como na costura ou como na pintura modernista, não permite nenhum totali-
zação, nenhuma reintegração, nenhuma regeneração. Ao colar, torna-se impossível res-
taurar a unidade perdida: o que se tem, depois disso, é uma justaposição de objetos 
díspares, de elementos divergentes, de partes heterogêneas. O resultado da atividade de 
recorte e colagem é – como as mulheres de Picasso – uma figura angulada, perspectiva-
da: nenhum ângulo privilegiado, nenhum ponto de vista focal. O currículo, tal como o 
conhecimento para Foucault (1985, p. 28), seria feito, então, não para compreender, mas 
para cortar. 
 O que ocorre com as perspectivas é que tendemos a reduzi-las ao singular. É então 
que uma perspectiva vira a perspectiva que, por sua vez, vira o conhecimento. É o que 
se passa com o currículo. Um currículo vira o currículo. O plural “os currículos” tem o 
mesmo destino. A eliminação da multiplicidade, a redução à identidade, é impulsionada 
pela necessidade de segurança, de estabilidade, de permanência, pela “vontade de sa-
ber”. Mas a excisão do “s” disseminativo do plural (Derrida) ou a transformação da 
marca de diferença e singularidade do artigo indefinido em um fechado artigo definido 
mal escondem a operação de unificação e totalização que resulta dessa vontade de saber. 
A diferença não tardará a proliferar. O “s” mutilado voltará com força renovada. 
 Na teoria convencional do currículo, o conhecimento é um objeto para um sujeito ao 
qual é atribuído o papel de centro, fonte e origem da ação.A gramática o confirma: “o 
sujeito conhece (o objeto)”. Se prestamos atenção às lições do Dr. Nietzsche, entretanto, 
devemos concluir que o sujeito não é menos artificial do que o objeto. A noção de sujei-
to, o pressuposto da existência de um núcleo fixo e estável de subjetividade, de um local 
transcendental onde se origina o pensamento e ação, é tão essencial às concepções tradi-
cionais de currículo quanto ao pensamento metafísico mais geral. Sem sujeito, rui toda a 
estrutura pedagógica na qual se sustenta a maioria das concepções de currículo. 
 Seguindo Nietzsche, podemos, em troca, pensar o sujeito como não sendo nada mais 
do que uma ficção conveniente, do que uma convenção gramatical, do que uma fórmula 
de abreviação para se referir a uma complexa e heterogênea combinação de elementos 
heterogêneos das mais diversas ordens e origens: conscientes e inconscientes, mentais e 
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corporais, naturais e históricos, materiais e culturais. A estabilidade, a permanência, a 
unidade, a coerência do eu não passam de uma ilusão, de um hábito. O eu nunca se en-
contra consigo mesmo. Sua identidade consigo mesmo não passa de um desejo, de uma 
“vontade de ser”. 
 Imaginar, pois, com um empurrãozinho de Nietzsche, uma teoria do currículo – e 
um currículo – sem sujeito e sem a segurança e o conforto de um eu fixo e estável. Isso 
não significa, entretanto, simplesmente descartar qualquer noção de subjetividade. Pelo 
contrário, não há como evitá-lo: o currículo é, por excelência, um local de subjetivação 
e individuação. Ao deslocar a ênfase do sujeito para a subjetivação, estaremos pensando 
no sujeito – se é que ainda podemos reter a palavra – não como a origem transcendental 
do pensamento e da ação, mas como uma montagem, como uma verdadeira invenção. 
Estaremos abrindo a possibilidade de deixar de pensar tanto o “sujeito” quanto o “currí-
culo” como elementos isolados, de pensar um como causa do outro, um como efeito do 
outro, para pensá-los como reunidos em uma esdrúxula, mas efetiva combinação: currí-
culo + eu + conhecimento + texto + ... + x. Fica difícil aí saber quem origina o quê. 
 Todo projeto curricular que se preze tem a sua tábua de valores. No fundo, na visão 
tradicional, o currículo é isso: organizar a experiência de forma a transmitir, além do 
conhecimento, um conjunto bem definido de valores. O currículo é, assim, além de um 
empreendimento epistemológico, um empreendimento moral. A questão torna-se, então, 
em saber quais são os valores que devem fazer parte do currículo e quais suas possíveis 
fontes. 
 Na visão tradicional, a seleção desses valores tende a seguir três movimentos cen-
trais: absolutização, naturalização, universalização. Em primeiro lugar, a extração dos 
valores procede de algum tipo de ente, local ou princípio absoluto, incondicional, único, 
incontestável: deus, pátria, um texto sagrado, uma revelação, a família. O absoluto não 
admite condições, exceções ou emendas. Em segundo lugar, os valores que formam o 
código que inspiram um currículo tendem a ser identificados com a natureza, a serem 
naturalizados. O apelo à natureza fecha antecipadamente a possibilidade de qualquer 
questionamento: é evidente que não há como modificar a natureza. Finalmente, os valo-
res são universais: valem para todas as pessoas, todos as épocas e todos os locais. Uni-
versalização e absolutização estão estreitamente ligados: não há como sustentar regras 
universalmente válidas sem o recurso a algum tipo de ente ou princípio absoluto. 
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 Há um outro caminho, entretanto, para se pensar a questão dos valores no currícu-
lo, que é justamente aquele indicado por Nietzsche. E não se trata de introduzir qualquer 
espécie de relativismo, simplesmente porque a idéia de “relativismo” só faz sentido no 
quadro do universalismo. Trata-se, antes, de perguntar, como Nietzsche, pela valoração 
dos valores, de interrogá-los genealogicamente. Qual a história desses valores, qual sua 
proveniência, quais forças transformaram-nos justamente em valores? Uma perspectiva 
genealógica questiona o caráter absoluto dos valores, perguntando sempre pelas condi-
ções, pelos tipos históricos que fizeram com que eles valessem como valores. Um valor 
não existe simplesmente, em algum domínio transcendental: ele é sempre resultado de 
uma valoração, de um ato de força, de uma imposição. Para uma genealogia da moral, 
pouco importam os valores em si: o que importa é investigar a origem dos atos que os 
instituíram como tais, as posições de onde eles são enunciados. Uma genealogia da mo-
ral tampouco está preocupada com a universalidade ou não dos valores: sua preocupa-
ção é com a determinação das posições particulares a partir das quais se decretou aque-
la universalidade. 
 Pensar nietzschianamente as relações entre currículo e valores significa, pois, fazer 
uma série de incômodas questões. Por que o currículo deve incorporar esses valores e 
não outros? Por que o currículo deve estar organizado para desenvolver este tipo de sub-
jetividade e não outro? Quais as condições de emergência de tantos dos valores “edifi-
cantes” que compõem o ideário das teorias pedagógicas e curriculares? Quais as forças, 
as relações de poder, que estabeleceram determinados critérios morais como sendo dig-
nos de figurar num currículo, enquanto outros foram excluídos? Uma visão genealógica 
do currículo desconfiaria profundamente dos movimentos apocalípticos que, de tempos 
em tempos, atribuem os males da época a algum tipo de falha do currículo no processo 
de transmissão dos valores morais apropriados. Antes de se juntar ao coro dos arautos 
das crises morais, uma teoria do currículo nietzschianamente inspirada perguntaria, an-
tes de tudo, pelos motivos dos moralistas do apocalipse. Uma teoria nietzschiana do 
currículo seria, enfim, fundamentalmente imoralista – não no sentido de ausência de 
qualquer valor, mas no sentido de desconfiança de toda moral baseada no absoluto, no 
universal e na natureza. Uma teoria nietzschiana do currículo apelaria para uma contí-
nua invenção, para uma permanente transvaloração de todos os valores do currículo. 
 A existência de um currículo só faz sentido em sua relação com um campo de for-
ças, com um campo de poder. Um currículo é sempre uma imposição de sentidos, de 
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valores, de saberes, de subjetividades particulares. É sempre uma escolha forçada, 
para nos valermos da força de um oxímoro. Um currículo é o resultado final de um con-
fronto de forças, de relações de poder. Um currículo não é apenas um local em que se 
desdobram relações de poder: um currículo encarna relações de poder. Todo currículo é 
pura relação de força. Outra vez, Nietzsche e suas lições: o importante não é perguntar o 
que é verdadeiramente um currículo, o que é um currículo em sua essência, mas, antes, 
perguntar que impulso, que desejo, que vontade de saber e que vontade de poder movem 
um currículo. Perguntar não pelo “ser” de um currículo, mas pelas condições de sua 
emergência, de sua invenção, de sua criação, de sua imposição. Dedicar-se, em suma, 
não a uma ontologia, mas a uma genealogia do currículo. 
 A teoria do currículo tem, até aqui, se resumido, em grande parte, a ser uma metafí-
sica. Seu discurso tem sido o dos significados transcendentais: essência, verdade, valo-
res, sujeito. A leitura de Nietzsche nos permite abrir uma brecha, introduzir uma dife-
rença, nesse campo fechado dos absolutos, dos universais e dos intemporais. Sua leitura 
nos mostra que há uma outra maneira de conceber uma teoria do currículo, uma maneira 
que nos transporte para além das habituais categorias da metafísica. E aí uma teoria do 
currículo será, então, uma outra coisa. Como dizer se chegamos lá? Nietzschedisse cer-
ta vez que “nossa primeira pergunta para julgar o valor de um livro é saber (...) se dan-
ça” (sd, p. 197). Poderíamos, talvez, pedir-lhe emprestado esse critério para julgar o 
valor de um currículo – ou de uma teoria do currículo. Dança? 
Referências bibliográficas 
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NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. 
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