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Corpos legislados, ações incorporadas

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Embodied Action, Enacted Bodies: 1
The Example of Hypoglycaemia
“Ações incorporadas, corpos legislados”:
O Exemplo da Hipoglicemia
ANNEMARIE MOL AND JOHN LAW
CORPOS VIVOS
Disso todos nós sabemos: o corpo vivo é tanto objeto quanto sujeito.
Sabemos que o corpo é um objeto do conhecimento médico. Quando observado a 
olho nu ou através de microscópios, CT-scans e outros maquinários visuais, o corpo é um 
objeto. É um objeto quando medido numa variedade de formas: como na verificação do pulso 
para determinar os níveis de hemoglobina, creatinina e cálcio no sangue. E o corpo-objeto 
pode também ser sentido: quando as mãos do doutor procuram por nódulos ou pontos de 
orientação durante uma operação.
O corpo vivo é também sujeito. Ele é nós: por estarmos encarnados que somos seres 
humanos. Ou seja, o corpo é a nossa condição para. Ou melhor, o corpo é a contextualização 
encarnada dos nossos modos de vida. Por sermos corpos vivos experimentamos a dor, a fome 
ou a agonia assim como a satisfação, o êxtase, o prazer. E enquanto o corpo-objeto é exposto 
e exibido publicamente, o corpo-sujeito é privado e além disso – ou antes de qualquer coisa – 
é linguagem.
Se alguém quiser escrever sobre os corpos vivos este parece ser o ponto de partida, 
este fato, de que temos um corpo-objeto público e somos um corpo-sujeito privado. Este fato 
vem sendo discutido na filosofia, antropologia e sociologia e também na medicina.2 Ele 
aparece recorrentemente em relatos do cotidiano. Todos sabemos disto. Mas talvez seja a 
1
1
 Existe no título do texto um jogo de palavras intraduzível no português – pelo menos por 
mim . Embodied é um termo que pode ser traduzido como incorporado ou encarnada, 
significando tanto a vida de algo quando a transladação de algo abstrato à existência. Já 
enacted tem a mesma raiz de action, mas seu sinificado literal é promulgado, decretado, como 
uma efetivação eficiente de algo legal, no sentido jurídico do termo. 
2
2
 Uma variedade de textos clássicos articulam este (agora comum) conhecimento em uma 
variedade de formas diferenciadas. Vejam, por exemplo, Merleau-Ponty (1962) para uma 
análise na qual o autor mobiliza a neurologia então corrente para falar sobre a imagem do 
corpo sujeito; ou Wittgenstein (1953) para a dificuldade de se falar sobre a dor e outras 
sensações físicas.
hora de escapar desta auto-evidência. Talvez seja a hora de começar a saber algo mais – ou em 
outra direção.
O corpo nem sempre foi um objeto/sujeito. Michel Foucault afirma que esta metáfora 
foi inventada no início do século XIX (FOUCAULT, 1976). Antes disso, doenças eram entidades 
em si mesmas, classificadas em tabelas nosológicas. Pacientes buscando por alívio deveriam 
descrever os males de que estavam sofrendo e os médicos, então, inferiam qual doença 
habitava o corpo do paciente – e o que aconteceria depois. Uma guinada epistêmica radical se 
fez necessária para que as doenças passassem a ser consideradas condições do corpo humano. 
Depois desta mudança, a verdade sobre a doença não poderia mais ser detectada ouvindo as 
palavras dos pacientes. Ao invés disso, requeria-se um olhar bem treinado para o exame de 
tecidos corporais. Deste então, estes tecidos desviantes ficam geralmente escondidos sob a 
pele e um conhecimento claro sobre as doenças só pode ser estabelecido depois da morte. Foi 
assim que a distinção entre corpo-objeto/corpo-sujeito sob a qual vivemos agora foi 
estabelecida. Nas palavras de Mark Sullivan:
Para Bichat, o sujeito e o objeto da medicina não eram duas 
substâncias diferentes dentro do mesmo indivíduo, mas dois 
diferentes indivíduos: um vivo e outro morto. Conhecedor e 
conhecido eram epistemologicamente distintos, com o médico 
assumindo a posição do conhecedor e o paciente ou cadáver a 
posição do conhecido. (1986;344)
Sulivan argumenta que essa divisão cria o dualismo decisivo que atormenta a medicina 
moderna. Este não é o dualismo atribuido a Descartes, entre dois tipos de substâncias, mente 
e corpo. É, isto sim, a distinção entre substância e atividade:
Aqui, a atividade de auto-interpretação ou auto-conhecimento 
é eliminada do corpo mais do que a entidade da substância 
mental. O corpo conhecido e curado pela medicina moderna 
não conhece a si mesmo. (1986: 344) 
Sullivan e muitos outros buscam integrar o auto-conhecimento pessoal de volta à 
medicina moderna.3 Mas como? Muitos autores sugerem: ao lado ou acima do conhecimento 
que a medicina pode gerar acerca dos tecidos e seus desvios, os doutores deveriam dar espaço 
ao auto-conhecimento dos seus pacientes. Eles querem uma medicina não apenas que 
procure, mas que também escute; que garanta ao paciente o conhecimento de sua vida do 
mesmo modo que agora conhecem o corpo morto.
Pode parecer difícil discordar do pedido de Sullivan por uma medicina que atenda não 
apenas aos órgãos de seus pacientes, mas também ao conhecimento que estes pacientes 
carregam de si mesmos. Mas aqui há um problema: ele deixa os modos de conhecimento 
envolvidos intocáveis. Por um lado, há um modo objetivo, público e científico, de conhecer o 
corpo exteriormente. Por outro, há um modo subjetivo, privado e pessoal, de conhecer o 
corpo interiormente. Estas são formas de conhecimento inventadas no tempo de Bichat. 
Foucault descreve como a moderna episteme (da qual eles fazem parte) está linkada ao 
nascimento da clínica médica. A moderna medicina e seu olhar voltado aos tecidos mortos e 
desviantes surgem com um tipo específico de hospital, um sistema específico para o 
treinamento médico e um modelo específico de práticas de tratamento. Juntos, eles tornam a 
patologia a última palavra, enquanto uma vasta gama de técnicas (do raio-x ao laboratório 
químico) são desenvolvidas para olhar além da pele dos corpos vivos. E foi apenas através 
deste caminho de ordenação do conhecimento médico que o autoconhecimento dos pacientes 
se tornou um assunto privado.
Muito tempo já se passou desde o início do século XIX. Gostaríamos, portanto, de 
utilizar o trabalho de Foucault não como uma descrição acabada do que é “modernidade”, mas 
como uma inspiração para responder se ainda vivemos dentro da mesma episteme moderna. 
Gostaríamos de perguntar sobre os modos de conhecimentos exibidos nas práticas médicas 
correntes, sobre como o corpo é comumente conhecido. Mas colocar as coisas nestas palavras 
é ainda por demais restrito, porque, desta forma, parece que colocamos o conhecimento como 
ponto central. A fim de evitar essa suposição, parece-nos mais promissor fazer uma pergunta 
levemente diferente: o que é um corpo, nas condições de possibilidades deste começo de 
século XXI? Colocar uma pergunta nestes termos é um risco. O perigo é que a resposta seja 
simplesmente repetir o que já vem sendo dito pelos experts da biomedicina e/ou pacientes - 
dificilmente uma contribuição significativa. Buscar adicionar ou corrigir o conhecimento dos 
especialistas ou pacientes somente com as técnicas da etnografia ao nosso dispor seria 
igualmente fútil. Não, nós não “sabemos melhor”. Responder à pergunta “O que é um corpo?” 
é válida em um sentido completamente diferente. No sentido de mudar as bases nas quais as 
questões acerca da realidade dos corpos podem ser colocadas. Isso nos leva a um lugar onde a 
3
3
 De um modo bem foucaltiano nós não consideramos que “sentir” alguém no seu interior 
tenha sido sempre feito da forma atual e, sim, que este “sentir” foi “colonizado” e/ou 
descontextualizado pela medicina moderna. Em vez disso, ambos (sujeito e objeto do 
conhecimento) andam juntos. Para um maravilhoso estudo que permite aos leitores não 
apenas entender, mas também “sentir” como aspessoas se percebem habitando seus corpos 
de formas diferentes, ver Duden (1991).
coleta de conhecimentos – seja objetivo ou subjetivo – não é mais idolatrada como o caminho 
mais importante de nos relacionarmos e estar no mundo.4
Todos temos e somos um corpo. Mas há uma maneira de sairmos desta dicotomia. 
Como parte das nossas práticas diárias nós também fazermos5 (nosso) corpo. Na prática, nós o 
sancionamos6. Se o corpo que temos é aquele conhecido pelos patologistas depois da nossa 
morte, enquanto o corpo que somos é aquele que conhecemos nós mesmos pelo 
autoconhecimento, então o que falar sobre o corpo que produzimos? O que pode ser 
descoberto e dito sobre ele? É possível investigar o corpo que criamos? E quais as 
consequências se a ação for privilegiada sobre o conhecimento? Para explorarmos estas 
questões, contaremos algumas histórias sobre a hipoglicemia extraídas de um estudo sobre o 
viver com diabetes.7
Conhecendo a hipoglicemia na prática
4
4
 Algumas expressões e periodos do texto são bastante complexos, como neste parágrafo, 
tornando a tradução difícil ou simplesmente forçando-nos a uma leitura atenta para captar o 
sentido de cada palavra.
5
5
 O verbo utilizado aqui, to do, tem, sozinho, uma conotação maior do que qualquer palavra 
que a signifique, também sozinha, em português. O mesmo verbo poderia ser traduzido como 
construir, preparar, trabalhar, representar, etc sem perder o sentido na frase. Optei por 
traduzir como fazer e construir ao longo do texto por ser, a meu ver, um termo mais objetivo 
dentre todas as traduções possíveis.
6
6
 O termo enacted, no original, possui também inúmeros significados possíveis em português: 
legalizar, decretar, legislar etc. Dentro do texto, legislar parece ser a melhor tradução possível, 
mas não se pode esquecer que sua raiz vem do verbo to act: agir, fazer.
7
7
 Para este estudo nós reunimos e analisamos uma vasta gama de materiais: textos médicos, artigos 
científicos, diários de pacientes e folhetos informativos, propagandas, textos autobiográficos. Também 
realizamos outras observações etnográficas de clínicas para pessoas com diabetes e entrevistamos 
pacientes e profissionais que consideramos importantes. No presente artigo, focamos particularmente 
no tratamento para pessoas com diabetes tipo 1 (diabetes de início precoce, a qual geralmente torna as 
pessoas insulino-dependentes), que é mais difícil de “gerir”. Na diabetes tipo 1 também ocorre uma 
maior tendência de se incidir em hipoglicemias. As citações neste artigo não pretendem mostrar ao 
leitor as especificidades da vida das pessoas que as proferem. Em vez disso, elas pretendem informar 
sobre as práticas com a diabetes – práticas que são tão dispersas que são difíceis de estudar 
etnograficamente por um grupo limitado de pesquisadores que têm um tempo limitado e que 
prefeririam não ter de se intrometer na vida das pessoas por muito tempo, passando dias e dias ao lado 
delas. Então, selecionamos tanto etnógrafos profissionais quanto pessoas vivendo com diabetes (leigos) 
– etnógrafos por direito – levando-os a selecionar, transcrever, combinar e contrastar suas histórias.
Então, o que é hipoglicemia? A resposta a seguir vem de um texto médico:8
Nas pessoas que vivem sem diabetes melitus os níveis de 
glicose plasmática variam entre 3 e 8 mmol/l, dependendo do 
tempo decorrido desde a última refeição. Em geral, o critério 
para a hipoglicemia em um paciente com diabetes é 
estabelecido quando o nível de glicose plasmática está abaixo 
de 3,5 mmol/l. (Van Haeften, 1995: 142)
Nesta definição, a hipoglicemia é localizada sob a pele e é um estado característico de 
um tecido corporal móvel: o sangue. É o nível de glicose no sangue abaixo de 3,5 mmol/l. É, 
portanto, um objeto/definição na linha da tradição patológica, revelando um corpo-que-tem. 
Mas o texto localiza a hipoglicemia também em outros lugares: “Hipoglicemia é um 
acontecimento frequente, uma complicação potencialmente séria no tratamento da diabetes 
melitus” (1995: 142)
O tratamento da diabetes melitus não é localizado no corpo, mas nos hospitais, nos 
folhetos informativos e nas casas das pessoas. Está no dia-a-dia das pessoas que sofrem de 
diabetes melitus. Na vida diária, a hipoglicemia é algo que pode ocorrer, acontecer, ser feito. É 
uma complicação potencialmente séria.
É fácil encontrar sentenças como esta nos textos médicos e artigos científicos: 
sentenças nas quais os fenômenos são apresentados como sendo parte das práticas nas quais 
eles ocorrem. 9 Mas não em qualquer lugar. Aspectos práticos tendem a aparecer nas seções 
de métodos e materias dos artigos científicos, mas não nas conclusões. Eles tendem a aparecer 
nas apresentações clínicas, mas não nos resumos epidemiológicos. Conhecimento sobre um 
corpo-que-tem e conhecimento sobre um corpo-que-faz tendem a se alternar. Portanto, a 
mudança que propomos é bastante simples mesmo que ela traga fortes consequências a longo 
prazo. Esta proposta significa trazer os aspectos práticos para primeiro plano o tempo todo. 
8
8
 Práticas para o tratamento da diabetes não são universais e nem mesmo generalizadas no mundo 
ocidental. Em outra parte deste estudo, esperamos apresentar comparações internacionais. Desde que 
o campo e as entrevistas apresentadas neste artigo são principalmente holandesas, nós utilizamos, aqui, 
um texto médico deste país.
9
9
 Por mais que aqueles que trabalham dentro de uma tradição fenomenológica designem nosso “estar-
no-mundo” como corpos, eles situam o (o entendimento do) corpóreo ao lado do conhecimento da 
representação dos corpos. (see, e.g., Csordas, 1994) baseando-se nesta tradição, estudos permitem-nos 
incluir as práticas de representação entre outras práticas. As quais são igualmente mundanas. A 
consideração do laboratório como um campo de práticas deve muito a Latour e Woolgar (1979. A mais 
bela explicação e defesa ainda é aquela encontrada em Latour (1988). Existem, claro, muitos estudos 
que descortinam práticas da vida cotidiana. E alguns, como este que estamos fazendo, movem-se de um 
lado a outro. Veja os ensaior em Les Objets dans l’action: de la maison au laboratoire (Conein et al., 
1993).
Nunca tomar o atalho no qual se entende a hipoglicemia como escondida no corpo ou sob a 
pele; nossa descrição etnográfica orienta-se consistentemente nas práticas nas quais a 
hipoglicemia está sendo forjada.
Então, como a hipoglicemia é produzida? Uma primeira e importante maneira é, de 
fato, a conhecendo. Conhecer é uma prática: Só se torna possível falar sobre o nível de açúcar 
no sangue abaixo de 3,5 mmol/l se a pele de alguém é picada, uma amostra de sangue é tirada 
e seu nível de açúcar é medido. Estas coisas costumavam acontecer em um laboratório. Um 
técnico fazia uma punção na veia, coletava um pouco de sangue em um tubo pequeno, inseria-
o em uma máquina e lia os resultados. Isto ainda acontece, mas agora vem sendo 
acompanhado por uma outra prática de medição. Desde que o maquinário necessário vem 
sendo minimizado, pessoas com diabetes podem, agora, carregá-lo consigo e medir seus 
próprios níveis de açúcar. Basta fazer um furo no dedo e pôr uma gota de sangue em um 
bastão de medição. O bastão é colocado dentro de uma máquina e, dentro de poucos 
segundos, um número surge na tela. De todo modo, nada disto é fácil. Fazer um furo no dedo 
pode doer, o número pode durar algum tempo para aparecer – e assim por diante. Mensurar é 
uma tarefa exigente e às vezes impossível de aplicar na prática. Segundo as palavras de um 
médico residente em entrevista:
Eu entendo perfeitamente bem que não é sempre fácil. 
Comoeste paciente que eu tenho e trabalha nas 
estradas. Você senta lá em uma vala, com sujeira por 
todo lado, as mãos sujas e nenhum lugar para se 
esconder. Eu não mediria nada também, se estivesse 
no lugar dele.
Valas sujas são um problema. Mas medir seu nível de açúcar também é difícil em uma 
reunião de negócios onde você não pode se retirar por um minuto ou dois. Ou se você está 
fazendo compras com seus amigos; ou ensinando uma sala cheia de crianças. Não obstante, é 
possível medir o nível de açúcar de alguém em uma cozinha limpa ou em um banheiro – isto é, 
em um local onde as circunstâncias estão tão sob controles quanto em um laboratório. Desta 
forma, a hipoglicemia pode ser julgada como um nível de açúcar no sangue abaixo de 3,5 
mmol/l.
Sullivan e muitos outros críticos argumentam que a medicina deveria conhecer os 
corpos vivos de uma maneira mais rica do que conhece os cadáveres em silêncio. Deveriam 
apreciar o fato de que os pacientes são capazes de ação. Mas pedir às pessoas com diabetes 
para serem tão ativas quanto técnicos de laboratórios não resolve o problema: simplesmente 
transforma-os em seus próprios patologistas. Não encerra o dualismo entre o conhecimento 
médico e o paciente cujo corpo é conhecido, mas apenas o muda de lugar, pois passa a ser 
uma prática de cada indivíduo particular. Atender não apenas ao corpo que temos, mas 
também ao corpo que somos requer conhecimento do seu interior. E, curiosamente, no 
cuidado diário (ou na prevenção) da hipoglicemia, o autoconhecimento é pelo menos tão 
importante quanto a medição. Pois se alguém é sensível ao seu próprio estado físico interior, 
pode-se sentir a hipoglicemia (a ´hipo´) se aproximando e fazer alguma coisa para aumentar 
seu nível de açúcar no sangue. Mas se autoconhecer não é, de forma alguma, uma coisa 
simples e direta. Não é algo que todas as pessoas sejam capazes de fazer; tanto quanto a 
medicina não se silencia sobre este autoconhecimento. Algumas pessoas são boas nisso, 
outras, não. Como colocou uma enfermeira de cuidados a pacientes com diabetes:
Às vezes, encontramos pessoas aqui que nunca sentiram nada. 
Elas fazem tudo que é prescrito. Então tentamos dar a elas 
uma boa prescrição, dizemos a ela o que fazer e colocamos 
alguns momentos extras de medição. Mas então quando algo 
fora do esperado acontece, elas se deparam com problemas. 
Enquanto outros, bem, eles me contam que dificilmente 
conseguem mais de um ou dois dias fazendo o controle de 
medição, mas eles nunca relatam “hipos”, no entanto. Eles, de 
alguma forma, sentem ela se aproximando. 
A enfermeira acredita que as pessoas que “sentem, de alguma forma, a hipoglicemia 
se aproximando” são melhores porque elas podem ter vidas mais flexíveis. Elas podem lidar 
com uma hipoglicemia inesperada que porventura ocorra caso elas estejam distantes de suas 
rotinas. Ela descreve com entusiasmo como participa de programas de grupos de apoio onde o 
autoconhecimento é ensinado para aqueles que não o possuem.10 No tratamento de pessoas 
com diabetes, então, o autoconhecimento não é silenciado pela medicina, mas usado como 
um recurso – e extendido onde possível.11
Pode haver um dualismo entre conhecer corpos objetivamente a partir do exterior ou 
objetivamente a partir do interior. Mas se, como sugerimos, a prática é persistentemente a 
superfície, então parece-nos que a relação entre a medição e a percepção pessoal é muito 
mais complexa. Às vezes, e para algumas pessoas, sentir-se mal é uma razão suficiente para 
agir. Medir é simplesmente desnecessário. Mas em outras circunstâncias a percepção pessoal 
e a medição são postos em contraste e este último é visto como mais preciso. Isto porque 
sentir-se mal não está necessariamente relacionado a hipo, mas, por outro lado, pode ser 
efeito de uma queda do nível plasmático de açúcar de, digamos, 15 para 8 mmol/l. Isto 
significa que sentir-se mal não é necessariamente uma razão para aumentar o nível de açúcar 
no sangue de alguém, mas deve antes ser uma razão para medí-lo. E algumas pessoas 
simplesmente não se sentem mal, portanto elas sempre têm de fazer a medição se elas 
10
1
 E a possibilidade mais provável para aqueles que adoeceram recentemente: a capacidade de sentir 
uma hipoglicemia chegando pode também se deteriorar como consequência da diabetes.
11
1
 A medicina ocidental depende em muitos aspectos do autoconhecimento que os pacientes têm 
acerca de seus corpos. Afim de possibilitar aos doutores que usem suas ferramentas de diagnósticos 
apropriadamente, os pacientes primeiro devem responder questões como: “Como você se sente?”, 
“Onde dói?”, “À que horas?”, “É uma coceira ou uma pontada?” e por aí vai. Em todas as críticas do 
abandono da medicina ao autoconhecimento de seus pacientes esta dependência tem sido 
negligenciada. Mas veja, por exemplo, Strauss et al. (1985), que presta atenção ao trabalho de 
articulação em que os pacientes e doutores estão envolvidos
querem aferir os seus níveis plasmático de açúcar. Mas, do ponto de vista do etnógrafo, a 
correlação mais importante entre objetividade e subjetividade vem com o uso das máquinas 
de medição no treinamento de uma maior sensibilidade interior. Nos programas de 
treinamento, os indivíduos são ensinados a adivinhar seus níveis de açúcar primeiro e só 
depois medí-los. O objetivo não é torná-los em primorosos estatísticos, mas encorajá-los a 
interromper o que quer que seja para sentir os seus corpos interiormente. É seduzi-los à 
prática do autoconhecimento.
Contrariando, prevenindo e produzindo Hipoglicemia.
Mas “produzir” hipoglicemia não é apenas umas questão de conhecê-la a partir da 
medição exterior, sentí-la dentro de si ou alguma combinação destes dois fatores. Quando 
perguntamos a Miriam T., que vive com diabetes há anos, “O que é hipoglicemia?”, ela nos 
contou uma história diferente:
Bem, se, no momento em que um diabético vai dormir, 
nós temos [um nível de açúcar plasmático] 4 [mmol/l], 
então você simplesmente sabe que em algum 
momento você corre risco de ter uma hipo durante a 
noite, porque está muito baixo. Seu nível deveria estar 
em 6 ou 7, mas o que acontece é isto, bem, oh merda!, 
eu acordo no meio da noite e tremo, tremo, tremo e 
suo; e então eu tenho de me levantar e comer alguma 
coisa. Não se eu estiver sendo bem-comportada, mas 
se estou sendo descuidada, bem, sim, aí eu tenho que 
me levantar.
Nessa história há números (4,6,7) e há tremedeira e suadeira. Mas Miriam T. também 
fala sobre acordar no meio da noite, com raiva de si própria por estar sendo descuidada. A 
ação crucial requerida é comer. 
E aí eu me repreendo e vou até a geladeira e pego um 
iogurte e ponho um pouco de açúcar. E às vezes eu 
sento no chão, comendo, pois é tudo o que eu consigo 
fazer numa hora dessas: sentar no chão da cozinha e 
comer meu iogurte com açúcar. E então, 
gradualmente, me sentir melhor.
Na vida cotidiana das pessoas com diabetes, hipoglicemia é algo que elas conhecem 
bem, mas o ponto chave de sua relação com ela não é agregar conhecimento e sim intervir. 
Para Miriam T., a maneira mais relevante de interagir com a hipoglicemia não é nem sentí-la e 
nem medí-la, mas contrariá-la. Então, quando questionada sobre o que é a hipoglicemia, ela 
fala sobre acordar durante a noite e tomar iogurte com açúcar.12 Algumas pessoas até 
constroem a hipoglicemia sem sequer saber o que é isto. Elas tentam evitá-la a todo custo. 
Como relata uma enfermeira:
Nós temos também esta paciente, uma mulher idosa que se 
tornou dependente de insulina recentemente, que está com 
tanto medo de ter uma hipo que, qualquerhora que ela se 
sente mal, ela come. Aí ela come e come... E ela não gosta de 
medir seu nível de açúcar, então ela pode se sentir mal, não 
por causa do nível de açúcar no sangue estar baixo, mas só 
porque ele caiu. Estava, digamos, em 15 e caiu para 8 e isso faz 
ela se sentir mal e ela quer evitar ter uma hipo, daí ela come – 
e come até o açúcar chegar a 15 de novo. E então ela se sente 
extremamente infeliz porque, você sabe, ela está ficando 
gorda.
Engordar não é um “sinal clínico” de hipoglicemia e pode ser um modo específico de 
agir, que é a prevenção. Evitar a hipoglicemia comendo sempre que se sente mal não é um 
curso de ação encorajado por enfermeiras. No entando, é compreensível, pois há boas razões 
para evitar a hipoglicemia. Aqui vão as palavras de Miriam T. novamente: “Com a insulina, 
afinal, você tem uma droga letal dentro de casa. As pessoas são mortas por ela. Se você tomar 
demais e não comer nada, bem, então você morre.”
Nas práticas atuais de tratamento, as pessoas com diabetes aprendem a injetar sua 
própria insulina, mas não demais. Elas aprendem a frustrar a hipoglicemia ou, de preferência, 
prevenir a sua ocorrência de qualquer forma, não comendo sempre que se sentem mal, mas 
apenas quando é estritamente necessário. Medir e sentir formam apenas uma pequena parte 
daquilo que se requer de um “paciente ativo” e adquirir conhecimento não é o objetivo destas 
atividades. Balanceando a ingestão de alimentos, os exercícios e as injeções de insulina o que 
as pessoas com diabetes estão tentando é evitar a hipoglicemia – e hiperglicemias também. 
Elas devem manter seus níveis de açúcar em uma meta adequada.
A medicina tem mudado esses níveis limites através das últimas décadas. Níveis ideais 
de açúcar no sangue agora são menores do que costumavam ser, desde que mantê-los baixos 
tende a adiar o aparecimento de complicações secundárias. São complicações desagradáveis: 
a medida em que as pessoas com diabetes vão envelhecendo, elas se tornam mais suscetíveis 
12
1
 Comer, por sua vez, está relacionado com o corpo de maneiras complexas, que vão muito além de 
“combater a hipoglicemia”. Estar tais atividades mundanas sócio-corporais pode lançar luz sobre muitos 
grandes aspectos da vida, como mostrado na interessante investigação sobre comida e memória de 
Sutton (2001).
do que outras a perder a visão, sofrer de neuropatias ou desenvolver arteriosclerose. Nos 
estudos clínicos existem comparações entre as pessoas que são tratadas de forma tradicional 
(com uma única injeção de insulina por dia e uma medição de controle do nível de açúcar no 
sangue trimestral) e aqueles cujos níveis de açúcar são regulados estritamente aos níveis mais 
baixos (mantidos com inúmeras pequenas doses de injeções de insulina por dia e tantas 
medições auto-administradas quanto necessárias). O segundo grupo acabou por apresentar, 
estatisticamente, uma maior qualidade de saúde a longo prazo. Como explica um médico 
residente:
Doze, quinze anos atrás, você ainda podia fazer um julgamento 
apropriado para investigar se a regulação estrita melhora os 
resultados dos pacientes a longo prazo. Mas agora isto não 
seria ético. Não pode mais. Provas suficientes já foram 
reunidas, mesmo que os ensaios que foram feitos não sigam o 
que eu acredito que seja um bom programa de tratamento.
A política de tratamento atual é a de regulação estrita, apertada, constante, sempre 
que possível. Estatisticamente, ela melhora a saúde dos pacientes a longo prazo, mas possui a 
desvantagem de levar a uma maior incidência de hipoglicemia. Se os limites são estabelecidos 
muito baixos não surpreende que a frequência de níveis de açúcar também muito baixos 
aumentem. Assim, enquanto as pessoas são ensinadas a evitar a hipoglicemia e a contrariá-la o 
mais rápido possível, ensaios clínicos recentes – e as normas criadas a partir deles – na 
verdade produzem hipoglicemia. Este efeito, de fato, não foi algo desejado, mas consequência 
da tentativa de adiar complicações a longo prazo. Acontece, então, que conhecer a 
hipoglicemia não é o interesse principal da prática médica. Nos encontros de profissionais de 
saúde há uma tentativa de aumentar a habilidade de seus pacientes de contrariar ou evitar a 
hipoglicemia, enquanto que implementar tais programas de tratamento provoca um aumento 
total de “incidentes hipoglicêmicos” – como efeito colateral.
Incorporar e excorporar
Perguntamos “o que é hipoglicemia” e descobrimos que pode ser: medida como o 
nível de açúcar no sangue abaixo de 3.5 mmol/l; sentida como suor, tremores ou um conjuntos 
de sensações de desconforto; combatida como algo que responde à ingestão de açúcar; 
evitada por medo de um coma ou, pior, da morte; e, ao mesmo tempo, é também produzida 
como uma tentativa de evitar complicações a longo prazo. Tendo todos estes sentidos, 
hipoglicemia pode ser todas estas coisas. Mas o que elas implicam para o corpo? Existem duas 
respostas para esta pergunta. Primeiro, ao regular a hipoglicemia, os corpos fazem uma porção 
de coisas: eles agem. E, segundo, enquanto ela é medida, sentida, combatida, evitada e 
produzida, os corpos estão sendo regulados também. 13 Mas calma!, isso tudo é ainda mais 
13
1
 Existe ao longo do texto uma série de jogos de palavras entre os termos act [agir] e enact 
[regular].
complicado. Pois agir e ser regulado andam juntos. Assim, podemos perguntar: enquanto ele 
está agindo, o que o corpo pode ser? Esta é a questão para a qual nos voltamos agora. 
Patologistas que observam cadáveres ou doutores que usam instrumentos com a 
intenção de ver através da pele de pacientes vivos estão, principalmente, preocupados em 
observar. Esta prioridade, em qualquer nível, é a forma pela qual Foucault descreve o “olhar 
clínico”, o modo de saber dominante na medicina surgido no início do século XIX. Os corpos 
dos doutores estão ativos neste olhar, mas apenas parcialmente. É principalmente os olhos 
que praticam a ação. As tecnologias que ajudam os médicos a “ver através” da pele dos corpos 
vivos podem também adicionar os ouvidos à ação, o sentido tátil do observador ou até mesmo 
o olfato – ainda que o conhecimento dominante permaneça metaforicamente visual.14 Quando 
Sullivan e outros incita-nos a considerar o autoconhecimento do paciente, eles estão 
salientando a importância de outra faculdade sensorial: de sentir o bem-estar físico interior. 
Assim, o conhecimento dos corpos envolve todos os sentidos.15 E o conhecimento-na-prática 
envolve ainda mais o corpo - tal como as mãos que o manipulam e não podem tremer demais. 
Outras formas de monitorar a hipoglicemia depende não apenas das mãos, mas também da 
boca que morde, do sistema digestivo e do metabolismo de cada célula em particular. Regular 
a hipoglicemia envolve o corpo por inteiro. Mas este corpo não é um conjunto bem definido: 
ele não é fechado, mas possui fronteiras semipermeáveis. 
Vamos começar levando em consideração as medições. Certamente, elas dependem 
dos olhos daquele que lê o display na máquina. Mas antes os olhos e as mãos têm de estar 
ativos. Eles espetam e são espetados. Mira cautelosamente: próximo à ponta do dedo mas não 
na ponta do dedo: se, por acaso, você ficar cego algum dia na sua vida vai precisar da ponta 
dos dedos para se locomover. Uma mão espreme uma gota de sangue da outra mão. Também 
elas inserem o bastão coletor que absorve o sangue dentro do compartimento de medições na 
máquina. Desta forma, tudo vai bem. 
A enfermeira:
Às vezes eu não entendo a indústria. Aqui, tente, você pode 
abrir essa tampa? Eu dificilmente consigo. E um monte de 
pessoas com diabetes, a medida que vão envelhecendo, elas 
têm mais dificuldade de usar as mãos. Ou com pessoasjá 
14
1
 Todas as práticas de conhecimento dependem do corpo ativo do cognoscente, mesmo que um 
bocado de esforço seja gasto para expulsar a relevância de alguns desses corpos – notavelmente 
naqueles conhecimentos práticos denominados “ciência”. Para conhecer a história e a persistente e 
mutável relevândia do conhecimento-dos-corpos, ver os ensaios em Lawrence e Shapin(1998)
15
1
 Assim como outras formas de conhecimento, a etnografia inclusa. Veja Stoller (1989).
velhas, as mãos delas tremem demais para inserir o coletor na 
máquina, aqui, veja essa máquina aqui... Impossível! E ainda 
existem máquinas com displays tão pequenos que os números 
não podem ser lidos de forma nenhuma. Ainda mais se a 
pessoa não tiver uma boa visão. E aí as coisas grandes e 
sólidas que podem ser usadas por qualquer um, os jovens não 
gostam. Eles querem algo que possam carregar pra qualquer 
lugar, algo pequeno. Com desing fashion, assim eles podem 
sair mostrando.
Mãos são ativas na medição da hipoglicemia, mas elas não agem sozinhas. Elas 
interagem com as máquinas. O sucesso dessa interação depende da extensão na qual mãos e 
máquinas são adaptadas e adaptáveis umas às outras. Algumas coisas podem ser feitas 
somente se um corpo está preparado e treinado para fazê-las – outras vacilam quando uma 
máquina não é adequadamente ajustada ao corpo ao qual deve servir. Máquinas só se tornam 
instrumentos se o corpo pode manipulá-las e incorporá-las nas suas ações. Desse modo, 
medições dependem mais de um conjunto de fatores do que de um corpo isolado. O corpo 
que mede funde-se ativamente às máquinas de medição. E quanto ao corpo que sente? 
Miriam T., no meio da entrevista: “Bem, desculpe-me. Eu preciso ir à cozinha agora, preciso 
comer uma maçã ou algo do tipo”.
Miriam T. sente a hipoglicemia chegando e deseja uma maçã – ou algo do tipo – com o 
intuito de combatê-la. Ela não mede seu nível de açúcar: ela odeia ter de pinicar o dedo e evita 
isso o máximo que pode.16 No entanto, seu desejo não provém de um corpo nem isolado e 
nem delimitado: ele abrange muito mais.
Eu, bem, eu conheço meu corpo bem e se eu fico me pinicando 
e medindo a mim mesma agora, eu sei que justamente 
naquela hora eu tô baixa, porque eu meio que sinto, eh... Eu 
tenho de comer algo mais, porque eu ingeri demais. É isso. Nós 
Estávamos comendo chilli hoje de noite e tinha todos aqueles 
feijões e carboidratos, e aí eu tendo a ingerir duas ou três 
unidades a mais pra que não suba demais, mas agora eu tava 
fazendo umas coisas no jardim e, bem, hmmm, eu tenho de 
comer alguma coisa extra porque, se não, eu fico mal. Mas 
16
1
 A questão da quantidade de dor envolvida na medição é interessante à sua própria maneira. Alguns 
dos nossos informantes dizem que não sentem dor. Uma pessoa afirma que não sente dor porque ela 
não se importa tanto em se medir – ele diz que tem a impressão de que quanto mais a pessoa se 
importa em se medir, mais ela sente dor. De todo modo, se alguém não sente dor nenhuma, isso não é 
um bom sinal: pode indicar uma neuropatia que se estabeleceu e atrapalha a sua sensibilidade à dor.
.
agora nós vamos ter algumas nozes e aí eu me permito mesmo 
comer um pouco de, hah, nozes.
Na sua apreciação de si mesma como estando “baixa”, Miriam T. inclue: tabelas de 
carboidratos e sua experiência com máquinas de medição; o chilli que ela comeu; as unidades 
de insulina que ingeriu; sua jardinagem; e até a promessa de nozes. Ela incorpora aquilo que a 
rodeia. O corpo autoconhecido tem fronteiras semipermeáveis. Mas não apenas aquilo que 
vem de fora permeia o corpo; acontece também um movimento em outra direção. Algumas 
atividades corporais podem tomar lugar além da superfície da pele. O marido de Miriam T., 
Josef, por exemplo, parece ser muito bom em detectar a hipoglicemia de sua esposa:
Então ele me olha e diz “Você não acha melhor comer alguma 
coisa?” Ou ele nem olha, mas ele percebe por alguma coisa 
que eu esteja fazendo. Eu me irrito de um jeito diferente. Ou 
então fico nada amigável. E ele sabe como eu tô, o que está 
acontecendo. E geralmente ele está certo.
Mais tarde, Josef entra na sala e admite com certo orgulho que frequentemente 
consegue sentir quando Miriam T. não está bem. De fato, ele não fala sobre ver, mas sobre 
sentir. Assim, enquanto o corpo-em-prática pode incorporar algo daquilo que o rodeia pode 
também – como dizê-lo? – excorporar17 algumas de suas ações. A atividade mesmo de sentir-
se pode tomar lugar fora do próprio corpo. A ação física é necessária para sentir e medir – e 
também para combater a hipoglicemia. Fazendo algo ao se sentir “baixa”, Miriam T. procura 
morder, mastigar e engolir. Ela deve fazer isto por ela mesma. Ela precisa de uma maçã – ou 
algo do tipo – para comer. Se as pessoas combatem a hipoglicemia fisicamente aquilo que as 
rodeiam deve estar preparado para a ação. Miriam T.:
Eu nunca saio de casa sem comida na bolsa. Nunca. Sem 
insulina na minha bolsa, sem dextrose em minha bolsa. Nunca. 
Não importa o que seja, eu sempre carrego algo comigo. 
Porque aí quando eu tô em algum lugar, esperando lá, e tenho 
de comer alguma coisa, bem, então eu não posso ter aquilo. Eu 
não posso não ter algo para comer ali.
17
1
 Neologismo criado pelos autores.
Miriam leva comida aonde quer que vá e cuidadosamente espalha dextrose e biscoitos 
ao seu redor. Eles estão no porta-luvas do carro, nos cestos de sua bicicleta, no quarto de 
cima. “Isso se tornou comum, pertence a mim. Sou eu”.
Coloquemos desta maneira: em complemento ao corpo de alguém deve haver um 
corpo próximo pronto para a ação. Mas também seguimos a sugestão de Miriam T.: lugares 
bem organizados se tornam parte do self atuante, do eu, o que significa que vai bem além do 
corpo.
Regulando a hipoglicemia, os corpos atuam. Mas esses corpos ativos não estão 
isolados. Ao invés disso, suas fronteiras são frágeis. Eles interagem e às vezes mergulham 
parcialmente naquilo que está ao derredor. Isto é até mais óbvio quando medir e sentir são 
esquecidos e a ação vem tarde demais. Pois se a hipoglicemia fica realmente mal, o corpo 
começa a perder sua capacidade de agir por si mesmo. Com o nível de açúcar no sangue muito 
baixo, a pessoa começa a se comportar estranhamente, agressivamente, como se estivesse 
bêbada. Miriam T. alertou seus colegas de trabalho.
Aí eu disse pra eles: se algum dia eu ficar nesse estado, me 
tirem do salão principal da loja, me tirem do salão para a sala 
de estoque ou o escritório, qualquer lugar, pro banheiro. Eu 
não ligo. Mas eu ficaria tão envergonhada se começasse a ter 
uma hipo na loja.
Uma hipoglicemia severa é seriamente incapacitante. Primeiro, o corpo se torna 
desonesto e constrangedor; depois ele pode cair e entrar em coma. Em coma, a pessoa não 
pode comer ou beber mesmo que haja açúcar disponível. Em vez disso, é necessário aplicar 
uma injeção de glucagon: o hormônio que leva o corpo a liberar parte de seu estoque de 
açúcar para a corrente sanguínea. Um corpo em coma pode até responder ao glucagon, mas é 
uma outra pessoa que precisa aplicar a injeção. Josef e alguns colegas de Miriam T. no 
supermercado aprenderam como fazer isso. Se suas mãos e boca não estão mais hábeis para 
agir são eles que devem combater a hipoglicemia dela. Aqui, novamente, como nos atos de 
medir e sentir, as fronteiras do corpo-em-prática são parcialmente permeáveis. Um corpo 
ativo incopora partes e peças do mundo ao redor, enquanto que a sua ação pode ser 
deslocada para fora do corpo, excorporada. 
Destacar persitentemente a prática muda a nossa percepção do corpo, o corpo-em-
ação.Olhos perscrutantes ainda são importantes (eles devem ler os números nos displays das 
máquinas de medição), mas eles estão acompanhados de mãos manipuladoras (às quais picam 
e espremem sangue ou carregam açúcar até a boca). Autopercepção continua importante, mas 
comer e beber parece ser mais crucial para sobreviver. De fato, a atividade paradigmática do 
corpo-em-ação não é a observação e sim a metabolização. Esta observação se encaixa 
perfeitamente na nossa observação anterior de que o corpo ativo possui fronteiras 
semipermeáveis. Um corpo que observa, não: ele vê o que há lá fora e sente o que há aqui 
dentro. Um dos passos mais importantes para adquirir autoconhecimento é a habildidade de 
diferenciar entre o eu [self] e o outro, entre aquele que vive no aqui dentro e aquele que, por 
ser exterior, não vive. 18De todo modo, para o corpo metabólico, interior e exterior não são 
fronteiras estáveis. Falar sobre metabolismo é, acima de tudo, falar sobre comer, beber, 
respirar; sobre defecar, urinar e suar. Para o corpo metabólico incorporar e excorporar são 
atos essenciais.
In/coerências
O corpo é ativamente engajado em regular a hipoglicemia; (a ameaça da) hipoglicemia, 
por sua vez, ajuda a regular o corpo – de uma forma bastante específica. Existem muitas 
formas diferentes de regular os corpos.19 Por exemplo, viver com asma torna as pessoas 
conscientes do ar que respiram, assim como praticar ioga (Willems, 1998). As pessoas que se 
tornam cegas depois do nascimento dão descrições emocionantes do opaco, dos espaços 
cheios de obstáculo que passam a habitar (Golledge, 1997). A academia pode produzir 
músculos fortes ou dar uma sensação de sua inadequação. Aqueles que tentem a perder peso 
passam a habitar uma realidade metabólica na qual comida consiste em calorias e exercícios 
físicos são um caminho para perdê-las. E, retornando ao dia-a-dia daqueles que vivem com 
diabetes, aqui o corpo é também regulado como um sistema metabólico, passando a 
considerar a comida como uma maneira de calcular carboidratos e exercícios como um meio 
de queimar açúcar. O que está em jogo a curto prazo é, principalmente, o balanceamento do 
nível de açúcar no sangue mais do que o fato de acumular gordura a longo prazo.
No sistema metabólico daqueles que vivem com diabetes muitas coisas relevantes são 
colocadas juntas: comida com insulina com exercício com nível de açúcar no sangue... Os níveis 
de açúcar, por sua vez, possuem ainda mais links, uma vez que, com o passar do tempo, níveis 
altos de açúcar podem causar obstrução das artérias por arteriosclerose, deterioração da visão 
e perda sensorial devido a degradação dos neurônios. O corpo se torna cada vez mais 
enredado a medida que passa a conviver com a diabetes. E mesmo assim não é um todo 
coerente. Em vez disso, ele é um conjunto de tensões. Por exemplo, ocorrem tensões entre os 
interesses dos seus vários orgãos. Regular o nível de açúcar com precisão pode ser bom para 
as artérias, os olhos e os neurônios, mas desde que aumente o risco de hipoglicemia, pode ser 
ruim para o cérebro. Como um médico residente nos disse:
18
1
 Para uma investigação experimental sobre como a diferenciação entre o eu [self] o outro é 
estabelecida no conhecimento que as pessoas têm de seus corpos desde a infância, ver 
Butterworth (1995)
19
1
 Este fenômeno, com uma pequena diferença, pode também ser chamado de “realização de corpos”. 
Para uma defesa da “mudança performática” em uma linguagem filosófica, com as múltiplas formas da 
construção de diferenças entre os sexos como seu alvo de análise, ver Butler (1993).
Deixa eu te falar. Isso me preocupa; me preocupa mesmo. 
Desde que aqueles ensaios foram publicados uma regulação 
mais apertada se tornou bem popular. Meus colegas mais 
jovens tendem a aceitar isso. Apenas aceitam, sem imaginar se 
as pessoas estão realmente aptas para isso, se elas podem 
permanecer baixas sem cair para várias hipos. Está na 
literatura. É “baseado na ciência”! Quanto menos experiência 
os doutores possuem, mas eles amam falar que é “baseado na 
ciência”. Mas nós começamos a perguntar aos pacientes um 
pouquinho mais sistematicamente sobre seus acidentes de 
hipoglicemia, fazendo-os escrever diários ou coisa que o valha, 
e os números que eles relatam são chocantes! Bem maior do 
que tínhamos estipulado. E nós olhamos para a literatura, pois 
de fato as pesquisas sobre hipoglicemia crescem 
gradualmente, e existem artigos atrás de artigos sobre como 
hipos causam danos cerebrais. Ninguém sabe ao certo quanto 
dano.
A regulação apertada não é boa ou ruim para o corpo como um todo. É boa para certas 
partes do corpo e ruim para outras. Pois existem tensões no cotidiano dos corpos e das 
pessoas, dos dois. Qual a opinião menos ruim? Permitir um nível maior e arriscar uma 
arteriosclerose, cegueira ou uma perda da sensibilidade neuronal em 20 anos? Ou manter o 
nível baixo, mas arriscar hipoglicemias que a longo prazo podem tornar perigoso dirigir ou 
carregar uma criança por causa da possibilidade de um coma? Qual vida viver? E em qual 
corpo? Uma que perde as contas e tem mãos trêmulas que podem sentir ou uma com artérias 
entupidas que perde a visão e não pode sentir muito bem, mas ao menos permanece lúcida? 
Estas são as opções com as quais se defrontam as pessoas com diabetes.
Mas não, não leva a lugar algum falar sobre opções. Pois se alguém tivesse a 
oportunidade de escolher seria óbvio a sua opção: uma combição idealmente balanceada. 
Regulação estrita, baixo nível de açúcar no sangue e uma rápida detecção e combate à 
hipoglicemia. Este ideal, no entanto, é insustentável. Ele depende da capacidade para avaliar o 
nível de açúcar, calcular o que a pessoa come e manter o controle de quanta energia é gasta 
durante os exercícios físicos – intermitantemente, um momento após o outro, sem nunca 
parar. E ainda há mais. A característica mais torturante de se tentar manter um nível de açúcar 
sanguíneo estável é que se pode falhar por mais que se tente. Às vezes, níveis de açúcar se 
comportam de maneiras imprevisíveis. Miriam T.:
Você nunca sabe o que está acontecendo. As emoções são 
tipicamente difíceis de lidar, um bocado difíceis. Elas gastam 
energia, cansam, e aí vai você, um pouco de riso ou de choro e 
você tem uma baixa. Então, novamente, elas podem levar à 
liberação de qualquer que seja seu acúmulo de açúcar no 
corpo. Então quando eu faço uma medição, eu penso: Eu não 
como nada faz horas. Então por quê está em 13, 13?
O balanceamento de açúcar é parte do sistema metabólico: o termo sugere um 
circuito fechado, mas algumas variáveis estão faltando. Elas agem imprevisivelmente ou não 
são conhecidas. Isto significa que a obrigação de um controle constante implica na ameaça de 
uma falha inesperada. E você nunca sabe o que está acontecendo. O mesmo é verdade para 
complicações de longo prazo. Níveis de açúcar baixo permanentes pretendem prevenir 
complicações secundárias, mas até mesmo aqueles que seguem um regime severo podem cair 
vítimas deles. Como um residente diz:
E aí as pessoas me dizem, elas falam: “Oh, doutor, eu vi tal 
pessoa caindo na sala de espera, e uma de suas pernas foi 
amputada. Isto me assusta, isto me assusta como a peste! 
Agora, se eu controlo tudo direitinho, e permaneço abaixo de 
10 como eu devo, por favor, me prometa que isso não vai me 
acontecer, que eu não vou ter de amputar uma perna”. É disso 
que eles querem se assegurar. Mas, claro, eu não posso 
prometer nada. Eu queria poder, mas não posso.
Estatisticamente as correlações são claras: uma regulaçãoapertada no balanceamento 
dos níveis de açúcar trazem mais riscos de acontecer algumas complicações ao longo da vida 
do que níveis que permanecem altos ou mantêm uma frequência de altos e baixos. Mas o que 
acontece ao indivíduo é imprevisível. Olhos podem se tornar cegos, ou não. O 
desenvolvimento de doenças neurológicas pode ser adiado, ou não. Arteriosclerose pode se 
desenvolver rapidamente, ou não – e se se desenvolver rapidamente as artérias da perna 
podem se deteriorar tão rapidamente que uma amputação talvez seja a única maneira de 
interromper a dor ou prevenir uma gangrena e a morte. Então, é uma segunda tensão que 
assola o corpo vivendo com diabetes: a tensão entre o controle e os caprichos do destino. De 
todo modo, apesar dos cálculos que a pessoa faz, sua taxa sanguínea de açúcar continuará 
agindo de forma irregular, errática. Por mais sucesso que ela tenha vivendo uma vida sob 
controle, esta mesma vida gera surpresas angustiantes. O tratamento moderno para diabetes 
exige que os pacientes mantenham uma contagem constante de tudo o que acontece com 
seus corpos, ainda que tais processos não possam ser contados.
Uma terceira tensão decorre da maneira pela qual uma porção de necessidades e 
aspirações devem ser mantidas conectadas e incorporadas ou, como poderíamos dizer, 
siamesizadas. O corpo-com-diabetes vive com uma série de tensões, mas a pessoa com 
diabetes não é apenas a “pessoa com diabetes”. Elas podem ter asma, praticar ioga, ficar cega, 
ser transexual, ir para a academia ou tentar perder peso. Elas podem trabalhar em valas, 
reuniões executivas ou em frente a uma sala de aula. Elas podem se apaixonar ou se 
desapaixonar, ter depressões ou ataque de gripe, viajar nos feriados, trabalhar no jardim, ir 
para o shopping ou fazer provas. As especificidades das inúmeras formas nas quais as pessoas 
podem vivenciar seus corpos de alguma maneira têm de ser combinadas com aquelas que são 
“práticas da diabetes”. Cecília H.:
Eu sou uma pessoa muito esportiva. Adoro correr, nadar, 
pedalar, jogar vôlei, tenis, uma porrada de coisas. Então isso 
era o que mais me preocupava quando eu ouvi meu 
diagnóstico: que eu ia ter de desistir daquela parte da minha 
vida. E, de primeira, de fato, eu me senti tão infeliz, eu pensei 
que iria me sentir fraca pelo resto da minha vida. Mas então, 
gradualmente, eu conquistei isso, retomei: o esporte, sabe? 
Um bocado do que eu vivia, realmente. Eu simplesmente 
queria aquilo. Eu queria demais! E aí eu fui e fiz. Mas não foi 
fácil e ainda não é. Pois a questão é: você pode ter uma hipo 
quando seus músculos gastam energia demais, nem sempre 
aqui e agora, imediatamente, mas às vezes horas e horas 
depois. Então se você corre no finalzinho da tarde corre o risco 
de ter uma hipo durante a noite.
O corpo de uma pessoa-esportista e o corpo de uma pessoa-com-diabetes vivem em 
tensão. A explosão de energia do primeiro não coexiste muito bem com o precário balanço de 
energia do segundo. É uma tensão difícil! Algumas pessoas manejam esses malabarismos 
incessantes com certo sucesso e convivem com esta tensão por um longo tempo. Aqueles que 
não conseguem fazer isso se vêm obrigados a desistir de uma parte deles mesmos. Se lidar 
com hipos que vêm durante à noite é tão complicado, eles precisam desistir da vida esportiva. 
Mas se eles se atêm ao esporte e testam seus limites, então existe o risco de que eles caiam 
um dia na sarjeta e morram.20 Isto sugere que a idéia de que temos um corpo coerente ou 
somos um todo esconde um bocado de trabalho. E este trabalho tem de ser feito por alguém. 
Você não tem, você não é, um corpo-que-se-encaixa, naturalmente, por si mesmo. Manter-se 
um todo é uma das tarefas desta vida. Não é algo dado, mas deve ter conquistado, debaixo 
tanto da pele quanto para além dela, na prática.
O que se segue
20
2
 Na verdade, um dos internos observado e entrevistado descreveu uma paciente sua que não queria 
desistir de pilotar – um esporte seriamente perigoso para alguém com diabetes, porque se você tem 
uma hipo é impossível para os outros te tirarem dali. De algum modo, viver no limite pode, para 
algumas pessoas, valer muito para desistir. Sobre a combinação de esportes radicais e deficiências, ver 
Moser (2003)
Nas tradições teóricas ocidentais, “o corpo” é caracteristicamente evocado como um 
caso exemplar do que é ser um todo. Um “todo orgânico” soa como uma tautologia.21 Esta 
idéia se encaixa com o conhecimento do corpo como algo que temos e algo que somos. O 
corpo-que-temos, a espera do olhar do observador na mesa de exames, não se alarga para 
além das bordas da maca. Ele permanece passivamente nos limites de sua pele. A tarefa do 
observador é entender como esse corpo se encaixa: a coerência sistemática do corpo-que-
temos nunca é questionada. Mas o corpo-que-somos é também, ou deveria ser, um todo. As 
pessoas cuja imagem de seus corpos não são coerentes, que não sentem seus corpos na 
íntegra, são diagnosticadas como desviantes. E a medicina morderna, com sua pluralidade de 
especialidades, é largamente criticada por falhar em apreciar o todo. Se somos um todo, e 
assim afirma a crítica, por que não somos tratados como tal?
No entanto, se colocarmos em primeiro plano as práticas de negociação com a 
realidade e fizermos isto persistentemente, o corpo como um “todo orgânico” não mais será 
algo auto-evidente. Contudo, isto não implica que o corpo-que-fazemos seja fragmentado, o 
inverso de ser inteiro. Se fôssemos criar nossos corpos de maneiras que os fragmentássemos, 
a morte nos seguiria rapidamente. O corpo que criamos não é nem um todo e nem é 
fragmentado. Ele possui uma configuração complexa.22 Existem fronteiras ao redor do corpo 
que criamos: É Miriam T. quem sente calafrios quando tem uma hipo e não Josef, seu marido. 
Mas as fronteiras são semipermeáveis: Josef pode sentir a hipo de Miriam por ela e o doce 
iogurte que ela toma interrompe sua hipo. Desde que não se desintegre, o corpo-que-criamos 
permanece integrado. De qualquer forma, ele é cheio de tensões. Existem tensões entre os 
interesses de seus vários órgãos; tensões entre ter o controle e ser impetuoso; tensões, 
também, entre as exigências do jogo com a diabetes e outros desejos e necessidades. Na 
prática do dia-a-dia de construir nossos corpos tais tensões não podem ser evitadas. Goste ou 
não, elas devem ser controladas.
O corpo-que-criamos não é um todo. Manter-nos integrados é uma das tarefas da vida. 
Isso traz implicações sobre o que podemos esperar ou requerer da medicina. Sullivan 
argumenta que a medicina deve adicionar o autoconhecimento de seus pacientes aos 
resultados de suas práticas clínicas (ou, mais especificamente, patológicas). Nossa sugestão é 
diferente. Nossa sugestão é de que, ao invés de adicionar mais uma camada de conhecimento, 
a medicina deveria mudar a sua auto-compreensão. A medicina deveria vir a reconhecer que o 
que ela tem a oferecer não é um conhecimento de corpos isolados, mas uma gama de 
diagnósticos e intervenções terapêuticas sobre corpos vivos, e, assim, dentro da vida diária das 
21
2
 Em seu grande ataque sobre como o “Pensamento Ocidental” tenta esquecer o corpo, Lakoff e 
Johnson exploram muitas metáforas fascinantes: a idéia de todo orgânico entre elas. Mas enquanto eles 
trazem a questão do corpo para dentro da filosofia, que por tanto tempo a excluiu, ainda falam de um 
corpo que temos e somos. Seu “corpo” permanence observativo, não é um corpo que criamos, e não é 
metabólico (ver Lakoff e Johnson, 1999).
22
2
 Para uma variedade de explorações acerca desta complexidade, ver as contribuições em 
Law e Mol (2002)
pessoas.Mesmo o olhar patológico não é meramente um olhar, mas envolve manipulação. As 
atividades médicas sempre dizem respeito tanto ao que está abaixo quanto ao que está além 
da pele. Mas todas as operações médicas, mesmo as que parecem simplesmente um cuidado 
com os corpos, são intervenções em vidas, e, portanto, elas devem ser avaliadas como tal. 
Assim sendo, não faz sentido melhorar sua eficácia em um ou dois parâmetros quando o 
amplo leque dos efeitos de suas práticas exigem uma atenção auto-reflexiva.23 Não se pode 
esperar que todos esses efeitos produzam melhorias. Ao expressar como ela é feita, ao 
considerar os efeitos de suas atividades, a medicina deveria ser sábia para confrontar sua 
própria tragédia: intervenções médicas dificilmente trazem apenas melhorias e benefícios, mas 
também trazem uma carga de desafortunados “efeitos colaterais”; uma vez que elas carregam 
consigo uma transferência de um conjunto de tensões.
Posto desta maneira, pode parecer que sugerimos que a auto-reflexão médica tome 
um rumo etnográfico. E assim fazemos.24 Curiosamente, os métodos etnográficos que colocam 
as práticas em primeiro plano e reúnem entidades diferenciadas em uma única história não 
são novidades para a medicina. Na sessão de materiais e métodos dos artigos científicos, 
aspectos práticos de todos os tipos (a configuração das intervenções em questão, a tecnologia 
mobilizada, as características do paciente e aí por diante) são escrupulosamente explícitas. É 
apenas na conclusão que elas tendem a ser esquecidas. E escute atentamente a uma 
entrevista clínica: o doutor pergunta “Como você está?” ou “O que posso fazer por você?” e 
espera que o paciente possa contar uma história sobre os eventos de sua vida cotidiana no 
qual entidades de todos os tipos (feijões, sangue, companheiros de mesa, carros, agulhas, 
açúcar) coexistem e interferem uns com os outros. Uma boa anamnese, finalmente, discorre 
sobre a situação do paciente numa linguagem que fala dos seus níveis de açúcar no sangue, 
suas ambições de trabalho, suas doses prescritas de insulina, sua vida amorosa, operações 
feitas para retirar e moderar o acúmulo de gordura e, se preciso for, tudo de novo do começo 
ao fim. Por que não contar histórias sobre a própria medicina numa linguagem similar?
A auto-reflexão feita pela medicina atual é predominantemente de cárater 
epidemiológico. Epidemiologia também traz consigo entidades díspares, mas seu método de 
contagem isola cada suposta variável de todas as outras e é incapaz de articular links e tensões 
entre elas. Neste ponto, a recontagem etnográfica é uma técnica mais promissora: ela pode 
produzir histórias ricas de corpos vivos nas quais a medicina figura como uma parte da vida 
cotidiana. No entanto, narrativas suaves que buscam encontrar coerência não a encontrarão. 
23
2
 Isto implica que a clínica epidemiológica não é mais suficente para a avaliação das intervenções 
médicas. Para um exemplo que demonstra como explorar os detalhes das intervenções clínicas e seus 
vários efeitos pode ajudar não apenas na avaliação como também na melhoria da clínica, ver Lettinga e 
Mol (1999)
24
2
 So far it has mainly been patients who have told stories about their lives with medical interventions
together with disease. Other possible participants have been much less forthcoming. One
might say that what we argue for here is that the turn to practice that such literature exemplifies should
be taken up in professional self-reflection as well. (See, e.g., Frank, 1995; Murphy, 1990; and, for an
intriguing mixture of daily life stories and cultural analysis, Stacey, 1997.)
Se os aspectos trágicos de viver-sob-tensão e intervir-para-melhorar estão para ser contados, 
então roteiros irregulares se fazem necessários. E tais narrativas devem ser contadas por uma 
variedade de narradores cujas vozes possam ser desenhadas em conjunto e/ou em conflito. 
Pois é aí que os pacientes entram novamente: conhecimento, não apenas autoconhecimento, 
mas um conhecimento igualmente capaz de contar histórias sobre a medicina e os efeitos de 
suas intervenções. O objetivo total da forma polifônica de histórias investigativas não precisa 
se encerrar em uma conclusão. Sua força pode muito bem provir das questões que deixa em 
aberto.
Não, se a medicina se esquecer de seus aspectos práticos novamente, se ela assistir 
persistentemente ao corpo-que-criamos, isto não resolveria todos os problemas, muito menos 
os problemas que nos afligem, seus pacientes, mas mesmo assim vale a pena tentar.

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