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SOCIOLOGIA JURÍDICA Ijuí 2012 SOCIOLOGIA JURÍDICA Coleção Direito, Política e Cidadania, 25 Enio Waldir da Silva 2012, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 98700-000 – Ijuí – RS – Brasil – Fone: (0__55) 3332-0217 Fax: (0__55) 3332-0216 E-mail: editora@unijui.edu.br Http://www.editoraunijui.com.br www.twitter.com/editora_unijui Editor: Gilmar Antonio Bedin Editor-Adjunto: Joel Corso Capa: Elias Ricardo Schüssler Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) Catalogação na Publicação: Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí S586s Silva, Enio Waldir da. Sociologia jurídica / Enio Waldir da Silva. – Ijuí : Ed. Unijuí, 2012. – 304 p. – (Coleção direito, política e cidada- nia ; 35). ISBN 978-85-7429-987-7 1. Sociologia. 2. Ciências sociais. 3. Direito. 4. Cidadania. I. Título. II. Série. CDU : 301 301:34 Associação Brasileira das Editoras Universitárias Editora Unijuí afiliada: A Coleção Direito, Política e Cidadania é uma iniciativa editorial do De- partamento de Estudos Jurídicos da Unijuí e da Editora Unijuí, voltada à publicação de textos que privilegiam a pesquisa jurídica interdiscipli- nar e a reflexão crítica sobre o direito e suas relações com as diversas ciências humanas e sociais. O objetivo da Coleção é disponibilizar, aos leitores interessados, um conjunto de publicações que contribuam para qualificar o debate sobre os principais temas da área e que auxiliem no desenvolvimento da cidadania. Conselho editorial Dr. José Eduardo Faria (USP – SP) Dr. Darcísio Corrêa (Unijuí – RS) Dr. Gilmar A. Bedin (Unijuí – RS) Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo (UFSM – RS) Dra. Odete Maria de Oliveira (UFSC – SC) Dr. Sergio Augustin (UCS – RS) Dra. Claudia Rosane Roesler (Univali e Cesusc – SC) Dr. Leonel Severo Rocha (Unisinos – RS) Dr. Arno Dal Ri Júnior (Fondazione Cassamarca de Treviso – Itália) Dr. José L. Bolzan de Morais (Unisinos – RS) Dra. Silvana Winckler (Unochapecó – SC) Dr. Otávio C. Fischer (Universidade Tuiti do Paraná e Unicemp – PR) Dr. Celso L. Ludwig (UFPR-PR) Dra. Maria Claudia Crespo Brauner (UCS – RS) Dra. Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (UCS-RS) Dra. Sandra Regina Leal (Faplan – RS) Dra. Sandra Regina Martini Vial (Unisc – Unisinos) Comitê editorial Dr. Doglas Cesar Lucas Msc. Fabiana Padoin Msc. Patricia Borges Moura Msc. Sérgio Luiz Leal Rodrigues SUmáRIO APRESENTAÇÃO ..................................................................................9 INTRODUÇÃO: Sociologia e a Sociologia Jurídica ...........................15 CAPÍTULO 1 AFIRMAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ..29 Trabalho e Sociedade .......................................................................31 Pensamento Social ...........................................................................39 CAPÍTULO 2 A MODERNIDADE – A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS .................................................................51 Razão Positivista e Sistema Social ..................................................65 A Direito Funcionalista e Moral Social .........................................72 Direito, Racionalidade e Legitimidade .........................................89 CAPÍTULO 3 RAZÃO CRÍTICA, DIREITO E LIBERDADE ............................101 A Revolução Social e a Ordem Justa ............................................103 Direito como Concretização dos Entendimentos Coletivos .......115 Direito e o Pensamento Alternativo .............................................132 CAPÍTULO 4 ......................................................................................155 TEMAS DE SOCIOLOGIA JURÍDICA ATUAL ...........................155 O Direito como Sistema Autopoiético ..........................................160 Direitos Culturais ...........................................................................194 Direito e Movimentos Sociais .......................................................216 Direito, Conflitualidade e Violência .............................................237 Direito, Mídia e Tecnologia na Sociedade Global .......................271 REFERÊNCIAS ..................................................................................281 Saiba Mais .......................................................................................294 Textos de Boaventura de Sousa Santos: .......................................302 Títulos das Obras no Google. <www.google.br> .........................303 APRESENTAÇÃO A Sociologia Jurídica tem uma história nos cursos de Graduação em Direito e Sociologia da Unijuí. Por meio dela procuramos pensar o Direito para além da “teoria pura”, no sentido de que a norma jurídica não pode ser tratada de forma isolada ou separada dos contextos sociais que lhe dão origem e fundamento. São os homens, como seres sociais concretos, que produzem as estruturas jurídicas de regulação da vida social, considerando os interesses e os lugares que efetivamente ocupam na sociedade. A sociedade humana pode ser definida de várias formas; todas elas, no entanto, partem da totalidade como princípio geral. O Direito, assim como a economia, a política, a cultura, é parte que só adquire significado (ou concreticidade) quando devidamente inserido na totalidade. Não significa que a parte não seja também um “sujeito” que produz a vida social. Compreender a especificidade das estruturas jurídicas na produção da vida social é a tarefa da Sociologia Jurídica. A história da Sociologia é um campo de intensa luta social. A multiplicidade de leituras (possíveis) da sociedade produz sujeitos portadores de diferentes projetos de sociedade. Isto ocorre em todos os campos específicos da Sociologia. Isso, contudo ,isto é mais evidente nas chamadas teorias clássicas da Sociologia – Comte/Durkheim, Marx e Engels e Weber. Cada uma expressa uma leitura diferente da sociedade, 10 S u i m a r J o ã o B r e s s a n com repercussão no mundo da política. Pode-se afirmar que os grandes confrontos sociais nos séculos 19 e 20 tiveram a inspiração nas teorias sociológicas citadas. Esta breve introdução é necessária para contextualizar o livro do professor Enio Waldir da Silva. Trata-se de uma obra de cunho didático, que servirá de base para o componente curricular de Sociologia Jurídica dos cursos de Graduação da Unijuí. Uma obra didática sempre se cons- trói com uma linguagem mais acessível, considerando que os leitores (alunos) não são ainda especialistas nas temáticas desenvolvidas. Ela não pode, contudo, perder o rigor teórico, sob pena de não contribuir para o processo de produção de conhecimento. O livro Sociologia Jurídica está estruturado em quatro capítulos. O primeiro – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica – discute as questões gerais e introdutórias da temática do livro: a relação ente socie- dade e Direito. A recuperação de momentos importantes da História da humanidade a partir de categorias sociológicas básicas, como trabalho, classe social e Estado, torna possível a visualização da função social do Direito e, ao mesmo tempo, evidenciar sua historicidade. As estruturas jurídicas mudam com a mudança do seu substrato social, e esta é uma tese fundamental da Sociologia Jurídica. O segundo capítulo – A Modernidade – Judicialização das Relações Sociais – reconstrói os processos teóricos e sociais de constituição das relações jurídicas a partir das relações sociais. Tendo como pano de fundo o processo de constituição da Sociologia, avalia a própria relação entre Direito e sociedade que se constituicomo campo específico de investigação. Destacam-se Comte e Durkheim como fundadores de uma corrente importante do pensamento sociológico: o positivismo. Reafirma-se a grande e valiosa contribuição de Durkheim para o enten- dimento do Direito como fato social. O autor da Divisão do Trabalho Social demonstra que a fonte do Direito está na sociedade mediante a 11 Apresentação construção relacional dos conceitos de solidariedade mecânica e Direito Penal e solidariedade orgânica e Direito Restitutivo. Formas diferentes de sociabilidade produzem formas diferentes de Direito. Outro autor analisado neste capítulo é Max Weber. Suas reflexões instigantes a partir do conceito de racionalização do mundo ocidental são fundamentais para a formação da Sociologia Jurídica. Weber aborda a economia, a política, a cultura e o Direito como tipos de relações sociais que tendem a ser envolvidas pelo processo de racionalização. Esta é a grande transformação do mundo ocidental que Weber designou como “desencantamento do mundo”. O Direito moderno afirma-se como um tipo de ação social racional com relação afins. A dimensão substantiva tende a ser dominada pela dimensão lógico-formal. Durkheim e Weber contribuem de forma decisiva para que o Direito se torne uma das práticas fundamentais de legitimação da or- dem social moderna. Durkheim percebe o poder do direito de produzir solidariedade (ou integração social), identificado por ele como o processo constituinte do homem como ser social. Na modernidade o problema da integração social desloca-se da manutenção das semelhanças para o desenvolvimento das diferenças geradas pela divisão do trabalho. A situação de anomia que vive o mundo moderno será superada pelo desenvolvimento pleno do Direito Restitutivo. A leitura de Weber dos problemas da modernidade não é contraditória à de Durkheim, na medida em que entende o Direito como a ação humana que articula a dominação legal racional. O “império da lei” é a grande força coatora que integra os homens e consensualiza seus interesses. O terceiro capítulo – razão crítica, direito e liberdade – expõe a formação do pensamento social crítico, teoricamente elaborado por Karl Marx e Friedrich Engels. O materialismo histórico assentou as bases para pensar criticamente o capitalismo e o papel do direito na sua reprodução, ou seja, o direito como a forma jurídica da dominação de classe. Como o próprio Marx afirmou na XI Tese sobre Feuerbach que “os filósofos nada mais fizeram do que interpretar de diverso modo o mundo; mas trata-se, 12 S u i m a r J o ã o B r e s s a n antes, de transformá-lo”, a sua teoria é também um apelo à transformação radical da sociedade, sustentando que o capitalismo gerou os sujeitos da sua própria destruição: os trabalhadores assalariados. O capítulo também aborda outros autores de pensamento crítico, notadamente Jürgen Habermas e Boaventura de Sousa Santos. Para o primeiro, a emancipação humana está ligada ao desenvolvimento das ações comunicativas, ressaltando o papel do Direito na concretização do entendimento coletivo, produzido na esfera pública e pelos processos democráticos. Importante também é a contribuição do eminente soció- logo português Boaventura de Sousa Santos, negando a possibilidade de emancipação humana sob o capitalismo. A sua reflexão resgata a ideia do pluralismo jurídico, enfatizando os direitos humanos, a partir de uma perspectiva multicultural, como elemento fundamental para a conquista da autonomia dos homens. O quarto capítulo – Temas da Sociologia Jurídica Atual – propõe uma atualização do debate sobre a relação Direito e sociedade. Um aspecto relevante refere-se à capacidade explicativa das teorias sociológicas clássicas, considerando que a sociedade vive um momento de grandes transformações. Em certa medida as duas dimensões fundamentais do capitalismo atual - global e informacional – foram genericamente detecta- das pelas teorias clássicas. Muitos autores entendem que os fundamentos da sociedade não mudaram, apenas adquiriram novas configurações, determinando, assim, a atualidade dos clássicos. O esforço da teoria sociológica é compreender as novas dimensões da vida social, como as novas formas de exclusão social, de violência e criminalidade, a sociedade do risco, a comunicação. Por exemplo, o de- semprego sempre foi estrutural, porém a sua forma atual parece eviden- ciar que a busca do pleno emprego é uma ilusão. Mesmo com elevados índices de crescimento econômico, o desemprego mantém-se alto. É claro que se criaram novas condições de empregabilidade, determinadas 13 Apresentação pela dimensão informacional – tecnologias inteligentes – dos processos sociais, mas também de exclusão. Como isso impacta na ordem jurídica é uma pergunta recorrente na Sociologia Jurídica. Uma resposta significativa tem sido elaborada por inúmeros soció- logos: as transformações sociais causadoras da reestruturação produtiva, da globalização dos mercados, da crise do Estado-Nação e da crise da identidade nacional provocam uma crise profunda no paradigma forma- lista do Direito. O Direito Positivo (estatal) e as instituições judiciais da modernidade estão em desacordo com as novas relações sociais, por isso não conseguem mais ser um instrumento de regulação dos conflitos. As soluções não convencionais ampliam a crise do Direito Positivo e o impasse se aprofunda. É neste contexto que surgem autores que questionam a moderni- dade em seus fundamentos, como é o caso de Niklas Luhmann e Alain Touraine. Este sociólogo francês, com importante presença no estudo dos movimentos sociais na América Latina, abandonou o paradigma da modernidade, definido a partir da dimensão social. Em seu entendi- mento, estamos vivenciando o “fim do social e todos os fenômenos de decomposição social e de dessocialização”; um novo paradigma está em construção, centrado no sujeito e nos direitos culturais. Niklas Luhmann é mais radical: a partir da teoria dos sistemas au- topoiéticos – a sociedade seria um deles – critica o conceito de sociedade como uma estrutura sistêmica de órgãos e funções interdependentes tal como os funcionalistas a definiram. Nesse sentido, o Direito seria um sis- tema autopoiético, autorreferente e operacionalmente fechado, tal como a economia, a política, a ciência, a educação e a cultura. Cada sistema autopoiético opera com o seu próprio código, portanto não depende do outro para sua existência. As sociedades mais desenvolvidas já teriam alcançado uma diferenciação funcional, de tal modo que os sistemas, que antes as compunham de forma integrada e interdependente, agora são autônomos ou (autopoiéticos). 14 S u i m a r J o ã o B r e s s a n Outra dimensão fundamental para compreender o Direito é a sua relação com as mídias e as tecnologias inteligentes. Qual o papel dos meios de comunicação de massa na sociedade atual? E sobre as institui- ções judiciais? Seguramente não podemos considerá-los apenas como meios de divulgação de informações. Mais do que isso, tem-se constatado que se trata de uma nova instituição, em que as dimensões econômica, política e cultural se fundem, constituindo um novo sujeito. Este novo sujeito tem poder de articulação do conjunto do sistema econômico (ele mesmo é um ator econômico), de formulação da agenda política e de formação da opinião pública. Não há dúvida, portanto, que este poderoso sujeito interfere nas instituições judiciais. Percebe-se que o debate – que faz parte da história da Sociologia – se intensificou. Por isso, a Sociologia é um campo do conhecimento científico indispensável para a compreensão da vida social, sua estrutu- ração, seus movimentos e possibilidades de transformação. Por extensão,a compreensão da normatividade jurídica atual não se esgota com o de- senvolvimento e institucionalização da ciência do Direito; a Sociologia Jurídica é o contraponto crítico fundamental, pois – vale insistir – não há Direito sem sociedade ou onde há sociedade também há Direito. É para ajudar a desbravar nosso mundo humano, contraditório e cheio de armadilhas que este livro foi escrito: ele nos instiga a construir caminhos. Suimar João Bressan Professor de Sociologia e Ciência Política – DCJS – Unijuí INTRODUÇÃO: Sociologia e a Sociologia Jurídica Estudar a sociedade, sociabilidades e as relações sociais tornou-se uma determinação ética de quem está estudando na universidade e para quem está buscando a fortificação de sua cidadania, o rigor da cultura jurídica e posturas racionais mais coerentes. Torna-se ainda mais impres- cindível aos indivíduos que buscam ocupar lugares sociais nos quais se condensam interesses coletivos. Quem nos fornece as melhores abordagens metodológicas e te- óricas para este estudo é a Sociologia. Como uma das Ciências Sociais emergentes nos tempos modernos, a Sociologia criou sua autonomia ao fundamentar sua abordagem em metodologia clara, em construir con- ceitos específicos, em fazer demonstrações de suas descobertas e em criar teorias sociais. Estas descobertas, fundamentadas no rigor reflexivo, auxiliaram na criação de muitas instituições sociais e assessoram muitos procedimentos de indivíduos que procuram atender os interesses das populações, pois além de estudar e sistematizar estes interesses (organizá- los e expressá-los) a Sociologia também orientou ações de grupos que buscavam autonomia e direitos sociais. Dificilmente estudantes e pesqui- sadores da Sociologia deixaram de se tornar militantes de causas sociais, pois não se contentam em entender as causas dos problemas humanos e 16 E n i o W a l d i r d a S i l v a não contribuir para a solução deles. Dados de estudos epistemológicos mostram que quem procura estudar a Sociologia são indivíduos preocu- pados com a situação das vivências sociais (suas e as dos outros) e que estão procurando um mundo mais justo. Podemos afirmar, então, que a Sociologia se tornou a ciência das populações e das instituições e foi criada justamente com a perspectiva de resolver seus problemas. Além disso, a criação da Sociologia possibilitou a afirmação do caráter social da condição humana, constituiu-se em um conhecimento da sociedade que incide sobre ela, exercendo uma ação decisiva na produção e reprodução da sociedade, no sentido da conservação ou da transformação das relações sociais. É, também, um ato social porque seus conceitos não são apropriados apenas pelo sociólogo, mas por todos os sujeitos intérpretes dos problemas humanos. A institucionalização da Sociologia permitiu a pesquisa de temáticas diversas, estabelecendo vá- rias especialidades, compondo o que hoje denominamos como Ciências Sociais particulares ou campos teóricos: rural, urbana, trabalho, direito, religião, cultura, política, economia, a natureza, a história, a comunica- ção, a assistência social, etc. Mesmo que cada ciência tenha um campo particular, elas possuem uma identidade e um fundamento comuns: a existência social do homem. Como Ciências Sociais precisam enfrentar os mesmos problemas metodológicos que caracterizaram a história da Sociologia (Bressan, 2003). Trataremos mais tarde dos fenômenos que influenciaram na ori- gem da Sociologia, mas é importante destacar aqui que ela vai nascer como um reflexo dos problemas sociais resultantes do processo de con- solidação da modernidade, expresso em três transformações: 1 – A generalização do processo de produção de mercadorias (Revolução Industrial); 2 – A formação do Estado moderno (Revolução Francesa de 1789); 3 – Da nova cultura a partir dos valores da liberdade, da racionalidade e da ciência (Idealismo Alemão). 17 Introdução Nestes contextos os iniciantes da Sociologia poderiam ser assim destacados: Charles de Montesquieu (1689-1755), Auguste Comte (1796-1857), Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1858-1917) e MaxWeber (1864-1920), embora não possamos negligenciar estudos realizados por outros pensadores sociais da época, como Charles de Montesquieu (1689-1755), Friedrich Engels (1820-1895), Saint-Simon (1760-1825), Stuart Mill (1806-1873), Condorcet, Herbert Spencer (1820-1903) e Wilfredo Pareto, Harriet Maritineau (1802-1876), Ernest Mach (1834-1916), Wilhelm Dilthey (1833-1911), etc., que enunciaram os temas básicos da Sociologia, sua metodologia, e os detalharam de forma ampla na aplicação do entendimento das mudanças abrangentes que ocorreram nas sociedades humanas, nos modos de construir ma- terialmente as sociedades ocidentais, na forma de sua organização, na maneira de pensá-las e nas mudanças nas vidas das pessoas no decorrer dos últimos três séculos. Neste sentido, devido à complexidade dos interesses que movem os sujeitos ao estudo da Sociologia, faz-se necessário destacar os seus possíveis conceitos. Um dos conceitos mais aceitos de Sociologia é de que ela se constitui em uma ciência que estuda as relações sociais, entretanto não há um consenso quanto a seu conceito. Silva (2008a) recolheu as seguintes possíveis definições: – A Sociologia é uma ciência que estuda as relações sociais que são, ao mesmo tempo, produtos e produtoras da sociedade; – ... é um conjunto de conceitos, de métodos e de técnicas de investiga- ção produzidos para explicar os elementos potencializadores da vida social; – ... é um estudo sistemático da realidade social do homem... – ... é o estudo das mediações produtoras dos potenciais das práticas; – ... é uma construção teórica, resultado do esforço de compreender a sociedade em sua realidade objetiva e subjetiva; 18 E n i o W a l d i r d a S i l v a – ... é o estudo das formas de como o homem passa de um resultado da estrutura estruturada para uma estrutura estruturante, ou seja, o estudo das condições que produzem os lugares sociais ocupados pelo homem; – ... é o estudo de como o homem entende a sociedade, como ele a aceita, a legitima ou a transforma; – ... é o estudo que pode levar o homem a ser livre por entender o seu lugar no processo histórico; – ... é o estudo da própria vontade do homem em conhecer-se e a conhe- cer sua sociedade; – ... é o estudo das razões que impulsionam o mundo prático e dos re- sultados destas... Apesar destas definições, é mais fácil compreender a Sociologia pelos objetivos pelos quais a ela se recorre: procurar potenciais reflexi- vos capazes de alargar a compreensão dos processos humanos e adquirir uma base de conhecimentos que leve a entendimentos das forças que compelem o homem ao controle destas forças, dando-lhes significados e orientando-as para a construção da vida individual e coletiva, justa e solidária. Estas forças, como observa Norbert Elias (1970), são forças sociais exercidas pelas pessoas sobre outras pessoas e sobre elas mesmas (aquilo que liga uma pessoa a outra...). Geralmente, as explicações sobre estas forças têm por base as representações que se formam sobre elas. Isso faz com que o próprio pensador não se exclua daquilo que está pen- sando. Além de interpretar as forças que agem sobre as pessoas, nos seus grupos e sociedades empiricamente observáveis, também interpreta os discursos e pensamentos relativos a estas forças e assim vai produzindo seus próprios conceitos mais adequados ao entendimento das vivências humanas. É isto que queremos mostrar: a Sociologia é uma ciência dedicada a compreender as interações, as ligações ou as teias que conectam os indivíduos entre si, os indivíduos aos grupos, os grupos entre si e estes 19 Introduçãocom a sociedade como um todo. Esta rede produz potenciais orientadores de sociabilidades e identifica as sociedades. Assim, o todo está na parte e a parte está no todo, ou seja, os indivíduos são produtos e produtores da sociedade, os Outros estão contidos no Eu (o eu é multideterminado – pela família, natureza, cultura...), como indica o esquema a seguir. ©Anthropos Consulting 9 HUMANIDADE DA VIDA ETHOS CULTURADEMENS SAPIENS A figura anterior mostra algumas das mais importantes implicações deste conceito de que a Sociologia aborda as relações sociais: este objeto específico é importante de ser compreendido mais cientificamente. Quer dizer: quando nascemos já existia a sociedade. Fomos preparados para entrar para ela. Posteriormente agimos de acordo com a estrutura estruturada. A família é o ponto de partida de nossa socialização. É ali que começamos nossas relações sociais, criamos os laços sociais mais profundos de nossa existência. Por isso muitas justificativas de nossas ações e entendimentos podem ser encontramos na nossa trajetória fami- liar. A estrutura de nossa personalidade, as potências afetivas de nossa vida, a valorização do outro, o respeito ao trabalho e a ordem social, etc., encontram-se na família, pois são produto e produtora da sociedade. Já a escola é onde aprendemos nossas potencialidades simbólicas e culturais e adquirimos capacidade para o controle objetivo do mundo expresso Natureza Os Outros Mídias Trabalho Religião Escola Família 20 E n i o W a l d i r d a S i l v a na escrita. Ali, os elementos racionais e universais da existência huma- na tomam novo sentido e somos pugnados para o social, o coletivo, a ordem social, a autoridade e a força da ciência... Estes dois espaços são fundamentais para entendermos as formas de ligações entres as pessoas, as redes que os conectam entre si e ao mundo social e assim seguem os estudos da Sociologia buscando compreender empiricamente a im- plicações da cultura, da economia, da natureza, da mídia, do Estado, da religião na constituição da dimensão social dos indivíduos. Estes estudos foram se ampliando cada vez mais ao longo do tem- po. A preocupação com o conhecimento científico surge no momento em que se percebe que o homem é um ser social que não se basta a si mesmo e que possui uma relação de dependência e complementaridade com a natureza, com os outros homens e com os esforços em ampliar seu entendimento do mundo que o envolve (ciência – pensamento sistematizado). O ser humano se distingue das demais espécies porque nem tudo o que ele faz surge de sua estrutura genética, nem se desen- volve automaticamente em sua relação com a natureza, mas necessita de aprendizado de uma série de atividades fundamentais para sua sobrevivência e reprodução. A construção desse aprendizado se faz por meio da relação com outros seres humanos. A partir dessa relação ele começa a instituir a sociedade como sua forma de existência. Ele passa a entender que sua vida e seu aprendizado se constroem na relação e é essa relação que se transforma em experiência vivida e é transmitida às gerações posteriores. Essas experiências construídas, refletidas e simbolizadas, coleti- vamente, fornecem ao ser humano a capacidade de entender a natureza, compreender a si mesmo e construir sua história. Essa capacidade de buscar o significado das coisas que o cercam fez o ser humano produzir cultura e elaborar as próprias ciências, uma delas a Sociologia. Alguns pesquisadores dizem que a humanidade triunfou diante dos outros ani- mais devido à mobilidade da força de sua inteligência capaz de modificar o ambiente natural e criar outro ambiente adequado a sua existência, 21 Introdução concretizado em vilas, aldeias e cidades. Foi quando agiu em grupos e com atividades solidárias que notamos as mais grandiosas realizações. Quando concorreu entre si vemos os desastres, as guerras e a violência destrutivas. Inteligentemente o ser humano aperfeiçoou seu modo de viver em grupo, criando normas, regras e regulamentos que permitiram inte- rações mais intensas. Inicialmente suas ações eram determinadas pelo instinto de vida. O encontro com outros diferentes provocou ações mais planejadas e combinadas. A organização humana em sociedades, a capacidade de interven- ção do homem na natureza aumentaram. Suas criações são chamadas de culturas e estas foram aos poucos se separando das atividades práticas e ao mesmo tempo possibilitando orientações de ações. Nossas escolhas, nossas ações são orientadas pelo lugar que ocupa- mos na estrutura social. Quando entendemos como se forma esta estrutura e como fomos preparados para viver dentro dela mais podemos orientar de modo criativo nossas ações e mais liberdade teremos. Assim, a Sociologia é uma ciência da liberdade, pois permite que se crie uma vida coletiva de modo regulado estruturado e sempre em aperfeiçoamento. Nos últimos tempos tem crescido o interesse em entender a densidade das relações sociais que estão produzindo conflitualidades para além dos sistemas de controle existentes. É a este assunto que vamos nos dedicar daqui para a frente, denominado de Sociologia Jurí- dica, reconstruindo os elementos que tornaram o Direito uma ciência e uma prática da sociedade, as crises e as críticas a ele dedicada e por último nos dedicaremos a mostrar as pesquisas atuais da Sociologia que ajudam a entender os processos regulatórios e emancipatórios presentes na sociedade. As pesquisas sociológicas procuram explicar os problemas sociais e apontar soluções para eles. Grande parte destes problemas refletem no Direito e, muitas vezes, este, o Direito, se torna parte dos problemas. 22 E n i o W a l d i r d a S i l v a Ou seja, a Sociologia Jurídica aponta a realidades sociais que envolvem o Direito, as normas, as leis e as estruturas jurídicas; estuda as crenças e descrenças dos grupos na validade do Direito e mostra como este orienta as condutas humanas. Podemos dizer inicialmente que a Sociologia Jurídica faz a tradu- ção da relação que existe entre a ação e a estrutura social, entre liberdade e regulação social.Os aspectos regulatórios e emancipatórios da socieda- de, que a Sociologia Jurídica estuda são todos aqueles elementos cujas funções são assegurar o controle social: Estado, Judiciário, Ministério Público, polícia, exército, prisões, burocracia, lei e instituições (criadas para um setor: ex. meio ambiente, comércio internacional, estatutos de profissões, remédios, energias)... Aspectos emancipatórios são as ações de indivíduos em seus mais variados aspectos, a cultura, o esporte, a arte, a ciência, etc... então a Sociologia Jurídica estuda as relações entre indivíduos e as leis, a sociedade e o Direito, a liberdade e obediência às leis. No caso específico da Sociologia Jurídica, o que interessa aqui é contribuir para entender o Direito como um dos fatos sociais mais perti- nentes da atualidade histórica, constituído de elementos – forças capazes de constituir a sociedade, consolidar convivências humanas e organizar o todo social, tarefas de todo cidadão. Ou melhor, se não soubermos como funciona o poder e quem o detém, dificilmente conseguiremos propor mudanças e atuarmos na construção de uma sociedade mais jus- ta. A cidadania é a expressão do nosso compromisso, do nosso dever em participar da organização da sociedade em que vivemos, e o direito de usufruir dos resultados da participação nas ações coletivas. Só podemos ser livres se desatarmos as amarras do poder hegemônico que negamos, mas para tanto é preciso saber que sociedade queremos. A sociedade é resultado do complexo de relações sociais em forma de teias, de redes ou nexos, as instituições, os indivíduos, acultura, os comportamentos, as normas e os valores compartilhados. 23 Introdução Foram os sociólogos que distinguiram mais amplamente o conceito de sociedade desta compreensão de que ela era um nome coletivo para muitos indivíduos. Eles entendiam que a sociedade tem uma identi- dade que lhe é característica e que transcende os indivíduos que a ela pertencem. Trata-se de uma coletividade organizada que se mantém por vínculos cooperativos para garantir a sobrevivência, para perpetuar-se, partilhando uma cultura sob as orientações de estruturas institucionais. Como é possível perceber, todas as definições apresentadas são amplas e geraram muita controversa (Silva, 2008a). Em uma formação social, os grupos, os setores ou as classes estabe- lecem relações de força. Os vencedores asseguram para si instrumentos que permitem controlar o poder/espaço por um determinado tempo, a ponto de impedir os resistentes de vencê-los. A hegemonia do grupo vencedor está em fazer valer a sua vontade como se fosse de todos e de garantir instrumentos de manutenção, ou seja, pode até existir a contestação, a discordância, mas estes são obrigados à conivência com quem detém a força. Ou seja, somos levados a entrar para uma socieda- de pelos mecanismos de socialização existentes e só com muito esforço reflexivo conseguiremos entender as forças que nos compelem à ação, às formas de pensar. Nenhuma sociedade funciona sem que o comportamento da maior parte das pessoas possa ser prevista ou controlada, uma vez que os indivíduos não são autossuficientes. O ser humano interioriza as normas moldadas pelos grupos existentes anteriormente e depois exterioriza-as em suas ações e pensamentos. A coerência entre interiorização e ex- teriorização vai depender dos processos de socialização instalados na sociedade capazes de fazer a coerção e a coação para que os indivíduos aprendam ao longo do tempo os comportamentos aceitos e quais os que seriam reprovados. Estas diferenças se concretizam nos papéis sociais (funções) assumidos. 24 E n i o W a l d i r d a S i l v a Quando as pessoas seguem aquilo que lhes foi ensinado aprovar diz-se que temos a ordem social. A disciplina de uma sociedade repousa na rede de papéis de acordo com a qual cada pessoa aceita certos deveres em relação aos demais e exige, por sua vez, certos direitos. Quanto mais se motiva condutas recíprocas de indivíduos, quanto mais se fizer com que eles se abstenham de certos atos que, por alguma razão, são consi- derados nocivos à sociedade, e se fizer com que executem outros que, por alguma razão são considerados úteis à sociedade, mais civilizados somos e mais ordem teremos (Kelsen, 2005). É neste processo que a Sociologia entende que entra o Direito, pois é nele que se percebe as relações sociais constituidoras da sociedade. No Direito, há sempre referências às relações sociais que se desenvolvem em sociedade, e da mesma forma, onde existem relações sociais pode ser encontrado o Direito. Em cada momento, em cada povo o Direito determina o modo de ser da sociedade, o perfil da estrutura básica é resultado da ação do Direito, que exerce a função do controle social e é condicionado pelas crenças religiosas, pelas convicções éticas, pelas ideologias, os costumes, os interesses econômicos, políticos, culturais, os avanços técnicos e científicos, etc. (Dias, 2009, p. 22). Ao pesquisar empiricamente as ações características de grupos sociais, a Sociologia foi consolidando métodos que contribuíram para que a própria ciência jurídica fosse se tornando um estudo sistematizado e autônomo. Assim, desde os primeiros cursos de Direito a Sociologia contribuiu para dar rigor às compreensões sobre o social. Os estudos sociojurídicos possuem sempre um caráter interdisciplinar, em que se pressupõe a colaboração equilibrada entre juristas e sociólogos que compreendem não apenas o Direito em sentido estrito, mas também os modos de regulação de conflitos que dele se aproximam ou com ele se relacionam. Isso requer a compreensão de que há uma interação objeto/ sujeito e noção de que as realidades sociais podem ser diferentemente representadas nas teorias, necessitando diálogos entre elas. 25 Introdução Para sintetizar podemos destacar o seguinte conceito da Sociologia Jurídica: é um ramo especializado da Sociologia que busca compre- ender as expressões das relações sociais presentes na organização normativa da sociedade. Ou seja, estuda: – As realidades sociais no entorno da ordem jurídica; – As relações sociais efetivamente registradas/concretizadas na socieda- de; – As aproximações e os distanciamentos entre a regulação e as vivências sociais; – O lugar e o papel do Direito na sociedade; – As possíveis respostas que a sociedade fornece aos sistemas regulató- rios; – A cultura jurídica dos agentes sociais e dos cidadãos da sociedade civil; – As estruturas regulatórias e as ações; – As forças das regras e a legitimidade destas; – Como são construídas as leis, quais os interesses em jogo nessa cons- trução; – Os espaços estruturais do jurídico; – As estruturas para garantir o acesso ao jurídico e à Justiça; – As relações sociais entre os sujeitos do Direito; – Os impactos sociais da ação do jurídico, etc. Então, a Sociologia Jurídica procura entender as relações entre liberdade e regulação, compreender como ocorre a relação entre a sociedade e o Direito, como uma sociedade se organiza para criar sua vida jurídica e como esta passa a refletir na sociedade. Pressupomos, pois, que o comportamento social é resultante das repostas que as pessoas dão a vários fenômenos complexos que somente podem 26 E n i o W a l d i r d a S i l v a ser analisados no contexto do ambiente no qual sua socialização se realizou. É este o peso empírico que a Sociologia carrega: estudar os comportamentos dos indivíduos em seus aspectos internos e externos1 conforme os contextos que estão sempre em mudança. À medida que os indivíduos vão continuamente se adaptando, como seres sociais, às exigências do grupo de convívio, o seu compor- tamento torna-se parecido ao dos outros membros e as expectativas de comportamento são possíveis de serem estudadas, de serem padro- nizadas e mesmo controladas. O controle, a padronização nunca são completos e nem os estudos são exatos, pois a conduta humana é bem mais do que simples respostas aos estímulos externos e internos, uma vez que lhe é possível planejar ações visando a algum objetivo. Quando os estudos do homem enquanto ser social começaram a se ampliar percebeu-se que seria possível verificar algumas tendências que se confirmavam. Daí resultou a cultura de que todos precisamos de regras para nossas condutas que sejam claras, conhecidas e ajusta- das ao grupo. E assim teve origem o controle social que muitas vezes entrou em choque quando um grupo tenta impor a outros o seu modo de ver, de sentir o mundo a sua volta. Para entender melhor este momento de afirmação da cultura jurídi- ca vamos fazer uma rápida revisão da evolução da sociedade descrita pela Sociologia e depois retornaremos ao contexto da modernidade, período histórico de intensas demanda por controle social. Antes, porém, vamos ver esta excelente descrição da Sociologia Jurídica criada por Souto: 1 Conforme Souto (1981), ao lado dos elementos considerados externos ao comportamen- to temos os outros, objetos, conhecimentos e do mundo interno como as substâncias químicas, as pressões e distensões mecânicas de nosso organismo.... a fome, a sede, o sono, por exemplo, são expressões dos estímulos provocados pelo meio interno. E isso não é objeto necessariamente da Psicologia, mas a Sociologiapode se valer de saberes de outras ciências (Souto; Souto, 1981). 27 Introdução O fenômeno jurídico pode ser percebido como norma ou como condu- ta.Tanto numa visualização como noutra, norma e conduta jurídica se implicam, pois conduta jurídica é sempre normada e a norma sempre se refere à conduta social. A norma jurídica se origina de uma conduta humana específica. Por isso o direito é fenômeno claramente social... se o jurídico é fato social este é preocupação constante da Sociologia Jurídica. Esta estuda este em sua correlação com a realidade social... A perspectiva sócio-científica do jurídico tem-se afirmado internacio- nalmente de forma clara e progressiva, e não pode ser ignorada por um país em desenvolvimento como o Brasil. Com efeito a expansão das sociedades e de seus problemas de contato social, o aumento da comunicação interna e externa, as necessidades da vida nacional e internacional, tudo parece demandar um tipo de controle social adaptável à sociedade: um controle menos formal, menos dogmático, mais dinâmico, que corresponda à rápida mudanças ocorrida dentro das sociedades particulares e à natureza da sociedade internacional, que permanece sendo, em grande escala, uma sociedade informal (Souto; Souto, 1981, p. 13). CAPÍTULO 1 AFIRmAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA A sociedade iniciou quando os homens, permeados pelas neces- sidades humanas, tiveram de assentar-se sobre um território, produzir alimentos, construir seu hábitat e assegurar suas vidas. Esses diferentes processos foram chamados de formalização da natureza, ou humanização da natureza. Como não podia fazer isso de modo individual, o homem uniu-se a outros que tinham os mesmos interesses, formou famílias e iniciou atividades coordenadas para transformar a natureza. Essas ações coordenadas foram chamadas de trabalho e os pactos formados para viverem juntos foram denominados de normatização do coletivo (leis). A primeira forma organizativa e normatizada foi a família, que além de ser fruto da organização bio-lógica, tornou-se a forma elementar, básica e inicial da vida em sociedade. Em torno dela e para sua defesa criaram-se muitas disposições culturais e se aumentou a capacidade de trabalho. Veremos primeiramente a evolução do trabalho do homem e em seguida a institucionalização dos entendimentos sobre a ordem social.1 Trabalho e Sociedade Segundo Cristiano da Paixão Araújo Pinto, pode-se ilustrar a transição das formas arcaicas de sociedade para as primeiras civilizações da Antiguidade mediante três fatores históricos: a) o surgimento das cidades cuja origem pode-se situar no Paleolítico, na Mesopotâmia. Pode-se dizer que o processo de destribalização teve início no século IV a.C., tendo-se notícia da formação de cidades nos anos 3100-2900 a.C., na Baixa Mesopotâmia, isto é, região designada por Suméria, nas margens do Rio Eufrates, mais próxima ao Golfo Pérsico. No período histórico imediatamente subseqüente (dinástico primitivo 2900-2334 a.C.) menciona-se a formação de outras cidades, entre as quais Nipuur e Ur; 1 Este texto foi adaptado de Silva, Enio Waldir. Sociedade, política e cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008. 32 E n i o W a l d i r d a S i l v a b) a invenção e domínio da escrita, estreitamente ligada ao surgimento das cidades, cujas primeiras manifestações (cuneiformes) se deram na Mesopotâmia, por volta de 3100 a.C e c) o advento do comércio e, numa etapa posterior, da moeda metálica, por um sistema de trocas de mercadorias e venda em mercados ou na navegação. Na clássica lição de Engels,2 a origem do comércio localiza-se na divisão do trabalho gerada pela apropriação individual dos produtos antes distribuídos no seio da comunidade; com a re- tenção do excedente, a criação de uma camada de comerciantes e a atribuição de valor a determinados bens, o homem deixa de ser senhor do processo de produção. Inaugura-se, então, ainda segundo Engels, uma assimetria no interior da comunidade, com a introdução da distinção rico-pobre... Porém, falar em um direito arcaico ou primi- tivo implica, contudo, ter presente uma diferenciação da pré-história e da história do direito e ainda, quanto aos horizontes de diversas civilizações, no sentido de precisar o surgimento dos primeiros textos jurídicos com o aparecimento da escrita, tudo dependendo do grau de evolução e complexidade de cada povo... o direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade da pré-história fundamenta-se no princípio do parentesco, nada mais a considerar do que a base geradora do jurídico encontra-se, primeiramente, nos laços de consangüinidade, nas práticas do convívio familiar de um mesmo grupo social, unido por crenças e tradições (Tavares).3 A interpretação da sociedade pode ser feita pelo estudo do modo como o homem organizou-se para o trabalho. Neste caso, nas comunida- des primitivas o “trabalho” era visto como uma resposta do ser humano às suas necessidades básicas: fome, abrigo, vestimenta, defesa, etc., não podendo ser separado dos demais aspectos da vida social: ritos, mitos, festas, artes, sistema de parentesco, entre outros. Ele não tinha valor em si, ou seja, separado dos demais aspectos da vida social (Rotta, 2006). 2 Engels, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3. ed. São Paulo: Global, 1986. 3 O Direito nas Sociedades Primitivas: Algumas Considerações. Disponível em: <www. fmd.pucminas.br/virtuajus/ano1_08_2003>. 33 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica Embora tendo diversidade, a maior parte das sociedades tribais praticava uma separação do trabalho por sexo e idade. Dividiam as tarefas para dar conta das necessidades e para garantir o processo de aprendiza- gem e reprodução do grupo.4 O esquema a seguir mostra a evolução das formas organizativas do homem: 1 GENS GENSGENS REUNIÃO DE FAMILIAS - FPM REUNIÃO DE GENS - CLÃS CLÃS G G G CLÃS G G G As ações dos sujeitos resumiam-se na busca de alimentos e no su- primento de necessidades. Quando ocorreu a escassez de alimento alguns grupos se deslocaram para longe e outros ficaram próximos, assentados em territórios. Ali formaram os primeiros grupos humanos, cujo centro se dava em torno das atividades da mãe: a Família Poligâmica Matriarcal – FPM. A união para defesa gerou as Gens (união da FPM). A estratégia de manutenção, reprodução e defesa levou às clãs... depois se formaram as tribos, e sucessivamente os impérios... É neste último momento que se passou da FPM para a FMP – Família Monogâmica Patriarcal, e com ela a complexificação da sociedade em classes sociais 4 Rotta, Edemar, citado por Silva, 2008a. 1 GENS GENSGENS REUNIÃO DE FAMILIAS - FPM REUNIÃO DE GENS - CLÃS CLÃS G G G CLÃS G G G 34 E n i o W a l d i r d a S i l v a As atividades de trabalho estavam em harmonia com o processo natural. Conheciam profundamente o meio em que habitavam e pro- curavam aproveitar sua capacidade de trabalho para usufruir, da melhor maneira possível, dos recursos proporcionados pela natureza. As técnicas utilizadas eram simples, mas davam conta das neces- sidades do trato com a natureza. Isso não quer dizer que não houvesse inovação. O trabalho era, acima de tudo, uma atividade social, pois estava voltado para o bem da coletividade e não para um processo de acumula- ção, sendo desenvolvido de forma coletiva. No momento em que o trabalho passa a ser visto como atividade autônoma e ser orientado para a acumulação, tem-se o rompimento com as sociedades tribais e a transição para a formação dos reinos e impérios que vão dar origem às grandes civilizações da Antiguidade:os persas, os egípcios, os gregos, os romanos, etc. Temos aí a sociedade escravista. TRIBOS TRIBOSTRIBOS REUNIÃO DE CLÃS - TRIBOS REUNIÃO TRIBOS - IMPÉRIOS T T T T T T FMP – FAMILIA MONOGAMICA PATRIARCAL As disputas entre os diferentes povos levaram os vencedores a se apossarem das riquezas dos vencidos: terras, animais e pessoas. O direito de conquista submete o vencido à condição de escravo (Grécia e Roma) ou de pagador de tributos (persas e egípcios). 35 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica Opera-se aí uma nova divisão do trabalho que vai substituir a divisão por sexo e idade. É a divisão entre trabalho braçal e trabalho intelectual. O trabalho manual, de quem labuta na terra, e o intelectual, que planeja e ordena a vida social. – Trabalho braçal: que exige a força bruta e reduzida habilidade; ativi- dade passiva e sujeita ao ritmo da natureza, típica dos agricultores e escravos; – Trabalho manual: cuja ênfase recai sobre o fazer, o ato de fabricar, de criar alguma coisa por meio do uso de instrumentos ou das próprias mãos. É o trabalho do artesão, do escultor, em que o produto pode permanecer para além da vida de quem o fabrica; – Trabalho intelectual (práxis): é a atividade que tem a palavra como seu principal instrumento. O trabalho livre, dos cidadãos, dedicado a discutir os assuntos da vida pública (negócios públicos: administração, gestão, poder, artes, Filosofia, etc.) e a dispor, da melhor maneira possível, os produtos postos à disposição pelas outras formas de tra- balho. Essa divisão era vista como um processo natural, decorrente da competência das pessoas, por uma superioridade ou inferioridade natural. A condição de escravo, independentemente do ofício a que era submetido, gerava uma submissão natural ao seu senhor, a quem deveria servir até a morte ou a conquista da liberdade. O escravo poderia ser vendido, trocado, alugado, etc. É nesse sentido que se produz uma visão negativa do trabalho, visto como castigo e sofrimento; com a desagre- gação dos grandes impérios, desencadeia-se um retorno ao meio rural e às atividades agrárias. A escravidão vai cedendo lugar à servidão. Uma relação de mútuos direitos e obrigações entre o servo e o seu senhor. O senhor não é mais proprietário do trabalhador, mas da terra e dos instru- mentos de trabalho e os arrenda ao trabalhador em troca de obrigações que este deve prestar-lhe. 36 E n i o W a l d i r d a S i l v a Estabelece-se uma relação contratual; as relações servis acabam produzindo uma sociedade com espaços definidos e funções determi- nadas na divisão do trabalho; essa divisão era entendida como natural e legitimada por um discurso religioso; a produção do feudo servia para atender às suas necessidades. O excedente era consumido em festas ou trocado com feudos vizinhos. A tecnologia utilizada era simples e seu avanço muito lento. Estava ligada ao mundo prático da vida e ao ciclo da natureza. Isto é muito próprio do feudalismo. Apesar de as atividades dominantes estarem ligadas à terra, havia o desenvolvimento de outras atividades que, aos poucos, foram conquistando espaço e gerando profissões reconhecidas e organizadas, as corporações de ofício. A partir delas, porém, já vamos ter uma nova forma de organizar o trabalho que vai rompendo com o modo dominante do contrato e preparando as relações assalariadas. FEUDALISMO • -SENHORES • -VASSALOS/CLERO • -SERVOS SEDE/CIDADE CONTRATOS SERVIÇOS PRODUTOS TRIBUTOS A crise do feudalismo, na Europa, vai proporcionar o maior desen- volvimento das atividades urbanas, em especial do comércio e artesanato, levando à afirmação de uma nova compreensão de trabalho. A desagregação do feudalismo na Europa está ligada a um conjunto de fenômenos: esgotamento das terras e das tecnologias, aumento da população, crises de fome e doenças, desenvolvimento do comércio e das atividades urbanas, etc. O desenvolvimento do comércio e das ativida- des urbanas vai gerar um novo grupo social composto por comerciantes e artesãos que precisam afirmar o seu trabalho como a origem dos bens 37 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica que vão se acumulando. Assim, passam a gerar um sentido positivo ao trabalho e a demandar novas teorias que possam justificar esse sentido positivo. As teorias liberais vão dar sustentação a essa compreensão. Locke atribuiu ao trabalho a fonte de toda a propriedade. Adam Smith afirmou que o trabalho é a fonte de toda a riqueza. Marx, embora não concordando com as ideias liberais, consolidou essa compreensão ao referir o trabalho como fonte de toda a produtividade e a expressão da própria humanidade do homem. As novas ideias afirmaram a compreensão positiva do trabalho, que passa a ser visto como a fonte de riqueza de uma Nação. A capacidade de acumular riquezas passou a depender da aptidão de trabalho e não apenas da posse de recursos naturais, da balança comercial favorável ou do acúmulo de metais preciosos por processos de exploração colonial. Assim tem início o capitalismo. O domínio de atividades urbanas ligadas ao comércio e ao artesa- nato vai desencadear também uma intensificação do ritmo tecnológico, principalmente nessas áreas; os comerciantes e artesãos aliam-se aos reis e fortalecem seu poder, contrapondo-se à nobreza e ao clero e pre- parando uma consequente conquista de ascensão ao poder do Estado; o desenvolvimento das cidades vai gerar um mercado de trabalho urbano submetido a novas regras, cada vez mais orientadas para o assalariamento, para a separação entre o trabalho e os meios de produção e para o cultivo de uma “ética do trabalho” (Rotta, 2006). CLASSES FUNDAMENTAIS • PROPRIETÁRIOS X NÃO-PROPRIETÁRIOS BURGUESIA PROLETARIAO SOCIEDADE CIVILSOCIEDADE POLITICA 38 E n i o W a l d i r d a S i l v a O ambiente urbano prepara a consolidação da ideia de que é com o trabalho que a pessoa tem possibilidade de ascender socialmente, superando as visões antigas, baseadas em laços de sangue, de heredita- riedade e de títulos. Função do trabalho no capitalismo: lucrar/acumulação; fonte de riqueza –individual e coletiva; fonte da liberdade; força da competição; universalização do cidadão; moral profissional; força do mercado. É nesse contexto que começam aparecer estudos sociológicos sobre: condições de vida, legislação trabalhista, saúde, mortalidade infantil, moradia, formação profissional, composição racional, salário, jornada de trabalho, gestão de mão de obra, trabalho das mulheres, crianças e idosos, aciden- tes de trabalho, exclusão, sofrimento no trabalho, organização urbana, assistência ao trabalhador e sua família, papel do Estado, conflitos entre patrões e empregados, resistências individuais e coletivas, associações e sindicatos de trabalhadores, etc. O que vai assegurar a estruturação da vida moderna pode ser interpretado pelo esquema a seguir: Fontes para a ordem Moderna • ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA • Ciência • Educação • Direito • Estado • Indústria • Comércio • Mercado • A Propriedade • A Competição • O Positivismo Elite Burocratas Classe Média Operários Fortalece-se a compreensão dos direitos da pessoa no trabalho, aumentam as leis trabalhistas, crescem os movimentos sociais e sindicatos (patronais/trabalhadores); criam-se instituições do trabalho; o trabalho abstrato amplia-se; aplica-se a ciência para efetivar o resultado do tra- balho com taylorismo/fordismo; muitos países fazem alianças nacionais 39 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica – imperialismo do capital – para organização do trabalho, etc. Enfim, muda o comportamento das pessoas, inclusive são treinadas em escolaspara agir no trabalho, com o trabalho – uma ação encadeada... Quem se adaptou criou uma nova moral... foi convencido que pelo trabalho cresce na vida... se salva.... não é vagabundo, vadio, etc... Inclusive diversas leis emergem para regular o trabalho... cidades inteiras foram organizadas em torno do trabalho do homem... a “ética” justifica as diferenças sociais, as posições dos ricos, a moral, a valoração... inclusive o fascismo vai pregar o trabalho como fim último do homem (lavoro, lavoro, lavoro), invertendo seu sentido. Vamos agora recuperar a trajetória do pensamento social que expressou a evolução do Direito ou, no mínimo, influenciou esta evo- lução. Pensamento Social Na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada parte nuclear de controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios das regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito ordenado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão social (Wolkmer)5.... a comparação das crenças e das leis demonstra que as famílias grega e romana foram constituídas por uma religião primiti- va, que estabeleceu o casamento e a autoridade paterna, fixou os graus de parentesco, consagrou o direito de propriedade e o direito de herança. Esta mesma religião, por haver difundido e ampliado a família, formou uma associação maior, a cidade, e nela reinou do mesmo modo que reinava na família. Desta se originaram todas as instituições como todo o direito privado 5 O direito nas sociedades primitivas. In: Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 20. 40 E n i o W a l d i r d a S i l v a dos antigos. Foi dela que a cidade extraiu seus princípios, suas regras, seus usos e sua magistratura [...] É mister, pois, estudar antes de tudo, as crenças destes povos (Coulanges).6 A origem do Direito está, como referimos, lá no momento em que o homem começou a viver em grupo e sentiu necessidade de controlar as condutas humanas (Souto; Souto, 1981). O pensamento sobre o social, no entanto, surge mais tarde, depois dos mitos, dos totens, das religiões e junto com a Filosofia. Nasceu com estas perguntas: Como poderíamos programar as causas da ação humana, especialmente aquelas condutas relacionadas a sua vida coletiva? Como a vivência junto poderia aprimorar a civilização e como um homem pode ser o complemento da construção do outro? Os estudos sobre a política mostram que o primeiro ato político do homem foi aquela ação que cometeu em relação aos outros ou da ex- pectativa que tinha em relação à ação dos outros. Com as aproximações humanas a política passou a se constituir em atos especificamente criados para a vida coletiva. Foi necessário, portanto, criar um saber específico sobre estes temas, para entender a confluência de forças existentes em uma comunidade que orientam a vida coletiva.7 No início dos estudos políticos a preocupação estava em definir como o homem poderia ser mais político que a sua dimensão natural, ou seja, o homem é um ser político por natureza, mas como ele poderia adquirir capacidades para agir de modo universal, pela coletividade e para coletividade de modo a tornar cada vez mais justa a vida em sociedade. A esquematização das respostas poderia ser assim apresentada: 6 Refere-se a Coulanges, Fustel. A cidade antiga. 2. ed. São Paulo: Edipro, 1999. p. 13-14. Citado por Fernando Horta Tavares. Disponível em: <www.fmd.pucminas.br/virtuajus/ ano1_08_2003>. 7 Silva, Enio Waldir. Sociedade, Política e Cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008a. 41 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica JUSTIÇA SOCIAL NECESSIDADES PRIMORDIAIS: NATURAIS: ALIMENTO –AFETO SOCIAIS: MEDOS (MORTE) E DESEJOS (SER FELIZ) AÇÃO FUNDAMENTAL: O TRABALHO E A EDUCAÇÃO TRANSFORMAR A NATUREZA – ALIMENTO E CASA CONHECIMENTO E FÉ Os elementos deste esquema poderiam ser entendidos como os passos da evolução da organização política. Parte da criação do pensa- mento social foi para justificar maneiras de administrar o espaço universal público (chamado de polis, cidade, sociedade). No centro do espaço público está o Estado: a instituição fruto da razão humana e a mais complexa para assegurar a vida coletiva. Ele tornou-se um lugar no qual se condensou grande parte das intenções de controle social e para onde atividades coletivas se voltavam para conflitos sociais e as disputas dos grupos. Passou a ser a expressão estruturada do poder, tendo elementos coativos e coercitivos, e se colocou acima de todas as outras instituições reconhecidas: a família, a escola, a empresa, a religião... 42 E n i o W a l d i r d a S i l v a 4 ESTADO EXPRESSÃO ESTRUTURADA DO PODER COLETIVO 2 1 4 5 5 3 1 3 2 4 5 5 COAÇÃO COERÇÃO Coação: Todos os elementos sociais que atuam no convencimento à ordem social. Coerção: Todos elementos de força que obrigam o indivíduo a seguir a ordem social. A história política do homem passa pela história do Estado, das doutrinas sobre melhor governo, das instituições criadas para assegurá-lo e pelos movimentos sociais para conquistá-los. Podemos esquematizar assim a história do pensamento sobre as relações sociais constituídas juridicamente: EVOLUÇÃO DA ORDEM SOCIAL GREGOS CRISTÃOS MODERNIDADE PÓS-MODERNIDADE CULTURA JURÍDICA ATUAL ROMANOS Assim, iniciamos no século 6º a.C. a perceber os registros sobre regras do coletivo e segundo Châtelet (1984), a cultura política do mediterrâneo europeu tem como uma das fontes a civilização grega 43 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica clássica. O conjunto de invenções institucionais, literárias, artísticas, científicas, teóricas e técnicas, condensadas na forma política da cidade (polis), destaca a grandeza desta civilização que teve seu período de ouro entre o século 6º a.C. e o século 1º a.C. A origem dessa forma política de vivência está nos acordos feitos pelas populações em conflito, pois precisam criar regras para o jogo das vivências sociais. Drácon e Sólon foram os primeiros legisladores do Ocidente ao enunciarem ideias sobre a participação de cada um na gestão da cidade, nas decisões das questões de interesses coletivos, bem como a forma de arbitragem dos conflitos e a punição dos crimes e dos delitos. A lei passou a ser a orientadora das pessoas, e poderia ser obede- cida sem temor, como era a obediência por medo de quem obedecia a um outro, um senhor. Com textos claros e conhecidos e que tornavam públicos os julgamentos, a lei era como um princípio de organização política e, por isso, talvez, a invenção política mais notória da Grécia clássica (Châtelet, 1984, p. 14). Se a lei é alguma coisa de alma, de razão, a cidade é algo concreto e espaço onde vivem os homens, em sua cotidianidade e em sua forma histórica, como animal político (Aristóteles – A Política). Ou seja, para os gregos a sociabilidade é produzida pela natureza, no entanto é preciso ordená-la para que a virtude do homem possa realizar-se em sua pleni- tude. A cidade é uma comunidade consciente, uma organização fundada não sobre a força bruta, não sobre interesses passageiros, mas sim uma forma política que expressa a essência humana, a possibilidade da justi- ça e da satisfação dos desejos legítimos dos indivíduos.8 A estrutura da sociedade pode ser descrita como no quadro a seguir: 8 Silva, Enio Waldir. Sociedade, política e cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008a. 44 E n i o W a l d i r d a S i l v a A ordem Gregos Clássicos • ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA • Filosofia/Educação • Ação Política/Cidadã • Lei/Justiça • Cidade/Ágora• República/Estado • Democracia • Arte da Guerra • Beleza/esporte SÁBIO GUERREIRO Trabalhadore s Já os romanos colocaram em prática muitas ideias políticas dos gregos. De uma forma ou de outra, elas estão presentes nas instituições mais sólidas, como é o caso do Direito, do Império e da República. O Direito Romano tinha por base a Lei das Doze Tábuas e se instituía tendo como objeto primeiro a família. O cidadão, o homem livre, é o pater familias, senhor absoluto da casa, cabe-lhe representar junto aos juízes quando julgar que ele próprio, os seus ou suas propriedades sofreram algum dano, bem como exigir reparação e penas adequadas. Mais tarde o Direito se estende aos peregrinos; depois a todos os que adquirirem cidadania. O Direito Romano espalhou-se pelo mundo entre- meado pelos caminhos do império. Mesmo reduzindo o espaço territorial o Direito ficou onde foi o império, pois era fruto de racionalidades e se enraizou como uma forma de ordenação do mundo, regulamentando o que é e o que não é, e, ainda, propondo um dever-ser (Châtelet, 1984, p. 23). Políbio (200-125 a.C.) e Cícero (106-43 a.C.) foram os principais pensadores sociais que trataram de descrever como deveria ser o Império Romano, mostrando que era uma comunidade que tinha sua unidade baseada num vínculo jurídico e numa ordem política bem determinada. Roma é a cidade ecumênica que guarda as maiores semelhanças com a cidade ideal descrita pelos gregos. O imperador e seus cônsules estavam no topo, eram os governantes, representavam o cérebro governamental; mais abaixo estavam os guerreiros que defendiam a cidade, mantendo 45 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica sua glória simbólica; bem embaixo estão os artesãos e os agricultores, que proveem as necessidades materiais da cidade. A estrutura social pode ser assim descrita: Lei e Ordem para os Romanos • ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA • A República • A Cidade de Roma • O Direito • A Arte da Guerra • O Senado • O Consulado • Artes e Ofícios Cesar/Império Guerreiros/Legiões Cidadãos/estrangeiros O problema da sucessão de César (César deveria preparar seu herdeiro), a quebra da cultura de onipotência do imperador (vindo de Cristo), a expansão territorial (conquistaram mais território do que podiam controlar) e o aumento da centralidade da Igreja Católica cristã levaram a um enfraquecimento e à dispersão do Império Romano. Nos anos 300 d.C. o cristianismo virou religião oficial do império. O fim do império deu-se em 410. Inicia-se, então, uma nova fase de compreensão sobre o social e o modo de conceber a ordem social, as noções de liberdade, responsabilidade e ação histórica. Serão o cristianismo e o islamismo que irão marcar duradouramente as ideias e os costumes posteriores. Essa nova ordem social é justificada nas proposições filosóficas de Santo Agostinho (354-430). Sua obra, carregada de expressões polí- ticas, foi A Cidade de Deus. Seguiu-se a compreensão de que tudo o que existe é criação de Deus ou por sua vontade. Os preceitos teológicos do Deus Único e a concepção do homem como uma criatura de Deus vão se afirmando pela Idade Média, quando foram fundadas cidades cristãs baseadas num vínculo religioso e não nos vínculos jurídicos. Assim, as ideias aristotélicas de ação política vão ser redirecionadas para demarcar 46 E n i o W a l d i r d a S i l v a os deveres e os direitos da cristandade. A dimensão histórica e explica- tiva agora não é mais natural, mas fruto da ordem divina: Deus criou o homem. Este ato foi o começo. A morte não é o fim, mas a ressurreição. O espaço entre o nascer e o ressuscitar é da provação em que o cristão paga ao Criador a dívida pela criação. O modo de pagar é rezando e tra- balhando, conforme pode ser representado no quadro a seguir: PROVAÇÃO TRABALHAR ORAR NA IGREJA PAGAR O DÍZIMO FIM: RESSURREIÇÃO INÍCIO - A CRIAÇÃO CÉU - DEUS INFERNO - DIABO Os representantes de Deus na Terra orientavam a vida coletiva e individual e vão encomendando a alma dos fiéis. Se fizerem como man- dam vão para o céu; se não o fizerem, irão para o inferno. O crime passa a ser chamado de pecado. O modo como vai sendo medido o pagamento da dívida divina é pela presença do homem nos sacramentos da Igreja e pelo depósito do dízimo. A Igreja, a exemplo do Império Romano e da cultura grega, vai garantir algumas estruturas para se afirmar: o Direito Canônico, as or- dens religiosas e o exército de Cristo. Uma série de pensadores cristãos (chamados de Santos) deram o contorno desta nova forma de entender o mundo (Boécio 480-521; Santo Anselmo 1033-1099; Santo Abelardo 1079-1142; Santo Tomás de Aquino 1225-1274; São Boaventura 1221- 1274; Duns Scot 1265-1308; Gulherme de Occam 1290-1349; Nicolau de Cusa 1401-1464; Marcílio de Pádua 1275-1313...). A estrutura do poder nesse período poderia ser assim imaginado: 47 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica Fé e Ordem Social Teocrática • ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA • A Palavra Sagrada • A Fé • O Direito Canônico • A Evangelização • As Ordens Religiosas • As Cerimônias • A Preparação p/ Céu Deus/Papa Padres / Igreja Comunidade de Fiéis Nos reinos vão se desenvolvendo noções novas e elaboram-se técnicas de gestão que substituem as hierarquias tradicionais por rela- ções contratuais. O desenvolvimento do comércio e dos negócios torna indispensável uma moralização da atividade mercantil; e o estatuto do sujeito mercantil vai se ampliando na medida em que ele vai participando do bem-estar da comunidade ou usa as riquezas adquiridas para o bem comum. A cidade profana amplia-se e se enche de regras e princípios e o poder de governar passa a ser cada vez mais cobiçado. Os múltiplos abalos do período de 1400-1500 irão radicalizar essa orientação, inclusive passando a ser denominado de Renascimento. Um dos reforços para a emergência dessa nova fase histórica que se convencionou chamar Modernidade, em que prevalece no poder coletivo a dimensão racional, jurídica e científica das relações sociais, é Martinho Lutero. Em 1517 ele vai expor mais de 90 teses denunciando o poder da Igreja de Roma. Havia tráfico de indulgências para obter ganhos materiais e exercer pressões morais sobre seus fiéis. Isto reforça o poder dos príncipes nos reinos e faz explodir a Reforma, uma tendência que contestava o poder da Igreja: a inspiração dos reformadores é, ao mesmo tempo, teológica, moral e política. Teológica, porque se fundamenta no cristianismo primitivo com o dogma de que a essência da religião está na fé e não na idolatria de imagens e riquezas; Moral, porque se opõe à corrupção do alto clero, mais preocupado com o poder e o luxo, esquecen- Fé e Ordem Social Teocrática • ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA • A Palavra Sagrada • A Fé • O Direito Canônico • A Evangelização • As Ordens Religiosas • As Cerimônias • A Preparação p/ Céu Deus/Papa Padres / Igreja Comunidade de Fiéis 48 E n i o W a l d i r d a S i l v a do a caridade e a piedade, e Política, porque a palavra de Deus, a Bíblia, passa a ser experimentada em sua dimensão prática, na língua dos povos que a leem. Os espaços que deveriam ser da Igreja e os que deverão ser do Estado têm forte expressão nas palavras de Lutero: Meu reino não é deste mundo”. Tomando a palavra de Cristo ao pé da letra, Lutero deixa de certo modo o campo livre para a onipotência do Estado no mundo terreno; confere-lhe o monopólio da decisão e da repressão. Deixa-se ao cristão a possibilidade de intervir pela palavra e pelo exemplo, a fim de que sejam respeitados os mandamentos de Deus e afirmada a força espiritual da comunidade dos fiéis... Lutero, Münzere Calvino (1536-1559) vão ser reformadores que colaboram para a afirmação das realidades nacionais e o poder do Estado e abrir um importante capítulo do pensamento político moderno: o das relações entre comunidades religiosas e o Estado convertido em potência laica, capítulo que é freqüentemente, ao mesmo tempo, o das relações entre exigências morais e necessidade política (Châtelet, 1984, p. 43). Nos esquemas a seguir vamos sintetizar a visão sociológica sobre a história do pensamento social e a visão sobre a evolução das normas sobre o coletivo: CONCEPÇÕES DE MUNDO NAS TRÊS FASES HISTÓRICAS DO PENSAMENTO SOCIAL Concepções Grego Clássico Teocratismo Cristão Modernidade HOMEM É um ser político que pensa e entende suas necessidades e as formas de satisfa- zê-las. Quanto mais estende suas ideias e as concretiza na ação, mais poder tem. É criatura de Deus, depen- dente de Sua vontade e tem uma dívida com seu Criador. Quanto mais pagar essa dívida (rezar e trabalhar: ir à Igreja e pagar o dízimo), mais chance tem de ser perdoado e voltar ao seu Criador (Céu). É um ser natural criador: pensa, fala e age (trabalha). Por convenção ou pacto, obedece a uma ordem criada por ele: Direito, Estado e Ciência. SOCIEDADE É criação humana, uma estrutura que resulta da justa ideia e da disposição de viver juntos de modo civilizado. É o conjunto dos fiéis que contribuem para o sucesso da Igreja; é a rede de relações religiosas que cumprem as ordens divinas e lugar de provação. É a organização criada pelo ho- mem para melhor desenvolver e potencializar sua natureza: pensar- ciência; falar – contratos/pactos; agir – trabalhar/usar seu corpo. Assim é o conjunto dos indivíduos/ instituições dispostos de forma mais ou menos lógica para se viver bem. 49 Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica ESQUEMAS SOBRE A EVOLUÇÃO DO DIREITO9 9 Interpretação possível do texto de Fernando Horta Tavares: O Direito nas sociedades primitivas: algumas considerações, 2003. CAPÍTULO 2 A mODERNIDADE – A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS Nesta parte propomos a estudar as dimensões científicas das abordagens da ordem social, a necessidade destas e as constelações compreensivas que influenciaram na formatação da cultura jurídica que marcam a historicidade atual. A idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o que repousa essa correspondência de uma cultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo, o que já buscavam pensadores reli- giosos, mas que foram paralisados pelo finalismo próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito e pelo mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade (Touraine, 1994, p. 9). Ao pesquisar empiricamente as ações características de grupos sociais, a Sociologia foi consolidando métodos que contribuíram para que a própria Ciência Jurídica fosse se tornando um estudo sistematizado e autônomo. Assim, desde os primeiros cursos de Direito a Sociologia contribuiu para dar rigor às compreensões sobre o social. Os estudos sociojurídicos possuem sempre um caráter interdisciplinar, em que se pressupõe a colaboração equilibrada entre juristas e sociólogos que compreendem não apenas o Direito em sentido estrito, mas também os modos de regulação de conflitos que dele se aproximam ou com ele se relacionam. Isso requer a compreensão de que há uma interação objeto/ sujeito e noção de que as realidades sociais podem ser diferentemente representadas nas teorias, necessitando diálogos entre elas. 54 E n i o W a l d i r d a S i l v a Para entendermos porque somos hoje tão dependentes das de- terminações jurídicas presentes na sociedade precisamos reconstituir as fontes que deram bases a essas necessidades de judicialização das relações sociais na cultura jurídica moderna. Ela tem bases no mundo da produção e arrastaram o desenvolvimento da vida urbana, do tráfego comercial na- cional e internacional, da produção manufatureira, da atividade bancária, etc. Nos centros europeus aparece cada vez mais o saber econômico, que passa de uma técnica de gerir patrimônios de famílias ou encher cofres de reinos para as ciências complexas que medem, proveem e preveem os atos de produção, circulação e consumo em espaços territoriais agora chamados de nação, a economia política. A sociedade moderna consiste na crescente submissão das mais diversas esferas da vida pública e privada à calculabilidade, à impesso- alidade e à uniformidade características do formalismo burocrático sob o regime de dominação tipicamente racional-legal, como afirma Max Weber (1999a). A modernidade se definiu a partir de dois componentes: O primeiro princípio é a crença na razão e na ação racional: a ciência e a tecnologia, o cálculo e a precisão, a aplicação dos resultados da ciência a campos cada vez mais diversos de nossa vida e da sociedade, passam ser componentes necessários, e quase evidentes, da civilização moderna. O segundo princípio fundador da modernidade é o reconhecimento dos direitos do indivíduo, isto é, a afirmação de um universalismo que dá a todos os indivíduos os mesmos direitos. A ação racional e o reconhecimento de direitos universais a todos os indivíduos. No que tange à formação das ideias modernas acerca do Estado e do Direito é o legado clássico do pensamento greco-romano e às trans- formações trazidas pela Igreja Romana Ocidental. A Filosofia grega, a República, o Direito Romano e Direito Canônico são raízes históricas mais antigas que deram origem aos valores político-jurídicos e às insti- tuições modernas dos séculos 14 e 16. Juntos (e misturados) também provocaram os fenômenos de dissolução das instituições até então he- gemônicas (Igreja Romana), o aumento do poder real com o surgimento 55 Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais das monarquias nacionais (França, Inglaterra), o enfraquecimento do papado, a emergência do reformismo filosófico, o aparecimento cultural do humanismo renascentista e a secularização da política... reproduzindo as condições para o desenvolvimento de uma cultura jurídica no interior das relações histórico-sociais da sociedade moderna europeia. Segundo Wolkmer (2005), muitos pensadores conseguiram captar a dinâmica destas mudanças estruturais e mostrar que elas desencadearam, conjuntamente com o complexo e plural sistema herdado de legalidade (Direito Romano, Canônico, Germânico, Feudal e Mercantil), as bases fundantes da moderna cultura jurídica europeia. Em verdade, nesse horizonte de continuidades e de rupturas em que se forja os pensamen- tos políticos e jurídicos modernos, é que se destacam, com muita força e criatividade, os movimentos do Humanismo Jurídico e da Reforma Protestante.1 No âmbito da economia agrário-senhoril, o Direito serviu para a instituição da produtividade econômica de mercado livre, pela siste- matização do comércio por meio das trocas monetárias e
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