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Módulo 4 Direito das Coisas e Negócio Jurídico Sumário Módulo 4 Referências Questões (para revisão e aprofundamento) Créditos Anotações 2. Negócio jurídico 2.1 Conceituações 2.2 Classificação 2.3 Elementos do negócio jurídico 2.4 Conteúdo dos negócios jurídicos 2.5 A representação ‘Ad Negotia’ 4 1. Direito das Coisas 1.1 Conceito de coisa (res) 1.2 Classificação das coisas (res) 1.3 A transmissão do patrimônio 1.4 Posse: conceitos gerais 1.5 Modalidades ou espécies da posse 1.6 Aquisição, proteção e perda da posse 1.7 Propriedade: conceitos gerais 1.8 Espécies de propriedade 1.9 Aquisição, proteção e perda 1.10 Propriedade sobre as coisas alheias (iura in re aliena) 4 Módulo 4 Direito das Coisas e Negócio Jurídico 5 8 8 9 10 12 13 14 16 17 17 18 19 21 23 24 25 27 28 44 1. DIREITO DAS COISAS Olá! Chegar ao quarto módulo desta disciplina representa que você já ultrapassou a metade do nosso estudo e, assim, já possui um bom embasamento sobre o Direito produzido em Roma. No entanto, se ainda restam dúvidas, você pode recapitular os módulos anteriores e conferir as dicas do professor clicando em Podcast, disponível na página inicial da sua web aula, e lá também está disponível um programa sobre este conteúdo. Bons estudos! anteriores e conferir as dicas do professor clicando em viaconversando A seguir, confi ra a meta para este módulo. PrOPOSITUMobjetivo Este módulo tem como objetivo definir e classificar as coisas, identificando os direitos reais. Você também estudará a definição de atos e fatos jurídicos, relacionando com os conceitos atuais. 1.1 Conceito de coisa (res) Coisa é tudo que existe, todo e qualquer ente que tenha existência material ou puramente abstrata, quer seja ente concreto ou ente de razão, coisas materiais ou concepções do espírito. NOTIO PERMAGNAimportante Juridicamente, coisa (res) é tudo aquilo que pode ser objeto de uma relação jurídica, objeto de um direito subjetivo de natureza patrimonial. No entendimento de Gaio1, reproduzido nas Institutas de Justiniano, res abrange todas as relações patrimoniais, tendo assim um sentido excessivamente amplo. Adverte Cretella Junior2 que, no entanto, não se deve considerar “res” como um conceito único entre os romanos, porque esta palavra ora era empregada em sentido bem restrito (coisas Institutas, II, 1, Gaio. Cretella Jr, op. cit., pág. 106. 1 2 MÓDULO IV 5 materiais e sensíveis), ora em sentido amplo, abrangendo também coisas incorpóreas (embora não tenham chegado ao sentido atualmente aceito). Por exemplo, a ‘res romana’ ou a ‘res publica’ eram sinônimas de “estado romano”. Sendo pragmáticos e imediatistas, o que melhor representa o conceito de res corpórea é a ‘pecunia’, conceito que compreende tudo que tenha valor econômico, coletivamente chamado de ‘bona’ (plural de bonum = bem) ou ‘patrimonium’. As res incorpóreas eram, em geral, os direitos subjetivos (sucessão ou herança, uso e gozo, crédito, servidões)3. 1.2 Classificação das coisas (res) Segundo o registro do jurisconsulto Gaio, aproveitado por Justiniano4, as coisas no Direito Romano classifi cam-se em: a) Res in patrimonio e Res extra patrimonium; b) Res mancipi e Res nec mancipi; c) Res corporalis e Res incorporalis. A macro divisão das coisas, contudo, entre os romanos compreendia dois grupos: # Res in patrimonio - aquelas que podiam ser propriedades dos cidadãos e, portanto, podiam ser negociadas; # Res extra patrimonium - aquelas que, por serem religiosas ou públicas, não podiam ser propriedade de particulares. illustratiodica As ‘res in patrimonio’ também são ‘res in commercio’, porque podem ser compradas e vendidas; as ‘res extra patrimonium’ são ‘res extra commercium’, porque não podem ser compradas ou vendidas. Estes dois grandes grupos têm subdivisões. Cf. Agerson Tabosa: esta conceituação de coisas corpóreas em contraposição às coisas incorpóreas foi in- troduzida no Direito Romano por Sêneca, infl uenciado pelos estoicos. Já a distinção entre coisas intelectuais contrapondo-se às coisas reais foi também infl uência da cultura grega, através de Aristóteles, sobre Cícero. Esses termos não seriam, portanto, originais do Direito Romano. Gaius, Institutas, II, 12. 3 4 direito romano 6 As res in patrimonio subdividem-se em: # res mancipi - aquelas de maior interesse jurídico ou valor econômico, res nec mancipi - aquelas de menor valor ou menor interesse jurídico5; # res corporales - aquelas que são perceptíveis pelos sentidos físicos, res incorporales - aquelas que não se tocam, sendo exclusivamente jurídicas; # res mobiles (móveis) - as que podem ser deslocadas sem ruptura, res immobiles (imóveis) - as que não podem ser deslocadas sem alteração do seu conteúdo6; # res fungibiles - as que podem ser permutadas umas pelas outras, res infungibiles - as que não podem ser permutadas, dada a sua individualidade; # res consumptibiles - as que se deterioram com o uso, res inconsumptibiles - as que não se desfazem com o uso; # res principales - as que realizam uma função por si mesmas, res accessoriae - as que aderem às coisas principais; # res divisibiles - as que se fracionam sem fi car prejudicadas, res indivisibiles - as que se prejudicam se forem fracionadas Conforme se observa, esta classificação é a mesma que ainda prevalece no Direito contemporâneo. COMMENTARIuscomentário Essa distinção entre ‘res mancipi’ e ‘res nec mancipi, cf. Cretella Junior (op. cit., pág. 110), foi de fundamental importância entre os romanos, praticamente a única distinção que eles faziam. Considerando que não existe mais essa distinção no Direito contemporâneo, fi ca difícil atribuir-lhes uma defi nição mais precisa. Citando Gaio, as ‘res mancipi’ são aquelas que se transferem pelo processo de mancipação, que era o modo solene de transmitir a propriedade de algo; já as ‘res nec mancipi’ eram transferidas sem qualquer formalismo, pela simples entrega (traditio) da coisa. Exemplos de ‘res mancipi’: as terras itálicas, as casas, os escravos, os animais de carga e tração; exemplos de ‘res nec mancipi’: dinheiro, móveis, joias, animais de pequeno porte, aves domésticas. Esta classifi cação vai se descaracterizando e perdendo sua importância com a expansão das conquistas militares, até ser abolida de vez, na época de Justiniano. Essa distinção não existia na Lei das XII Tábuas, mas vai se clareando aos poucos, com a utilização de dois recursos jurídicos diferentes, quando se trata da posse delas: para as coisas imóveis, usa-se o interdito ‘uti possidetis’ e para as coisas móveis o interdito ‘utrubi’. 5 6 MÓDULO IV 7 As res extra patrimonium também são ditas ‘res nullius’ e se subdividem em: # res divini iuris ou coisas de Direito divino: são as que têm ligação direta com as divindades, pois são coisas do culto, coisas sagradas e religiosas. Estas podem ser: ø Coisas Sagradas: eram aquelas consagradas aos deuses superiores, eram as coisas que ritualmente são destinadas a Deus, como os templos, os bosques sagrados e o material do culto. ø Coisas Religiosas: eram aquelas dedicadas aos deuses inferiores (deuses manes e familiares) como as sepulturas e oratórios. Depois da cristianização no Império as coisas religiosas eram exclusivamente as sepulturas. Manes são os deuses subterrâneos. ø Coisas Santas: eram aquelas que não pertenciam ao patrimônio de ninguém, pois eram de interesse tanto dos deuses superiores quanto dos deuses inferiores e acham sob proteção divina em decorrência de cerimônia religiosa. Os portões e os muros da cidade. Havia penalidades rigorosas para quem desrespeita as ‘res divini iuris’. attendeatenção# res humani iuris ou coisas de Direito humano: são aquelas que, mesmo não possuindo características divinas, estavam fora do comércio e do patrimônio dos particulares devido a serem do interesse de todos de modo geral, eram coisas coletivas ou de uso público. Alguns exemplos são o ar, a água, o mar, as praças, os mercados e os teatros. Deuses manes: Manes eram os espíritos dos a n t e p a s s a d o s , que os romanos cultuavam como deuses domésticos. Eram aqueles antepassados mais importantes da família. Os outros familiares mortos eram também cultuados como deuses familiares menores, sob os nomes de Lares e Penates. As ‘res humani iuris’ admitiam uma subdivisão interna entre ‘communes’ (bens naturais), ‘universitatis’ (bens da imóveis da cidade); ‘publicae’ (bens ao ar livre). 7 direito romano 8 ø Coisas Comuns: eram aquelas coisas que pertenciam a todos e que estão à disposição de todos para uso geral e insuscetível de apropriação individual. O mar, a água corrente e a luz solar podem ser citados como exemplo. ø Coisas Públicas: eram aquelas coisas do Estado e que o povo tinha o uso comum, estando fora do comércio em razão do seu destino. Alguns exemplos são as praças, os rios perenes e as vias. ø Coisas Universais: eram aquelas coisas pertencentes a pessoas jurídicas de direito público, distintas do Estado, pois são bens que pertencem a coletividades específi cas. Fórum e estádios são exemplos de coisas Universais. CURIOsitascuriosidade Posteriormente, por influência do Cristianismo, essas coisas religiosas e sagradas passaram a se relacionar com o culto cristão, consagradas pelos sacerdotes e bispos da Igreja. Foi quando elas, em situações excepcionais, podiam ser alienadas (in commercio), com a autorização dos bispos, para fins humanitários. 1.3 A transmissão do patrimônio Transfere-se o patrimônio por ato ‘inter vivos’ ou ‘mortis causa’, a título singular ou a título universal. # Inter Vivos: é a transmissão que ocorre mediante ato jurídico solene ou simples, mas com as partes em vida. Exemplo disso é o ato de compra e venda. # Mortis transmissão que ocorre em função da morte de seu dono passando ao herdeiro ou legatário. A herança é um exemplo notório desta forma de transferência de matrimônio. # Título Singular: é a transferência de determinadas coisas de propriedade de uma pessoa, como, por exemplo, a doação de um bem. # Título Universal: é a transferência do patrimônio inteiro de uma pessoa. 1.4 Posse: conceitos gerais O conceito romano de posse é outro muito assemelhado ao Direito contemporâneo, signifi cando que mantém a mesma conotação do seu uso primitivo, tendo passado por mudanças insignifi cantes ao longo da história. Na doutrina jurídica contemporânea, esses conceitos foram explicitados pelos juristas alemães Savigny (concepção subjetiva) e Ihering (concepção objetiva), ambos insignes professores de Direito Romano e profundos conhecedores desta matéria. MÓDULO IV 9 Etimologicamente, o termo “posse” deriva do vocábulo latino ‘possessio’ (potis + sedes), que signifi ca “posição de quem está sentado como dono”8. Posse é a detenção da coisa com o ‘animus domini’, isto é, com o espírito de dono. Assim, a posse tem dois elementos constitutivos: a coisa (corpus) e a intenção (animus)9. O primeiro componente da posse (corpus) é o seu elemento objetivo, sobre o qual alguém exerce um poder; o segundo componente (animus) é o seu elemento subjetivo, que consiste na intenção, no desejo, na vontade de deter a coisa para si (‘animus rem sibi habendi’). É assim que os jurisconsultos romanos entendem a ‘posse jurídica’, ou seja, a posse protegida pelo direito. attendeatenção Muitas vezes, a posse e a propriedade se confundem, ou seja, o possuidor é o mesmo proprietário. No entanto, há situações em que a posse está separada da propriedade. Assim, posse é poder de fato, propriedade é poder de direito. Tal poder de fato pode ser legal (por exemplo, o cessionário, o depositário) ou ilegal (por exemplo, o ladrão). Por isso, o possuidor de má-fé não pode ter a proteção jurídica de sua posse. A posse juridicamente protegida era chamada pelos romanos de “posse justa”, isto é, posse de acordo com o ‘jus’. 1.5 Modalidades ou espécies de posse No período clássico do Direito Romano, o conceito de posse ainda estava em sua formação, sendo reconhecidas três espécies de posse: Possessio é composta de potis (dono) + sedes (cadeira), associando a ideia da cadeira onde se senta o dono. Os romanos tomaram esta palavra por infl uência do conceito grego ‘katokhen’ = reter, guardar, conservar. Alguns autores preferem, em vez da expressão ‘animus domini’, a expressão ‘animus possidendi’, porque a primeira é ‘animus’ de proprietário e nem sempre o possuidor é proprietário. 8 9 direito romano 10 # Civil (possessio civilis): a que se fundamenta em atos jurídicos, que é reconhecida pelo ‘jus civile’. Um exemplo de posse civil é o usucapião, modalidade de posse protegida pelo direito e que se transforma em propriedade com o decurso temporal e a presença de alguns requisitos. # Natural (possessio naturalis): é a detenção da coisa sem a intenção de ser dono, detenção simples, como é o caso do locatário. Não há o ‘animus domini’. Apenas conserva a coisa para outro, o proprietário. # Pelos interditos (possessio ad interdicta): é a posse justa, aquela que ocorre sem nenhum vício, simplesmente posse.10 A posse civil em geral se inicia como posse justa, posse de boa-fé, com a intenção de reter a coisa para si. Diz-se ‘ad interdicta’ porque o possuidor, nestas condições, obtém a proteção jurídica contra investidas de estranhos, mesmo sem ser ele o proprietário, através de ações judiciais. Na época de Justiniano, estas três espécies de posse foram reduzidas a duas apenas (posse civil e natural), sendo a posse ‘ad interdicta’ incorporada à posse civil. CURIOsitascuriosidade Nos primeiros tempos de Roma, quando ainda havia muitas ‘res nullius’ (coisas de ninguém), a posse era um diferencial importante para garantir futuramente a propriedade, recebendo o possuidor a proteção do direito e tendo ele, em seu favor, os interditos para conservá-la ou retomá-la em caso de haver sido esbulhado. Os interditos eram determinações pretorianas contra quem estivesse a ameaçar a posse de outrem ou já a houvesse retirado. No início, eram simples ordens do pretor, diante da reclamação de algum prejudicado, mas com a evolução do instituto, deram origem às ações possessórias. importante para garantir futuramente a propriedade, recebendo 1.6 Aquisição, proteção e perda da posse A aquisição da posse se faz com a apreensão material da coisa, seja pela própria pessoa ou por outrem em seu nome. Este último era o caso, por exemplo, do paterfamilias que tomava posse de algo por intermédio de alguma das pessoas que estavam sob o seu pátrio poder. É importante observar que devem estar sempre presentes os dois elementos constitutivos da posse (corpus + animus). A simples apreensão da coisa sem o ‘animus’ ou ao contrário, o ‘animus’ sem a apreensão não confi guram a posse justa. Considera-se viciosa a posse obtida por violência (vi), às escondidas (clam) ou a título precário (precario), ao contrário, a posse sem vícios é aquela “nec vi, nec clam, nec precario”. 10 MÓDULO IV 11 Por via de consequência, perde-se a posse quando um desses elementos, ou ambos, desaparecem. Se a coisa perece ou se destrói, se foi perdida ou roubada, por exemplo, ainda que permaneça o ‘animus’, já não existe mais posse. Do mesmo modo, perdido o ‘animus’, não existirá mais posse, e sim mera detenção. Uma coisa vendida ou doada, ainda que permaneça em poder do vendedor ou doador, não tem mais a presença do ‘animus’.attendeatenção Intertidos possessórios são as ações destinadas à proteção da posse. Há duas modalidades de interditos: o primeiro (interdicta retinendae possessionis ou interdito de manutenção da posse) protege a posse de quem está ameaçado de perdê-la; o segundo (interdicta recuperandae possessionis ou interdito de recuperação da posse) promove a restauração da posse por quem já a perdeu. São, portanto, ordens judiciais emanadas do pretor ou do governador da Província em favor de quem as solicita. a) Interditos mantenedores da posse (interdicta retinendae possessionis) são dois: ‘utrubi’ e ‘uti possidetis’. Os nomes dos interditos derivam das palavras iniciais da ordem pretoriana escrita em latim 11: # Utrubi12 - interdito aplicável à posse ameaçada sobre coisas móveis. A palavra latina ‘utrubi’ é um advérbio que signifi ca “em qualquer lugar onde esteja”; # Uti possidetis13 - interdito aplicável à posse ameaçada sobre coisas imóveis. Literalmente signifi ca “do modo como vós possuís”.14 illustratiodica No Código de Justiniano, os dois interditos foram fundidos, dando origem a apenas uma modalidade de ação possessória para coisas móveis ou imóveis. As fórmulas pretorianas de onde se originaram os nomes desses interditos são: “Utrubi vestrum hic homo quo de agitur...” (Em qualquer lugar onde esteja um dos vossos, este homem de quem se trata...) e “Uti possidetis nunc eas aedes quibus de agitur, nec vi, nec clam, nec precario alter ab altero.” (Do modo como possuir agora essas propriedades das quais se trata, nem pela violência, nem clandestinamente, nem de modo precário al- guém ou por outro...). (Cf Editum Perpetuum Praetoris Urbani, pars V, n. 264 e 247, b.) “Utrubi hic homo, quo de agitur, apud quem maiore parte huius anni fuit, quominus is eum ducat, vim fi eri veto.” (Em qualquer lugar onde esteja este homem, do qual se trata, e junto a quem pela maior parte do ano esteve [a coisa] se não estiver a ele conduza, vedado ser utilizada a força). (Cf Edictum Perpetuum Praetoris Urbani, pars V, n. 264.) “Omnia quoque, quae in uti possidetis interdicto servantur, hic quoque servabuntur.” (Todas as coisas também que pelo interdito ‘uti possidetis’ se conservam, assim também sejam conservadas.) (Digesto, 43, 18, 1, 2, Ulpiano.) Consta que os portugueses alegaram o interdito ‘uti possidetis’ contra os espanhóis, que estavam ameaçando invadir as terras brasileiras, então na posse de Portugal. A solução do confl ito ocorreu com a celebração do Tratado de Tordesilhas (1494), em que o papa Alexandre VI (espanhol de nascimento e mediador do confl ito) atribuiu a maior parte das terras para os espanhóis. Portugal saiu perdendo nessa arbitragem. Se não fosse a ação dos bandeirantes, o território brasileiro atual era menos da metade do que efetivamente é. 11 12 13 14 direito romano 12 b) Interditos restituidores da posse (interdicta recuperandae possessionis) são três: ‘de precario’, ‘unde vi’ e ‘de clandestina possessione’. # De precario - concedido a quem cedeu a coisa por um certo tempo e pretende que lhe seja devolvida;15 # Unde vi - concedido a quem foi expulso do seu imóvel de forma violenta, desde que ele também não a tenha obtido mediante violência. # De clandestina possessione (clam) - concedido a quem foi desapossado clandestinamente do imóvel. 1.7 Propriedade: conceitos gerais No mundo romano, a propriedade se encontrava no centro do sistema sócio-econômico-jurídico- legislativo. Possuía um conceito tão intuitivo e natural que os jurisconsultos romanos não o defi niram, nem precisavam, porque era o próprio centro do estado romano e do povo romano. Todo o sistema jurídico romano, como ademais os sistemas jurídicos ocidentais que dele derivam, conservam este viés patrimonialista. Todos os institutos jurídicos romanos giram em torno do binômio fundamental família - propriedade, que constituem o conjunto dos bens sob o domínio do paterfamilias. A propriedade, portanto, está na essência do ‘dominium’ que a ‘patria potestas’ conferia ao paterfamilias. Era o símbolo externo do poder patriarcal e por isso mesmo guardava uma conotação excessivamente individualista, que ainda hoje persiste na cultura ocidental. A orientação sobre o sentido da função social da propriedade já fora inserida no mundo jurídico romano por Justiniano, contudo, apesar de todo o avanço da doutrina socialista e das modernas concepções do estado social, esta função ainda não ganhou espaço na consciência coletiva da sociedade. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) brasileiro é uma prova inconteste da permanência do sentido individualista arcaico que ainda persiste por sobre o conceito de propriedade. COMMENTARIuscomentário Os romanistas encontraram nas Institutas de Justiniano um pequeno trecho compilado da obra de Gaio, onde se confi gura o conceito romano de propriedade: é a ‘plena in re potestas’ (o poder pleno sobre a coisa) 16. Este “pleno poder”, que é a dimensão absoluta do direito de propriedade, fi ca expresso O contrato ‘precarium’ era uma modalidade de cessão gratuita de um bem, que devia ser devolvida tão logo fosse solicitada pelo seu dono. Quando isso não acontecia, recorria-se ao interdito ‘de precario’. 15 ... MÓDULO IV 13 nos três direitos básicos do dono que estão nele inclusos: ius utendi, ius fruendi, ius abutendi 17. Este poder absoluto é tido como tão soberano que chegava ao limite da irracionalidade. Os romanos admitiam que o proprietário pudesse fazer da coisa o que bem entendesse, inclusive destruí-la sem qualquer preocupação com os danos que isso pudesse ocasionar aos vizinhos, à coletividade, ao ambiente. illustratiodica Sistematizando, portanto, propriedade é o direito que liga a pessoa (o proprietário) a uma coisa. É o poder jurídico geral e absoluto de uma pessoa sobre um bem corpóreo. É a faculdade de usar, usufruir, dispor, abusar e dominar sobre algo material. Importa ressaltar a relação entre propriedade (direito) e posse (fato), que na maioria das vezes andam juntos, mas podem eventualmente encontrar-se separados, como é o caso da cessão, da locação, do furto, em que a propriedade permanece apenas como um direito subjetivo, enquanto outra pessoa detém materialmente a coisa. Conforme já foi salientado no estudo sobre a posse, aquele que está ‘sentado na cadeira’ nem sempre tem o ‘dominium’ sobre a coisa. Cretella Junior (2007) destaca que esse caráter absoluto da propriedade nunca deixou de ser atacado pela legislação romana, desde a Lei das XII Tábuas, como forma de atenuar as suas consequências. Nesta lei já estava prescrito que o proprietário de um imóvel deve deixar um espaço livre nas regiões limítrofes (confi nium) para garantir a circulação das pessoas; e, se fosse ser elevada uma construção, devia ser deixado um espaço livro (ambitus) de dois pés em torno da edifi cação. A natureza jurídica do direito de propriedade é de direito real (ius in re), estabelecendo uma ligação entre o dominus e a coisa pertencida. Além de absoluto, o direito de propriedade é ainda exclusivo (apenas o dominus pode dispor da coisa) e perpétuo (o proprietário é para sempre, enquanto perdurar sua vontade), sendo transmissível por sucessão hereditária. attendeatenção 1.8 Espécies de propriedade Considerando a modalidade jurídica de proteção da propriedade, esta podia ser quiritária, pretoriana, peregrina ou provincial. “Cum autem fi nitus fi eri usufructus, revertitur scilicet ad proprietatem, et ex eo tempore nudae proprietatis dominus incipit plenam habere in re potestatem.” (Quando, pois, tornar-se encerrado o usufruto, reverte-se naturalmente para a propriedade, e desde aquele tempo da propriedade nua começa o dono a ter pleno poder sobre a coisa.). (Institutas, II, 4, Gaio.) “Jus utendi, fruendi et abutendi, quatenusiuris ratio patitur.” Conforme Agerson Tabosa (2003), os dois pri- meiros (ius utendi, ius fruendi) são atribuídas ao jurisconsulto Paulo; o terceiro (ius abutendi) foi utilizado por Ulpiano. Os três foram compilados pelos glosadores em seus comentários do Digesto. 16 17 ... direito romano 14 # Quiritária (dominium ex iure Quiritium): propriedade antiga característica dos cidadãos romanos tradicionais, sua transmissão era marcada por exagerado formalismo (mancipacio - in iure cessio, para as res mancipi). # Pretoriana: fundada no ‘ius honorarium’, adquirida e transmitida sem grandes formalismos. É chamada propriedade “bonitária”, no caso das ‘res mancipi’ transmitidas com vício de forma. Fica como se o direito de propriedade não se tivesse transmitido por completo, o que só se confi guraria com o decurso do tempo (usucapião). Até aí, caberia ainda a ação ‘rei vindicatio’ por parte do antigo proprietário. # Peregrina: fundamentada no ‘ius gentium’, permitia aos estrangeiros adquirir propriedades e bens em Roma. Esta espécie desapareceu após o edito de Caracala, que conferiu aos peregrinos o status de cidadãos romanos. # Provincial: são as terras das províncias, originalmente postas sob ‘dominium’ do Estado mas que, na prática, eram ocupadas e cultivadas por particulares. Posteriormente, esses territórios passaram a ser considerados também terras itálicas e passaram a ser consideradas também propriedades quiritárias. 1.9 Aquisição, proteção e perda Por Direito natural, a forma básica da aquisição da propriedade é por ocupação das res nullius (de ninguém) ou res derelictae (abandonadas); outra forma é por tradição (traditio) ou entrega da coisa quando é móvel; ou ainda por acessão (accessio), quando uma coisa se incorpora a outra (ex: avulsão e aluvião de terras, conforme a agregação tenha sido de forma abrupta ou paulatina; plantações e edificações). Pelo Direito Civil clássico, as formas de aquisição são mancipatio, in iure cessio e usucapio. Entenda como são cada uma destas formas a seguir: MÓDULO IV 15 # Mancipatio: forma solene de transmissão celebrada na presença do alienante e do adquirente e mais dez testemunhas, mediada pelo ‘libriprens’ (portador da balança), em cuja balança se pesava um pedaço de bronze simbolizando a compra de algo pelo peso. Este era o modo formal adotado para as ‘res mancipi’. Foi abolido na época de Justiniano. # In iure cessio: literalmente, abandono do objeto em juízo. Segue o mesmo ritual da ‘mancipatio’, porém na presença do magistrado (sem as testemunhas e sem a balança). Aplica-se tanto às ‘res mancipi’ quanto às ‘res nec mancipi’ e exige-se que ambas as partes tenham o ‘ius commercii’. Já não existia na época de Justiniano. # Usucapio: aquisição da propriedade através da posse desta por um tempo determinado e sob condições estipuladas no Direito (posse justa, boa fé, coisa usucapível). illustratiodica A partir de Justiniano, as formas arcaicas foram substituídas por uma só: a tradição (traditio) ou a entrega da coisa. Já os modos jurídicos de proteção da propriedade consistiam em três ações judiciais específi cas: ‘reivindicatio’, ‘actio publiciana’ e ‘actio confessoria/negatoria’. Confi ra abaixo: # Reivindicatio: ação judicial movida pelo proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário. Era típica das propriedades quiritárias. # Actio publiciana: ação promovida pelo titular da propriedade pretoriana e da peregrina, com o intuito de benefi ciar-se pelo usucapião. Modalidade processual criada pelo pretor Quinto Publicio, donde tem esse nome. # Actio confessoria/negatoria: a primeira ação (confessoria) promovida por quem necessita de uma servidão de outro imóvel e não o consegue amigavelmente; a segunda ação (negatoria) promovida pelo proprietário contra as servidões e gravames que recaem sobre sua propriedade, provando que elas não são mais necessárias. A perda da propriedade ocorre nos seguintes casos: ø Alienação: transferência da titularidade do bem, que ocorre na maioria das vezes por venda ou doação; ø Renúncia: quando o proprietário desiste de seu direito em benefício de outrem; ø Abandono: torna a coisa ‘res derelicta’, a qual se torna ‘res nullius’ com o decurso temporal e pode ser ocupada por outrem; direito romano 16 ø Perecimento da coisa: extinta a coisa, cessa a propriedade. ø Expropriação: em decorrência de lei. Quando há indenização, diz-se “desapropriação”; quando não há indenização, diz-se “confi sco”. ø Capitis deminutio: ocasionava a perda da propriedade na pena máxima; na pena média, se houvesse mudança de família; ø Morte do proprietário: quando a propriedade se transmite aos herdeiros. 1.10 Propriedade sobre coisas alheias (iura in re aliena) Os romanos criaram alguns institutos jurídicos, ainda hoje adotados, quando se trata de proteger o interesse coletivo ou supraindividual, gerando direitos sobre coisas alheias. Exemplos disso são as servidões e os direitos reais pretorianos. Servidões são direitos reais sobre coisa alheia em benefício de edifi cação ou pessoas (servidões reais ou pessoais). Por elas, o dono é obrigado a ceder ou deixar de fazer algo em sua propriedade a fi m de benefi ciar outra pessoa. NOTIO PERMAGNAimportante A servidão requer sempre uma atitude passiva do proprietário. No dizer de Pompônio, não é da natureza da servidão que alguém faça algo, mas que o aceite ou não faça18. Não pode, porém, haver servidão da servidão, ou seja, o beneficiado pela servidão não pode cedê-la a outrem. Na época dos romanos, as servidões rurais mais comuns eram a passagem de pessoas ou animais e os aquedutos; as urbanas eram o direito de apoiar o muro no do vizinho e de não elevar demasiado a edificação em prejuízo do vizinho (vista, esgoto, tapagem). Foi criada uma ação judicial específi ca para a proteção das servidões - vindicatio servitutis - para reconhecer o direito do dono da propriedade dominante (o que precisa) sobre o serviente (o que cede). Por analogia às servidões reais, o uso e o usufruto eram considerados servidões pessoais, porque também se tratavam de direitos sobre coisas alheias. O usufrutário tinham garantido o ‘ius utendi’ e o ‘ius fruendi’; mas o usuário tinha apenas o ‘ius utendi’. Os direitos reais pretorianos eram aqueles criados pelos pretores ou pela legislação imperial, quais sejam: locação de terras públicas (ius in agro vectigali), enfi teuse, superfície, hipoteca, propriedade bonitária. ø Locação de terras públicas: o ocupante de uma propriedade do estado pagava um tributo pela utilização, à moda de aluguel; é como se fosse uma enfi teuse sobre terrenos públicos. “Servitutum non ea natura est ut aliquid faciat quis... sed ut aliquid patiatur, aut no faciat.” (Digesto, 8.1.15.1, Pomponius.) 18 MÓDULO IV 17 ø Enfi teuse: vem do verbo grego ‘emphyteuin’ (plantar, cultivar), fi gura originária da Grécia e adotada pelos romanos. O proprietário cede a sua terra para ser cultivada por outrem, mediante um pagamento anual (foro). O proprietário tem o domínio direto da terra e o enfi teuta, o foreiro, tem o domínio útil (ius emphyteuticum). Por ser um direito real, a enfi teuse pode ser transferida a outrem mediante o pagamento de um “laudêmio”, que signifi ca uma espécie de concordância ou autorização do titular do domínio direto. ø Superfície: direito de alguém fazer edifi cações sobre terreno alheio e dispor destas por longo tempo, mediante o pagamento de uma taxa anual (solarium). O titular do direito sobre a edifi cação (superfi ciário) tem os mesmos direitos do proprietário da terra (utendi, fruendi, abutendi). Este direito também é transferível, tal como a enfi teuse. ø Hipoteca: é um desmembramento do direito de propriedade. O proprietário partilha com o credor hipotecário,até o resgate da dívida, o direito sobre a coisa que lhe pertence. É um ônus jurídico que recai sobre uma propriedade como garantia para o pagamento de alguma dívida, podendo aquela ser vendida pelo credor, ao fi nal do prazo estipulado, caso o pagamento não se tenha efetuado. ø Propriedade bonitária: direito criado pelos pretores para proteção do possuidor de propriedade quiritária não transferida de acordo com os formalismos legais, contra o alienante de má-fé, como forma de garantir ao comprador ter o pleno direito após o decurso temporal (usucapião). 2. NEGÓCIO JURÍDICO 2.1 Conceituações: Atos e Fatos Jurídicos CURIOsitascuriosidade A doutrina vigente sobre os atos jurídicos é uma elaboração dos juristas modernos, com base em elementos encontrados no Direito Romano. Desde aquela época, já se distinguia entre um fato simples da natureza sem consequências jurídicas de outros, naturais ou humanos, que têm consequências jurídicas. CURIOsitas jurídicas de outros, naturais ou humanos, que têm consequências jurídicas. Genericamente, portanto, os fatos jurídicos podem ser voluntários, se dependem da vontade de alguém, ou involuntários, se não dependem da vontade de ninguém. Quanto aos voluntários podem ser lícitos ou ilícitos e são chamamos atos jurídicos, porque são manifestações de vontade. O Prof. Agerson Tabosa (2003) prefere usar a expressão negócio jurídico, por ser tecnicamente mais precisa para indicar um ato de vontade que gera uma relação entre dois ou mais sujeitos, pois estas são características do ato jurídico stricto sensu. direito romano 18 NOTIO PERMAGNAimportante O Direito Romano antigo, extremamente formalista, dava mais valor à forma dos atos jurídicos do que propriamente ao seu conteúdo. Por isso, os atos jurídicos regidos pelo direito quiritário (jus civile) exigiam formalidades complexas, cuja observância era necessária para a validade do ato e para gerar efeitos jurídicos. O efeito jurídico era consequência automática do uso do formalismo. Era o caso, por exemplo, da compra e venda das ‘res mancipi’, que devia ser celebrada com a cerimonia do ‘aes et libra’ e a pronúncia de certas fórmulas jurídicas quase mágicas, como garantia da validade do negócio. A evolução do Direito Romano foi aos poucos reduzindo as formalidades e valorizando sempre mais a manifestação da vontade, que devia ser clara e inequívoca e mais valiosa do que as formas solenes, as quais entretanto não foram totalmente abolidas. Assim, a essência do ato jurídico passou a ser a manifestação da vontade, mais do que a utilização das formalidades celebrativas. CURIOsitascuriosidade No Direito antigo, tudo era feito apenas verbalmente, somente no tempo do império surgiram os termos com assinatura. Quando passaram a ser escritos esses atos, foi também reduzido o número de testemunhas necessárias. CURIOsitas escritos esses atos, foi também reduzido o número de testemunhas necessárias. Em algumas situações, nem era mesmo necessária a manifestação expressa, bastando a manifestação tácita, através de um comportamento significativo. Por exemplo, o herdeiro que passava a administrar sua parte da herança, não precisa dizer com palavras que a aceitou. Permitir que um escravo se sentasse à mesa da família era sinal de concessão da sua liberdade. 2.2 Classificação Os negócios jurídicos poderiam ser classifi cados de distintas maneiras tendo como base sua forma, formação, vantagens decorrentes dos negócios e a produção de seus efeitos. # Quanto à forma, os negócios jurídicos eram simples ou solenes: ø Simples: sem formalidades cerimoniais; ø Solenes: acompanhados de formalidades cerimoniais. # Quanto à formação, os negócios jurídicos eram unilaterais ou bilaterais: ø Unilaterais: bastava a declaração de vontade de uma das partes; ø Bilaterais: envolviam acordo entre as partes, havendo declaração de vontade de ambas. MÓDULO IV 19 # Quanto às vantagens decorrentes dos negócios jurídicos, estes podiam ser onerosos ou gratuitos: ø Onerosos: quando representassem ônus para ambas as partes; ø Gratuitos: quando apenas para uma das as partes suportava o ônus. # Quanto à produção dos efeitos, os negócios jurídicos podiam ser ‘inter vivos’ ou ‘mortis causa’: ø Inter vivos: produziam seus efeitos imediatamente; ø Mortis causa: produziam seus efeitos após a morte do manifestante. 2.3 Elementos do negócio jurídico Os elementos essenciais do negócio jurídico são capacidade de agir, manifestação da vontade, objeto lícito e possível. A capacidade de agir, em Roma, advinha com a puberdade (14 anos para os homens e 12 anos para as mulheres). Assim foi até o surgimento da Lex Laetoria (séc. II a.C.), que criou a regra da curatela para os menores de 25 anos, quando se tratava de praticar um ato que gerava obrigações. A fi nalidade dessa exigência era proteger a inexperiência dos jovens, embora fossem considerados civilmente capazes. Esses dispositivos valiam tanto para os ‘sui juris’ quanto para os ‘alieni juris’, com a diferença seguinte: os ‘sui juris’ adquiriam as coisas para si mesmos; os ‘alieni juris’ adquiriam as coisas para o paterfamilias ao qual estavam subordinados. Importa recordar que os menores impúberes ‘sui juris’ deviam estar representados por seus tutores e as mulheres impúberes ou adultas, mesmo sendo ‘sui juris’, estavam sob tutela perpétua, independente do limite de idade. Somente na época de Justiniano foi reconhecido o direito das mulheres negociarem sozinhas, da mesma forma que os homens. attendeatenção direito romano 20 Por outro lado, a manifestação da vontade devia representar uma sintonia entre o interior e o exterior do manifestante. Para que não haja discrepância entre a vontade interna e a sua manifestação externa, é necessário que esta esteja livre de qualquer vício que possa invalidá-la. CURIOsitascuriosidade A manifestação da vontade, de modo geral, era expressa, mas podia também ser tácita, de acordo com a regra do que cala consente. De acordo com o jurisprudente Paulo19, quem cala, embora não confesse, também não nega. Ora, se teve a oportunidade de se opor e não o fez, conclui-se que houve consentimento. Às vezes, este consentimento podia ser dado também por um mensageiro, devidamente autorizado. illustratiodica No Direito Romano antigo, os negócios jurídicos regulados pelo jus civile eram válidos ou nulos, não existindo a figura da anulação posterior, dando-se total crédito ao formalismo. Tal possibilidade foi depois introduzida pelos pretores. Foi o ‘jus honorarium’ que admitiu a possibilidade de anulação dos negócios jurídicos, com base na regra de que “aquilo que tem um início vicioso não pode convalidar-se com o decurso do tempo”.20 Os vícios possíveis de invalidamento posterior dos negócios jurídicos são os mesmos aplicáveis aos contratos em geral: erro, dolo e coação. EXEMPLUMexemplo O erro pode ser de fato ou de direito. Exemplos de erros de fato: ø error in negotio (erro no próprio negócio); ø error in persona (erro sobre a identidade da pessoa); ø error in corpore (erro de identidade do objeto); ø error in substantia (erro de conteúdo). A ocorrência comprovada de um deles acarretava a nulidade do ato, se relacionado a um elemento essencial. O erro de direito (error juris), em regra, não podia ser invocado para invalidar um ato, porque a ignorância da lei não desculpa ninguém. Podiam alegá-lo, no entanto, as mulheres, os menores de 25 anos, os soldados e os camponeses. Digesto, 12, 1, 6, Paulo: Qui tacet, non utique fatetur, sed tamen verum est eum non negare. “Quod initio vitiosum est, non potest tractu temporis convalescere.” (Digesto, 50.17.29) 19 20 MÓDULO IV 21 O dolo que tornava inválidos os negócios jurídicos era o que os romanoschamavam ‘dolus malus’, isto é, o engodo proposital da outra parte pelo uso de um artifício, para tirar uma vantagem ilícita21. O pretor Aquilio Galo (68 a.C.) criou um tipo de ação judicial específi ca para esses casos, denominada ação aquiliana. Através dela, a parte prejudicada na transação podia alegar a ‘exceptio doli’ como motivo para anular um negócio jurídico. Este conceito chegou aos direitos modernos com o título de “boa fé objetiva”, que está consagrado no Código de Defesa do Consumidor22. Por fi m, a coação é a pressão física ou psíquica exercida sobre alguém, levando-o a praticar algo contra a sua vontade. Quando ocorre através de força física, diz-se coação física (vis absoluta); quando ocorre através de ameaça, produzindo medo, diz-se coação moral (vis compulsiva). O pretor Octavius criou um tipo de ação judicial aplicável a esses casos, denominado ‘restitutio in integrum’, pela qual a parte enganadora era obrigada a devolver o objeto do negócio. Ele classifi cou a coação como um delito e impôs a pena de pagamento do quádruplo do valor do negócio em favor do ofendido. Quanto ao objeto lícito e possível, outro elemento do negócio jurídico, era considerado qualquer coisa que não seja contrária ao direito, não afronte a moral ou os bons costumes, não contrarie nenhuma norma estabelecida, assim como tenha possibilidade de ser executado normalmente, não sendo algo cuja execução se torne impossível de realizar. 2.4 Conteúdo dos negócios jurídicos Existem negócios jurídicos que têm conteúdo específi co e outros de conteúdo genérico, podendo aplicar-se a diversas situações. Um exemplo que pode ser citado ao primeiro caso era a mancipatio, e ao segundo a stipulatio. Cf, Agerson Tabosa, o ‘dolus bonus’, ou seja, a astúcia para enganar o inimigo ou as práticas dos comerciantes para vender mais facilmente as suas mercadorias, não tinha implicações jurídicas (p. 158). O art. 4º, III, do Código de Defesa do Consumidor, Lei no 8.078/90, anota que a política nacional das relações de consumo tem como objetivo, entre outros, o respeito pela dignidade do consumidor, a boa-fé e o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. 21 22 direito romano 22 NOTIO PERMAGNAimportante A mancipatio se fazia nos termos da lei, seguindo o formalismo para negociação das coisas mais importantes e de maior valor econômico. Por outro lado, a stipulatio era utilizada sempre que a lei não contivesse uma determinação explícita. Num ou noutro caso, o conteúdo de um negócio jurídico devia ser sempre um objeto lícito, determinado e juridicamente possível. Além disso, as partes negociantes podiam incluir outros elementos acessórios, os quais eram inúmeros e variados. No entanto, a doutrina costuma sintetizá-los em três categorias: condição, termo e modo. Condição é a inclusão no negócio de um evento futuro e incerto, para que só então o negócio jurídico surta seus efeitos. illustratiodica São duas as características da condição: a futuridade - a sua ocorrência no futuro; a falibilidade - a incerteza acerca da sua ocorrência. Havendo certeza da sua ocorrência, mesmo que só a data seja incerta, não existe uma condição, mas um termo. O evento condicional podia ser positivo ou negativo, isto é, a condição podia ser a sua ocorrência ou a sua não-ocorrência. A incerteza podia ainda depender da vontade de uma das partes ou depender do puro acaso (fenômeno natural). No Direito atual, é possível estabelecer uma condição de modo que o efeito vigore até que tal fato ocorra (resolutiva) ou que passe a vigorar somente quando tal fato ocorrer (suspensiva). Os romanos, no entanto, conheciam somente a condição suspensiva. NOTIO PERMAGNAimportante Para os romanos, alguns negócios não admitiam cláusula de condição, sob pena de nulidade, como, por exemplo, a designação de herdeiro, a mancipatio. Não é possível designar um herdeiro só por algum tempo ou só se atender a alguma imposição do designante. Outro elemento acessório da parte negociante, termo é a cláusula que subordina os efeitos de um negócio jurídico a um evento futuro e certo. Difere da condição por ter um data certa para acontecer. Tal como na condição, os efeitos do negócio também podem verifi car-se até que o termo ocorra (dies ad quem) ou podem passar a vigorar quando o termo ocorrer (dies a quo). Foi o jurisprudente Paulo quem criou a regra utilizada ainda hoje de não se computar o dia do início do prazo, mas contar o dia fi nal.23 Digesto, 28, 1, 5, Paulo: “Quod in diem stipulamur, dies a quo non computatur in termino; dies termini compu- tatur in termino.” Ver tb. CPC, art. 27.23 MÓDULO IV 23 Algumas situações jurídicas eram consideradas permanentes para os romanos, não podendo estar submetidas a termo ou condição, como a propriedade, os direitos de servidão, a qualidade de herdeiro. attendeatenção Também elemento da parte negociante, modo é a cláusula que impõe uma obrigação ao benefi ciário do ato, a qual no entanto não infl ui na sua validade. Não se subordinam os efeitos do ato ao cumprimento da obrigação. Caso, porém, o favorecido negligenciasse na execução do encargo, os pretores introduziram ações judiciais específi cas para obrigar ao cumprimento, o que foi aperfeiçoado na época de Justiniano com uma ação executiva. 2.5 A representação ‘Ad Negotia’ CURIOsitascuriosidade Os romanos não conheciam o instituto da representação, tal como existe hoje nos Direitos modernos. Agir por conta de outrem e em nome de outrem era uma ideia estranha ao pensamento dos romanos. Isto está inscrito nas Instituta de Gaio: “a nós não é possível adquirir por meio de pessoa estranha”.24 A representação direta sempre teve resistência no ambiente romano, que no máximo admitiam a representação indireta ou imperfeita, pela qual o representante age em nome próprio, mas no interesse do representado. A esta última chamavam de representação “ad negotia”, ou seja, para a realização de uma transação comercial específi ca. O negócio jurídico produzia efeitos inicialmente para o representante, que tinha a obrigação de transferi-lo ao representado, com base num contrato celebrado entre eles. Só muito tardiamente, o instituto da representação foi aperfeiçoado no Direito Romano. EXEMPLUMexemplo Para compreender a representação “ad negotia”, imaginamos a seguinte situação: um comerciante contrata um navegador para fazer compras ao seu armazém. O navegador faz as compras como se fossem para ele mesmo e negocia diretamente com o vendedor. Ao retornar, renegocia com o autor da encomenda, de acordo com o contrato prévio, uma espécie de revenda combinada. A forma de representar pode basear-se na lei ou na vontade das partes. No primeiro caso, temos a representação dos tutores, dos curadores, dos syndicus de pessoas jurídicas, que agem por disposição legal. No segundo caso, decorre de um contrato de mandato. Per extraneam personam nobis adquiri non potest. (Gaio, Institutas, 2, 95).24 direito romano 24 Pode acontecer ainda de alguém espontaneamente se dispor a cuidar dos negócios de um amigo ausente, mesmo sem ter sido por ele encarregado disso. Neste caso, porém, não se trata de representação, mas de gestão de negócios (negotiorum gestio). Não nos alongamos muito neste tema porque, como se pode verifi car, o Direito atual mantém quase completamente as mesmas regras e tudo isso é estudado na parte do Direito das obrigações e contratos. Chegamos ao fim do quarto módulo da disciplina. Não deixe de participar do Fórum e tirar suas dúvidas com o tutor. O próximo módulo abordará o Direito Romano das Obrigações e o Direito Penal Romano. Bons estudos! viaconversando REFERRereferências bibliográfi cas ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. CRETELLAJÚNIOR, José. Curso de Direito Romano. 29ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. LUIZ, Antônio Filardi. Curso de Direito Romano. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1999. MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. PESSOA, Eduardo. História do Direito Romano. São Paulo: Habeas Editora, 2001. RICCOBONO, Salvatore. Roma: Madre de las Leyes. Buenos Aires: Depalma Ediciones, 1975. TABOSA, Agerson. Direito Romano. 2ª ed. Fortaleza: Editora FA7, 2003. 25 QUESTÕES para revisão e aprofundamento 1. Explique o conceito romano de ‘res’ (coisa). 2. Explique a divisão entre ‘res in patrimonio’ (in commercio) e ‘res extra patrimonium’ (extra commercium). 3. Que são ‘res mancipi’ e ‘res nec mancipi’? 4. Como se dividem as ‘res extra patrimonium’? 5. O que é posse e quais os elementos constitutivos desta? 6. Faça a distinção entre posse civil e posse pelos interditos. 7. O que são os interditos e a que se destinavam? 8. Explique os interditos ‘utrubi’ e ‘uti possidetis’. 9. Quais são os vícios que incidem na posse e que consequências jurídicas isso acarreta? 10. O conceito de propriedade estava no centro do Direito Romano. O que isto signifi ca? 11. De onde se origina o caráter absoluto e individualista do conceito de propriedade? 12. Quais os direitos básicos que expressam o pleno poder sobre a coisa? 13. De que modo a Lei das XII Tábuas impôs limites ao Direito de propriedade? 14. Faça a relação entre as espécies de propriedade e o tipo de direito que as ampara. 15. Faça a distinção entre a ‘mancipatio’ e a ‘usucapio’, como formas de aquisição da propriedade. 16. Quais as ações judiciais que protegiam a propriedade? direito romano 26 17. Como se dava a perda da propriedade pela ‘capitis deminutio’? 18. O que eram as servidões e a que se destinavam? 19. Explique os institutos da enfi teuse e da superfície no Direito Romano. 20. Quais os requisitos exigidos das partes contratantes? 21. Que vícios podem incidir sobre os contratos e invalidá-los? 22. Qual a relação entre a matéria e a forma dos atos jurídicos no Direito Romano antigo? 23. O que eram ‘dolus bonus’ e ‘dolus malus’ e de que modo eles infl uíam nos atos jurídicos? 24. Como esses institutos jurídicos chegaram aos Direitos modernos? 25. De que modo surgiu a regra da anulabilidade dos atos jurídicos em Roma? 26. Comente sobre as ações criadas pelos pretores Aquilio e Octavius. 27. Qual a diferença entre condição e termos nos negócios jurídicos? 28. Como era o instituto da representação, no Direito Romano? 27 Núcleo de Educação a Distância O assunto estudado por você nessa disciplina foi planejado pelo professor conteudista, que é o responsável pela produção de conteúdo didático. E foi desenvolvido e implementado por uma equipe composta por profissionais de diversas áreas, com o objetivo de apoiar e facilitar o processo ensino-aprendizagem. Projeto Instrucional Jackson de Moura Oliveira Roteiro de Áudio e Vídeo José Moreira de Sousa Produção de Áudio e Vídeo Natália Magalhães Rodrigues Identidade Visual Viviane Cláudia Paiva Arte Sérgio Oliveira Eugênio de Souza João José Barros Marreiro Programação Antônia Suyanne Lopes Alves Implementação Jorge Augusto Fortes Moura Animação Francisco Kaléo Mendes Liberato Editoração Régis da Silva Pereira Sávio Félix Mota Revisão Gramatical Luís Carlos de Oliveira Sousa Coordenação Geral Mateus Mosca Viana Supervisão Administrativa Graziella Batista de Moura Assessoria Pedagógica Xênia Diógenes Benfatti Professor conteudista Antonio Carlos Machado CRÉDITOS quem faz 28 ANOTAÇÕES 29
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