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MATERIAL DIDÁTICO TÓPICOS ESPECIAIS EM TEOLOGIA U N I V E R S I DA D E CANDIDO MENDES CREDENCIADA JUNTO AO MEC PELA PORTARIA Nº 1.282 DO DIA 26/10/2010 Impressão e Editoração 0800 283 8380 www.ucamprominas.com.br 2 SUMÁRIO UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO ................................................................................... 03 UNIDADE 2 – DIREITO CANÔNICO ........................................................................ 04 2.1 Noções básicas de direito ................................................................................... 04 2.2 O Direito Canônico .............................................................................................. 05 2.3 A evolução do Código Canônico ......................................................................... 10 2.4 O Código de 1917 ............................................................................................... 16 2.5 O Concílio Vaticano II e o Código de 1983.......................................................... 18 UNIDADE 3 – ECUMENISMO / PLURALISMO RELIGIOSO ................................... 23 3.1 Conceitos e definições ........................................................................................ 23 3.2 Concílios Ecumênicos ......................................................................................... 28 3.3 O ecumenismo no Concílio Vaticano II ............................................................... 33 3.4 As Igrejas e o movimento ecumênico .................................................................. 35 3.5 O ecumenismo como fenômeno social ............................................................... 37 3.6 O Ecumenismo na América Latina ...................................................................... 40 3.7 Os desafios atuais ............................................................................................... 42 UNIDADE 4 – TEOLOGIA ECUMÊNICA .................................................................. 46 UNIDADE 5 – ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA ........................................................ 50 UNIDADE 6 – TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO .......................................................... 54 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 61 3 UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO A Teologia trata do mistério dos mistérios: Deus! E assim, o pressuposto dos pressupostos é a fé no mistério. E voltamos à teologia que tem como principal fundamento: Deus. Como diz Zampieri (2004), quem se propõe fazer teologia tem que saber que se está pisando em terreno misterioso e para isso é bom que soe aos ouvidos aquela voz de Deus dirigida a MOISÉS: “Tire as sandálias dos teus pés, porque este lugar em que está é uma terra santa” (Ex, 3,5). Só com essa atitude de reverência religiosa consegue-se penetrar e avançar no mundo da teologia. Sem essa atitude básica, corre-se sério risco de praticar uma teologia secularizada. Mais uma vez vamos afirmar, não temos a pretensão de desvendar tudo. Seria impossível é verdade, mas trazemos mais alguns conteúdos/contribuições para que conheçam das “coisas de Deus”, agora num viés mais prático, terreno, como por exemplo, a seara do Direito Canônico e as questões que envolvem o Ecumenismo e Pluralismo religioso. Discutiremos também um pouco sobre a Teologia Ecumênica, a Antropologia teológica e a Teologia da libertação. Ressaltamos em primeiro lugar que embora a escrita acadêmica tenha como premissa ser científica, baseada em normas e padrões da academia, fugiremos um pouco às regras para nos aproximarmos de vocês e para que os temas abordados cheguem de maneira clara e objetiva, mas não menos científicos. Em segundo lugar, deixamos claro que este módulo é uma compilação das ideias de vários autores, incluindo aqueles que consideramos clássicos, não se tratando, portanto, de uma redação original e tendo em vista o caráter didático da obra, não serão expressas opiniões pessoais. Ao final do módulo, além da lista de referências básicas, encontram-se outras que foram ora utilizadas, ora somente consultadas, mas que, de todo modo, podem servir para sanar lacunas que por ventura venham a surgir ao longo dos estudos. 4 UNIDADE 2 – DIREITO CANÔNICO 2.1 Noções básicas de direito Verdade seja dita, quantas pessoas perguntássemos seu entendimento acerca da palavra “Direito”, igual número de respostas variadas teríamos. Isso quer dizer exatamente que, embora seja uma pergunta simples, a resposta é bem complexa e vários seriam os motivos para tal complexidade, como, por exemplo, o conceito de direito varia de pessoa para pessoa, de época para época, e ainda conforme ideais políticos e filosóficos. Portanto, apesar de existirem várias definições para “Direito”, a que nos interessa mais de perto seria “o conjunto de normas jurídicas vigentes em um país ou sociedade”, tanto que costumamos ouvir muito: “Onde há sociedade ali está o direito”. De todo modo, não há como falar em direito sem citar Platão e Aristóteles, pelo menos. Para Platão, “Direito consistia (e ainda consiste) na busca de justiça, ou seja, é definido como regra que indica o justo”. O princípio fundamental é dar a cada um aquilo que ele merece. Esse princípio deve ser garantido pelo Estado. Platão considerava que o Estado deveria se estruturar conforme os três tipos da natureza humana: “há pessoas movidas pelo desejo, outras movidas pela coragem e outras movida pela razão”. Dimoulis (2011) explica que as pessoas movidas pelo desejo são o povo, as movidas pela coragem são os militares e os filósofos seriam os movidos pela razão, intelectualidade, estes deveriam concentrar o poder de decisão do Estado, e é por isso que, para Platão, “direito significava, então, dar a cada um aquilo que corresponde a sua natureza e função na sociedade”. Segundo Aristóteles, o direito só pode ser definido pelo Estado e deve ser empregado o critério de Justiça. Para Dimoulis (2011, p. 24) “O Direito é justo quando protege os interesses gerais da sociedade e, em particular, quando trata de maneira igual as pessoas que se encontram em situação igual”. 5 Para Aristóteles, há duas formas de igualdade: aritmética, que exprime a justiça comutativa (sinalagmática), e a geométrica, que representa a justiça distributiva (ou atributiva). A Justiça comutativa deve ser aplicada em caso de contratos ou danos. Segundo o princípio da igualdade aritmética, “um por um” (DIMOULIS, 2011, p. 24), todos devem cumprir suas promessas e indenizarem pelos danos causados na proporção de suas promessas ou danos causados a terceiros. A justiça distributiva é uma forma elevada de justiça, fundamentada na proporcionalidade e se aplica na distribuição de ofícios e das honrarias, a fim de determinar a posição social das pessoas. “O resultado da justiça distributiva é a desigualdade social. Cada um deve ter uma posição correspondente ao seu mérito e valor” (DIMOULIS, 2011, p. 24). Na ótica de Aristóteles, o direito se confunde com a justiça. Mas, por haver duas formas, deve ser decidido em cada caso se é aplicada a justiça comutativa ou a distributiva, sendo os resultados muito diferentes, ou seja, ora a justiça será comutativa, ora distributiva.Apesar de existirem muitos estudiosos que mereciam ser citados por seus ensinamentos acerca da justiça e do direito, vamos partir para o que nos interessa: o Direito Canônico! 2.2 O Direito Canônico De acordo com Lourencini (2013), o Direito apresenta-se onde existe vida em sociedade e, sendo a Igreja uma organização através da qual as relações sociais entre seus seguidores são manifestadas veementemente das mais variadas maneiras, necessário fez-se o nascimento de um ordenamento jurídico específico para atender aos anseios humanos e divinos, nos moldes essenciais da própria criação daquela instituição. Chama-se direito canônico ao ordenamento jurídico da Igreja católica, vale dizer, ao conjunto de fatores que estruturam a Igreja como uma sociedade juridicamente organizada. Utiliza-se também a expressão direito canônico para 6 fazer alusão à ciência que estuda o ordenamento canônico, como também à disciplina que o ministra nos cursos universitários (LOMBARDÍA, 2008). Para uma adequada compreensão da função que compete ao direito canônico na formação, na qualidade de disciplina universitária, e dos problemas mais significativos propostos pela ciência canônica em nossos dias, Lombardía considera útil, como ponto de partida, tratar três temas fundamentais: a) Todo ordenamento jurídico responde a determinados pressupostos ideológicos e culturais que justificam, com maior ou menor coerência, o sentido das estruturas por ele delineadas e as respostas que oferece para a solução dos conflitos entre os sujeitos que integram o grupo social em que se encontra vigente cada sistema de direito. Tornar-se-ia de todo impossível que um jurista pretendesse compreender determinado ordenamento sem tomar consciência de tais pressupostos, independentemente de que, pessoalmente – no exercício de sua liberdade intelectual e religiosa – concorde com eles ou os rejeite. Seria inútil, por exemplo, tentar entender o direito de obrigações da Rússia sem ter presente como se concebe o desfrute dos bens pelo homem no pensamento marxista, ou então o direito administrativo espanhol ou italiano prescindindo do sentido ideológico e cultural da ideia de Estado de Direito na área democrática ocidental. Por razões análogas, é impossível aproximar-se do estudo do direito canônico, que é o sistema de direito da Igreja católica, sem tomar em consideração como se concebe a Igreja, como grupo social, à luz de sua fé e que sentido tem o direito tomando-se como ponto de partida a perspectiva da autocompreensão da Igreja como comunidade de crentes. Quanto a sua posição em relação aos demais grupos religiosos, é preciso considerar que a Igreja católica crê na veracidade de sua doutrina e tem em conta que a verdade, em qualquer tempo, é única e não pode ser fracionada. Esta conclusão evidente é compatível com o fato de que a Igreja - conforme ensina o Concílio Vaticano II quando trata das relações da Igreja com as religiões não- cristãs – “nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e 7 propõe, todavia refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens” (Declaração Nostra aetate, nº 21). Essa afirmação do Magistério eclesiástico adquire força ainda maior quando se considera a visão da Igreja católica acerca dos grupos religiosos dela separados por razões dogmáticas e disciplinares, mas que têm em comum com os católicos a fé em Cristo. Referindo-se a estes cristãos separados, o Concílio Vaticano II ensina que “aqueles que creem em Cristo e foram devidamente batizados estão numa certa comunhão, embora não perfeita, com a Igreja católica” (Decreto Unitatis redintegratio, nº 3). Este marco doutrinal pressupõe antes de tudo a consciência que a Igreja católica possui do fato do pluralismo de grupos religiosos, dado que também têm inegável incidência no ordenamento canônico, especialmente em sua relação com o movimento ecumênico; isto é, “as atividades e iniciativas que são suscitadas e ordenadas, segundo as várias necessidades da Igreja e oportunidades dos tempos, no sentido de favorecer a unidade dos cristãos” (Decreto Unitatis redintegratio, nº 4). b) O direito canônico atualmente em vigor foi se decantando ao longo de dois milênios, durante os quais a Igreja – utilizando a técnica jurídica de cada momento histórico e forjando, no campo do direito, soluções originais que influíram decisivamente em outros ordenamentos jurídicos – foi remodelando suas instituições em uma trabalhosa busca da congruência entre sua fé e suas estruturas visíveis. Por isso, como qualquer outro ordenamento jurídico, o atual direito canônico não pode ser compreendido sem levar em conta sua evolução histórica. c) Além disso, é preciso ter presente que o direito canônico se desenvolve paralelamente ao direito da sociedade civil. O cristianismo trouxe, como uma de suas derivações teológico-políticas mais originais, uma visão dualista da ordem jurídica e social que implica não só uma aspiração de independência da Igreja em relação ao poder civil, mas também a afirmação da autonomia do temporal, uma de cujas consequências é a independência do poder civil diante de eventuais extralimitações do poder eclesiástico. As vicissitudes da aplicação dessa doutrina dualista e das descompensações que ocorreram em diferentes épocas, como 8 consequência de ingerências do poder civil no âmbito religioso, ou dos hierarcas da Igreja em questões temporais, constituem um dos temas mais apaixonantes da história do Ocidente cristão. Não obstante, Lombardía (2008) salienta duas facetas do problema: em primeiro lugar, é preciso ter em conta que os princípios religiosos que fundamentam o direito canônico afirmam ao mesmo tempo a necessidade de um direito profano – em termos atuais, o direito internacional e os ordenamentos jurídicos dos diferentes Estados – e um modo de entender as relações do direito canônico com os direitos estatais; em segundo lugar, deve-se considerar que a Igreja, enquanto entidade visível e presente na vida social, pode ser favorecida ou obstaculizada na aplicação do direito canônico a seu próprio âmbito, pelos ordenamentos dos Estados, que na sociedade secularizada de nossos dias raras vezes se identificam com o modo que a Igreja tem de conceber as relações entre direito canônico e direito estatal. Este dado influi não só nos problemas da interconexão entre sociedade civil e sociedade religiosa, mas também em não poucas soluções de estrito direito canônico, as quais – em que pese o fato de se projetarem de maneira direta sobre assuntos intraeclesiais – estão inevitavelmente condicionadas, para efeitos de sua aplicação, pelo ato da normativa dos Estados vigente em cada um dos âmbitos geográficos nos quais o direito canônico – universal por sua própria natureza – tem de cumprir sua função ordenadora da sociedade religiosa. Voltemos a elucubrações menos complicadas e mais práticas! O Direito Canônico surge pela necessidade e com o propósito de organizar e manter a ordem de acordo com os anseios da vida em comunidade e dos preceitos divinos estabelecidos e divulgados pela Igreja Católica. Muitos dos institutos existentes no direito ocidental moderno foram inspirados ou copiados do Direito Canônico, pela funcionalidade que este revela para com os fins a que foi criado. A Igreja, instituição de grande prestígio em todo o mundo, intitula-se como soberana dentro do seu âmbito de atuação, assim como o Estado o faz, o que 9 gera umapreocupação de ambos em manter um ordenamento jurídico eficaz aos seus propósitos e às necessidades nascidas das relações sociais manifestadas entre seus seguidores (no caso da Igreja) ou governados (no Estado). Por isso, o direito estatal e o eclesiástico colaboram-se mutuamente, haja vista que muitas das manifestações sociais reveladas no Estado são de interesse religioso e vice versa, como exemplo, o casamento e a instituição da família (LOURENCINI, 2013). Lembremos que o Direito Canônico difere do Direito Eclesiástico, pois este último tem por objetivo reger o relacionamento da Igreja considerada como um “Estado”, tanto em seus assuntos externos, com entes dotados de personalidade internacional, seja a Santa Sé, seja outros Estados (direito público externo), quanto em suas relações jurídicas com os habitantes do Vaticano (direito público interno) (CUNHA LOBO, 2006). A finalidade e o princípio norteador do Direito Canônico é a salus animarum1, a salvação das almas, baseado na fraternidade e na harmonia visando o “bem comum” de toda a sociedade em conjunto com o direito do Estado (direito laico) (SAMPEL, 1999, p. 119). Sob o aspecto histórico, o Direito Canônico teve na Idade Média uma relação de dependência recíproca com o Direito Romano, formando progressivamente o denominado “Direito Comum”. Tal influência não se revelou apenas pelo valor ético e moral do Cristianismo sobre as legislações dos povos europeus, mas caracterizou-se como verdadeira técnica promovida pelo Direito da Igreja no desenvolvimento e consolidação de inúmeros institutos do Direito Civil, do Processo Civil e do Processo Penal (CAVIGIOLLI, 1946 apud STEINWASCHER NETO, 2010). 1 Código de Direito Canônico – Codex Iuris Canonici, trad. port. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, 11 ed., São Paulo, Loyola, 1998. Cân. 1752 do Código de Direito Canônico: “Nas causas de transferência, apliquem-se as prescrições do cân.1747, respeitando-se a equidade canônica e tendo diante dos olhos a salvação das almas que, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema”; Cân.747, §2: “Compete à Igreja anunciar sempre e por toda a parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer questão humana, enquanto o exigirem os direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas” 10 Como observação final, alguns autores como Cruz e Tucci e Azevedo (2007) e Lima Filho (1996) adotam a divisão da História do Direito Canônico de acordo com a evolução de suas fontes. Vejamos: 1) Período de Formação, do século I ao IX. 2) Período de Estabilização, entre os séculos XI e XII. 3) Período de Consolidação do ordenamento jurídico canônico, do século XIII ao XV. 4) Período de Renovação, do século XVI até os dias atuais. Cunha Lobo (2006, p. 522) divide a evolução do Direito Canônico em três fases: 1) Ius antiquum, do nascimento de Cristo até o Decreto de Graciano (1150). 2) Ius novum, do Decreto de Graciano até o Concílio de Trento (1563). 3) Ius novissimum, do Concílio de Trento até nossos dias. 2.3 A evolução do Código Canônico Em artigo elaborado por Barreto (2006), a definição para Código, segundo o dicionário jurídico de Paulo Roberto Benasse, é um “conjunto de dispositivos que regulam uma matéria jurídica” (BENASSE, 2000, p 95). O primeiro código de que se tem notícia é o famoso “Código de Hamurabi”, rei da Babilônia nos anos 1728 a 1686 antes de Cristo. Este código foi escrito em um bloco de pedra, conservado até hoje no Museu de Paris, e seu objetivo era o de homogeneizar juridicamente o reino babilônico garantindo-lhe uma cultura comum. Apesar de poucas serem as pessoas que sabiam ler à época, apenas os escribas, o Código de Hamurabi expunha leis e as punições caso estas não fossem respeitadas, fixando assim, as diferentes regras da vida quotidiana. Em seu conteúdo, a ênfase foi dada ao roubo, à agricultura, à criação de gado, aos danos à propriedade, aos direitos da mulher, aos direitos da criança, ao direito do escravo, assim como o assassinato, à morte e à injúria. Sendo a 11 punição ou pena diferente para as diferentes classes de ofensores e vítimas. Suas leis não toleravam desculpas ou explicações para erros ou falhas: o código era exposto livremente à vista de todos, de modo que ninguém pudesse alegar desconhecimento da lei como desculpa para cometer um delito. Com o passar dos tempos, mais precisamente com a formação do Estados contemporâneos, surgiram, também, os códigos modernos, que diz que o Estado detém o direito de criar normas jurídicas, fazendo do código um conjunto de regras de aplicação igual e generalizada dentro dos liames do Estado. Foi assim que nasceram na Europa o código civil em 1806, o de comércio em 1807, o código de instrução criminal em 1808 e o código penal em 1810. Diferenciando-se um pouco deste conceito, há um outro tipo de código, o Código de Direito Canônico – CDC. Segundo o dicionário de Antônio Houaiss, canônico “está de acordo com os cânones, com as regras eclesiásticas, os dogmas da Igreja” (HOUAISS, 2001, p. 601). Pode-se dizer então que o CDC é a lei criada pela Igreja visando a sua própria administração. Como documento legislativo principal da Igreja, fundado na herança jurídico-legislativa da Revelação e da tradição, o CDC serve como guia que assegura a ordem da vida individual, social e das próprias atividades da Igreja, como também define certas regras e normas de ação (BARRETO, 2006). Lombardía (2008) conta que as primeiras gerações cristãs regeram a vida coletiva das comunidades aplicando os textos do Novo Testamento, a tradição apostólica, os costumes e as decisões adotadas pelos bispos em sua qualidade de sucessores dos Apóstolos. O perfil da organização jurídica da Igreja primitiva, nós o conhecemos pelas obras dos mais antigos escritores cristãos, denominados Padres Apostólicos: Inácio de Antioquia, Clemente Romano, Policarpo de Esmirna, entre outros. Algumas fontes de venerável antiguidade e autores desconhecidos nos informam da liturgia e da disciplina, a saber: doutrina do doze Apóstolos, ou Didaquê, composta na Síria, provavelmente durante o século I; 12 didascália dos doze Apóstolos, redigida no século III, na Palestina ou na Síria; constituições apostólicas, procedentes também da Síria ou da Palestina e escritas por volta do ano 380; tradição apostólica de S. Hipólito, escrita provavelmente por Hipólito de Roma por volta do ano 218. A tradição apostólica e a interpretação da Sagrada Escritura, nós as encontramos — sem solução de continuidade com os Padres Apostólicos — na Patrística, série numerosíssima de escritores, cujos limites cronológicos costumam ser fixados entre fins do século II e o século VIII. Entre os Padres e escritores orientais, destacam-se Orígenes, Basílio, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzo, João Crisóstomo e João Damasceno. Entre os ocidentais. Tertuliano, Cipriano, Jerônimo. Ambrósio de Milão e, muito especialmente, Agostinho de Hipona. Os primeiros textos cristãos que mostram um estilo legislativo – a saber, fórmulas breves com tom imperativo – são os cânones ditados pelos concílios, ou seja, assembleias de bispos, que se reúnem para deliberar e decidir sobre assuntos relativos à doutrina e à disciplina eclesiástica. Desde o século III existem dados de atividade conciliar. Os concílios reuniam com frequência os bispos de áreas geográficas mais ou menos amplas; entretanto, às vezes acorriam a eles bispos das mais longínquas regiões. Alguns destes últimos foram reconhecidos pelos papas como ecumênicos ouuniversais e se lhes reconhecia a autoridade de fixar autenticamente os conteúdos da fé e do poder supremo em questões disciplinares. Durante o primeiro milênio, houve numerosíssimos concílios particulares e oito concílios ecumênicos, a saber: Concílio I de Nicéia (325), I de Constantinopla (381), de Éfeso (431), de Calcedônia (45 I). II de Constantinopla (553), III de Constantinopla (680), II de Nicéia (787) c IV de Constantinopla (869-870) (LOMBARDÍA, 2008, p. 33). Os bispos de Roma, por sua vez, em virtude de seu primado sobre toda a Igreja, enviavam às diversas comunidades cristãs epístolas decretais ou, 13 abreviadamente, decretais, em que exerciam seu poder supremo em matéria dogmática e disciplinar. Às vezes as decretais eram ditadas pelos papas por iniciativa própria; outras vezes, faziam-no para dar resposta a consultas ou para dirimir controvérsias. A necessidade de ter à mão, para consultá-los, os cânones dos concílios e as decretais dos papas deu origem às Coleções canônicas, em uso nas diferentes Igrejas locais, que inicialmente recolhiam cânones dos concílios ecumênicos e dos concílios particulares de maior autoridade, em razão do prestígio das sedes episcopais em que se haviam reunido os concílios ou se estavam aplicando seus cânones. Não obstante, muito rapidamente tornou-se habitual incluir também nas coleções canônicas uma série mais ou menos ampla de decretais dos papas. As primeiras coleções eram cronológicas, mas a partir do século VII aparecem coleções ordenadas sistematicamente. A pesquisa descobriu uma infinidade de coleções canônicas do primeiro milênio. Aqui só é possível aludir a algumas das que são fundamentais na Igreja do Ocidente. Embora existam precedentes mais antigos, o primeiro grande movimento recopilador ocidental é o denominado Renascimento gelasiano, em fins do século V e princípios do VI. Nesse clima, surgem coleções canônicas na África, na Península Ibérica, na França e na Itália. Destaca-se o trabalho realizado em Roma por Dionísio, o Pequeno. Esse famoso monge cita, que recopilou cânones de concílios orientais (traduzidos para o latim) e africanos e decretais pontifícias. O fruto mais importante de seu trabalho é a Coleção Dionisiana, que se destaca entre as de sua época por seu espírito universal, o esforço por recolher somente textos autênticos e dar grande importância às decretais dos papas. A Coleção Hispânica foi o código fundamental da Igreja na Espanha até o século IX. Sua primeira redação é datada entre os anos 633 e 636 e foi atribuída a Isidoro de Sevilha. Contém textos de concílios orientais, africanos, franceses e espanhóis e decretais pontifícias. Redações ulteriores completam-na com textos posteriores, especialmente concílios toledanos. Originalmente cronológica, no século VIII, tornou-se uma Coleção Hispânica Sistemática. Diante de tendências localistas que se percebem em diversas coleções canônicas, especialmente as francesas anteriores a Carlos Magno, os pontífices 14 romanos fomentaram uma tendência ao universalismo, impulsionando a difusão do único material que era aceito por todos, a saber, as coleções antigas de cunho universalista, concretamente, a Dionisiana e a Hispânica. Responde a este propósito o envio pelo papa Adriano I a Carlos Magno (774) de uma coleção, baseada fundamentalmente na Dionisiana, que se denominou Coleção Adriana. Da fusão dessa coleção com a Hispânica, surgiu no século IX a Coleção Dacheriana. De cunho particularista foram, em contrapartida, os abundantes livros penitenciais, que proliferaram nesse mesmo período e cujo foco de elaboração mais importante foram as Ilhas Britânicas. Eram catálogos de pecados com indicação das penitências que deviam ser impostas a quem os cometesse. Os exemplos mais antigos são do século VII. O método utilizado pela Santa Sé para evitar o particularismo francês foi enviar a Carlos Magno, em fins do século VII, uma coleção – a Adriana – que não era senão uma reprodução com retoques de uma coleção de começo do século VI: a Dionisiana. Esse método, que tinha a vantagem de apresentar textos indiscutíveis de venerável antiguidade, oferecia o inconveniente de não poder resolver os novos problemas relacionados com a independência da Igreja com relação às estruturas do feudalismo. Para enfrentar esses problemas, surgiram na França falsificações em meados do século IX, ou seja, coleções de textos que se apoiavam no prestígio dos cânones antigos, mas que os apresentavam junto a textos alterados ou até mesmo redigidos por completo pelos recopiladores. A mais famosa de todas é a Coleção Pseudo-Isidoriana, houve, porém, ainda outros exemplos, como as Falsas Capitulares, de Benito Levita (LOMBARDÍA, 2008). O fato das falsificações testemunha o problema fundamental do direito canônico desde o século IX até o século XII: a falta de um exercício do poder legislativo, mediante atos de eficácia universal que, em continuidade com a tradição, enfrentassem os novos problemas fundamentais: fazer as necessárias reformas, libertar a Igreja das intromissões do poder temporal e estimular o sentido de unidade em torno de Roma. Desde o século XI, vai tomando corpo esta empresa, para a qual era necessário o reforço do prestígio do papado. A reforma da Igreja afrontada pelo 15 papa Gregório VII tem a esse respeito uma importância decisiva, que se reflete nas coleções canônicas. Pressagiam a reforma gregoriana o Decreto de Burcardo de Worms (Alemanha) e a Coleção dos Cinco Livros (Itália). São, ao contrário, fruto direto da reforma a Redação gregoriana do Decreto de Burcardo, o Dictaius Papae de Gregório VII, a Coleção dos 74 títulos, a Coleção de Anselmo de Luca e a Coleção dos cânones do Cardeal Deusdedit. Do primeiro milênio passamos ao dito Direito Canônico Clássico que corresponde ao período compreendido entre os anos 1140 e 1325. Ao longo desses quase dois séculos, elabora-se um sistema de direito canônico atual, coerente e completo, aplicado em todo o Ocidente cristão. Cumpriu um papel decisivo na história do direito por suas contribuições originais. Esse novo direito canônico foi possível graças ao concurso de três fatores fundamentais: a) Em primeiro lugar, uma autoridade legislativa indiscutível e decidida a cumprir sua função. Esse papel foi desempenhado pelos papas desse período, apoiados no prestígio do pontificado, que se consolidou após a reforma gregoriana, e na assinatura da Concordata de Worws (1122), que pôs fim à Querela das Investiduras, que havia originado graves tensões entre a Santa Sé e o Império romano-germânico. Os papas legislaram mediante decretais, que neste período eram soluções para casos concretos, elevados à decisão pontifícia por autoridades eclesiásticas inferiores. Essas respostas eram consideradas aplicáveis também aos casos análogos que pudessem ser suscitados. Além disso, é preciso ter em conta os cânones de alguns concílios desse período, incluídos na série dos ecumênicos, mas que se denominam também Concílios gerais para destacar suas diferenças com relação aos oito Concílios ecumênicos celebrados no Oriente durante o primeiro milênio. Nos Concílios gerais, o papel dos papas era de tal modo determinante que dirigiam até mesmo pessoalmente suas deliberações. Correspondem à época do direito clássico os Concílios I de Latrão (1123), II de Latrão (1139), III de Latrão (1179), IV de Latrão (1215). I de Lyon (1245), II de Lyon (1274) e o Concílio de Vienne, celebrado entre os anos de 1311 e 1312. 16 b) Em segundo lugar, uma técnica jurídica que proporcionou ao direito canônico, em boa parte, a recepção do direito romano. Aindaque a recepção seja um fenômeno que se consolida no século XII, o influxo do direito romano sobre o canônico nesse período tem precedentes já no século IX, do que seria um exemplo a coleção chamada Lex romana canonice compta. c) Uma ciência jurídica que interpretou e comentou os textos, assinalou as coincidências e discrepâncias entre direito romano e direito canônico e elaborou um corpo de doutrina. Nesse sentido, o surgimento das universidades foi decisivo, e algumas delas — especialmente a de Bolonha — converteram-se em focos de estudo do direito canônico. Vários dos grandes papas legisladores desse período foram antes professores de direito canônico ou discípulos, na Bolonha, de célebres canonistas (LOMBARDÍA, 2008). 2.4 O Código de 1917 Barreto (2006) resume que desde os tempos imemoriais, a Igreja Católica teve as suas normas, as suas regras, fossem elas de ação, de reparação ou mesmo de comportamento. Havia, entretanto dois problemas: a desorganização e a ineficiência de vários cânones. De modo que mesmo aquelas leis elaboradas a partir do Concílio de Trento, não foram reunidas, organizadas, sistematizadas, o que caracterizava sua ineficácia, dado que eram leis e mais leis, às vezes contrárias entre si, às vezes repetidas, às vezes ultrapassadas. O que por sua vez, fazia com que a Igreja enfrentasse várias crises, sobretudo de ordem disciplinar. Por conta disso vários membros da Igreja, quando da organização do Concílio Vaticano I solicitaram que tais leis, ou cânones fossem revistos e organizados em uma única coletânea a fim de “atender com maior certeza e segurança à cura pastoral do povo de Deus”. (CDC, 1984, p. XXVI). Assim, o Papa Pio X, que estava assumindo o seu pontificado, adotou essa tarefa, incumbindo ao cardeal Pietro Gasparri a missão de coordenar a compilação e reforma de todas as leis eclesiásticas e eis que culminamos com o primeiro CDC – 1917. 17 Ao optar pelo sistema hodierno de codificação e imitar o sistema das instituições do direito romano, sobre as pessoas, as coisas e as ações, os reformadores compilaram os textos em cinco livros num período de doze anos, com a participação de vários peritos, consultores e bispos de toda a Igreja. Depois que Pio IX e Leão XIII ordenaram algumas partes do Direito Canônico à maneira de codificação e Pio X, pelo Motu Proprio de 19 de março de 1904, reviu toda a elaboração multissecular do citado Direito e selecionou o material aproveitável, expurgando seus elementos retrógrados, reduzindo-o a expressões claras, adequando-o às necessidades, este foi apresentado, através do seu sucessor, Bento XV, ao mundo no dia 04 de dezembro de 1916. Entretanto, apenas no dia 27 de maio de 1917, solenidade de Pentecostes, é que foi promulgado o Código de Direito Canônico pela constituição Providentissima Mater Ecclesia, passando a vigorar somente um ano depois, no dia 19 de maio de 1918. O CDC de 1917 traz em seu bojo cinco livros, cujo conteúdo assim se dispõe: Livro primeiro – Normas Gerais – aborda as leis eclesiásticas dos costumes, a contagem dos tempos, os rescritos, os privilégios e as dispensas; Livro segundo – Das Pessoas – trata dos clérigos, dos religiosos e dos seculares; Livro terceiro – Das Coisas – enfoca os Sacramentos: batismo, confirmação, a santíssima eucaristia, a penitência, a extrema-unção, a ordenação, o matrimônio e os sacramentais, os lugares e templos sagrados, o culto divino, o magistério eclesiástico, os benefícios e outros benefícios eclesiásticos nos colegiados e os bens temporais da Igreja; Livro quarto – Dos processos – trata dos juízos, das causas de beatificação dos servos de Deus e da canonização dos beatos, do modo de proceder na transmissão de alguns assuntos e na aplicação de algumas sanções penais; Livro quinto – Dos delitos e das penas – versa sobre os delitos e as penas para cada um dos delitos. 18 A formação dos padres foi, sem dúvida, a mais importante medida adotada para a organização e renovação da instituição. O Código teve capítulo especial para esse assunto. No Livro II, primeira parte, intitulado “Do povo de Deus” no título III designado “Dos ministros sagrados ou clérigos” há, distribuídos em 61 cânones, as normas para a formação, a adscrição ou incardinação, as obrigações e direitos dos clérigos, bem como os motivos e como se dá a perda do estado clerical (BARRETO, 2006). No Brasil, por exemplo, a laicização advinda da proclamação da república, e a implantação do código deram ao eclesiástico uma nova imagem daquela que até então o identificava, ou pelo menos assim se propôs. O que se queria era acabar com o que vinha acontecendo com o regime de padroado, em que o governante do poder político decidia sobre as ordenações sacerdotais, caracterizando o ofício eclesiástico, como uma profissão como outra qualquer, com salário, inclusive. 2.5 O Concílio Vaticano II e o Código de 1983 A eleição de João XXIII (1958-1963), filho de camponeses, chamado pelo povo pobre italiano de Papa Buono, foi um verdadeiro marco na História da Igreja Contemporânea, pois foi ele que, em 25 de janeiro de 1959, anunciou a convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II, que se iniciou em 11 de outubro de 1962 e se encerrou em 8 de dezembro de 1965 (STEINWASCHER NETO, 2010). O Vaticano II foi uma assembleia de todos os bispos católicos, destinado, em sua origem, a promover reformas internas na Igreja, especialmente em relação à unidade dos cristãos. À Assembleia foram convidados observadores protestantes e ortodoxos. Os trabalhos do Concílio se estenderam por quatro sessões, com duração de aproximadamente dois meses cada uma, de 1962 a 1965. Por maioria de dois terços, o Concílio aprovou 4 Constituições dogmáticas e pastorais, 9 Decretos e 3 Declarações (BANDEIRA, 2000). A estrutura hierárquica da Igreja, determinada pela constituição dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, é formada especialmente pelo episcopado (bispos), presbíteros, 19 diáconos, religiosos e os leigos, estes últimos com maior inserção na Igreja através do sacramento da Crisma. Consolida-se como dogma o primado do Romano Pontífice (CONCÍLIO VATICANO II, 2002). O Novo Código de Direito Canônico, promulgado em 25 de janeiro de 1983, sob o pontificado do Papa João Paulo II, é um documento ecumênico, destinado a todos os homens de boa vontade, católicos e não-católicos, especialmente, em relação aos últimos, àqueles que participam de alguma atividade ou rito na Igreja Católica v.g., sacramentos como o casamento ou a crisma, padrinhos de batismo, associação católica (SAMPEL, 1999). O Novo Código, elaborado por diversas comissões, foi dividido em sete livros que veremos mais abaixo. Sob o aspecto jurídico, o Código de Direito Canônico é um texto autêntico (aprovado e promulgado pelo Papa) e único (pois contém todos os cânones vigentes no âmbito da Igreja Católica do Ocidente) (AZEVEDO, 2001). Outra fonte importante é o Código de Cânones das Igrejas Orientais, promulgado pelo Papa João Paulo II mediante a Constituição Apostólica Sacri Canones, em 18 de outubro de 1990, com o título Codex Canonum Ecclesiarum Orientalium. Está dividido em 30 títulos (SANCHEZ, 1997). A sistemática do Direito Canônico Oriental assemelha-se àquela ditada pelo atual Código de Direito Canônico. Uma das poucas diferenças está na organização eclesiástica oriental, que apresenta a figura jurídica do Patriarca, imediatamente inferior ao Papa na hierarquia da jurisdição, com um poder supra- episcopal (SANCHEZ, 1997 apud STEINWASCHER NETO, 2010). Dividido em sete livros, o novo Código de Direito Canônico,de 1983, ficou assim disposto: Livro primeiro – Das Normas Gerais – aborda as Leis e Costumes eclesiásticos, os Decretos Gerais e Instruções, os Estatutos e Regimentos e os Ofícios Eclesiásticos. Livro segundo - Do Povo de Deus – versa sobre as obrigações e direitos de todos os fiéis (clérigos e leigos), as Associações de fiéis, a estrutura 20 hierárquica da Igreja, a organização interna das igrejas particulares e os Institutos e Sociedades religiosas e seculares. Livro terceiro - Do Múnus de Ensinar da Igreja – trata do Ministério da Palavra, da Ação Missionária, da Educação escolar, dos Meios de Comunicação Social e dos Livros. Livro quarto - Do Múnus de Santificar da Igreja – aborda dos Sacramentos, do Culto Divino, do Culto dos Santos e das Imagens Sagradas, dos lugares e tempos sagrados. Livro quinto - Dos Bens Temporais da Igreja – trata da aquisição, administração, alienação dos bens eclesiásticos em geral. Livro sexto - Das Sanções na Igreja – debate acerca dos delitos e das penas em geral, do processo penal, da aplicação e cessação das penas, dos diversos tipos de delitos. Livro sétimo - Dos Processos – trata dos diversos foros e tribunais, das partes no processo, das ações e exceções, do julgamento das causas e dos recursos, dos processos para as declarações de nulidade do matrimônio e das ordenações. Trata ainda dos processos administrativos e dos recursos nestes processos. Nas anotações de Barreto (2006) com relação mais especificamente à formação sacerdotal, pouco se mudou da estrutura admissiva do código anterior, entretanto, no que diz respeito à doutrina e a vida eclesiástica, um novo modelo escolar foi edificado. O CDC aborda três aspectos cruciais para o desenvolvimento do seu modelo escolar; o primeiro deles está relacionado à criação dos seminários e o segundo foca a admissão dos candidatos ao sacerdócio e o terceiro e tão, ou mais importante quanto, é a formação dada aos seminaristas. Levando em consideração que os modelos escolares têm uma lógica generalista e, principalmente, uma fisionomia bem específica que incorporam, continuamente, um leque de 21 ideias, experiências e práticas educacionais renovadoras (ARAÚJO; BARROS, 2004, p. 01). E que, com a modernidade, e mediante os progressivos avanços das teorizações referentes à educação escolar, os modelos educativos em supremacia, basicamente, estavam referenciados por um tempo, horário, edifícios, classes, espaços, método, saberes e regulamentos, “donde a dimensão cognitiva da formação da pessoa humana, tendia a sobrepor-se, reforçando a aprendizagem como processo formativo principal [...]” (ARAÚJO; BARROS, 2004, p. 02). O que se vê, diante dos cânones propostos pelo CDC de 1983 é não só uma continuação do CDC de 1917 no tocante ao pressuposto de uma melhor formação sacerdotal, mas uma versão melhorada, pois além de evoluir naturalmente, acompanhando a modernidade, desconstrói a imagem de imparcialidade e radicalidade, característica do modelo adotado pela Igreja até o Concílio Vaticano II (BARRETO, 2006). De acordo com Nascimento (2005, p. 140), foi com o “Vaticano II” e as conferências episcopais de Medellín, Puebla e Santo Domingo que, dentre outras coisas, iniciou-se: a) A reforma litúrgica. b) A valorização de formas de piedade mais articuladas com a liturgia e a piedade popular, a difusão da Bíblia e a multiplicação dos círculos bíblicos, sementes da multiplicação das comunidades eclesiais de base. c) A criação de novos ministérios e a multiplicação dos agentes de pastoral, especialmente na área catequética e pastoral, a dinamização da pastoral vocacional. d) A extensão da ação pastoral a categorias e ambientes até então pouco assistidos (índios, negros, posseiros, pescadores, menores abandonados, mulheres marginalizadas, famílias incompletas, entre outros). e) A articulação da pastoral de conjunto e o planejamento pastoral. 22 f) A defesa dos direitos humanos, mesmo a preço de grandes sacrifícios e do risco da vida. g) A promoção de muitos organismos de participação e corresponsabilidade. h) A solidariedade entre Igrejas irmãs; os novos empreendimentos missionários. i) O ensinamento episcopal, com pronunciamentos oportunos sobre os grandes temas nacionais. UNIDADE 3 – ECUMENISMO / PLURALISMO RELIGIOSO 3.1 Conceitos e definições Ecumenismo é a busca da unidade; tendência à universalidade da união ou como encontrado no dicionário de significados: Ecumenismo é a busca da unidade entre todas as igrejas cristãs. É um processo de entendimento que reconhece e respeita a diversidade entre as igrejas. A ideia de ecumenismo é exatamente reunir o mundo cristão. Na prática, porém, o movimento compreende diversas religiões inclusive aquela não cristã. 23 O termo “ecumenismo”, tradução portuguesa do conceito grego oikoumene, é encontrado pela primeira vez em Heródoto (séc. V). Designa a “terra habitada”, no sentido geográfico. Desse sentido, passa-se ao de “habitantes da terra”, indicando toda a humanidade. Para os gregos, o elemento que unifica a oikoumene é a cultura helênica. Os romanos traduzem esse termo como ecumene, colocando como elemento unitivo a ordem jurídica, a organização política da orbis romanus. É neste sentido profano que se encontra o termo “ecumenismo” na bíblia. Na tradução dos LXX, ou seja, da Septuaginta, ele está, sobretudo, nos salmos e no livro de Isaías. No segundo testamento, oikoumene aparece 15 vezes com o sentido de: “a terra habitada” (Mt 24,14; Lc 4,5; 21,26; Rm 10,18; Hb 1,6); “os habitantes da terra” (At 17,31; 19,27; Ap 12,9); e, em relação com a orbis romanus (Lc 2,1; At 24,5). Na bíblia, “ecumenismo” ganha também um sentido religioso, indicando o mundo inteiro e que tudo o que esse possui recebeu de Deus criador e a Deus pertence: “a mim pertence o mundo e o que ele contém” (Sl 49,12; também Is 10,14). A oikoumene/mundo é onde se realiza a história da salvação, onde acontece o pecado, a ação dos profetas, a encarnação. Deus julgará o mundo (Is 10,14-23; Lc 21,6; Ap 3,10; At 17,31); envia os profetas e os apóstolos para mostrar o caminho da salvação (Sl 48,2; Mt 24,14); o mundo será salvo, enfim, por Cristo que o glorificará (Hb 2,5). Na patrística, ecumenismo ganha sentido eclesiológico, associado com frequência à Igreja católica espalhada por toda a terra. Os termos “católico” e ecumene se justapõe: a Igreja é católica, isto é, espalhada por toda a terra (oikoumene). Orígenes entende que a doutrina e a piedade cristãs encheram a terra (De principiis, L. IV, n.5) e trata dos que habitam a oikoumene da Igreja de Deus (Ps., XXXII, 8). Para Basílio, a Igreja deve ser difundida por toda a terra e 24 chegar a todas as pessoas, agrupando nela a diversidade das condições humanas (Homilia in Ps., 48). Ao longo da história do cristianismo, o termo ecumenismo foi considerado como expressão de comunhão na fé pela adesão às doutrinas definidas nos “concílios ecumênicos”. Com a divisão dos cristãos, sobretudo a partir do século XVI, o ecumenismo vai ganhando o sentido de esforço para restabelecer a unidade rompida. É nesse sentido que, a partir do século XIX, surgem iniciativas de diálogo entre Igrejas separadas, dando origem ao atual “movimento ecumênico” (WOLFF, 2014). Vejamos algumas definições propostas por Congar (1967) com livre tradução: É um movimento constituído por um conjunto de sentimentos, de ideias, de obras e instituições, de reuniões ou de conferências, de cerimônias, de manifestaçõese de publicações que tendem a preparar a reunião, não apenas dos cristãos, mas das diversas Igrejas hoje existentes, numa nova unidade. O ecumenismo começa quando se admite que os outros – não apenas os indivíduos, mas também os grupos eclesiásticos como tais – tem também razão, ainda que afirmem coisas diferentes de nós; que possuem também verdade, santidade, dons do Deus, embora não pertençam a nossa cristandade. Há ecumenismo quando se admite que outro é cristão não apesar de sua confissão, mas nela e por ela. O ecumenismo não é, de modo algum, o resultado sincretista de uma soma de Lutero ou de Calvino e de Santo Tomás do Aquino, ou do Gregório Palamas e Santo Agostinho. Mas enfocado a partir da vertente teológica que nos interessa, implica um esforço na direção de duas qualidades da vida crista que às vezes parecem opostas uma a outra, mas que devem ser alcançadas e conservados conjuntamente: a plenitude e a pureza (NAVARRO, 1995). Movimento suscitado pelo Espírito Santo com vistas a restabelecer a unidade de todas os cristãos a fim de que o mundo creia em Jesus Cristo. Desse movimento participam aqueles que invocam o Deus Trino e confessam Jesus Cristo como Senhor e Salvador a que, nas comunidades onde ouviram o 25 evangelho, aspiram a uma Igreja do Deus, una e visível, verdadeiramente universal, enviada a todo o mundo para que este se converta ao evangelho e se salve para glória de Deus. De um ponto de vista estritamente religioso, e segundo as descrições expostas, parece que três elementos essenciais devem ser ressaltados no ecumenismo: originalidade, atitude e desejo de diálogo, espiritualidade. a) Originalidade: o ecumenismo é uma experiência inédita, original, sem precedentes na história do cristianismo. Sua novidade radical funda-se no fato do que as Igrejas confrontadas em diálogo – superada já a etapa da polêmica – mantêm viva a convicção de que não se esgotaram as possibilidades na intelecção do mistério que pressupõe a realidade eclesial das outras comunidades cristãs. Por esse motivo, ele contradiz de maneira frontal à teoria de que tudo está dito e experimentado na Igreja e na teologia. A dimensão utópica do projeto ecumênico afasta, por um lado, o perigo de cair no ceticismo ou no relativismo diante da verdade que possa emanar das outras Igrejas, e, por outro, supera a dificuldade que se afigurava intransponível de chegar a ver um dia a comunhão de Igrejas separadas secularmente não apenas por uma leitura distinta da boa nova de Jesus, mas também por alguns condicionamentos sociais, geográficos e culturais que as moldaram de maneiras tão radicalmente diversas. b) Atitude e desejo de diálogo: nas descrições anteriores do ecumenismo, e apesar de sua notável variedade, aparece sempre como pano de fundo a atitude dialogar. Cabe dizer que o ecumenismo é fundamentalmente uma atitude. É também muitas outras coisas - organização, estrutura, estudo sistemático, entre outras, mas no fundo uma atitude do espírito que se define como dialogar. A história das relações entre os cristãos e as Igrejas separadas é a história do eterno monólogo. Foi a longa noite da polêmica. Cada Igreja dava sua opinião sobre si mesma, mas também sobre as outras. Por isso, a condenação era a forma habitual das relações interconfessionais. Apenas um era o agente que se interpretava a si mesmo e dava, além disso, a interpretação dos demais. Na atitude dialogar, pelo contrário, existem dois agentes. Cada um dá a própria 26 interpretação de si mesmo, mas escuta a do outro. Isso porque existe vontade de escutar. Leva-se a sério o que os outros dizem de si mesmos. A atitude e desejo de diálogo, entretanto, chega cedo ou tarde à convicção das dificuldades que pressupõe a transposição dos limites da compreensão das outras Igrejas. Dificuldades devidas ao peso da própria tradição, dos próprios costumes, da maneira característica de apresentar e viver a fé cristã. Mas a atitude de diálogo, precisamente por sua consciência das limitações, produz uma incessante mobilidade nas formulações da problemática da desunião cristã. Por isso, é uma atitude criativa. Trata-se da tentativa contínua de novos enfoques, já que partir de um único gera oposições quase sempre irredutíveis. Ela rastreia novas pistas, forja utopias. Incomoda, sem dúvida, para aqueles que se conformam com a situação, anômala, mas segura, da desunião cristã. c) Movimento espiritual. Os cristãos sabem que no fundo da problemática ecumênica – depois dos anos belamente ingênuos das origens – existem uma espécie de acordo implícito e uma consciência muito viva de que as divisões são humanamente insuperáveis e de que a unidade terá do ser obra de Deus. A partir dessa convicção fundamental surge espontaneamente uma atitude orante (NAVARRO, 1995). À medida que se passaram os anos, foi-se comprovando que a questão ecumênica não consiste apenas em resolver problemas doutrinais isolados – o tema da intercomunhão, ou o do reconhecimento mútuo dos ministérios, ou ainda o da aceitação de uma autoridade comum, entre outros. A fé cristã é um corpo total – uma cosmovisão – que implica também determinado comportamento ético e uma maneira de ver e enfrentar a vida. Contudo, as Igrejas cristãs se desuniram também nessas cosmovisões que transcendem os problemas meramente doutrinais. E, assim, cada comunhão cristã foi encarnando-se de tal maneira numa particularidade que a universalidade do evangelho sofreu deteriorações irreparáveis e foram gerados novos fatores de divisão. Pense-se, por exemplo, na apresentação latina do catolicismo romano, ou no caráter germânico do luteranismo, ou na britanização do anglicanismo. O 27 problema se agravou quando essas visões – marcadamente eurocêntricas – foram apresentadas aos povos do Terceiro Mundo como inseparavelmente unidas à essência do evangelho. A incapacidade humana para enfrentar a questão ecumênica aparece assim em todo o seu realismo. A separação não provém só de pontos doutrinais diferentes. A divisão atinge a própria visão da vida, a leitura profunda do evangelho, a concepção do homem e suas relações com Deus. Por isso, praticamente desde o início do movimento ecumênico, as assembleias e reuniões ecumênicas foram quase sempre precedidas por “cultos de abertura” e se enclausuraram em preces interconfessionais. O Concílio Vaticano II chegará a afirmar que a “prece” é a alma do ecumenismo (URB) (NAVARRO, 1995). O chamado ecumenismo espiritual, que tem em Paul Couturier um de seus grandes inspiradores e na Semana de Oração pela Unidade (18-25 de janeiro) sua mais vigorosa expressão, é reflexo da consciência que existe com relação à eficácia da prece para obter a reconciliação cristã. A unidade – dessa perspectiva – revela-se então mais como “mistério” que como “problema”, e chegar a ela requer uma atitude orante, humilde, de súplica e oração. Não é de estranhar que o próprio padre Congar tenha declarado certa ocasião que se aproximara mais do anglicanismo participando dos ofícios vespertinos da “Igreja da Inglaterra” do que lendo grandes livros escritos por autores anglicanos (NAVARRO, 1995). O ecumenismo, portanto, implica uma vida teologal. Dentro do “mosteiro invisível” em favor da unidade – a expressão é de Paul Couturier, que com ela designa a oração silenciosa através do mundo que se eleva ao Pai por intermédio de Jesus – há algumas vivências na fé e na caridade que fazem o cristão viver num clima espiritual como se já se houvesse adiantado o tempo definitivo do reino, embora na realidade ele ainda não Tenha chegado à sua plenitude. Viver nessa dialética é o que dá sentido teologalà experiência ecumênica (NAVARRO, 1995). Pensando pelo viés sociológico, o ecumenismo tem encontrado terreno fértil para reflexões e debates, principalmente a partir do século XX. Vamos analisar um pouco o ecumenismo como movimento social e indo mais longe, de renovação?! 28 3.2 Concílios Ecumênicos A realização de grandes assembleias de bispos é uma prática que atravessa a milenar história da Igreja, animando-a constantemente. Os concílios nasceram espontaneamente, influenciados pelos modelos do sinédrio hebraico e do senado romano. Tudo indica que os encontros de bispos de uma mesma região, sancionando a designação de um novo bispo feita pela comunidade local através da consagração, estão no núcleo desta práxis que já germinava desde o século II. A periodicidade dos concílios não é regular, e pode dar a impressão de algo aleatório. A razão de sua convocação é a resolução de problemas doutrinários, como o enfrentamento das heresias, a necessidade urgente de reformas, os desafios à autoridade da igreja ou a reflexão e deliberação sobre outros temas significativos em determinados períodos históricos. É nos concílios que a Igreja reflete sobre si, ao se voltar para as questões que afetam a sua vida. Em geral, eles marcam os seus momentos mais significativos de vida eclesial. Também deve-se levar em consideração seu longo tempo de preparação e, principalmente, o de sua aplicação e recepção (ALBERIGO, 1997, p. 5). Em todo concílio, a Igreja estuda como resolver os seus problemas, estabelece princípios ou normas, e organiza a sua implementação. Com base nesta história da práxis conciliar, o papa Paulo VI se dirigiu aos participantes do Concílio Vaticano II dizendo: A vós, Veneráveis Irmãos, pertencerá indicar-nos as medidas para purificar e rejuvenescer a face da santa Igreja. Mas novamente vos manifestamos o nosso propósito de favorecer tal reforma: quantas vezes nos séculos passados este intento aparece associado à história dos Concílios! Pois seja-o uma vez mais, e desta não já para extirpar na Igreja determinadas heresias e desordens gerais que, graças a Deus, agora não existem, mas para infundir novo vigor espiritual ao Corpo Místico de Cristo, como organização visível, purificando-o dos defeitos de muitos dos seus membros e estimulando-o a novas virtudes (PAULO VI, 1964, nº 22). 29 Tecnicamente, um concílio ecumênico é aquele que reúne representantes da Igreja do mundo inteiro. Baseados nessa definição, os sete primeiros concílios principais são considerados ecumênicos, conforme se autonomeou o Concílio de Calcedônia em 451. Aos sete primeiros concílios, de Niceia em 325 ao de Niceia II em 787, quase sempre compareceram bispos das partes oriental e ocidental do Império Romano, na época considerado o mundo inteiro, de onde vem o nome “ecumênico”. Mas apenas poucos bispos ocidentais participaram. O concílio de Niceia I, por exemplo, contou com a participação de 220 bispos, mas apenas alguns dentre eles eram do Ocidente. O Concílio de Constantinopla I (381) teve apenas bispos orientais. Esses foram majoritários nos Concílios de Éfeso (431), Calcedônia (451), Constantinopla II (553) e Constantinopla III (680-681). As igrejas ortodoxas consideram apenas os primeiros sete concílios como ecumênicos, ao contrário dos 21 reconhecidos pela Igreja Católica como gerais ou ecumênicos. O Concílio de Latrão I (1123), o primeiro após o cisma do Oriente, se autonomeou geral, pois nenhum bispo oriental dele participou. Já o Concílio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (1431-1445) se autonomeou ecumênico, pois nessa ocasião os bispos ocidentais e orientais trataram da reunificação da Igreja (BELLITTO, 2010, p.22-3). Os leigos participaram nos atos oficiais de numerosos concílios ecumênicos. O imperador Constantino abriu o Concílio de Niceia com um discurso em latim. Os comissários imperiais vigiaram sobre a ordem externa. Na Idade Média e no Concílio de Trento, estiveram presentes príncipes seculares ou foram representados pelos seus embaixadores. A função do imperador romano nos antigos concílios foi externa, de tutela da ordem. Na Idade Média e no Concílio Tridentino, os leigos são os representantes das potências seculares, cuja colaboração aparece necessária para os trabalhos que se referem à ordem pública e às matérias mistas. No Vaticano I, não foram feitos convites aos governos. Algumas questões vêm à tona: os leigos, com base no sacerdócio universal e na sua colaboração no apostolado, poderiam ou deveriam ser ao menos ouvidos sobre temas que lhes dizem respeito, como apostolado dos leigos 30 ou matrimônio? Os leigos, uma vez convidados, deveriam ser admitidos como peritos ou como membros com direito a voto? Não há fundamento para que os leigos não possam ser ouvidos nos temas que lhes dizem respeito, como são ouvidos sacerdotes especialistas em teologia ou direito canônico, mesmo não sendo membros do concílio com direito a voto. Um passo para a solução foi dado por Paulo VI, ao admitir leigos qualificados como auditores nas Congregações Gerais a partir da II Sessão do Concílio Vaticano II. Os concílios sempre zelaram pela unidade da Igreja, mas nem sempre a puderam realizar. Após o primeiro e quarto concílios ecumênicos, seguiram longas disputas. Tanto o cisma do Oriente quanto a divisão da Igreja no século XVI ocorreram sem que os concílios pudessem impedir. No Concílio de Lyon II e no de Ferrara-Florença, a união com os orientais foi oficialmente restaurada, mas não se efetivou porque em ambos os casos se baseava em motivos políticos, sem que fossem vencidas as resistências internas na Igreja grega. O Concílio de Trento não pôde ser um concílio de união, pois quando se reuniu a ruptura eclesial já era uma realidade. As negociações com os protestantes alemães (1551-1552) mostraram que as concepções sobre autoridade e estrutura dos concílios ecumênicos eram muito divergentes. Na véspera do Concílio Vaticano I, o apelo de Pio IX aos protestantes para retornarem à Igreja Católica foi rejeitado. Ao se preparar o Concílio Vaticano II, foi fundado um secretariado para a união dos cristãos, com resultados positivos no próprio Concílio e nos passos para reaproximação das igrejas (JEDIN, 1970, p. 249-50). Como anda a doutrina atual? Lima (2014) explica que as principais tradições do cristianismo têm concepções diferentes sobre a autoridade conciliar, a organização interna do concílio e o efeito de suas decisões. Uma vez que os cristãos ortodoxos só reconhecem os primeiros sete concílios e têm dificuldade em admitir um novo sínodo pan-ortodoxo, a tradição reformada ocidental acaba tendo posições oscilantes, tanto sobre os concílios passados, quanto sobre um futuro concílio ecumênico. A tradição católico-romana acentuou a referência ao papa, sobretudo a partir da alta Idade Média, a quem cabe a direção do concílio, incluindo 31 convocação, determinação do regulamento, funcionamento diário, transferência e encerramento. O caminhar da história parece mostrar uma progressiva redução da ecumenicidade dos concílios: de universais a ocidentais, do primeiro para o segundo milênio; de ocidentais a romanos, da primeira para a segunda metade do segundo milênio (ALBERIGO, 1997, p.9). A reaproximação e o diálogo ecumênico a partir do Vaticano II podem resultar, futuramente, em uma reversão desta tendência (LIMA, 2014). Na Igreja Católica, o papel dos concílios ecumênicos está relacionado ao colégio dos bispos e sua cabeça, isto é, ao grupo estável e permanente formado pelos bispos e seu chefe, o bispo de Roma. Segundo o Concílio Vaticano II:A natureza colegial da ordem episcopal, claramente comprovada pelos Concílios ecumênicos celebrados no decurso dos séculos, manifesta-se já na disciplina primitiva, segundo a qual os Bispos de todo o orbe comunicavam entre si e com o Bispo de Roma no vínculo da unidade, da caridade e da paz; e também na reunião de Concílios, nos quais se decidiram em comum coisas importantes, depois de ponderada a decisão pelo parecer de muitos; o mesmo é claramente demonstrado pelos Concílios Ecumênicos, celebrados no decurso dos séculos. [...] O supremo poder sobre a Igreja universal, que este colégio tem, exerce-se solenemente no Concílio Ecumênico. Nunca se dá um Concílio Ecumênico sem que seja como tal confirmado ou pelo menos aceito pelo sucessor de Pedro; e é prerrogativa do Romano Pontífice convocar estes Concílios, presidi-los e confirmá-los (LG nº 22). Os concílios ecumênicos guardam e desenvolvem o depositum fidei. Este “precioso depósito” da doutrina da fé que foi confiado (1 Tm 6,20; 2 Tm 1,14), não é um simples catálogo de artigos ou um inventário de coisas justapostas. Mas, dada a natureza da mensagem da revelação e do acontecimento salvífico de Cristo, trata-se da totalidade das riquezas e dos bens da salvação entregues à Igreja. Ela os comunica aos crentes, atualizando seus conteúdos com notável prudência, a fim de tornar inteligível, crível e fecundo o patrimônio imutável desta verdade, ao mesmo tempo em que vai ao encontro das exigências e das interrogações dos homens e dos tempos (POZZO, 2014). 32 Os concílios ecumênicos também adaptam o exercício do oficio sacerdotal e pastoral, bem como a legislação da Igreja, às diversas exigências dos tempos. Quanto maior for esta adaptação tanto mais será a sua eficácia e importância na história. Com relação à sua interpretação, a perda dos protocolos dos trabalhos conciliares, no caso de Niceia, a precariedade dos mesmos nos concílios medievais, e mesmo a sua longa indisponibilidade, no caso do Concílio de Trento, fortaleceram uma hermenêutica que prescindiu do contexto histórico das decisões e também da natureza do evento conciliar que as expressou. Houve um encastelamento em uma interpretação jurídico-formal, por longo tempo patrocinada pela congregação romana responsável pelos concílios (ALBERIGO, 1997, p.10). A assistência do Espírito Santo, sobre a qual se apoia a inerrância do concílio ecumênico em questão de fé e de costumes, não deve ser confundida com a inspiração da Sagrada Escritura. Entre os teólogo se discute se essa assistência deve ser entendida só de modo negativo, como preservação do erro, ou como positiva cooperação. Esta última posição corresponde melhor ao pensamento dos antigos concílios (JEDIN, 1970, p.248-50). 3.3 O ecumenismo no Concílio Vaticano II O Concílio Vaticano II (1962-1965) teve como um dos seus principais objetivos promover a unidade dos cristãos (Unitatis redintegratio, nº 1). Na intenção do papa João XXIII, o ecumenismo não era um tema de segunda importância, mas um dos elementos que configuram a Igreja conciliar, em seu ser e em seu agir. E para se fortalecer como um objetivo do Vaticano II, o ecumenismo perpassa a teologia, a espiritualidade, a eclesiologia, a missiologia do concílio. Tornou-se uma perspectiva da discussão dos padres conciliares em praticamente todos os 16 documentos conclusivos do concílio, tendo como passagens mais significativas: LG 8.13.15; CD 16; OT 16; DV 22; AA 27; GS 92; PO 9; AG 6.15.29.36.39. 33 O Vaticano II foi um fato ecumênico. Mostram isso o seu objetivo, a explicitação da dimensão ecumênica das diferentes temáticas do concílio, a presença dos observadores cristãos não católicos romanos na Assembleia dos padres conciliares. A publicação do Decreto sobre o Ecumenismo, Unitatis Redintegratio, em 21 de novembro de 1964, foi a expressão maior da convicção ecumênica da Igreja conciliar. Vejamos um pouco sobre o Decreto Unitatis redintegratio (Ur): O Decreto sobre o De oecumenismo foi tratado nos três períodos do concílio. Isso serviu como atualização ecumênica aos padres conciliares, o que possibilitou o documento final, em três capítulos: princípios do ecumenismo (cap. I), a prática do ecumenismo (cap. II) e a relação com as tradições eclesiais do Oriente e do Ocidente, considerando as especificidades de cada uma (cap. III). O Decreto entende que a divisão dos cristãos “contradiz abertamente a vontade de Cristo”, é “escândalo” e prejudica a pregação do Evangelho (UR nº 1). Para mudar essa realidade surge o movimento ecumênico, por moção do Espírito Santo, como uma “divina vocação” e “graça” a todos os cristãos. Dentre os princípios que orientam a ação ecumênica, o concílio destaca: o entendimento que a Igreja de Cristo é una e única, pois sendo Cristo um só, uma só é a comunidade que Ele quer para todos seus discípulos (Jo 17,21); a unidade cristã é significada e realizada na Eucaristia; tem como princípio o Espírito Santo e como modelo a Trindade; é vivida em uma só fé, num mesmo culto e na fraterna concórdia; e, se organiza na história em fidelidade aos Doze, tendo Pedro à sua frente (UR nº 2). É reconhecida a eclesialidade das Igrejas oriundas das reformas dos séculos XVI-XVIII, conferida pelos elementos ou bens da Igreja de Cristo nelas presente, como a Palavra de Deus, a vida da graça, a fé, a esperança e a caridade (UR nº 3; LG nº 15). Por esses elementos, “o Espírito de Cristo não recusa a servir-se delas como meios de salvação” (UR nº 3). 34 Nas orientações práticas para a ação ecumênica, o Decreto destaca: os esforços por eliminar palavras, juízos e ações que separam os cristãos (UR nº 4). Enfatiza: o ecumenismo deve interessar a todos, fiéis e pastores (UR nº 5); ele possibilita a renovação da Igreja e a fidelidade à sua própria vocação (UR nº 6); exige a conversão do coração e da mente, a humildade e a generosidade para com os outros (UR nº 7); se fortalece na oração comum, “alma de todo o movimento ecumênico” (UR nº 8); é fundamental o conhecimento mútuo, pelo estudo das doutrinas, espiritualidades e costumes das tradições eclesiais (UR nº 9), bem como a formação ecumênica (UR nº 10); propõe um método na exposição da doutrina que considere a hierarquia das verdades (UR nº 11); incentiva a cooperação das Igrejas na ação social (UR nº 12). 3.4 As Igrejas e o movimento ecumênico As diferentes tradições cristãs logo se integraram no movimento ecumênico, desde suas origens. Nas associações e no movimento missionário, havia representantes de praticamente todas as Igrejas do protestantismo, do anglicanismo e das tradições ortodoxas. Os cristãos protestantes são pioneiros das iniciativas ecumênicas. Dentre eles destacam-se o metodista John Mott (1865-1955), o luterano Nathan Soderblon (1866-1931), o reformado holandês Willem Adolf Visser’t Hooft (1901-1985), os metodistas Philip Potter (1921) e Emílio Castro (1927-2013). Esses, entre muitos outros, contribuíram significativamente para que as Igrejas luteranas, reformadas e metodistas aderissem ao movimento ecumênico desde suas origens. 35 Os anglicanos foram impulsionados ao diálogo ecumênico pelo Movimento de Oxford (1833-1845), que buscava recuperar as tradições primitivas do cristianismo, que muito favoreceu para o diálogo com a Igreja católica, sobretudo pelos esforços de Henry Newmann (1801-1890). Esse diálogo foi fortalecido pelas Conversações de Malinas (1921-1926), junto com o padre Portal e o cardeal Mercier. A Conferência de Lambeth, em 1920, apresentou quatro elementos fundamentais para a reconstituição da unidadeda Igreja: as Escrituras, o Símbolo de Nicéia e dos Apóstolos, os sacramentos e os ministérios. Com relação aos ortodoxos, ainda em 1902, o patriarca Joaquim III de Constantinopla publicou uma encíclica que muito incentivava o ecumenismo. Em 1920, os doze metropolitas do Sínodo de Constantinopla também publicaram uma carta encíclica propondo a criação de uma liga das igrejas e apresentando elementos pastorais para isso. A Igreja católica teve duas posições frente ao movimento ecumênico. a) Resistência ao diálogo: reiteradas vezes as autoridades católicas recusaram o convite para participarem das iniciativas ecumênicas. Entre outras: em 1910, pela ocasião da Conferência de Edimburgo; em 1925, na criação do Movimento Vida e Ação; em 1927, na criação do Movimento Fé e Constituição; em 1948, na assembleia de fundação do Conselho Mundial de Igrejas. A primeira vez que a Igreja romana enviou delegados oficiais em um encontro ecumênico foi em 1961, na assembleia do Conselho Mundial de Igrejas, em Nova Delhi. b) Integração na caminhada ecumênica: a abertura para o ecumenismo na Igreja católica surge apenas em meados do século XX, com a instrução do Santo Ofício Ecclesia Catholica (conhecida como De motione oecumenica), de 20 de dezembro de 1949, reconhecendo a importância do movimento ecumênico e apresentando os critérios para os católicos dele participarem. Trata-se do primeiro pronunciamento oficial da Igreja Católica Romana que valoriza o movimento ecumênico, entendendo-o como uma “inspiração da graça do Espírito Santo”. O caminho da Igreja católica para o ecumenismo foi aberto em cinco direções: 36 1) Na teologia – as primeiras intuições ecumênicas no meio católico são encontradas em teólogos do século XIX, sobretudo Johann Adam Möhler (1796- 1838) e John Henry Newmann (1801-1890), que propunham uma concepção de unidade eclesial que supera a perspectiva institucionalista, juridicista e visibilista, própria da eclesiologia da “sociedade perfeita” de então. Mas os esforços mais consequentes surgem mesmo no século XX, tendo como marco a obra de Y. M. J. Congar, Chrétiens Désunis. Principes d´um oecuménisme catholique (1937). Na mesma direção estão K. Rahner, H. Urs Von Balthasar e J. Danielou, apenas para citar os que mais influência tiveram no Concílio Vaticano II (WOLFF, 2014). 2) Na espiritualidade – o Papa Leão XIII, no seu Breve Providae Matris (1865), recomendou uma Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos na primeira semana de Pentecostes. Em 1867, escreve, na Carta Encíclica Divinum illud múnus, sobre o valor da oração em que se pede que o bem da unidade dos cristãos possa amadurecer. A Semana de Oração ganha força originalmente no meio protestante e anglicano, a partir de 1908. Quando a Society of the Atonement se tornou corporativamente membro da Igreja católica, o Papa Pio X concedeu, em 1909, a sua bênção oficial à Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos no mês de janeiro. Mas foi Bento XV que a introduziu de maneira definitiva na Igreja católica. Em 1937, o padre Paul Couturier (1881-1953), junto com Paul Wattson (1863-1940), fortaleceram ainda mais a Semana de Oração pela Unidade, integrando decididamente as comunidades católicas. É significativo o fato de o papa João XXIII ter anunciado a realização do Concílio Vaticano II no dia 25 de janeiro de 1959, encerramento da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. 3) Na criação de organismos ecumênicos – o monge beneditino Lambert Beauduin (1873-1960) fundou, em 1925, os “monges da união”, na Bélgica, e, em 1939, a revista Irenikon, ainda hoje uma das principais nos meios ecumênicos. Uma série de outros organismos ecumênicos vão surgindo pela iniciativa de católicos romanos, como o CentroIstina (Paris), o movimento Una Sancta (Alemanha), o Centro Pro Unione (Roma). 37 4) Na busca do diálogo estável – entre os anos 1921 e 1925, um grupo de teólogos anglicanos e católicos romanos desenvolveram conversações doutrinais (Malines) de fundamental importância para a unidade das duas Igrejas. 5) Na ação social – cristãos de diferentes igrejas solidarizaram-se nos esforços pela promoção humana, sobretudo durante os dois grandes conflitos mundiais (WOLFF, 2014). 3.5 O ecumenismo como fenômeno social Navarro (1995) citando Willaime (1989) lembra que o ecumenismo como fenômeno social tem um primeiro impulso num contexto em que se valorizam ao extremo os intercâmbios ideológicos e culturais. Sem dúvida, ajudam a agilizar e potencializar esses espaços fluidos de circulação interideológica os “mass media”, que se transformam em verdadeiras mediações para o movimento ecumênico. A evolução do sentimento religioso contemporâneo influi também – do ponto de vista sociológico – no desenvolvimento do ecumenismo. Willaime fala da elevação do nível cultural da população e do questionamento dos esquemas de “autoridade”, o que leva diretamente à individualização do sentimento religioso e, às vezes, a uma religiosidade preferencialmente vivida, experimentada, em definitivo emocional. Mas ambos os fenômenos se traduzem numa relativização das diferenças confessionais, ou pelo menos num aparar das arestas claramente antagônicas entre as diversas cristandades. Porém, a abertura ecumênica – apesar de sua especificidade – é parte de um capítulo muito mais amplo no qual as Igrejas procuram resituar-se de maneira nova na sociedade. Nessa busca de um novo protagonismo social, as Igrejas se veem destinadas a encontrar-se diante das outras Igrejas numa relação que não pode estimular o confronto polêmico do passado, devendo favorecer as correntes autocríticas no interior de cada uma das comunidades eclesiais, a fim de que elas possam ter um melhor encontro entre si. Um ecumenismo como movimento social de renovação, com o desejo expresso de integrar-se ao contexto histórico do momento, motor de criatividade eclesial e de diálogo aberto, instância crítica que prenuncia uma unidade interconfessional muito próxima, eis algumas das características que, a partir de 38 perspectivas sociológicas, foram ressaltadas no primeiro estágio do movimento ecumênico. Mas os próprios sociólogos detectaram que esse tipo de ecumenismo está chegando ao fim. Isso não significa necessariamente a “morte do ecumenismo”, mas o final do ecumenismo como movimento social. Numa segunda fase, o movimento ecumênico apresenta algumas características sem dúvida diferentes que permitem falar da evolução ou, se se preferir, da transformação do ecumenismo. Como primeiro dado desse novo estágio, cabe afirmar sua institucionalização. Mais que um “acontecimento” ou um “movimento” – como gostavam de falar os pioneiros –, ele é hoje uma “instituição”. A instituição ecumênica é produto de várias premissas, sobressaindo entre elas a mudança das classes sociais que protagonizam a ação ecumênica. Os especialistas, as hierarquias, os teólogos acabaram por colocar os “profetas” e os “visionários” nos postos de direção (NAVARRO, 1995). Os primeiros intelectuais leigos foram substituídos – inclusive nos níveis da base – pelos novos agentes que, segundo todos os indícios, não estão capacitados a levar adiante o tipo de crítica exercido na fase anterior. Nem os casamentos mistos, nem os jovens que se aproximam de espaços ecumênicos – pense-se nos milhares de jovens que visitam anualmente Taizé2 – nem tampouco os párocos e pastores interessados no intercâmbio ecumênico em níveis locais parecem dispostos a manter o protagonismo que caracterizou a primeira etapa. Mas essa substituição dos agentes sociais do ecumenismo teve um efeito que vai defini-lo – de acordo com a perspectiva
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