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Modelos de subjetividade em Freud. Da catarse à abertura de um passado imprevisível*

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34 Pulsional Revista de Psicanálise
34
Modelos de subjetividade em Freud.
Da catarse à abertura de
um passado imprevisível*
Nelson da Silva Junior
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 139, 34-48
Examinando seus modelos de patologia, distinguimos em Freud três modelos de
subjetividade: um modelo fechado, onde a doença define-se como ruptura da
identidade do sujeito, um modelo homeostático, onde a doença lhe é constitutiva,
e um modelo aberto, onde o sofrimento surge marcado pela imprevisibilidade e
negatividade específica da pulsão de morte, transformando radicalmente a clínica
e a ética psicanalítica.
Palavras-chave: Freud, subjetividade, clínica, ética psicanalítica
Examining the Freudian’s pathology models, we distinguish three subjectivity
models: a closed one, where pathology is defined as a rupture in the subject’s
identity, an homeostatic one, where pathology is part of the subject, and an opened
one, where suffering is defined by an unpredictability and negativity proper to the
death drive, radically transforming the psychoanalytical clinic and ethics.
Key words: Freud, subjectivity, clinic, psychoanalytical ethics
* Trabalho apresentado no Encontro Sul-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, realizado
em São Paulo, de 13 a 15 de novembro de 1999 e no Congresso dos Estados Gerais da Psicanálise,
realizado em Paris, de 8 a 11 de julho de 2000, com auxílio da FAPESP.
Este trabalho também retoma, com algumas modificações, o capítulo “Modelos de subjetividade
em Fernando Pessoa e Freud. Da catarse à abertura de um passado imprevisível”, publicado em
M.E. C. Pereira (org.), Leituras da psicanálise. Estéticas da exclusão. Campinas: ALB/ Mercado
das Letras, 1998, pp. 119-146.
Modelos de subjetividade em Freud. 35
A situação analítica é o instrumento
clínico, a ferramenta da ação do analis-
ta, mas este instrumento é guiado pela
sua escuta. Entre os componentes, por
assim dizer, exteriores da escuta, que
evidentemente é sempre recriada pelo
inconsciente do analista, estão os mo-
delos de patologia do psiquismo. A
clínica analítica se transforma pelos no-
vos modelos de patologia, e pelas
técnicas que estes exigem. Segundo mi-
nha hipótese, é possível distinguir em
Freud diferentes modelos de subjetivi-
dade precisamente a partir dos seus
modelos de patologia. Estes modelos de
subjetividade seriam de três tipos, dife-
renciáveis entre si a partir da relação
entre patologia e identidade. O primeiro
é um modelo fechado, marcado pela
pressuposição de que a doença é uma
ruptura da identidade do sujeito consi-
go mesmo; o segundo é um modelo
homeostático, onde a doença é de cer-
to modo constitutiva no sujeito, e a
saúde a capacidade de manter a identi-
dade, finalmente; e o terceiro é um
modelo aberto, no qual a figura da im-
previsibilidade marca a experiência do
sujeito frente ao sofrimento de modo
fundamental, e a noção de identidade
não pode ser mais apontada como um
critério de saúde.
Este último modelo está ligado ao adven-
to da pulsão de morte. A partir da
pulsão de morte, a negatividade e, mais
precisamente, a força do negativo co-
meça a se fazer presente na obra
freudiana em vários âmbitos além da
clínica. Suas hipóteses sobre a ética se
radicalizam. Em relação à estética, a psi-
canálise perde francamente seu ímpeto
explicativo e novos avanços são possí-
veis sobre feminilidade, a partir da
eficácia própria da ausência. Antes de
prosseguir, e para que possamos avan-
çar sem excesso de desentendimento,
cabe retomar aqui algumas diferenças
de sentido que afetam radicalmente as
formas de compreender o termo “nega-
tividade”.
Negatividade é um termo oriundo da fi-
losofia hegeliana. Em Hegel, a
negatividade é por assim dizer o motor
do método dialético, pelo qual o espíri-
to se transforma a partir do sensível. A
cada certeza do espírito, uma verdade
sensível se apresenta para negá-la. A
cada tese corresponde uma antítese que
a nega, e desta negação surge uma sín-
tese que, por sua vez, se tornará uma
nova tese. Este processo, que seria vir-
tualmente infinito, é concebido por
Hegel como sendo finito. Haveria um
momento no qual o sensível não nega-
ria mais o espiritual e onde o Espírito
atingiria uma consciência absoluta de si.
Neste momento apoteótico, acabaria a
história.
Na filosofia contemporânea, o termo
negatividade é retomado por Heidegger.
Aqui, ele indica um caráter constituti-
vamente finito do Estar-aí, do Da-sein.
Para Heidegger, o Dasein é uma forma
de nomear o ser humano sem defini-lo,
a partir de seus atributos, como “animal
racional”, “bípede implume” etc. O
36 Pulsional Revista de Psicanálise
Dasein é “feito” apenas de suas possi-
bilidades. Mas entre todas as possibili-
dades que encontra, a possibilidade da
morte tem uma primazia: esta única pos-
sibilidade que limita todas as outras. As-
sim, há um traço fundamental nesta
possibilidade, ela não é nem represen-
tável nem realizável. Diante desta pos-
sibilidade radical do não-mais-estar-aí, o
Dasein nada pode fazer, ele não pode
realizá-la. Até mesmo suicídio não a
concretiza, pois quando a morte acon-
tece, o Dasein deixa de existir. A morte
se faz presente no mundo cotidiano ape-
nas enquanto possibilidade, enquanto
possibilidade da impossibilidade. Esta
possibilidade irrealizável, ameaça contu-
do, de modo constitutivo, o cotidiano do
Dasein. A morte é a cada momento imi-
nente apesar de imprevisível. A angús-
tia sem nome que tudo ameaça é a voz
desta possibilidade nadificante.
Assim percebemos que dois sentidos
muito diferentes de negatividade podem
ser assimilados pela psicanálise. Em He-
gel, a negatividade era marcada por uma
certa finalidade, a finalidade da realiza-
ção de uma autoconsciência absoluta e
também por uma certa previsibilidade,
aquela que a cada antítese, a cada ne-
gação da tese se seguiria uma nova e
promissora síntese. Há um projeto im-
plícito na negatividade hegeliana, o
projeto do fim da história com a absor-
ção de todo o sensível no Espírito
absoluto. Em Heidegger, a negatividade
é constitutiva, e precisamente mostra a
finitude de todos os projetos humanos,
acabando com a força das finalidades.
A negatividade heideggeriana é imprevi-
sível e portanto indomável, ela mostra
o limite, a diferença entre a presença e
a ausência como a verdade mais própria
do homem. Será nesse último sentido
que empregarei o termo doravante.
Apresentarei a seguir primeiramente três
modelos de subjetividade em Freud
para, em seguida, refletir sobre algumas
mudanças que a noção de pulsão de
morte trouxe à escuta e, portanto, à clí-
nica psicanalítica como um todo.
Para que se possa visualizar aqui o que
entendo por subjetividade aberta, gos-
taria de retomar o profundo interesse
que possui a obra de Fernando Pessoa
na exploração do negativo, da ausência
e do vazio enquanto elementos consti-
tutivos do sujeito.
Com efeito, na obra de Pessoa, a nega-
tividade ocupa um lugar privilegiado de
operador na experiência artística. A es-
sência da literatura depende, segundo
Pessoa, precisamente da inessencialida-
de. Inessencialidade tanto do artista
quanto do leitor que experimenta a obra.
O vazio, a ausência e a negação são, em
Pessoa, uma condição de toda e qual-
quer exper iência l i te rária. Não é
coincidência o fato do poema mais co-
nhecido de Pessoa ser também uma
exposição hermética deste poder do ne-
gativo em sua obra. Trata-se do poema
“Autopsicografia” (1/4/1931, um pri-
meiro de abril, o que, como veremos,
não parece ser mera coincidência...).
Pessoa nele define os lugares do autor
Modelos de subjetividade em Freud. 37
e do leitor a partir da dor sofrida por
cada um deles. Que dor será esta? Ve-
jamos:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
A dor é aqui nomeada, e não por aca-
so. Segundo Freud,ela é o sentimento
egoísta por excelência, aquele que mais
imperiosamente exige que nos dobremos
sobre nós mesmos1. Se o poeta finge
sua própria dor, isso não pode querer
dizer que ele deixa de senti-la com a for-
ça de seu fingimento. Diz tão-somente
que, independente da dor que sinta,
deve, enquanto poeta, realizar uma tra-
dução em palavras que evoquem no
outro a dor. Se um ator, sentindo dor
sobre o palco, agisse “naturalmente”,
teria como resultado, provavelmente,
uma péssima representação. A dor do
poeta é uma forma de diferença de si
consigo. Mais precisamente, diferença a
partir da existência do outro. A partir de
tal diferença, a partir de tal abertura em
seu âmago, o poeta escreve-se enquan-
to outro, e para o outro. E nisto realiza
uma verdadeira autopsicografia, talvez
mesmo a única possível.
Mas o que acontece com o leitor? A se-
gunda estrofe o indica:
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
No Livro do desassossego, Bernardo
Soares, um semi-heterônimo de Pessoa,
afirma que a “arte consiste em fazer os
outros sentir o que nós sentimos, em os
libertar deles mesmos, propondo-lhes a
nossa personalidade para especial liber-
tação”. Aqui Pessoa é explícito, trata-se
definitivamente de alterar o leitor, trata-
se de liberá-lo de si mesmo. Como este
leitor deverá sentir doravante, não está
dito. Trata-se apenas de fazê-lo sentir-
se outro.
O propósito de liberar o leitor de si pres-
supõe que este está preso em si mesmo.
Preso em apenas uma das dores do poe-
ta, a dor real, aquela que deveras sente.
Libertá-lo de si será então fazê-lo sentir
a dor que não sente, fazê-lo sentir uma
dor fingida. Toda a questão da altera-
ção do leitor está aqui. Ao fingir sua
própria dor, o leitor é projetado para fora
de si. Finge para atingir um outro e
transforma-se, portanto, igualmente em
poeta. Esta conclusão é fundamental
para entendermos a estética pessoana.
Dentro da estética pessoana, portanto,
o fingimento, a mentira, já não podem
ser compreendidas enquanto faltas mo-
1. Freud comenta o fenômeno em questão nas páginas iniciais do texto “Por uma introdução ao
narcisismo” (1914). S. Freud. Zur Einführung des Narzißmus, 1914 Studienausgabe (SA)
Band III: Psychologie des Unbewußten, Fischer Taschenbuch Verlag, Frankfurt am Main, GW,
Bd. 10, SE, vol. 14, traduction française (par Denise Berger et Jean Laplanche) Pour introduire
le narcissisme, in La vie sexuelle, Paris: P.U.F. (1969) 1973.
38 Pulsional Revista de Psicanálise
rais. Para o aspecto propriamente ne-
gativo da mentira e do fingimento,
Pessoa reserva o termo “insincerida-
de”2. Em oposição radical a Kant (1985),
por exemplo, a mentira é para Pessoa
uma condição necessária do espaço so-
cial, a moeda neutra de todas as
emoções.
O fingir do poeta é a prova de sua con-
sideração pela diferença entre si mesmo
e o outro. Diferença que seria um abis-
mo intransponível pela mera expressão
da verdade. A poética do fingimento su-
põe uma insuficiência fundamental da
linguagem enquanto modo de comuni-
cação entre as pessoas. Também supõe
que não há outro modo, senão esta mes-
ma linguagem.
“... a mentira”, prossegue Bernardo Soa-
res, “é tão-somente a noção da existên-
cia real dos outros e da necessidade de
conformar a essa existência a nossa,
que não se pode conformar a ela. A
mentira é simplesmente a linguagem
ideal da alma, pois, assim como nos ser-
vimos de palavras, que são sons articu-
lados de uma maneira absurda, para em
linguagem real traduzir os mais íntimos
e sutis movimentos da emoção e do pen-
samento, que as palavras forçosamente
não poderão nunca traduzir, assim nos
servimos da mentira e da ficção para nos
entendermos uns aos outros, o que com
a verdade, própria e intransmissível, se
nunca poderia fazer. A arte mente por-
que é social”. (Pessoa, 1998)
A heteronímia, fenômeno literário de
absoluta originalidade, criado por Pes-
soa, pode ser considerada sob o ângulo
da autopsicografia como um caso ex-
tremo do fingimento poético. O que é
um heterônimo? Pessoa o define pelo
método de criação empregado. A dife-
rença entre uma obra pseudônima, diz
Pessoa (1986, p. 1.424), e uma obra
heterônima é que a primeira é a obra de
um autor exceto no nome que a assina,
a segunda, aquela de um autor fora de
sua pessoa. Para que surja um heterô-
nimo não basta apenas que o poeta finja
sua própria dor, é preciso que um ou-
tro fenômeno entre em jogo, uma forma
extrema de despersonalização, onde
“cada grupo de estados de alma mais
aproximados insensivelmente se torna-
rá um personagem, com estilo próprio,
com sentimentos porventura diferentes,
até opostos, aos típicos do poeta na sua
pessoa viva” (Pessoa, 1983; p. 132). Só
aqui haverá outrar-se, só aqui o poeta
voará outro. Neste sentido, compreende-
se que o neologismo outrar-se, seja por
assim dizer, o método da heteronímia.
Não é todavia a lógica do outrar-se, ima-
nente ao sistema heteronímico, mas sim
a lógica do fingir poético que, segundo
nossa hipótese, serve como um guia
exemplar para a exploração da noção de
2. “... qualifico de insinceras todas as coisas feitas apenas para pasmar, onde não passe o
mistério essencial da vida”. Carta a Armando Cortês Rodrigues de 19 janeiro de 1915, in
José Blanco, Pessoa en personne. Lettres et documents (traduction française par Simone
Biberfeld), Paris: Editions de la Différence, 1986, p. 145.
Modelos de subjetividade em Freud. 39
subjetividade aberta no texto freudiano.
Transformações dos modelos de subje-
tividade na obra freudiana.
A discussão de uma “subjetividade com
fundamento negativo” insere-se naque-
la dos modelos de patologia em psica-
nálise. Visando contextualizar o
surgimento deste tipo subjetividade, di-
vidimos a história dos modelos de pa-
tologia no discurso freudiano em três
períodos. No primeiro, a idéia de cura
seguia o modelo de um reestabelecimen-
to da condição anterior, onde haveria
uma saúde originária na constituição da
subjetividade. Tal período vai de 1893,
com “Estudos sobre a histeria”, até
1905, com os “Três ensaios sobre a se-
xualidade”. Podemos dizer que este é o
período do modelo fechado de subjeti-
vidade, onde o mal pode ser definitiva-
mente banido do sujeito. O segundo
período vai de 1905 até, do ponto de
vista teórico 1920, com o texto “Além
do princípio do prazer” e, do ponto de
vista concreto, até 1932. Este seria o
período do modelo homeostático de
subjetividade, onde é possível uma es-
tratégia com o mal. Neste segundo pe-
ríodo, a idéia de uma saúde originária do
sujeito é abandonada e a cura passa a
ser compreendida como uma transfor-
mação interior ao patológico, transfor-
mação que permitiria ao analisando uma
compreensão duradoura de si, e que agi-
ria profilaticamente com respeito a no-
vos sintomas. Finalmente, no terceiro
período, que vai, em seus princípios bá-
sicos, de 1920 até o fim de sua obra,
Freud reconsidera e acaba por refutar
a capacidade profilática psicanálise. Este
é o período do modelo aberto de subje-
tividade, onde a tragicidade se radicali-
za de modo inédito no domínio
subjetivo.
A diferença que fazemos acima, entre
“ponto de vista teórico” e “ponto de
vista concreto” exige uma explicação
preliminar. Com efeito, a passagem do
segundo para o terceiro período se faz
em duas etapas. Pois, apesar da concei-
tualização da pulsão de morte ter sido
o momento de uma revolução teórica,
até 1933, nas “Novas conferências de
introdução à psicanálise”, Freud afirma
ainda a possibilidade profilática da psi-
canálise, o que é radicalmente inconci-
liável com o texto “Além do princípio
do prazer”. Assim, os efeitos da pulsão
de morte se fazem notar lentamente ape-
nas, com transformações sutis em te-
mas isolados, em etapas sucessivas,
deslocadas no tempo e nos diferentes
aspectos de uma obra complexa.
Examinemoso primeiro modelo, onde a
cura implica no retorno da saúde perdi-
da. Esta primeira versão da psicoterapia
freudiana se inspira explicitamente na
idéia aristotélica de catarse. O texto bá-
sico de tal modelo são os “Estudos
sobre a histeria”, publicado em conjun-
to por Freud e Breuer. Aristóteles
considerava a catarse enquanto efeito e
objetivo da tragédia, enquanto purifica-
ção e purgação dos sentimentos de terror
e de piedade. Breuer e Freud generali-
zam o processo purgativo da catarse
para outros tipos de sentimento. Neste
momento, a hipótese psicanalítica para
40 Pulsional Revista de Psicanálise
a origem do mal psicológico era funda-
mentalmente aquele de um trauma
sexual, trauma sofrido durante a infân-
cia e posteriormente recalcado para fora
da consciência do sujeito. O registro
mnêmico deste trauma, uma vez bani-
do da consciência, agiria como um
“corpo estranho” no sistema psíquico
que, assim como um corpo estranho,
provocaria uma forma de excitação no
interior do sujeito. Enquanto “corpos
estranhos” dotados de intensa carga afe-
tiva, as lembranças recalcadas do trauma
seriam uma fonte constante de estimu-
lação e irritação psíquica. O excesso
desta energia seria transformável em ata-
ques e outros sintomas corporais
histéricos. Na catarse psicoterapêutica
concebida por Freud e Breuer, o essen-
cial era o retorno à consciência da
lembrança recalcada, com a carga afe-
tiva que se lhe correspondia. Tal
processo tinha a pretensão de ser defi-
nitivo: uma vez expulso catarticamente,
o mal estava erradicado para sempre.
Este processo pressupõe a possibilida-
de de uma recuperação da identidade
perdida com a doença. O modelo de cura
é aqui a inversão exata da hipótese etio-
lógica suposta no trauma. Do ponto de
vista espacial, a cura era entendida en-
quanto extirpação deste “corpo estra-
nho”, enquanto expulsão do estrangeiro
para fora e retorno da interioridade do
sujeito à sua uniformidade inicial. O pon-
to de vista econômico da psicoterapia
deveria também se conformar a uma si-
metria com o fator etiológico: se o cor-
po estranho era responsável por uma
energia em excesso, a cura viria da pur-
gação de tal intensidade afetiva. Etio-
logia e terapêutica obedecem, assim, a
uma lei de simetrias. Com a expulsão do
“corpo estranho”, a interioridade recu-
pera-se enquanto interioridade; com a
descarga de afetos, a energia psíquica
volta ao seu estado de origem. Em am-
bos registros, a cura é sinônimo de re-
cuperação da saúde perdida.
A primeira transformação radical deste
modelo ocorre com a constatação de
que as representações obtidas pelo pro-
cesso de rememoração terapêutica não
eram necessariamente constituídas por
lembranças inconscientes, mas poderiam
ser também resultado de fantasias se-
xuais inconscientes. Tal constatação des-
truiu a hegemonia da teoria traumática
da neurose, a qual contudo nunca foi
completamente abandonada por Freud.
Contudo, grandes reformulações foram
necessárias para acolher as formas apa-
rentemente espontâneas da neurose, isto
é, casos onde, sem qualquer traço de
uma vivência traumática, a origem do
fator etiológico só poderia ser o próprio
sujeito. Assim, a origem desta perturba-
ção não é mais considerada por Freud
como algo exclusivamente alheio à cons-
tituição do psiquismo. Com efeito, as
duas facetas do trauma, a representação
da experiência traumática e sua pertur-
bação econômica, ambas originariamen-
te alheias ao sujeito, se desdobram na
teoria freudiana em dois conceitos que
lhes são correlatos: as fantasias e as
pulsões. Assim, é enquanto correlatos
interiores ao trauma que Freud conce-
Modelos de subjetividade em Freud. 41
be tanto a teoria das fantasias quanto
aquela das pulsões: as fantasias de se-
dução, tal como as lembranças traumá-
ticas, são representações de realização
de desejos incompatíveis com a consciên-
cia, e as pulsões são perturbações eco-
nômicas interiores à subjetividade,
exercendo, portanto, a mesma excitação
atribuída ao trauma sexual na primeira
teoria. Vemos assim que, apesar de ter
suas bases abaladas, os elementos es-
senciais do modelo traumático se man-
têm em suas linhas gerais.
Nos “Três ensaios sobre a sexualidade”
(1905), Freud define a pulsão enquanto
excitação interna do psiquismo, excita-
ção calcada sobre as funções fisiológi-
cas, como o comer, defecar, urinar.
Vemos assim que, com o abandono par-
cial da teoria do trauma, o corpo deixa
de ser uma vítima do trauma para se
tornar seu agente. A grande diferença é
que o corpo é um agente traumático do
qual não se pode fugir. Com efeito, na
segunda grande teorização freudiana das
pulsões, no texto “As pulsões e seus
destinos” (1914), estas recebem justa-
mente esta definição: uma excitação da
qual não se pode fugir.
No que diz respeito à terapêutica, o ad-
vento dos dois correlatos interiores do
trauma trazem à condição neurótica um
caráter constitutivo e incontornável,
mas o mal é ainda conciliável com a saú-
de, como veremos adiante. Constata-se
com facilidade que textos técnicos desta
época perdem francamente o otimismo
terapêutico e a radicalidade cirúrgica pre-
sentes nos “Estudos sobre a histeria”.
Em “Recordar, repetir, perlaborar”
(1914) já se encontram claramente co-
locados os limites terapêuticos da
catarse. A expressão emocionada de
uma vivência relutantemente aceita já
não basta para anular o poder nefasto
das cenas patogênicas. O processo psi-
canalítico perde a linearidade do seu
início, e passa a implicar uma espécie
de trabalho reticular e exaustivo, cuja
eficácia depende da amplidão das paisa-
gens psíquicas percorridas.
Aqui se encontra, provavelmente, o
mais revolucionário deste texto, a saber
o que poderíamos chamar da “primeira
absolvição” da repetição: de puro sinto-
ma, a repetição torna-se, sob a forma
da transferência, uma arma verdadeira-
mente terapêutica, precisamente a mais
poderosa arma da psicanálise. De fato,
Freud conceitualiza aqui um novo as-
pecto da transferência, isto é, a
transferência deixa de ser apenas resis-
tência às associações livres para
tornar-se uma possibilidade privilegiada
de ação no inconsciente.
A repetição transferencial é sem qual-
quer dúvida uma repetição patológica,
mas trata-se de um tipo particular de
patologia. Em que consiste tal particu-
laridade? A neurose de transferência, diz
Freud em 1914, é uma doença artificial:
“eine artifizielle Krankheit” (p. 214) . Em
pouco tempo (1916-7), a neurose de
transferência será denominada de “neu-
rose artística” “eine künstliche Neurose”
(pp. 436-437) . O adjetivo alemão vem
de Kunst, arte. Mas tal como o termo
latino, Kunst se refere igualmente ao que
42 Pulsional Revista de Psicanálise
é artificialmente criado. Künstlich é o
produto do homem enquanto resultado
de seu trabalho. Assim a transferência
é uma neurose artificial, e não somen-
te no sentido de uma neurose artística,
mas sobretudo no que se refere a sua
origem: ela é produto do fazer humano.
Temos aqui um processo evidentemen-
te análogo à estética pessoana. Ao
transformar o leitor em poeta, o poeta
altera este último em sua essência. Pois,
o leitor passa a sentir uma dor até en-
tão jamais sentida: a dor fingida. Na
transferência, por sua vez, o paciente
sofre de uma patologia artificial que al-
tera, mas que não faz desaparecer a
doença. De certo modo, o caráter arti-
ficial da transferência é análogo àquele
da dor fingida do leitor de Pessoa. Pes-
soa via no fingimento um modo
privilegiado da consideração pela alteri-
dade do outro. Seria a neurose artificial
não uma dor, mas sim uma expressão
de dor? Expressão de dor, pois essen-
cialmente dirigida a alguém?
O fato dos sintomas poderem se deslo-
car do cotidiano para as sessões junto
ao analista implica numa transformabi-
lidade específica das formações incons-
cientes. Ao se deslocarem para as
relações com o analista,os sintomas to-
mam, com ou sem razão, este último
como seu interlocutor. De fato, será pre-
cisamente a alteridade do analista o ele-
mento privilegiado capaz de catalizar
estas transformações. Cabe então uma
interrogação fundamental. Se são capa-
zes de se transformarem em transferên-
cia, os sintomas não teriam sido desde
sempre dirigidos a alguém? Com efei-
to, Pierre Fédida (1992, p. 257) sugere
em psicanálise a figura de um interlo-
cutor do sintoma, alteridade pré-trans-
ferencial à qual o sintoma estaria
originariamente dirigido . Sob o ponto de
vista de tal figura teórica, qualquer sin-
toma seria fundamentalmente uma dor
fingida, no sentido de ser, desde a ori-
gem, uma dor dirigida a um interlocu-
tor ausente. Sabidamente, uma vez
instalada a transferência, um processo
analítico se constitui pelas separações
mínimas que o analisando possa fazer
entre seu analista e o interlocutor ausen-
te de suas repetições. Entretanto, a fi-
gura de um interlocutor do sintoma, se
for representada pelo analista, perderá
sua potencialidade analítica. De certo
modo, ela funciona apenas no registro
do desconhecimento, e sua eficácia de-
pende de sua obscuridade nas represen-
tações do analista.
Em 1920, a teoria das pulsões sofre
uma revolução teórica. Freud redefine o
conceito de pulsão a partir da idéia de
repetição. Uma pulsão passa a ser en-
tão simplesmente a tendência de retor-
no a uma situação anterior (p. 246) . A
radicalidade de tal redefinição não está
contudo na idéia de retorno. A radicali-
dade vem aqui do que Freud entende por
“situação anterior”. Trata-se de qualquer
situação, e no caso do ser vivo, inclusi-
ve aquela da inorganicidade. A pulsão de
morte será assim definida como um caso
espetacular de tentativa retorno: a ten-
dência do ser vivo a retornar ao estado
anterior de sua existência (ibid., p. 248) .
Modelos de subjetividade em Freud. 43
Se a compreensão da transferência im-
plicava uma inquietante concepção de
subjetividade a partir da noção de neu-
rose artificial, vemos agora que a pulsão
de morte radicaliza este caráter inquie-
tante a partir da noção de vazio como
origem. Com efeito, sendo a pulsão de
morte uma pulsão sem representação,
podemos considerar a nova versão freu-
diana da subjetividade como uma
subjetividade aberta em seus fundamen-
tos. Com a pulsão de morte, Freud
atribui uma eficácia própria a um nada
que se coloca além das representações.
Esta eficácia do negativo é ainda mais
fundamental que a eficácia do desejo,
vigente no interior do princípio de pra-
zer, e essencialmente ligada à busca de
uma representação.
A abertura do modelo freudiano de apa-
relho psíquico se define, em nossa hi-
pótese, por oposição ao fechamento do
modelo identitário. Como vimos, o mo-
delo identitário imperou tanto na teoria
traumática da histeria quanto na primeira
teoria pulsional. Havia, no primeiro
caso, uma identidade a ser recuperada
e, no segundo, uma identidade a ser
mantida. A pulsão de morte, enquanto
eficácia do inexistente, enquanto atração
vinda do nada, rompe com o princípio
de identidade enquanto fundamento do
modelo de aparelho psíquico. Mas, como
dissemos, os efeitos concretos da pul-
são de morte tardarão a se fazer presen-
tes noutros aspectos da teoria freudiana.
São basicamente três as grandes linhas
de desenvolvimento freudianas influen-
ciadas pelas teses de “Além do princí-
pio do prazer”: 1) o desenvolvimento da
teoria da sexualidade feminina; 2) a
teoria etiológica das neuroses; e 3) as
interpretações da cultura. O desenvolvi-
mento da teoria da sexualidade femini-
na, por exemplo, tem relações extrema-
mente interessantes com o advento da
pulsão de morte, apesar de ser difícil de-
monstrar como esta última seria um
pressuposto do avanço de Freud no
campo da feminilidade. Entretanto, uma
revisão da ética psicanalítica é importan-
te pois foi nas interpretações da cultura
que Freud mais claramente explorou os
destinos da pulsão de morte.
Retornemos ao que nos ocupa hoje, a
saber, domínio de influência das teses
do “Além do princípio do prazer”, na
questão dos modelos de etiologia e do
tratamento das neuroses. É interessan-
te notar que se, por um lado, as
interpretações freudianas da civilização
assimilam rapidamente e em toda sua
tragicidade a pulsão de morte, por ou-
tro lado, tal tragicidade é mantida à
distância da confiança de Freud nos as-
pectos benéficos de uma análise
individual. Será apenas nos dois últimos
textos ditos “técnicos”, “Análise termi-
nável e análise interminável” e
“Construções na análise”, que encontra-
mos uma mudança essencial no que se
refere ao otimismo da psicanálise em
relação ao patológico.
Até 1917, os efeitos do trabalho analíti-
co eram duradouros: “Através do ven-
cimento das resistências internas”, diz
Freud, “a vida anímica do paciente se
vê duradouramente alterada, é elevada a
44 Pulsional Revista de Psicanálise
uma etapa superior do desenvolvimen-
to e permanece protegida contra novas
possibilidades de adoecimento” (p. 433).
Uma mudança começa insidiosamente a
aparecer em 1933, quando, nas “Novas
conferências”, a redução da eficácia te-
rapêutica da psicanálise aparece ligada
à nova importância que o fator econô-
mico toma no modelo de aparelho psí-
quico3. Assim, Freud (1937, p. 364)
indica que o máximo da eficácia tera-
pêutica da psicanálise limita-se aos ca-
sos onde os fatores traumáticos são mais
importantes que os fatores constitucio-
nais da neurose. Diante dos distúrbios
de excesso ou de falta do fator econô-
mico, o método analítico começa a se
apresentar, para Freud, como tendo po-
deres limitados. O fator econômico ad-
quire aqui o caráter de um limite da
terapia analítica diante do qual, talvez
para o desagrado de muitos, Freud
(1932, p. 361 e sg.) chega até mesmo
a mencionar sua esperança nos avanços
da investigação dos efeitos hormonais.
Hoje a psicofarmacologia é uma aquisi-
ção incontestável na psicoterapia dos
distúrbios psíquicos. A experiência atual
demonstra que a reincidência dos sin-
tomas não é rara e a solução de apoio,
representada pelo trabalho intercorren-
te e conjunto do psiquiatra e do analista,
se apresenta ainda como a melhor so-
lução para os casos ditos difíceis.
Entretanto, apesar das conquistas desta
área, não podemos ainda considerar
como termináveis as análises de casos
onde o fator constitucional é importan-
te. Qual seria a razão disto?
Creio que podemos respondê-lo ao con-
siderar que, apesar de seus óbvios inte-
resses terapêuticos adaptativos, a
psicanálise elege seus próprios critérios
do que é doença e do que é saúde. Quais
são estes critérios? Uma análise é ter-
minável, do ponto de vista metapsico-
lógico, sob as seguintes condições: 1)
se um conflito entre as pulsões e o Ego
for eliminável de modo definitivo ou
não; 2) se a resolução de um conflito
tiver um efeito profilático sobre outros
conflitos; e 3) se uma psicanálise puder
trazer à tona conflitos não presentes
(Freud, 1937; p. 364).
São assim critérios exclusivamente in-
teriores ao processo analítico aqueles de
uma cura. Freud critica, nesse sentido,
a atitude de atribuir a neurose a fatores
etiológicos inespecíficos como o exces-
so de trabalho, o efeito de choque etc.
“A saúde”, acrescenta, “só pode ser
descrita em termos metapsicológicos
com referência a relações de força en-
tre as instâncias do aparelho psíquico
3. S. Freud. Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. 34, Aufklärungen,
Anwendungen, Orientierungen. 1932 SA, vol. I. pp. 578, 582. Ver a esse respeito, entre ou-
tros do mesmo autor, J. Birman. “Pulsão e intersubjetividade na interpretação psicanalítica.
Uma leitura da concepção freudiana de sujeito e da metapsicologia”, in Ensaios de teoria
psicanalítica. Parte 1 – metapsicologia, pulsão, linguagem, inconsciente e sexualidade.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1993.
Modelos de subjetividade em Freud. 45
que nós reconhecemos, ou, se se qui-
ser, supusemos ou deduzimos” (ibid., p.
366). A conclusão é clara: há uma di-
ferença entre uma cura latu sensu, com
o critério de adaptabilidade à vida coti-
diana, e uma cura strictu sensu, com
critérios exclusivamente analíticos. Es-
tes critérios descrevem a saúde enquanto
equilíbrio relativo de forças entre o ego
e o Id. Tal equilíbrio entre as instâncias
é, segundo Freud, a única definição pos-
sível de saúde, e ele pode ser perturbado
por diversas razões como, por exemplo,
novos traumas, frustrações irremediá-
veis da libido, influências colaterais entre
as pulsões, irrupção das pulsões em cer-
tos períodos da vida etc. “O resultado
é sempre o mesmo, e confirma o po-
der irresistível do fator quantitativo na
causalidade da doença (ibid., p. 367).
A respeito da importância do fator eco-
nômico, devemos notar que, desde o
modelo catártico, este registro tinha um
papel fundamental. Entretanto, as formas
de funcionamento deste registro se
transformam no discurso freudiano. No
primeiro modelo de patologia sua eficá-
cia estava ligada à idéia de expulsão do
excesso, que tinha pretensões de ser
definitiva. No segundo momento, o re-
gistro econômico muda a face de sua
eficácia, quando a pulsão se torna uma
fonte interna e constante de excitação.
Nos textos finais de Freud (1917, p.
437; 1926, p. 333; 1932), a primazia do
registro econômico apresenta-se de um
terceiro modo: ele é o modelo de uma
relação de forças. A diferença desta úl-
tima versão da importância do fator eco-
nômico é a presença da figura do equi-
líbrio. O modelo do equilíbrio traz à saú-
de uma instabilidade radical, susceptível
de se perder a qualquer momento. Dian-
te de tal imprevisibilidade, a análise é vir-
tualmente interminável. O que nos
interessa aqui é a idéia subjacente de su-
jeito, isto é, o modelo implícito de sub-
jetividade. Com a figura do equilíbrio
enquanto traço fundamental do registro
econômico, o modelo freudiano de sub-
jetividade adquire uma imprevisibilidade
essencial. Podemos falar assim de um
modelo de subjetividade aberta no sen-
tido de uma iminência futura do que
deve ser analisado.
Mas a subjetividade aberta o é também
em relação ao passado. Vejamos como
se apresenta a abertura para um passa-
do imprevisível através do texto
“Construções em psicanálise”.
De fato, este novo e último modelo de
subjetividade tem conseqüências no do-
mínio da técnica analítica. Freud (1937a,
p. 398) introduz aqui a noção de cons-
trução enquanto substituto da noção de
interpretação: “A razão pela qual se ouve
falar tão pouco de construções nos re-
latos de técnica analítica é que, em lu-
gar destas, se fala de interpretações e
suas conseqüências. Mas, em minha
opinião, o termo construção é muito
mais apropriado”.
Qual o motivo de tal preferência neste
momento da obra freudiana? Em que
sentido a construção coincide com o
novo modelo de subjetividade aberta?
Basicamente em dois pontos. Pelo fato
da construção ser um trabalho prelimi-
46 Pulsional Revista de Psicanálise
nar, e, enquanto tal, ser essencialmente
fragmentária. Abordemos contudo a
questão das construções tal como Freud
a apresenta.
Para falar da construção, Freud retoma
a conhecida analogia entre o trabalho do
analista e o trabalho do arqueólogo.
Ambos devem reconstruir algo destruí-
do do passado a partir de indícios e de
restos. Aqui, contudo, o mais importan-
te da analogia freudiana é o momento em
que ela encontra seu limite, e onde o tra-
balho analítico se afirma enquanto um
modo autônomo de investigação, com
suas regras, meios e objetivos próprios.
Assim, a construção analítica tem, se-
gundo Freud, a “desvantagem” frente à
construção arqueológica de não saber o
que deve construir. Para sabê-lo, o ana-
lista depende totalmente da confirmação
do paciente, que pode ou não ser sus-
citada pela construção. A construção
supõe assim teoricamente a recordação,
eis porque a construção é fundamental-
mente preliminar.
A partir deste caráter preliminar, a cons-
trução se apresenta como essencialmente
fragmentária no discurso freudiano
(ibid., p. 400). “O analista”, diz Freud,
“realiza um fragmento de construção e
o comunica ao paciente para que este
[fragmento] aja sobre ele. Com ajuda do
novo material que aflui, ele constrói um
novo fragmento que utiliza da mesma
forma, e assim por diante até o fim”
(ibid., p. 398).
Enquanto fragmentária, a intervenção do
analista se torna virtualmente interminá-
vel. De fato, “apenas a continuidade da
análise”, escreve Freud, “pode decidir
sobre a correção ou a inutilidade de
nossa construção” (ibid., p. 402 . Con-
sideramos o caráter essencialmente
fragmentário, e portanto interminável, de
uma construção como um correlato téc-
nico do modelo aberto de subjetividade.
Contudo, ainda no interior do registro
clínico, encontramos um outro efeito da
abertura fundamental da subjetividade.
Desta vez, encontramo-lo do lado do
paciente, particularmente no que se re-
fere aos efeitos da construção na sua
história individual.
Se a construção for inadequada nada
ocorre, sendo limitada a eficácia suges-
tiva do analista. Se adequada, seus
efeitos ocorrem tanto numa forma ne-
gativa, provocando uma resposta do
tipo “nisto nunca pensei (teria pensa-
do)”, quanto numa forma positiva, onde
uma associação traz algo semelhante ou
análogo à construção. Às vezes é um
ato falho que responde pelo paciente.
Finalmente, uma reação terapêutica ne-
gativa (sentimento de culpa, necessidade
masoquista de sofrimento) pode também
ter valor afirmativo de uma construção.
(ibid., pp. 401-402). Haveria assim, se-
gundo Freud, diferentes tipos de
confirmação de construção, mas todos
são indiretos.
Isto é equivalente a dizer que o pacien-
te não pode lembrar-se totalmente da
própria história, nem dizê-la definitiva-
mente. Assim, nem o analista pode
construi-la, nem o paciente pode apo-
derar-se inteiramente da verdade
histórica. Tal verdade histórica é em si
Modelos de subjetividade em Freud. 47
mesma uma criação do inconsciente du-
rante o processo analítico. Enquanto
criação pelo processo analítico, a his-
toricidade do sujeito freudiano é
essencialmente não um dado concreto,
mas sim um produto do sentido. Dife-
rentemente da historiografia material, a
historicidade psicanalítica em seu último
modelo de subjetividade funda-se em
sua abertura iminente para um passado
imprevisível. Assim, podemos dizer que
a alteração do outro em análise é uma
possibilidade imprevisível e, sobretudo,
indomável. Durante a situação analítica,
a finalidade é cuidar desta abertura, isto
é, conservar aberta a possibilidade de
transformação imprevisível dos sentidos
do cotidiano e do destino. O destino e
o cotidiano podem, e devem, numa cura
analítica, ser abertos a transformações
imprevisíveis.
A estética pessoana supõe uma altera-
bilidade do outro em sua essência dis-
cursiva. Este é o traço em comum entre
a estética pessoana e a última versão
freudiana do que seria uma “cura psi-
canalítica”. Em Pessoa encontramos
como base do acontecimento estético a
transformabilidade do leitor em poeta.
Seguindo o último Freud, a alteração do
paciente em psicanálise implicaria numa
disponibilidade iminente para a análise.
Seria isto equivalente a tornar-se analis-
ta? Construir a própria história enquan-
to mero fragmento, sem pretensão à
certeza, arriscando a presença do incerto
no próprio passado, é certamente uma
condição da formação do analista. En-
tretanto, para além desta finalidade, a
historicidade do inconsciente represen-
ta um momento de transformação da
cultura pela psicanálise. Não se trata
mais de efeito terapêutico, mas sim
cena do discurso, com suas regras e leis
próprias, cena que se inscreve na cul-
tura deste século, ao abrir o “romance
subjetivo” para novaspossibilidades nar-
rativas. „
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48 Pulsional Revista de Psicanálise
Artigo recebido em setembro de 1999.
Seletos. 2a ed. Edição bilíngüe, tradu-
ção de Floriano da Souza Fernandes.
Petrópolis: Vozes, 1985,
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Lello e Irmãos, 1986. (O.P.P.). v. III.
________ . “Ficções do interlúdio. Nota preli-
minar”. Obra Poética. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1983.
cepCentro de Estudos Psicanáliticos
iInformações e inscrições: CEP – Rua Dr. Acácio Nogueira, 06 Pacaembu
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(dirigido a profissionais da área de saúde)
O Centro de Estudos Psicanalíticos já está com inscrições aber-
tas para o Curso de Formação em Psicanálise, com coordena-
ção de Ernesto Duvidovich e Walkiria Del Picchia Zanoni e equi-
pe de docentes.
Início: março de 2001
Horários: 3a feira – 19:30-22:30hs
5a feira – 18:00-21:00hs

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