Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Modulares Direito Processual Penal Apostila Emerson Castelo Branco 1. NOÇÕES INICIAIS 1.1 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS 1.1.1. Sistema inquisitório Trata-se de sistema processual essencialmente autoritário, possuindo como característica mais destacada a concentração dos poderes de investigar, de acusar e de julgar no mesmo órgão do Estado. Principais características: a) produção de provas de ofício; b) ausência de interferência do acusado; c) sigilo absoluto (investigação secreta); d) ausência de contraprova; e) acusado é presumido culpado; f) ausência de fundamentação das decisões; g) acusado visto como objeto, e não como sujeito de direitos; h) busca ilimitada da verdade, independentemente dos meios utilizados (ex.: tortura). Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró observa que “o sistema inquisitório baseia-se em um princípio de autoridade, segundo o qual a verdade é tanto melhor acertada, quanto maiores forem os poderes conferidos ao investigador.”1 Mesma linha de raciocínio desenvolve Jorge de Figueiredo Dias, observando que o processo penal inquisitório é “dominado, exclusivamente, pelo interesse do Estado, que não concede ao interesse das pessoas qualquer consideração autônoma.”2 1.1.2 Sistema misto (ou híbrido) 1 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 105. 2 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Coimbra: Almedina, 1988, p. 37-40 O sistema processual penal misto (ou híbrido) foi constituído a partir dos ideais iluministas, com o propósito de combater o sistema inquisitório. Caracteriza-se pela divisão do processo em duas fases: fase inquisitiva e fase acusatória. Principais características: a) primeira forma de proteção do acusado; b) na primeira fase processual, a instrução é realizada pelo Juiz ou pelo Ministério Público, com o intuito de colher as provas necessárias para a acusação; c) acusado passa a ser visto como sujeito de direitos; d) garantias mínimas do acusado; e) destaque para a presunção de inocência. O sistema misto é criticado porque, na primeira fase processual, a investigação pelo membro do Ministério Público ou pelo Juiz da Instrução prejudica o acusado, principalmente por causa do perigo de lesão à imparcialidade do julgamento. 1.1.3 Sistema acusatório Pode-se chamar acusatório, conforme Luigi Ferrajoli, “todo sistema processual que configura o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o processo como iniciativa da acusação, a quem compete provar o alegado, garantindo-se o contraditório.”3 Principais características: a) sistema garantista; b) rígida separação das funções de investigar, acusar e julgar; c) acusado como sujeito de direitos; d) posição de igualdade com órgão acusador; d) publicidade plena dos atos processuais; e) oralidade; f) contraditório; g) direito subjetivo à prova; h) adoção do sistema do livre convencimento 3 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, 3.ª ed., São Paulo: RT, 2010, pág. 34 motivado; i) a iniciativa da colheita das provas não parte do juiz; j) em regra, o juiz não age de ofício; Atualmente, discorre Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, “não existem sistemas acusatórios ou inquisitórios ‘puros’. Nenhum legislador estrutura o processo penal de forma totalmente acusatória ou inteiramente inquisitória.”4 NOTE! A polícia judiciária exerce a função investigatória. Não lesa o sistema acusatório o controle externo do Ministério Público, nos termos do inc. VII, do at. 129, da CF/88: “São funções institucionais do Ministério Público: VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior.” QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! A Lei n.° 11.690/2008 fixou nova redação ao art. 156, do CPP, prevendo a possibilidade de o juiz determinar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida (inc. I). E ainda determinar, antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante (inc. II). A partir daí, surgiu a seguinte questão: É inconstitucional a prova produzida de ofício pelo juiz? Não, porque a atividade probatória desenvolvida pelo juiz é exceção, e não regra. 1.1.4 Modelo adotado no Brasil O sistema acusatório foi adotado no processo penal brasileiro, destacadamente a partir da CF/88, apesar de possuir algumas 4 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 101-102. reminiscências do sistema inquisitório, como a produção de provas de ofício prevista no art. 156, do CP. NOTE! Se o inquérito policial é inquisitório, porque o sistema brasileiro não é considerado misto, mas sim acusatório? Simplesmente porque o sistema brasileiro não possui fase processual inquisitória. Cumpre esclarecer que o inquérito policial não é fase do processo judicial, constituindo apenas procedimento administrativo. Em outras palavras, o inquérito policial é uma fase pré-processual. QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! Conforme decidiu o STJ, é acusatório o sistema brasileiro, sendo vedado ao juiz o poder de investigação. Pode ouvir outras testemunhas (art. 209, CPP), desde que não substitua a acusação. São diferentes iniciativa probatória e iniciativa acusatória, aquela é lícita, claro é, ao juiz em atitude complementar – por exemplo, tratando-se de diligências cuja necessidade se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução (atual art. 402). Já a iniciativa acusatória – o desempenho das funções que competem a outrem – bate de frente com princípios outros, entre os quais o da imparcialidade do julgador, e o da presunção de inocência do réu, e o do contraditório, e o da isonomia.5 5 STJ HC 143889/SP 21/06/2010 1.2 FONTES DO PROCESSO PENAL 1.2.1 Fontes materiais (ou substanciais) Sinteticamente, é o Estado. São as fontes denominadas de “produção”, isto é, aquelas de onde se originam as normas do processo penal. Nos termos do inc. I, do art. 22, do CPP, compete à União legislar privativamente sobre processo penal: “Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho.” 1.2.2 Fontes formais (ou de cognição) São aquelas, na exata observação de Julio Fabbrini Mirabete, “que revelam o direito, que são os seus modos de expressão.”6 As fontes formais dividem-se da seguinte forma: - Imediatas (ou direta): Constituição Federal e as leis que compõem a legislação processual penal federal infraconstitucional. Parte da doutrina acrescenta as convenções e os tratados de direito internacional e mais recentemente as súmulas vinculantes. - Mediatas (ou indiretas, ou supletivas): Analogia, costume e princípios gerais do direito. NOTE! A doutrina, a jurisprudência e o direito comparado não são fontes, mas sim formas de interpretação da Lei. Contudo, alguns autores consideram que são espécies de fontes mediatas. 6 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal, 18.ª ed., São Paulo: Atlas, 2006, pág. 32 1.3 PRINCÍPIOS DO PROCESSO PENAL1.3.1 Princípio do devido processo legal Cândido Rangel Dinamarco identifica o devido processo legal como princípio constitucional, expressando o conjunto de garantias “que de um lado asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes de natureza processual e, de outro, legitimam a própria função jurisdicional”.7 Por essa razão, esclarece José de Albuquerque Rocha, “não basta às partes terem o direito de acesso ao Judiciário. Para que o socorro jurisdicional seja efetivo é preciso que o órgão jurisdicional observe um processo que assegure o respeito aos direitos fundamentais”.8 Enunciado no inciso LIV, do art. 5.º, da CF/88, sob o postulado de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, deste decorre o denominado devido processo penal, com uma série de peculiaridades observadas por Rogério Lauria Tucci: “a) acesso à Justiça Penal; b) do juiz natural em matéria penal; c) de tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo penal; d) da plenitude de defesa do indiciado, acusado, ou condenado, com todos os meios e recursos a ela inerentes; e) da publicidade dos autos processuais penais; f) da motivação dos atos decisórios penais; e g) da fixação de prazo razoável de duração do processo penal”.9 7 DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 82. 8 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 46. 9 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 69. Como decorrência do princípio do devido processo penal, impõe-se como regra a independência das instâncias administrativa e penal, conforme orientação do STJ.10 1.3.2 Princípio da ampla defesa O princípio da ampla defesa encontra-se, juntamente com o contraditório, no inciso LV, do art. 5.º, da CF/88, preceituando que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A defesa não é uma generosidade, ressalta Rui Portanova, “mas um interesse público. Para além de uma garantia constitucional de qualquer país, o direito de defender-se é essencial a todo e qualquer Estado que se pretenda minimamente democrático”.11 A ampla defesa pressupõe a garantia do contraditório, porque somente existirá quando se possibilitar ao réu o direito à informação e a oportunidade de reação. José Frederico Marques leciona que “o direito de defesa, em sua significação mais ampla, está latente em todos os preceitos emanados do Estado, como substractum da ordem legal, por ser o fundamento primário da segurança jurídica na vida social organizada.”12 Principais consequências do princípio da ampla defesa: a) a defesa deve se manifestar após a acusação, justamente para ter condição de contraditar as imputações; b) a imprescindibilidade da defesa técnica; 10 STJ HC 77228 / RS 13/11/2007 11 PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 125. 12 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000. Vol. II, p. 301. c) somente serão consideradas válidas as provas produzidas sob o pálio da ampla defesa. A ampla defesa divide-se em autodefesa (exercida pelo próprio acusado) e defesa técnica (exercida pelo advogado constituído ou pelo Defensor Público). A autodefesa não é obrigatória, podendo o acusado deixar de exercê-la. Entretanto, a defesa técnica é imprescindível, sob pena de nulidade absoluta do processo. QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! O STJ julgou recentemente caso em que o advogado de um réu deixou de apresentar três peças processuais, mesmo tendo sido devidamente intimado. A não apresentação de uma peça processual, por si só, não acarreta nulidade. Todavia, caso seja provado efetivamente prejuízo para a defesa o processo será nulo. Nesse sentido, súmula 523 do STF: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.” 1.3.3 Princípio do contraditório O princípio do contraditório, previsto no inc. LX, da CF/88, constitui um dos traços característicos da tendência garantista do sistema acusatório.13 Direito subjetivo público constitucional de natureza processual do acusado, é definido por Joaquim Canuto Mendes de Almeida como a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”.14 13 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, 3.ª ed., São Paulo: RT, 2010, pág. 32 14 ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 81. Traduz-se no binômio informação/reação: a informação é necessária, a reação possível15. Para ser pleno, envolve a fase de conhecimento e fase de reação. Somente a prova penal produzida em juízo pelo órgão da acusação penal, sob a égide da garantia constitucional do contraditório, pode revestir-se de eficácia jurídica bastante para legitimar a prolação de um decreto condenatório.16 Por isso, considera Leonardo Greco, “ninguém pode ser atingido por uma decisão judicial na sua esfera de interesses sem ter tido ampla possibilidade de influir eficazmente na sua formação”.17 A maior ou menor idoneidade de uma prova, considerada no momento de sua avaliação pelo juiz, observa Paulo Tonini, depende da forma como a mesma foi elaborada, isto é, saber se passou por um procedimento controlado ou não.18 Exemplo disso são as provas colhidas no inquérito policial, somente válidas depois de confirmação em juízo, com a oportunidade de manifestação das partes.19 Alguns desdobramentos do princípio do contraditório: a) direito de obter todas as informações do processo; b) direito de contraditar as 15 Neste sentido, vide: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 73. 16 STF HC 73.338, 1.ª Turma, DJ 19.12.1996 17 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Jurídica, ano 51, n. 305, mar. 2003, p. 72 -73. 18 TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 70. 19 Neste sentido, vide: SUANNES, Adauto e COSTA, Vagner da. Procedimento investigatório realizado pelo Ministério Público e o devido processo penal. Revista Jurídica, ano 52, n. 318, abril de 2004, p. 93. imputações atribuídas ao acusado; c) direito de requerer e de acompanhar a produção das provas; d) direito de se manifestar em relação às provas. NOTE! A defesa pode apresentar reperguntas? Sim. Trata-se de uma decorrência do princípio do contraditório, conforme julgado do STJ: “O interrogatório é essencialmente meio de defesa. No entanto, se do interrogatório exsurgir delação de outro acusado, sobrevém para a defesa deste o direito de apresentar reperguntas. Tal decorre de um modelo processual penal garantista, marcado pelo devido processo legal, generoso feixe de garantias. A vedação do exercício de tal direito macula o contraditório e revela nulidade irresgatável.”20 QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! Excepcionalmente, o contraditório poderá ser postergado ou diferido,como acontece em relação às provas colhidas na fase de investigação criminal, porque não existe ainda acusação formal. 1.3.4 Princípio da dignidade da pessoa humana Todos os princípios do devido processo penal constitucional são inspirados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Ingo Wolfgang Sarlet conceitua a dignidade da pessoa humana como “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um com plexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável.”21 20 STJ HC 83875 / GO 04/08/2008 21 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 60. A tutela constitucional da dignidade da pessoa humana concede ao suspeito ou ao acusado a recusa em submeterem-se a situações degradantes, como, por exemplo, exames de partes íntimas indevidos.22 Tratando-se de princípio estruturante, deve orientar toda a interpretação do direito processual penal, evitando práticas que deixam de lado o sistema constitucional em vigor. 1.3.5 Princípio da duração razoável do processo Contemplada na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e no inc. LXXXVIII, do art. 5.°, da CF/88, acrescentado pela Emenda Constitucional 45 (Reforma do Poder Judiciário), o princípio da duração razoável do processo pode ser conceituado como o direito assegurado a todas as pessoas, no âmbito judicial e administrativo, a um prazo razoável de duração do processo e aos meios que garantam a sua celeridade. De acordo com o STJ, em situações excepcionais, o excesso de prazo pode ser justificado em razão da complexidade do processo: “Assim, a visão do excesso de prazo não se submete apenas à análise de parâmetros aritméticos, mas depende das complexas circunstâncias do procedimento, justificadoras, muitas vezes, de eventual demora no julgamento. Portanto, razoável se mostra a dilação do término do processo, pela natureza da persecutio criminis, para a perquirição da verdade real e exercício tanto da ampla defesa quanto do contraditório em caso de processos complexos.”23 1.3.6 Princípio da proporcionalidade 22 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana. Notícia do direito brasileiro, n. 7, Brasília, 2000, p. 363-372. 23 STJ HC 111215 / SP 13/04/2009 O princípio da proporcionalidade é depreendido do disposto no §2.º, do art. 5.º, da CF/88, preceituando que os direitos e garantias expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios a ela inerentes. Por ser considerado harmonizador dos princípios constitucionais que regem direitos fundamentais dentro do Estado Democrático de Direito, costuma-se, na exata colocação de Willis Santiago Guerra Filho, identificar o princípio da proporcionalidade como um “princípio dos princípios”, na medida em que busca uma “solução de compromisso”, prestando-se a resolver o grande dilema da interpretação constitucional.24 Destaca-se como a forma mais eficaz de interpretar os direitos fundamentais à luz dos valores inseridos na Constituição e arraigados na história e na cultura de uma sociedade; ou seja, insere-se numa nova fase da hermenêutica constitucional, na qual se busca o resgate dos valores 25. 1.3.7 Principio do silêncio (da não produção de provas contra si mesmo, da não auto incriminação, ou ainda nemo tenetur se detegere) Concebido a partir das críticas históricas ao sistema de obtenção de provas por meio de tortura, consiste no direito assegurado ao acusado de não contribuir para a sua própria condenação, decorrente da própria dignidade da pessoa humana. Trata-se ainda de legítimo meio de defesa, inserido no inc. LXIII, do art. 5.°, da CF/88: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o 24 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2001, p. 61. 25 LIMA, Francisco Meton Marques de. O resgate dos valores na interpretação constitucional. Fortaleza-CE: ABC Editora, 2001, p. 22. de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. O direito ao silêncio, define João Cláudio Couceiro, é “um direito genérico da pessoa a não colaborar na produção de prova que venha a prejudicá-la”26. Consoante o pensamento de Maria Elizabeth Queijo, “o fundamento do privilégio contra a auto-incriminação é a dignidade do ser humano e a proteção de certo âmbito de sua privacidade — a qual deve ser garantida por um Estado de Direito — prevalecendo sobre a finalidade de averiguar a verdade em um procedimento investigatório, ainda que ninguém possa conhecer melhor esta verdade que o próprio investigado”.27 Em verdade, o princípio da não auto-incriminação deriva justamente do direito ao silêncio. Por outro lado, o direito ao silêncio se presta para assegurar a não auto-incriminação de um acusado28. NOTE! O direito ao silêncio do acusado obstaculiza normas que incentivam o acusado a colaborar na colheita de provas? Não. Diversos dispositivos prevêem a colaboração como causa de diminuição de pena, como é o caso das figuras do arrependimento posterior e da delação premiada, ou mesmo como circunstância atenuante de pena. QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! O direito ao silêncio é assegurado ao acusado, não se estendendo à testemunha. Em verdade, a testemunha 26 COUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 148. 27 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 81. 28 ESPINOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado. São Paulo: Bookseller, 2000. Vol. 3, p. 16-18. somente pode alegar o direito ao silêncio, quando a informação que possui lhe auto-incrimina. Afora essa hipótese, não pode se recusar a prestar as informações necessárias, assumindo o compromisso de dizer a verdade. 1.3.8 Princípio da verdade real É o princípio segundo o qual o juiz não pode exercer a função de mero condutor da atividade probatória desenvolvida pelas partes, podendo em determinadas situações agir de ofício para complementar o conjunto probatório e dirimir dúvidas. Obviamente, em regra, a iniciativa da perquirição probatória cabe às partes. Contudo, em face da necessidade de se aproximar da verdade dos fatos, reconstruindo os acontecimentos, o juiz não estará obrigado a esperar a iniciativa das partes, como frequentemente procede no direito processual civil. No processo penal, o juiz faz a história do processo.29 Algumas decorrências do princípio da verdade real, de acordo com o STJ: 1.ª. O órgão do Ministério Público, assim como a Autoridade Policial, indubitavelmente, podem realizar diligências investigatórias a fim de elucidar a materialidade de crime e indícios de autoria, mediante a colheita de elementos de convicção, na busca da verdade real, observados os limites legais e constitucionais.30 2.ª Com base no princípio da verdade real, o juiz poderá indeferir as diligências manifestamente procrastinatórias: “Caracterizadoo intuito procrastinatório da defesa, eis que a oitiva das testemunhas 29 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Conan, 1995, p. 43 30 STJ RMS 22050 / RS 24/09/2007 domiciliadas em outros países em nada influenciaria na busca da verdade real, pois inexiste referência de que, à época dos supostos delitos, as referidas testemunhas estivessem no local dos fatos, ou sequer no Brasil.”31 3.ª A necessidade de oitiva extemporânea de testemunha no processo penal tem como base o princípio da verdade real. 4.ª A readequação da denúncia à realidade dos fatos tem como fundamento o princípio da verdade real, não havendo de se falar em lesão ao princípio da ampla defesa se foi concedido ao acusado a oportunidade de produzir provas em relação ao fato novo, bem como contraditá-lo amplamente. Em busca da verdade real, o juiz pode determinar, inclusive de ofício, a realização de um novo interrogatório do acusado, nos termos do art. 196, do CPP: “A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes”. NOTE! Se uma testemunha não for elencada pela parte, o juiz poderá ouvi-la? Sim. Guiado pelo princípio da verdade real, buscando dirimir alguma dúvida, o juiz pode determinar de ofício a ouvida da testemunha, conforme dispõe o art. 209, do CPP: “O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes”. NOTE! O juiz pode requisitar de ofício documentos? Em outras palavras, poderá determinar apresentação de documentos, ainda que as partes não demonstrem interesse? Sim. Está autorizado, sob a égide do princípio da verdade real, pelo art. 234, do CPP: “Se o juiz tiver notícia 31 STJ HC 62751 / PB 04/06/2007 da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, independentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos autos, se possível.” Mesmo raciocínio aplica-se em relação à busca e apreensão, conforme dispõe o art. 242, do CPP: “A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes”. No âmbito do processo civil, prevalece a verdade formal. Por isso mesmo, se uma parte não contesta o alegado pela outra, o fato não contestado é tido como verdadeiro. No processo penal, isso é inadmissível, justamente por causa do princípio da verdade real, corolário do estado de inocência. Nem mesmo o princípio da verdade real é considerado absoluto. Assim, não se admite prova ilícita, salvo para provar a inocência do acusado. Também não se admite, nos termos do art. 479, do CPP, no Tribunal do Júri, a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de 3 (três) dias úteis. Outro exemplo é a revisão criminal, exclusiva da defesa, não podendo ser proposta contra o réu, nem mesmo diante de novas provas. 1.3.9 Princípio da audiência bilateral. Decorrente do princípio do contraditório, estabelece que toda prova admite uma contraprova, sob pena de não vir a ser admitida, conforme reiterados julgados do STJ: “O princípio do contraditório traduz a bilateralidade do processo, ou seja, assegura às partes a isonomia processual e a igualdade de condições, de modo que, como o órgão acusatório e a defesa não tiveram, até o momento da audiência de inquirição das testemunhas da acusação, em decorrência da natureza sigilosa da diligência (art. 8.º, da Lei n.º 9.296/1996), acesso ao teor da degravação da interceptação telefônica licitamente obtida, o equilíbrio processual, pilar do citado corolário, foi mantido. Não tendo sido a instrução criminal encerrada, caberá à defesa, após a ciência bilateral do teor da diligência, intervir no processo e contraditar o laudo de degravação de interceptação telefônica.”32 1.3.10 Princípio da regularidade procedimental A justiça processual requer regularidade procedimental, igualdade entre as partes, imparcialidade do julgador, contraditório e impugnabilidade das decisões.33 1.3.11 Princípio da proibição de provas ilícitas A garantia da proibição das provas ilícitas tutela o direito constitucional à licitude da prova, decorrente da nova ordem constitucional, guiada por um sistema de garantias fundamentais segundo o qual o Estado deve imprimir em todas as suas atividades a força normativa da Constituição34. A vedação constitucional de provas ilícitas insere-se ainda na esfera de proteção à intimidade como direito que constitui atributo da personalidade; processualmente, relaciona-se com o devido processo legal.35 Em sentido estrito, entende-se por prova ilícita “aquela prova colhida infringindo-se normas ou princípios colocados pela Constituição e pelas leis, freqüentemente para a proteção das liberdades públicas e dos 32 STJ RHC 15134/SP 07/03/2005 33 Neste sentido, vide: MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. A interpretação da ampla defesa no processo penal conforme a Constituição. Revista Jurídica, ano 49, n. 289, nov. 2001, p. 89. 34 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra, Portugal: Almedina, 2003, p. 347. 35 AZEVEDO, David Teixeira de. O interrogatório do réu e o direito ao silêncio. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, vol. 682, p. 288, ago. 1992). No mesmo sentido: ROSSETTO, Enio Luiz. A confissão no processo penal. São Paulo: Atlas, 2001. p. 154. direitos da personalidade e daquela sua manifestação que é o direito à intimidade” 36. Neste sentido, constituiriam provas ilícitas aquelas colhidas através de violação de domicílio, de interceptação telefônica ilegal, de lesão ao sigilo profissional, de prática de tortura, dentre outras práticas que lesam diretamente direitos e garantias de natureza constitucional. Cabe observar que a prova “proibida” é o gênero, dividindo-se, doutrinariamente, em prova ilícita, quando é ofendida norma de direito material; e prova ilegítima, quando norma de direito processual. Em sentido amplo, o conceito de prova ilícita abrange as provas ilícitas em sentido estrito (violação de direito material) e as provas ilegítimas (violação de direito processual). 1.3.12 Princípio da presunção de inocência (ou estado de inocência, ou ainda da não-culpabilidade) A presunção de inocência constitui um dos pilares do sistema processual penal denominado “garantista”. E por que “garantista”? Porque assegura que as pessoas não serão condenadas com base em suspeitas, ou em meras conjecturas, ou mesmo provas insuficientes para a formação de um juízo de certeza. Esse “estado de inocência” somente pode ser afastado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Justamente por isso decorre da presunção de inocência a proibição de prisões automáticas, isto é, sem séria fundamentação legal, bem como a antecipação da sanção penal por meio da execução provisória, 36 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 8.ª ed., 2004, p. 156. conforme, inclusive, já decidiu em reiteradas decisões o Supremo Tribunal Federal. A Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, prevê expressamente, no art. 8.2, entre as garantias processuais mínimas que “toda pessoa acusada de um delito tem o direito quese presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente a sua culpa.”37 O inciso LVII, do art. 5.º, da CF/88 preceitua: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.” Gustavo Badaró analisa o princípio da presunção de inocência sobre vários enfoques: “a) como garantia política do estado de inocência; b) como regra de julgamento no caso de dúvida: in dubio pro reo; c) como regra de tratamento do acusado ao longo do processo”.38 1.3.13 Princípio da obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais A motivação das decisões judiciais, incorporada na Constituição Federal, observa Suzana de Toledo Barros, é assegurada pelo princípio do devido processo legal.39 É o princípio segundo o qual o juiz tem a obrigação de explicar sua decisão. Em outras palavras, trata-se da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, prevista expressamente no inc. IX, do art. 93, da CF/88: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder 37 STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana: sobre Direitos Humanos e sua integração ao processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 90. 38 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 280. 39 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p 61. Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”. QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! A antiga e sólida orientação dos tribunais superiores era no sentido de que o princípio da obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais sofria uma exceção na hipótese do recebimento da denúncia ou da queixa, porque esta decisão não precisaria de fundamentação. Contudo, a partir da reforma do CPP (Lei n.° 11.719/2008), o referido ato de recebimento da denúncia ou da queixa passou a exigir fundamentação, ainda que sucinta.40 Ainda assim, continua sendo uma mitigação ao princípio da obrigação de motivação das decisões judiciais, porque o STJ entende que a fundamentação pode ser sucinta. 1.3.14 Princípio da publicidade O princípio constitucional da publicidade é característico do modelo processual “acusatório”, refletindo, inclusive, na consecução de outros princípios como o contraditório e a ampla defesa, na medida em que se traduz em qualidade de informações, necessária para assegurar a “paridade de armas” e a mais ampla defesa. Destaca-se por proclamar a plena publicidade dos atos processuais. Isso não significa que seja absoluto, porque obviamente comporta exceções, nos termos do inc. LX, do art. 5.°, da CF/88: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. 40 STJ RHC 23709/RS 14/06/2010 Apregoa-se a existência do princípio da publicidade como extensão do devido processo legal.41 Na verdade, guarda relevância também na própria fiscalização do Estado na persecução penal, quando se procura averiguar o cumprimento dos preceitos do devido processo legal. NOTE! Exceções previstas no CPP ao princípio da publicidade: 1.ª - O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação (§6.°,do art. 201); 2.ª - O juiz presidente advertirá as partes de que não será permitida qualquer intervenção que possa perturbar a livre manifestação do Conselho e fará retirar da sala quem se portar inconvenientemente (§ 2o, do 485); 3.ª - Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes (§ 1o , do art. 792). 1.3.15 Princípio da oralidade Conforme decidiu o STJ, o princípio da oralidade relaciona-se diretamente com o princípio da verdade real, constituindo uma das formas de assegurar o último: “Titulariza, pois, o Juiz o poder-dever legal 41 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 69. de proteger a produção da prova oral, assegurando, em obséquio da verdade real, a liberdade subjetiva das testemunhas e vítimas.”42 O princípio da oralidade terminou ganhando mais relevância com a recente reforma do CPP, objetivando a celeridade processual e a duração razoável do processo. 1.3.16 Princípio da não hierarquia das provas Não existe hierarquia de provas, isto é, as provas devem ser consideradas em seu conjunto, sem preponderância predefinida de qualquer delas. Na valoração das provas, o juiz deve analisar as circunstâncias concretas reveladas na instrução.43 1.3.17 Princípio da voluntariedade dos recursos Trata-se do princípio, previsto no art. 574, do CPP, segundo o qual, se a defesa foi intimada da sentença de pronúncia e não manifestou a pretensão de recorrer, é aplicável a regra processual da voluntariedade dos recursos. Em síntese, como os recursos, em regra, são voluntários, cabe à parte analisar a necessidade de recorrer. 1.3.18 Princípio da iniciativa das partes Também denominado princípio da demanda (ou ne procedat iudex ex officio, ou não há processo sem ação, ou ainda nemo iudex sine actore), trata-se do princípio segundo o qual a instauração do processo precisa da iniciativa da parte, no caso o Ministério Público, nos crimes de ação penal pública; e o querelante (ofendido), nos crimes de ação penal privada. 42 STJ HC 41233/SP 06/02/2006 43 STJ HC 40280 / MG 12/04/2005 NOTE! O art. 26, do CPP (antigo procedimento judicialiforme), não foi recepcionado pela CF/88. 1.3.19 Princípio da economia processual Relacionando-se com os princípios da eficiência e da duração razoável do processo, consiste na busca de alternativas processuais com o intuito de tornar o procedimento mais simples e mais célere. Destaca-se particularmente na Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei n.° 9.099). 1.3.20 Princípio in dubio pro reu (ou da dúvida razoável, ou do favor rei) Trata-se do princípio segundo o qual, havendo uma dúvida razoável, a interpretação deve ser a mais favorável ao réu. Relaciona-se diretamente com o princípio da presunção de não culpabilidade. Possui vários efeitos, como, por exemplo, a necessidade da sentença condenatória se basear em juízo de certeza. NOTE! O princípio in dubio pro reu é a regra. Em determinadas situações, vigora o princípio inverso in dubio pro societatis (exceção). Nesse sentido, conforme já decidiu o STF, “a ação penal, na fase do oferecimento da denúncia, é regida pelo princípio in dubio pro societatis.”44 Outra exceçãoé o in dubio pro societatis adotado na pronúncia no âmbito do Tribunal do Júri. 1.3.21 Princípio da imparcialidade do juiz O princípio da imparcialidade, típico do sistema acusatório e do modelo garantista de processo, encontra-se como garantia no inc. XXXVII, do art.5.°, da CF/88: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”. A CF/88 assegura um feixe de garantias necessárias para assegurar a imparcialidade do juiz. Assim, dispõe em seu art. 95 que os juízes gozam 44 STF HC 93341/SP 05/08/2008 das garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de subsídio. NOTE! Alguns autores confundem imparcialidade com neutralidade. O juiz deve ser imparcial, mas não neutro. A neutralidade seria impossível. A doutrina contemporânea do processo penal não admite mais a visão tradicional do Poder Judiciário como órgão “neutro”. A sua atividade, especificamente na instrução probatória, deve ser impelida pela força vinculante da Constituição e dos valores nela proclamados. Nas palavras de José de Albuquerque Rocha, deve deixar de ser “o fiel aplicador de normas ordinárias, garantidoras da sociedade que temos hoje, para transformar-se em concretizador de normas constitucionais promotoras de um novo modelo de sociedade”45. QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! O art. 3.º, da Lei 9.034/95, dispõe sobre a criticável figura do “juiz investigador”: “Nas hipóteses do inciso III (acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais) do art. 2.º desta lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça”. Claramente o dispositivo fere o princípio da imparcialidade e da inércia do juiz, garantias fundamentais para o devido processo penal constitucional. No momento em que passa a exercer atividades investigatórias, o juiz passa a ser parcial. Afora isso, assume posição de “parte”, completamente estranha às suas atribuições funcionais. Na ADI/DF 1.570, o STF declarou a inconstitucionalidade do referido dispositivo: “Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente 45 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 112. violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2.º; e 144, § 1.º, I e IV, e § 4.º). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia.”.46 1.3.22 Princípio da isonomia processual (ou da igualdade processual) O princípio da isonomia vela pelo equilíbrio na relação processual, distribuindo entre as partes (defesa e acusação) as mesmas oportunidades, de forma a alcançar um processo justo. Por isso mesmo, possui uma relação de proximidade com o princípio do contraditório, porque a denominada “paridade de armas” decorre da isonomia processual. Em síntese, trata-se do princípio segundo o qual se deve assegurar às partes a possibilidade de participação na produção de prova em igualdade. NOTE! O princípio da isonomia deve levar em conta não apenas a igualdade no plano formal, mas essencialmente no plano material. A igualdade material é o desafio principal para a efetivação do princípio da isonomia no processo penal, evitando que pessoas inocentes sejam condenadas, porque não tiveram condições de equilibrar forças com o Estado no curso da persecução criminal. Liga-se o contraditório, na exata observação de Antônio Scarance Fernandes, “ao princípio da paridade de armas, sendo mister, para um contraditório efetivo, estarem as partes munidas de forças similares.”47 46 STF ADI/DF 1.570, j. 12.02.2004, Tribunal Pleno. 47 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 73. 1.3.23 Princípio do duplo grau de jurisdição A maioria da doutrina e as decisões jurisprudenciais mais recentes orientam-se no sentido da constitucionalidade do princípio do duplo grau de jurisdição: A garantia do devido processo legal engloba o direito ao duplo grau de jurisdição, sobrepondo-se à regra do art. 594 do CPP, de forma que o regular processamento do recurso de apelação interposto pela defesa independe do recolhimento do condenado à prisão. O dever judicial de motivação das decisões é corolário do devido processo legal, que viabiliza às partes o exercício do duplo grau de jurisdição, além de permitir, a todos, a fiscalização da atuação do Poder Judiciário.48 Em síntese, trata-se de princípio constitucional implícito. 1.3.24 Princípio do Juiz natural O princípio do juiz natural decorre do devido processo legal.49 A cláusula do devido processo legal é comumente conceituada como uma garantia constitucional pela qual ficam assegurados aos sujeitos processuais parciais o estabelecimento e o respeito a um processo judicial instituído legitimamente por lei e conduzido por um juiz natural, independente e imparcial.50 Na Constituição Federal de 1988, encontra-se no inc. LIII, do art. 5.°, assim disposto: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. 48 STJ HC 82757 / RJ 21/06/2010 49 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 69. 50 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p 61. NOTE! Conforme orientação do STJ, “em respeito ao princípio do juiz natural, somente é cabível a exclusão das qualificadoras na sentença de pronúncia quando manifestamente improcedentes e descabidas, porquanto a decisão acerca da sua caracterização ou não deve ficar a cargo do Conselho de Sentença, conforme já decidido por esta Corte.”51 QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! Súmula 704 do STF: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. QUESTÃO POTENCIAL DE PROVA! De acordo com a mais recente orientação do STJ, “os julgamentos de recursos proferidos por Câmara composta, majoritariamente, por juízes de primeiro grau não são nulos, eis que não violam o princípio do juiz natural.”52 No mesmo sentido: A composição majoritária do órgão julgador de Tribunal por juízes de primeiro grau, desde que observada a lei de regência, como se deu no caso, não malfere o princípio constitucional do juiz natural.53 1.3.25 Princípio do promotor natural (ou legal) O princípio do promotor natural encontra sua previsão no inc. LIII, do art. 5.°, da CF/88, fazendo parte do conjunto de garantias que compõem o devido processo legal. Nos termos do § 2º, do art. 129, da CF/88, as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, salvo autorização do chefe da instituição. 51 STJ HC 111552/MG 26/04/2010 52 STJ HC 154376/SP 17/12/2010 53 STJ HC 117537/DF 02/08/2010Diante do princípio do promotor natural e da atual configuração constitucional do Ministério Público, observa Eugênio Pacelli de Oliveira, “torna-se absolutamente impensável a figura do promotor ad hoc, isto é, a nomeação de advogado para o exercício temporário e precário das funções ministeriais.”54 O STJ e o STF consagram o princípio constitucional do promotor natural: “Inocorrendo lesão ao exercício pleno e independente das atribuições do Ministério Público, não há como reconhecer violação ao princípio do Promotor Natural.”55 1.3.26 Princípio do defensor natural Parte da doutrina não inclui o princípio do defensor natural entre os princípios do processo penal. Outra corrente defende a sua existência justamente para evitar a nomeação do “advogado dativo” para cumprimento de formalidades do processo, sem o compromisso de uma defesa qualificada e eficiente. O “defensor natural” constituiria uma garantia a favor da mais ampla defesa. Trata-se do princípio segundo o qual não se pode nomear defensor público diverso daquele que possui atribuição legal para atuar na causa, como bem observam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar: “Trata-se de uma proteção contra o arbítrio em razão da possibilidade de nomeação de defensor dativo por parte do juiz ou contra designações do defensor público geral que desatendam as normas que 54 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 13.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pág. 443 55 STJ REsp 945556/MG 29/11/2010 traçam as atribuições das defensorias públicas, cujos membros são revestidos de inamovibilidade.”56 1.3. 27 Princípio da obrigatoriedade (ou da legalidade) Trata-se do princípio segundo o qual caberia ao representante ministerial oferecer denúncia caso sua opinio delicti apontasse para a ocorrência do delito.57 Dessa forma, sua ação é guiada pelo cumprimento do dever legal, e não pela oportunidade e conveniência, como acontece na ação penal privada. Em outras palavras, nos crimes de ação penal pública, o interesse na persecução penal é publico, e não discricionário do Ministério Público. Dessa forma, por exemplo, se no curso de determinada investigação, o Ministério Público verificar a ocorrência de ilícito penal, “com fundamento no princípio da obrigatoriedade, deve iniciar a persecução penal.”58 Nos termos do art. 39, § 5º, do CPP, o órgão ministerial deve promover a ação penal se estiver munido de elementos necessários ao oferecimento da denúncia: “O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de quinze dias”. O princípio da obrigatoriedade, destaca Guilherme de Sousa Nucci, “significa não ter o órgão acusatório, nem tampouco o encarregado 56 TÁVORA, Nestor e ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal, 4.ª ed., Salvador: Juspodium, 2010, pág. 38 57 STJ REsp 1059368/SC 19/12/2008 58 STJ REsp 681612/GO 19/10/2009 da investigação, a faculdade de investigar e buscar a punição do autor da infração penal, mas o dever de fazê-lo”.59 NOTE! O princípio da obrigatoriedade, presente nos crimes de ação penal pública, comporta exceções, como, por exemplo, a transação penal (art. 76, da Lei n.° 9.099/95). No caso desta, aplica-se o princípio da oportunidade. 1.3.28 Princípio da plenitude de defesa O princípio da plenitude de defesa é peculiar do Tribunal do Júri, encontrando previsão no inc. XXXVIII, do art. 5.°, da CF/88. Francisco Dirceu Barros identifica a plenitude de defesa como o direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal.60 Contudo, não é o suficiente para distinguir ampla defesa de plenitude de defesa. Afinal, qual seria a exata diferença? A plenitude de defesa é definida por Guilherme de Souza Nucci não somente como uma defesa ampla, mas completa, a mais próxima possível do perfeito, daí porque vários efeitos podem ser extraídos: “a) o juiz, no júri, deve preocupar-se, de modo particularizado, com a qualidade da defesa produzida em plenário, não arriscando a sorte do réu e, sendo preciso, declarando o acusado indefeso, dissolvendo o Conselho e redesignando a sessão (art. 59 NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 6.ª ed., São Paulo: RT, 2010, pág. 49 60 BARROS, Francisco Dirceu. Direito Processual Penal – V. I, 2.ª ed. Rio de Janeiro: Campus, pág. 30 497, do CPP); b) havendo possibilidade de tréplica, pode a defesa inovar nas suas teses, não representando tal ponto qualquer ofensa ao contraditório, princípio que deve ceder espaço à consagrada plenitude de defesa; c) caso a defesa necessite de maior tempo para expor sua tese, sentindo-se limitada pelo período estabelecido na lei ordinária, poderá pedir dilação ao magistrado presidente, sem que isso implique igual concessão ao representante do Ministério.” 61 1.3.29 Princípio da oficiosidade O princípio da oficiosidade, decorrente do princípio da obrigatoriedade (ou da legalidade), consiste no dever de atuação de ofício (ex officio) de autoridades em determinadas hipóteses. Trata-se, por exemplo, na instauração de ofício do inquérito policial, ou ainda da atuação de ofício do membro do Ministério Público na persecução criminal. NOTE! O princípio da oficiosidade não se aplica em determinadas situações (exceções), em que existe a necessidade de iniciativa do ofendido, como, por exemplo, nos crimes de ação penal privada e de ação penal pública condicionada à representação. Por exemplo, no crime de ação penal pública condicionada à representação, a autoridade policial não poderá instaurar o inquérito policial, nem o Ministério Público oferecer a denúncia, sem a representação da vítima. 1.3.30 Princípio do impulso oficial Trata-se de princípio específico da atividade do juiz no curso do processo. O juiz deve desenvolver a atividade necessária para passar de uma fase a outra do processo. 1.3.31 Princípio da oficialidade 61 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 6.ª ed.,São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pág. 30 As atividades do Estado devem ser desenvolvidas por órgãos com atribuições legais. Dessa forma, os órgãos de Polícia Judiciária possuem a atribuição para proceder às investigações criminais, instaurando inquérito policial. O órgão do Ministério Público possui atribuição para ingressar com as ações cabíveis, quando da prática de infrações penais, buscando do Estado a aplicação da tutela penal para o caso. Existe exceção ao princípio da oficialidade? Sim. No caso da ação penal privada, a persecução penal é provocada pelo próprio ofendido, e não pelo Ministério Público. Outra hipótese é ação por crime de responsabilidade, prevista no art. 41, da Lei n.° 1079/50: “É permitido a todo cidadão denunciar perante o Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador Geral da República, pelos crimes de responsabilidade que cometerem”. 1.3.32 Princípio da autoritariedade É o princípio segundo o qual, anota Fernando Capez, “os órgãos investigantes e processantes devem ser autoridades públicas.”62 Como se observa, referido princípio termina se confundido como princípio da oficialidade. Inclusive, parte da doutrina considera que são expressões sinônimas. 1.3.33 Princípio da indisponibilidade É o princípio segundo o qual o Ministério Público não pode desistir da ação penal pública, previsto no art. 42, do CPP: “O Ministério Público não poderá desistir da ação penal”. Incide ainda na atuação da autoridade policial, proibindo-a de arquivar o inquérito policial, nos termos do art. 17, do CPP: “A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito”. 62 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 18.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, pág. 34. NOTE! O princípio da indisponibilidade comporta exceções, justamente nas hipóteses de ação penal privada e de transação penal (art. 76, da Lei n.° 9.099/95). 1.3.34 Princípio da imediatidade. Trata-se do princípio segundo o qual, em regra, os atos do processo, essencialmente aqueles relacionados à instrução probatória, devem se desenvolver na presença do juiz, para que este possa extrair da melhor maneira possível impressões acerca do fato. 1.3.35 Princípio da concentração Em regra, a instrução probatória deve se concentrar numa única audiência, otimizando o procedimento probatório, com o intuito de promover o princípio constitucional da duração razoável do processo. Consiste em outro princípio que mereceu destaque na recente reforma do CPP. Dessa forma, no procedimento comum, a audiência de instrução e julgamento deverá ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, procedendo-se à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado, sendo as provas produzidas numa só audiência (art. 400, do CPP). 1.3.36 Princípio da identidade física do juiz O princípio da identidade física do juiz, em sintonia direta com a garantia do juiz natural, é aquele segundo o qual o juiz que conduziu toda a instrução, na fase da persecução penal em juízo, deve ser o mesmo que irá proferir a sentença, justamente por conhecer todo o histórico do conjunto probatório, bem como ter tido a oportunidade de extrair impressões do contato mais próximo com as provas. Antes da recente reforma do CPP, em regra, referido princípio não estava presente no processo penal. A antiga lacuna, alvo de muitas críticas, foi corrigida a partir da lei 11.719/2008, consagrando o princípio da identidade física do juiz no §2.°, do art. 399, do CPP: “O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”. NOTE! O princípio da identidade física do juiz é a regra. Obviamente, existem situações em que não será possível aplicá-lo, como, por exemplo, no caso de morte do magistrado, ou aposentadoria, ou ainda promoção. Conforme dispõe o art.3.°, do CPP, será admitida a aplicação analógica, quando for preciso. Portanto, aplicam-se as mesmas exceções do art. 132, do CPC: “O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor”. As exceções, inclusive, são importantes para garantir o princípio da duração razoável do processo, evitando todos os danos que a demora processual pode ocasionar. 1.3.37 Princípio da suficiência De acordo com o princípio da suficiência, a pena precisa ser adequada à lesividade do delito, não se admitindo a sua fixação de forma excessiva. O juiz deve aplicar a pena em concreto de forma justa, proporcional ao fato cometido. Em outras palavras, nem mais nem menos, somente o necessário. Não pode incorrer no erro do rigor excessivo, ou da benevolência geradora de impunidade. Conforme orientação do STJ, o princípio da suficiência deve ser adotado em toda e qualquer resposta penal, inclusive na aplicação de penas restritivas de direitos: “A substituição da pena privativa de liberdade pela sanção restritiva de direitos, prevista no artigo 44 do CP, enquanto resposta penal em natureza, está subordinada, inarredavelmente, ao princípio da suficiência.”63 1.3.38 Princípio da audiência O princípio constitucional da ampla defesa divide-se em defesa técnica (específica) e a autodefesa (genérica). Conforme orientação do STJ, a autodefesa é exercida exclusiva e pessoalmente pelo acusado, consubstanciando-se nos direitos de presença e de audiência. Assim, o princípio da audiência consagra o direito de presença, considerado como a oportunidade “de o acusado acompanhar, ao lado de seu defensor, todos os atos do processo, assegurando a sua maior proximidade com o juiz, as razões e as provas. O direito de audiência, por sua vez, traduz a possibilidade de o acusado influir, pessoalmente, na formação do convencimento do magistrado, o que ocorre no momento do interrogatório judicial, já que poderá oferecer a sua versão dos fatos, invocar o direito ao silêncio etc.”64 1.4 APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL PENAL 1.4.1Lei processual penal no tempo O CPP adotou o princípio da imediata aplicação da lei processual penal (tempus regit actum), previsto no art. 2.°: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. De fato, a lei processual penal aplicar-se-á de imediato. Contudo, os atos praticados sob a vigência de lei anterior não serão renovados, isto 63 STJ HC 76290/DF DJe 22/09/2008 64 STJ HC 114225/SP 02/03/2009 é, aplica-se a nova lei sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior. Foi adotado o denominado “sistema do isolamento dos atos processuais”, segundo o qual, se uma lei processual penal passa a vigorar estando o processo em curso, ela será imediatamente aplicada, sem prejuízo dos atos já realizados sob a vigência da lei anterior. Em outras palavras, cada ato processual será considerado isoladamente, como uma unidade, não atingindo a lei processual penal nova os atos processuais anteriores. NOTE! Não confundir as leis processuais com as leis penais. As processuais não se submetem ao princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, conforme prevê o art. 2.°, do CPP. A lei processual é aplicada imediatamente no processo em andamento, não importando se o crime foi cometido antes ou após sua entrada em vigor, ou se é ou não mais benéfica. 1.4.2 Lei processual penal no espaço O CPP, em seu art. 1.°, adotou como regra o princípio da territorialidade, sendo o qual a lei processual será aplicada aos crimes cometidos em território brasileiro. O mesmo dispositivo estabelece as seguintes exceções à regra da territorialidade: I – Tratados, convenções e regras de direito internacional; II - as prerrogativas constitucionais do Presidente da República, dos ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade; III - os processos da competência da Justiça Militar. NOTE! Cabe observar que o inc. IV (os processos da competência do tribunal especial) não se aplica mais, por não estar recepcionado pela CF/88, que consagra o juiz natural e veda juízos de exceção. O mesmo ocorre em relação ao inc. V (os processos por crimes de imprensa), em face de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 130/DF), em que o STF declarou a não recepção da Lei de Imprensapela CF/88. Dessa forma, as lesões contra a honra cometidas por meio da imprensa devem ser responsabilizadas criminalmente com base nas figuras típicas (calúnia, injúria e difamação) do Código Penal. Ainda em relação à lei processual penal no espaço, o legislador estabeleceu como lugar do crime o local onde aconteceu a ação (ou omissão) e onde aconteceu o resultado (teoria da ubiquidade), nos termos do art. 6.°, do CP. 1.4.3 Interpretação extensiva, analogia e princípios gerais do direito. A lei processual penal admite interpretação extensiva e o suplemento dos princípios gerais de direito, por expressa disposição legal, do art. 3.°, do CPP: “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. A lei processual admite interpretação analógica (analogia legis). Dessa forma, determinada norma pode perfeitamente ser utilizada em situações de lacuna no ordenamento processual, desde que a hipótese seja semelhante. 1.5 Dicas imprescindíveis 1. Como decorrência da evolução do pensamento acerca do princípio da presunção de inocência, não existe mais a necessidade de o acusado se recolher à prisão para apelar, tendo sido revogado o art. 594, do CPP, pela Lei n.° 11.719/2008. O STJ, em reiteradas decisões, homenageando o primado do estado de inocência, não vem mais aplicando a sua antiga súmula 9 (“A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”). E mais: A aceitação da proposta de transação penal (art. 76, da Lei n.° 9.099/95) não configura maus antecedentes, não produzindo efeitos penais. Entendimento contrário acarretaria lesão ao princípio da presunção de inocência. 2. Em caso de normas processuais penais híbridas, o juiz deve cindir o conteúdo das regras, aplicando, imediatamente, o conteúdo processual penal e fazendo retroagir o conteúdo de direito material, desde que mais benéfico ao acusado? Não. As normas híbridas (ou mistas) são aquelas em que uma parte do conteúdo é penal, enquanto a outra é processual. Conforme orientação doutrinária e jurisprudencial majoritária, a lei processual penal híbrida não pode ser cindida: “Reiterada jurisprudência desta Corte no sentido de que as disposições do art. 366 do CPP, com a sua nova redação dada pela Lei 9.271/96, sendo norma de natureza híbrida, processual (suspensão do processo) e material (suspensão da prescrição), não podem ser cindidas, sendo inaplicável por inteiro o citado dispositivo legal às infrações cometidas antes da vigência da Lei 9.271/96.”65 3. A regressão de regime (ex.: semi-aberto para fechado), prevista no art. 118, da Lei de Execuções Penais (LEP), quando o condenado pratica fato definido como crime doloso, fere o princípio da presunção de inocência na medida em que não espera o transito em julgado em relação a este fato novo? Não. Trata-se da orientação amplamente majoritária: “O cometimento de delito pelo apenado, durante o resgate da reprimenda, justifica a regressão de regime, sendo desnecessário, para tanto, o trânsito em julgado da nova condenação, inocorrendo, na espécie, ofensa ao princípio da presunção de inocência.”66 No 65 STJ REsp 280656 / RJ 04/06/2001 66 STJ REsp 1021662/SP 30/11/2009 mesmo sentido: “Não há falar em violação à presunção de inocência, pois a regressão de regime decorre da conduta indisciplinar do apenado – que não faz jus ao benefício proporcionado pelo regime mais brando. Não implica discussão a respeito da culpabilidade; apenas desmerecimento pela falta grave praticada.”67 A mesma linha de raciocínio é adotada em relação à revogação da suspensão condicional do processo (“sursis processual”), previsto no art. 89, da Lei n.° 9.099/95. 4. As decisões judiciais ainda na investigação criminal (ex.: decretação de interceptação telefônica) terão como base os elementos de prova colhidos nesta fase, não desobrigando o juiz de fundamentar suficientemente suas posições. E mais: não se pode alegar ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, porque o juiz não pode proceder de outra forma. 5. A publicidade dos atos processuais não é absoluta, mas sim restrita, justamente porque comporta exceções (ex.: resguardar a imagem da vítima). Ainda nessas hipóteses de restrição, importante destacar que a restrição se refere a terceiros, não podendo atingir o acusado e as partes, porque ofenderia os princípios do contraditório e da ampla defesa. Nesse sentido, dispõe o inc. IX, do art. 93, da CF/88: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”. 67 STJ REsp 1064427/RS 28/09/2009 6. Conforme orientação do STF, “nenhuma afronta ao princípio do promotor natural há no pedido de arquivamento dos autos do inquérito policial por um promotor de justiça e na oferta da denúncia por outro, indicado pelo Procurador-Geral de Justiça, após o Juízo local ter considerado improcedente o pedido de arquivamento.”68 7. O princípio da iniciativa das partes não impede a concessão de habeas corpus de ofício por juiz ou por Tribunal. 8. O princípio da indisponibilidade no processo penal incide ainda na fase recursal, nos termos do art. 576, do CPP: “O Ministério Público não poderá desistir de recurso que haja interposto”. 9. Parte da doutrina considera que o princípio in dubio pro reu não é levado em conta no âmbito do Tribunal do Júri, porque os jurados julgam de acordo com a íntima convicção de cada um. Já outra parcela dos autores considera que o princípio da íntima convicção não é uma exceção ao princípio in dubio pro reu, porque o julgamento deveria ocorrer de acordo com a prova dos autos. 10. Como decorrência do princípio da presunção de inocência, processos criminais sem trânsito em julgado pelos quais responde o acusado, ou mesmo inquéritos policiais, não podem ser considerados como maus antecedentes na dosimetria da pena, conforme reiteradas decisões do STJ e do STF. 11. Qual a diferença entre “proteção vertical” e “proteção horizontal”? Vertical é aquela contra o Estado, enquanto horizontal é aquela contra terceiros. Assim, o Estado deve garantir proteção contra si mesmo (abusos ou excessos na sua atividade) e contra terceiros (agressão de outrem). 68 STF HC 92885/CE 29/04/2008 12. Se por impedimento ou suspeição, o juiz pode comprometer sua imparcialidade, não deve atuar no processo sob pena de nulidade. Os impedimentos ocasionam presunção absoluta de lesão à imparcialidade; enquanto a suspeição, apenas presunção relativa. 13. Se o Ministério Público pedir a absolvição, isso é o suficiente para por fim ao processo? Não. Diante da indisponibilidade da pretensão em discussão no processo, o juiz deve dar seguimento ao processo com o intuito de formar seu convencimento, nada impedindo, inclusive, a sentença condenatória. 14. O que é o princípio pro homine? Em conflitos relacionados a direitos humanos, na dúvida, deve-se adotar a interpretação mais benéfica à promoção dos direitos humanos. 15. Qual a diferença entre “norma híbrida” e “heterotopia”? Heterotopia é a situação da normaque apresenta um conteúdo que não corresponde à sua localização sistemática no ordenamento, como uma lei processual que apresenta conteúdo penal (ex.: vários dispositivos da LEP). Já a norma híbrida possui conteúdo penal e processual. A norma com heterotopia possui apenas conteúdo único. 16. A perda de prazo pode não acarretar preclusão, quando o cumprimento de determinado ato for indispensável para a efetivação da ampla defesa, como acontece com a não apresentação da resposta à acusação, hipótese em que o juiz intimará a Defensoria Pública para fazê-lo. 1.6 Jurisprudência Atualizada 1. De acordo com recente orientação do STJ, em face do princípio da identidade física do juiz, em regra, o interrogatório do acusado não deve ser realizado via carta precatória. Contudo, excepcionalmente, verificando-se a necessidade e as peculiaridades do caso concreto, ainda será possível a realização via carta precatória: “Com a introdução do princípio da identidade física do Juiz no processo penal pela Lei 11.719/08 (art. 399, § 2o. do CPP), o Magistrado que presidir os atos instrutórios, agora condensados em audiência una, deverá proferir a sentença, descabendo, em regra, que o interrogatório do acusado, visto expressamente como autêntico meio de defesa e deslocado para o final da colheita da prova, seja realizado por meio de carta precatória, mormente no caso de réu preso, que, em princípio, deverá ser conduzido pelo Poder Público (art. 399, § 1o. do CPP); todavia, não está eliminada essa forma de cooperação entre os Juízos, conforme recomendarem as dificuldades e as peculiaridades do caso concreto, devendo, em todo o caso, o Juiz justificar a opção por essa forma de realização do ato. A adoção do princípio da identidade física do Juiz no processo penal não pode conduzir ao raciocínio simplista de dispensar totalmente e em todas as situações a colaboração de outro juízo na realização de atos judiciais, inclusive do interrogatório do acusado, sob pena de subverter a finalidade da reforma do processo penal, criando entraves à realização da Jurisdição Penal que somente interessam aos que pretendem se furtar à aplicação da Lei.”69 2. Conforme recente orientação do STJ, “não se verifica nulidade pela ausência de aplicação do princípio da identidade física do juiz (art. 399, §2º, do CPP - com as alterações promovidas pela lei 11.719/08) em processamento de adolescente pela prática de ato infracional, pois o ECA estabelece rito fracionado.70 69 STJ CC 99023/PR DJE 28/08/2009 70 STJ HC 154740 / DF DJe 26/04/2010 3. “A defesa é de ordem pública primária (Carrara); sua função consiste em ser a voz dos direitos legais – inocente ou criminoso o acusado. Norteou-se o Cód. de Pr. Penal ‘no sentido de obter equilíbrio entre o interesse social e o da defesa individual, entre o direito do Estado à punição dos criminosos e o direito do indivíduo às garantias e seguranças de sua liberdade’ (Exposição de Motivos). Tal a missão reservada à defesa – de ordem pública primária e de caráter sagrado – e tal o equilíbrio a ser observado entre os dois interesses – o social e o da defesa –, outra compreensão não há do presente caso senão a de que o titular do direito de defesa é o acusado, e não propriamente o defensor. Assim, constitui nulidade a oitiva de testemunha de acusação sem a presença dos réus, devendo-se, pois, anular o processo a partir do momento em que foi ouvida testemunha na presença de defensores ad hoc, os quais anuíram à tomada do depoimento sem que os ora pacientes estivessem presentes.”71 1.7 Questões Comentadas 1. (PROCURADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO CESPE/UNB 2009) A CF assegura o sistema inquisitivo misto no processo penal. Resposta: Errado. Afirmação absurda. O sistema processual penal brasileiro é o acusatório, e não o inquisitivo. 2. (POLÍCIA MILITAR DO DISTRITO FEDERAL CESPE/UNB 2009) No processo acusatório, a acusação encontra-se em posição hierarquicamente superior à defesa, e o juiz pode dar início ao processo por sua própria vontade. Resposta: Errado. No sistema acusatório, destaca-se o princípio do contraditório, do qual decorre a paridade de “armas” entre as partes. 71 STJ HC 89301/MS 25/05/2009 Rege-se ainda pela separação rigorosa das funções de investigar, de acusar e de julgar, não podendo o juiz dar início ao processo por sua própria vontade. 3. (DEFENSOR PÚBLICO DA UNIÃO CESPE/UNB 2010) Parte da doutrina manifesta-se contrariamente à expressa previsão legal de cabimento da condução coercitiva determinada para simples interrogatório do acusado, como corolário do direito ao silêncio. Resposta: Correto. O comparecimento do acusado é um direito, e não um dever. Nesse sentido, manifestou-se o próprio STJ: “O comparecimento do réu aos atos processuais, em princípio, é um direito e não um dever, sem embargo da possibilidade de sua condução coercitiva, caso necessário, por exemplo, para audiência de reconhecimento. Nem mesmo ao interrogatório estará obrigado a comparecer, mesmo porque as respostas às perguntas formuladas fica ao seu alvedrio. Já a presença do defensor à audiência de instrução é necessária e obrigatória, seja defensor constituído, defensor público, dativo ou nomeado para o ato.”72 4. (PROCURADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO CESPE/UNB 2009) Em razão do princípio da presunção de inocência, não é possível haver prisão antes da sentença condenatória transitada em julgado. Resposta: Errado. O princípio da presunção de inocência não é absoluto. Dessa forma, excepcionalmente, desde que atendidos os requisitos legais, será cabível a prisão provisória do acusado. Nesta perspectiva, Afrânio Silva Jardim anota que “a eleição por parte do sistema processual penal de um ou outro princípio dependerá do desenvolvimento político e social, dos valores éticos e democráticos cultuados pela sociedade. Por outro lado, sempre haverá uma posição 72 STJ REsp 346677/RJ 10/09/2002 de compromisso entre as idéias em choque, não se encontrando, em sistema jurídico algum, a adoção pura e absoluta de um determinado princípio, pois o seu antitético tem sempre guarida como fator de mitigação do princípio prevalente. Vale dizer, o critério é mais de preponderância do que de exclusividade.”73 5. (DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL SERGIPE CESPE/UNB 2006) Nos termos da lei processual penal, a exigência da presença de defensor, prevista para o interrogatório judicial, não se aplica ao interrogatório policial, por ser o inquérito procedimento de natureza inquisitiva, ao qual não se impõe a observância do contraditório. Resposta: Correto. A presença do defensor somente é obrigatória no processo judicial. 6. (DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL TOCANTINS CESPE/UNB 2008) Impera no processo penal o princípio da verdade real e não da verdade formal, próprio do processo civil, em que, se o réu não se defender, presumem- se verdadeiros os fatos alegados pelo autor. Resposta: Correto. No processo penal, não se admite presunção de verdade dos fatos pela confissão do acusado, ou mesmo quando este não se defende. 7. (ESCRIVÃO DE POLÍCIA CIVIL TOCANTINS CESPE/UNB 2003) Prevê a Constituição Federal o princípio de que ninguém será considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. No processo penal, a aplicação desse princípio é absoluta, pois busca-se a verdade real. 73 JARDIM,
Compartilhar