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Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 1 UNIVERSIDADE DE FORTALEZA CCJ – CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS DISCIPLINA: DIREITO ROMANO Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado UNIDADE VII – DIREITO DAS COISAS I – CONCEITUAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO 1) CONCEITO DE COISA (RES) Coisa é tudo que existe, todo e qualquer ente quer tenha existência material ou puramente abstrata, quer seja ente concreto ou ente de razão, coisas materiais ou concepções do espírito. Juridicamente, coisa (res) é tudo aquilo que pode ser objeto de uma relação jurídica, objeto de um direito subjetivo de natureza patrimonial. No entendimento de Gaio, reproduzido nas Instituta de Justiniano, “res” abrange todas as relações patrimoniais, tendo assim um sentido excessivamente amplo. Adverte Cretella Junior1 que, no entanto, não se deve considerar “res” como um conceito único entre os romanos, porque esta palavra ora era empregada em sentido bem restrito (coisas materiais e sensíveis), ora em sentido amplo, abrangendo também coisas incorpóreas (embora não tenham chegado ao sentido atualmente aceito). Por exemplo, a “res romana” ou a “res publica” eram sinônimas de “estado romano”. Sendo pragmáticos e imediatistas, o que melhor representa o conceito de “res” corpórea é a “pecunia”, conceito que compreende tudo que tenha valor econômico, coletivamente chamado de “bona” (plural de bonum=bem) ou “patrimonium”. As “res” incorpóreas eram, em geral, os direitos subjetivos (sucessão ou herança, uso e gozo, crédito, servidões). 2 2) CLASSIFICAÇÃO DAS COISAS (RES) Segundo o registro do jurisconsulto Gaio, aproveitado por Justiniano3, as coisas no Direito Romano classificam-se em: a) Res in patromonio e Res extra patrimonium; b) Res mancipi e Res nec mancipi; c) Res corporalis e Res incorporalis. A macro divisão das coisas, contudo, entre os romanos compreendia dois grupos: • res in patromonio - aquelas que podiam ser propriedades dos cidadãos, e portanto, podiam ser negociadas; • res extra patrimonium - aquelas que, por serem religiosas ou públicas, não podiam 1 Cretella Jr, op. Cit., pág. 106. 2 Cf. Agerson Tabosa, esta conceituação de coisas corpóreas em contraposição às coisas incorpóreas foi introduzida no Direito Romano por Sêneca, influenciado pelos estóicos. Já a distinção entre coisas intelectuais contrapondo-se às coisas reais foi também influência da cultura grega, através de Aristóteles, sobre Cícero. Esses termos não seriam, portanto, originais do Direito Romano. 3 Gaius, Institutas, II, 12. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 2 ser propriedade de particulares. As “res in patrimonio” também são “res in commercio”, porque podem ser compradas e vendidas; as “res extra patrimonium” são “res extra commercium”, porque não podem ser compradas ou vendidas. Estes dois grandes grupos têm subdivisões. As res in patrimonio subdividem-se em: • res mancipi - aquelas de maior interesse jurídico ou valor econômico; res nec mancipi - aquelas de menor valor ou menor interesse jurídico; 4 • res corporales - aquelas que são perceptíveis pelos sentidos físicos; res incorporales – aquelas que não se tocam, sendo exclusivamente jurídicas; • res mobiles (móveis) - as que podem ser deslocadas sem ruptura, res immobiles (imóveis) - as que não podem ser deslocadas sem alteração do seu conteúdo;5 • res fungibiles - as que podem ser permutadas umas pelas outras; res infungibiles - as que não podem ser permutadas, dada a sua individualidade; • res consumptibiles - as que se deterioram com o uso, res inconsumptibiles - as que não se desfazem com o uso; • res principales - as que realizam uma função por si mesmas, res accessoriae - as que aderem às coisas principais; • res divisibiles - as que se fracionam sem ficar prejudicadas, res indivisibiles - as que se prejudicam se forem fracionadas. Conforme se observa, esta classificação é a mesma que ainda prevalece no direito contemporâneo. As res extra patrimonium também são ditas “res nullius” e se subdividem em: • res divini iuris - ou coisas de direito divino são as que têm ligação direta com as divindades, pois são coisas do culto. coisas sagradas e religiosas. • Coisas Sagradas: eram aquelas consagradas aos deuses superiores, eram as coisas que ritualmente são destinadas a Deus, como os templos, os bosques sagrados e o material do culto. 4 Essa distinção entre ‘res mancipi’ e ‘res nec mancipi’, cf. Cretella Junior (op. Cit., pág. 110), foi de fundamental importância entre os romanos, praticamente a única distinção que eles faziam. Considerando que não existe mais essa distinção no direito contemporâneo, fica difícil atribuir-lhes uma definição mais precisa. Citando Gaio, as ‘res mancipi’ são aquelas que se transferem pelo processo de mancipação, que era o modo solene de transmitir a propriedade de algo; já as ‘res nec mancipi’ eram transferidas sem qualquer formalismo, pela simples entrega (traditio) da coisa. Exemplos de ‘res mancipi’: as terras itálicas, as casas, os escravos, os animais de carga e tração; exemplos de ‘res nec mancipi’: dinheiro, móveis, jóias, animais de pequeno porte, aves domésticas. Esta classificação vai se descaracterizando e perdendo sua importância com a expansão das conquistas militares, até ser abolida de vez, na época de Justiniano. 5 Essa distinção não existia na Lei das XII Tábuas, mas vai se clareando aos poucos, com a utilização de dois recursos jurídicos diferentes, quando se trata da posse delas: para as coisas imóveis, usa-se o interdito ‘uti possidetis’ e para as coisas móveis, o interdito ‘utrubi’. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 3 • Coisas Religiosas: eram aquelas dedicadas aos deuses inferiores (deuses manes e familiares) como as sepulturas e oratórios. Depois da cristianização no Império as coisas religiosas eram exclusivamente as sepulturas. Manes são os deuses subterrâneos. • Coisas Santas: eram aquelas que não pertenciam ao patrimônio de ninguém, pois eram de interesse tanto dos deuses superiores quanto dos deuses inferiores e acham sob proteção divina em decorrência de cerimônia religiosa. Os portões e os muros da cidade. Havia penalidades rigorosas para quem desrespeita as “res divini iuris”. • res humani iuris – ou coisas de direito humano são aquelas que, mesmo não possuindo características divinas, mas estavam fora do comércio e do patrimônio dos particulares, devido a serem do interesse de todos de modo geral, coisas coletivas ou de uso público (o ar, a água, o mar, as praças, os mercados, os teatros...)6 • Coisas Comuns: eram aquelas coisas que pertenciam a todos, e que estão à disposição de todos para uso geral e insuscetível de apropriação individual. Ex. o mar, a água corrente, a luz solar. • Coisas Públicas: eram aquelas coisas do Estado e que o povo tinha o uso comum, estando fora do comércio em razão do seu destino. Ex.: Praças, rios perenes, vias. • Coisas Universais: eram aquelas coisas pertencentes a pessoas jurídicas de direito público, distintas do Estado, pois são bens que pertencem a coletividades específicas. Ex.: Fórum, Estádios Posteriormente, por influência do cristianismo, essas coisas religiosas e sagradas passaram a se relacionar com o culto cristão, consagradas pelos sacerdotes e bispos da Igreja. Foi quando elas, em situações excepcionais, podiam ser alienadas (in commercio), com a autorização dos bispos, para fins humanitários. 3) A TRANSMISSÃO DO PATRIMÔNIO Transfere-se o patrimônio por ato “inter vivos” ou “mortis causa” ou a título singular ou a título universal. • INTER VIVOS: é a transmissão que ocorre mediante ato jurídico solene ou simples, mas com as partes em vida. Ex.: compra e venda. • CAUSA MORTIS:é a transmissão que ocorre em função da morte de seu dono passando ao herdeiro ou legatário. Ex. Herança. • TÍTULO SINGULAR: é a transferência de determinadas coisas de propriedade de uma pessoa. Ex. doação de um bem. • TÍTULO UNIVERSAL: é a transferência do patrimônio inteiro de uma pessoa. Ex. doação de todos os bens. 6 As ‘res humani iuris’ admitiam uma subdivisão interna entre ‘communes’ (bens naturais), ‘universitatis’ (bens da imóveis da cidade); ‘publicae’ (bens ao ar livre). Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 4 II – DIREITOS REAIS: POSSE E PROPRIEDADE 1) POSSE - CONCEITOS GERAIS O conceito romano de posse é outro muito assemelhado ao direito contemporâneo, significando que mantém a mesma conotação do seu uso primitivo, tendo passado por mudanças insignificantes ao longo da história. Na doutrina jurídica contemporânea, esses conceitos foram explicitados pelos juristas alemães Savigny (concepção subjetiva) e Ihering (concepção objetiva), ambos insignes professores de Direito Romano e profundos conhecedores desta matéria. Etimologicamente, o termo posse deriva do vocábulo latino “possessio” (potis+sedes), que significa “posição de quem está sentado como dono”.7 Posse é a detenção da coisa com o “animus domini”, isto é, com o espírito de dono. Assim, a posse tem dois elementos constitutivos: a coisa (corpus) e a intenção (animus).8 O primeiro componente da posse (corpus) é o seu elemento objetivo, sobre o qual alguém exerce um poder; o segundo componente (animus) é o seu elemento subjetivo, que consiste na intenção, no desejo, na vontade de deter a coisa para si (“animus rem sibi habendi”). É assim que os jurisconsultos romanos entendem a ‘posse jurídica’, ou seja, a posse protegida pelo direito. Muitas vezes, a posse e a propriedade se confundem, ou seja, o possuidor é o mesmo proprietário. Mas há situações em que a posse está separada da propriedade. Assim, posse é poder de fato; propriedade é poder de direito. Tal poder de fato pode ser legal (por exemplo, o cessionário, o depositário) ou ilegal (por exemplo, o ladrão). Por isso, o possuidor de má-fé não pode ter a proteção jurídica de sua posse. A posse juridicamente protegida era chamada pelos romanos de “posse justa”, isto é, posse de acordo com o “jus”. 2) MODALIDADES OU ESPÉCIES DA POSSE No período clássico do Direito Romano, o conceito de posse ainda estava em sua formação, sendo reconhecidas três espécies de posse: • Civil (possessio civilis): a que se fundamenta em atos jurídicos, que é reconhecida pelo ‘jus civile’. Exemplo: o usucapião, modalidade de posse protegida pelo direito e que se transforma em propriedade com o decurso temporal e a presença de alguns requisitos. • Natural (possessio naturalis): é a detenção da coisa sem a intenção de ser dono, detenção simples, como é o caso do locatário. Não há o ‘animus domini’. Apenas conserva a coisa para outro, o proprietário. • Pelos interditos (possessio ad interdicta): é a posse justa, aquela que ocorre sem nenhum vício, simplesmente posse.9 A posse civil em geral se inicia como posse justa, posse de boa-fé, com a intenção de reter a coisa para si. Diz-se ‘ad interdicta’ porque o possuidor, nestas condições, obtém a proteção jurídica contra 7 Possessio é composta de potis (dono) + sedes (cadeira), associando à idéia da cadeira onde se senta o dono. Os romanos tomaram esta palavra por influência do conceito grego ‘katokhen’ = reter, guardar, conservar. 8 Alguns autores preferem, em vez da expressão ‘animus domini’, a expressão ‘animus possidendi’, porque a primeira é ‘animus’ de proprietário e nem sempre o possuidor é proprietário. 9 Considera-se viciosa a posse obtida por violência (vi), às escondidas (clam) ou a título precário (precario); ao contrário, a posse sem vícios é aquela ‘nec vi, nec clam, nec precario'. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 5 investidas de estranhos, mesmo sem ser ele o proprietário, através de ações judiciais. Na época de Justiniano, estas três espécies de posse foram reduzidas a duas apenas (posse civil e natural), sendo a posse ‘ad interdicta’ incorporada à posse civil. Nos primeiros tempos de Roma, quando ainda havia muitas ‘res nullius’ (coisas de ninguém), a posse era um diferencial importante para garantir futuramente a propriedade, recebendo o possuidor a proteção do direito e tendo ele, em seu favor, os interditos para conservá-la ou retomá-la em caso de haver sido esbulhado. Os interditos eram determinações pretorianas contra quem estivesse a ameaçar a posse de outrem ou já a houvesse retirado. No início, eram simples ordens do pretor, diante da reclamação de algum prejudicado, mas com a evolução do instituto, deram origem às ações possessórias. 3) AQUISIÇÃO, PROTEÇÃO E PERDA DA POSSE A aquisição da posse se faz com a apreensão material da coisa, seja pela própria pessoa ou por outrem em seu nome. Este último era o caso, por exemplo, do paterfamilias que tomava posse de algo por intermédio de alguma das pessoa que estavam sob o seu pátrio poder. É importante observar que devem estar sempre presentes os dois elementos constitutivos da posse (corpus + animus). A simples apreensão da coisa sem o ‘animus’ ou ao contrário, o ‘animus’ sem a apreensão não configuram a posse justa. Por via de consequência, perde-se a posse quando um desses elementos, ou ambos, desaparecem. Exemplos. Se a coisa perece ou se destrói, se foi perdida ou roubada, ainda que permaneça o ‘animus’, já não existe mais posse. Do mesmo modo, perdido o ‘animus’, não existirá mais posse, e sim mera detenção. Uma coisa vendida ou doada, ainda que permaneça em poder do vendedor ou doador, não tem mais a presença do ‘animus’. Intertidos possessórios são as ações destinadas à proteção da posse. Há duas modalidades de interditos: o primeiro (interdicta retinendae possessionis) ou interdito de manutenção da posse protege a posse do quem está ameaçado de perdê-la; o segundo (interdicta recuperandae possessionis) ou interdito de recuperação da posse promove a restauração da posse por quem já a perdeu. São, portanto, ordens judiciais emanadas do pretor ou do governador da Província em favor de quem os solicita. a) Interditos mantenedores da posse (interdicta retinendae possessionis) são dois: ‘utrubi’ e ‘uti possidetis’. Os nomes dos interditos derivam das palavras iniciais da ordem pretoriana escrita em latim: 10 • Utrubi11 - interdito aplicável à posse ameaçada sobre coisas móveis. A palavra latina ‘utrubi’ é um advérbio que significa ‘em qualquer lugar onde esteja’; 10 As fórmulas pretorianas de onde se originaram os nomes desses interditos são: “Utrubi vestrum hic homo quo de agitur... (Em qualquer lugar onde esteja um dos vossos, este homem de quem se trata...)” “Uti possidetis nunc eas aedes quibus de agitur, nec vi, nec clam, nec precario alter ab altero.” (Do modo como possuir agora essas propriedades das quais se trata, nem pela violência, nem clandestinamente, nem de modo precário alguém ou por outro... 11 Utrubi hic homo, quo de agitur, apud quem maiore parte huius anni fuit, quominus is eum ducat, vim fieri veto. (Em qualquer lugar onde esteja este homem, do qual se trata, e junto a quem pela maior parte do ano esteve [a coisa] se não estiver a ele conduza, vedado ser utilizada a força. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 6 • Uti possidetis12 - interdito aplicável à posse ameaçada sobre coisas imóveis. Literalmente significa ‘do modo como possuís’.13 No Código de Justiniano, os dois interditos foram fundidos, dando origem a apenas uma modalidade de ação possessória para coisas móveis ou imóveis. b) Interditos restituidores da posse (interdicta recuperandae possessionis) são três: ‘de precario’,‘unde vi’ e ‘de clandestina possessione’. • De precario - concedido a quem cedeu a coisa por um certo tempo e pretende que lhe seja devolvida; 14 • Unde vi - concedido a quem foi expulso do seu imóvel de forma violenta, desde que ele também não a tenha obtido mediante violência. • De clandestina possessione (clam) - concedido a quem foi desapossado clandestinamente do imóvel. 4) PROPRIEDADE: CONCEITOS GERAIS a) No mundo romano, a propriedade se encontrava no centro do sistema sócio- econômico-jurídico-legislativo, era um conceito tão intuitivo e natural que os jurisconsultos romanos não o definiram. E nem precisava, porque era o próprio centro do estado romano e do povo romano. Todo o sistema jurídico romano, como ademais os sistemas jurídicos ocidentais que dele derivam, conservam este viés patrimonialista. Todos os institutos jurídicos romanos giram em torno desse binômio fundamental: família - propriedade, que constituem o conjunto dos bens sob o domínio do paterfamilias. b) A propriedade, portanto, está na essência do ‘dominium’ que a ‘patria potestas’ conferia ao paterfamilias. Era o símbolo externo do poder patriarcal e por isso mesmo guardava uma conotação excessivamente individualista, que ainda hoje persiste na cultura ocidental. A orientação sobre o sentido da função social da propriedade já fora inserida no mundo jurídico romano por Justiniano, contudo, apesar de todo o avanço da doutrina socialista e das modernas concepções do estado social, esta função ainda não ganhou espaço na consciência coletiva da sociedade. O MST brasileiro é uma prova inconteste da permanência do sentido individualista arcaico que ainda persiste por sobre o conceito de propriedade. c) Os romanistas encontraram nas Institutas de Justiniano um pequeno trecho compilado da obra de Gaio, onde se configura o conceito romano de propriedade: é a “plena in re potestas” (o poder pleno sobre a coisa).15 Este ‘pleno poder’, que é a dimensão absoluta do direito de propriedade, fica expresso nos três direitos básicos do dono que 12 Omnia quoque, quae in uti possidetis interdicto servantur, hic quoque servabuntur. (Todas as coisas também que pelo interdito 'uti possidetis' se conservam, assim também sejam conservadas). 13 Consta que os portugueses alegaram o interdito ‘uti possidetis’ contra os espanhóis, que estavam ameaçando invadir as terras brasileiras, então na posse de Portugal. A solução do conflito ocorreu com a celebração do Tratado de Tordesilhas (1494), em que o papa Alexandre VI (espanhol de nascimento e mediador do conflito) atribuiu a maior parte das terras para os espanhóis. Portugal saiu perdendo nessa arbitragem. Se não fosse a ação dos bandeirantes, o território brasileiro atual era menos da metade do que efetivamente é. 14 O contrato ‘precarium’ era uma modalidade de cessão gratuita de um bem, que devia ser devolvida tão logo fosse solicitada pelo seu dono. Quando isso não acontecia, recorria-se ao interdito ‘de precario’. 15 Cum autem finitus fieri usufructus, revertitur scilicet ad proprietatem, et ex eo tempore nudae proprietatis dominus incipit plenam habere in re potestatem. - Quando, pois, tornar-se encerrado o usufruto, reverte-se naturalmente para a propriedade, e desde aquele tempo da propriedade nua começa o dono a ter pleno poder sobre a coisa. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 7 estão nele inclusos: ius utendi, ius fruendi, ius abutendi.16 Este poder absoluto é tido como tão soberano que chegava ao limite da irracionalidade. Os romanos admitiam que o proprietário pudesse fazer da coisa o que bem entendesse, inclusive destruí-la sem qualquer preocupação com os danos que isso pudesse ocasionar aos vizinhos, à coletividade, ao ambiente. d) Sistematizando, portanto, propriedade é o direito que liga a pessoa (o proprietário) a uma coisa. É o poder jurídico geral e absoluto de uma pessoa sobre um bem corpóreo. É a faculdade de usar, usufruir, dispor, abusar e dominar sobre algo material. e) Importa ressaltar a relação entre propriedade (direito) e posse (fato), que na maioria das vezes andam juntos, mas podem eventualmente encontrar-se separados, como é o caso da cessão, da locação, do furto, em que a propriedade permanece apenas como um direito subjetivo, enquanto outra pessoa detém materialmente a coisa. Conforme já foi salientado no estudo sobre a posse, aquele que está ‘sentado na cadeira’ nem sempre tem o ‘dominium’ sobre a coisa. f) Cretella Junior destaca (p. 120) que esse caráter absoluto da propriedade nunca deixou de ser atacado pela legislação romana, desde a Lei das XII Tábuas, como forma de atenuar as suas consequências. Nesta lei já estava prescrito que o proprietário de um imóvel deve deixar um espaço livre nas regiões limítrofes (‘confinium’) para garantir a circulação das pessoas. E se fosse ser elevada uma construção, devia ser deixado um espaço livro (‘ambitus’) de dois pés em torno da edificação. g) A natureza jurídica do direito de propriedade é de direito real (ius in re), estabelecendo uma ligação entre o dominus e a coisa pertencida. Além de absoluto, o direito de propriedade é ainda exclusivo (apenas o dominus pode dispor da coisa) e perpétuo (o proprietário é para sempre, enquanto perdurar sua vontade), sendo transmissível por sucessão hereditária. 5) ESPÉCIES DE PROPRIEDADE a) Considerando-se a modalidade jurídica de proteção da propriedade, esta podia ser quiritária, pretoriana, peregrina ou provincial. • Quiritária (dominium ex iure Quiritium) - propriedade antiga característica dos cidadãos romanos tradicionais, sua transmissão era marcada por exagerado formalismo (mancipacio - in iure cessio, para as res mancipi). • Pretoriana - fundada no ‘ius honorarium’, adquirida e transmitida sem grandes formalismos. É chamada propriedade ‘bonitária’, no caso das ‘res mancipi’ transmitidas com vício de forma. Fica como se o direito de propriedade não se tivesse transmitido por completo, o que só se configuraria com o decurso do tempo (usucapião). Até aí, caberia ainda a ação ‘rei vindicatio’ por parte do antigo proprietário. • Peregrina - fundamentada no ‘ius gentium’, permitia aos estrangeiros adquirir propriedades e bens em Roma. Esta espécie desapareceu após o edito de Caracala, que conferiu aos peregrinos o status de cidadãos romanos. • Provincial - são as terras das províncias, originalmente postas sob ‘dominium’ do Estado mas que, na prática, eram ocupadas e cultivadas por particulares. 16 “Jus utendi, fruendi et abutendi, quatenus iuris ratio patitur.” Conforme Agerson Tabosa (p. 228), os dois primeiros (ius utendi, ius fruendi) são atribuídas ao jurisconsulto Paulo; o terceiro (ius abutendi) foi utilizado por Ulpiano. Os três foram compilados pelos glosadores em seus comentários do Digesto. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 8 Posteriormente, esses territórios passaram a ser considerados também terras itálicas e passaram a ser consideradas também propriedades quiritárias. 6) AQUISIÇÃO, PROTEÇÃO E PERDA a) Por direito natural, a forma básica da aquisição da propriedade é por ocupação das ‘res nullius’ (de ninguém) ou ‘res derelictae’ (abandonadas); outra forma é por tradição (traditio) ou entrega da coisa quando é móvel; ou é por acessão (accessio), quando uma coisa se incorpora a outra (ex: avulsão e aluvião de terras, conforme a agregação tenha sido de forma abrupta ou paulatina; plantações e edificações). b) Pelo direito civil clássico, as formas de aquisição são: mancipatio, in iure cessio e usucapio. • Mancipatio - forma solene de transmissão celebrada na presença do alienante e do adquirente e mais dez testemunhas, mediada pelo ‘libripens’ (portador da balança), em cuja balança se pesava um pedaço de bronze simbolizando a compra de algopelo peso. Este era o modo formal adotado para as ‘res mancipi’. Foi abolido na época de Justiniano. • In iure cessio - literalmente, abandono do objeto em juízo. Segue o mesmo ritual da ‘mancipatio’, porém na presença do magistrado (sem as testemunhas e sem a balança). Aplica-se tanto às ‘res mancipi’ quanto às ‘res nec mancipi’ e exige-se que ambas as partes tenham o ‘ius commercii’. Já não existia na época de Justiniano. • Usucapio - aquisição da propriedade através da posse desta por um tempo determinado e sob condições estipuladas no direito (posse justa, boa fé, coisa usucapível). c) A partir de Justiniano, as formas arcaicas foram substituídas por uma só: a tradição (traditio) ou a entrega da coisa. d) Os modos jurídicos de proteção da propriedade consistiam em três ações judiciais específicas: ‘reivindicatio’, ‘actio publiciana’ e ‘actio confessoria/negatoria’: • Reivindicatio - ação judicial movida pelo proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário. Era típica das propriedades quiritárias. • Actio publiciana - ação promovida pelo titular da propriedade pretoriana e da peregrina, com o intuito de beneficiar-se pelo usucapião. Modalidade processual criada pelo pretor Quinto Publicio, donde tem esse nome. • Actio confessoria/negatoria – a primeira ação (confessoria) promovida por quem necessita de uma servidão de outro imóvel e não o consegue amigavelmente; a segunda ação (negatoria) promovida pelo proprietário contra as servidões e gravames que recaem sobre sua propriedade, provando que elas não são mais necessárias.. e) A perda da propriedade ocorre nos seguintes casos: • Alienação - transferência da titularidade do bem, que ocorre na maioria das vezes por venda ou doação; • Renúncia - quando o proprietário desiste de seu direito em benefício de outrem; • Abandono - torna a coisa ‘res derelicta’, a qual se torna ‘res nullius’ com o Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 9 decurso temporal e pode ser ocupada por outrem; • Perecimento da coisa - extinta a coisa, cessa a propriedade. • Expropriação - em decorrência de lei. Quando há indenização, diz-se ‘desapropriação’; quando não há indenização, diz-se ‘confisco’. • Capitis deminutio - ocasionava a perda da propriedade na pena máxima; na pena média, se houvesse mudança de familia; • Morte do proprietário - quando a propriedade se transmite aos herdeiros. 7) PROPRIEDADE SOBRE COISAS ALHEIAS (IURA IN RE ALIENA) a) Os romanos criaram alguns institutos jurídicos, ainda hoje adotados, quando se trata de proteger o interesse coletivo ou supraindividual, gerando direitos sobre coisas alheias. Exemplos disso são as servidões e os direitos reais pretorianos. b) Servidões são direitos reais sobre coisa alheia em benefício de edificação ou pessoas (servidões reais ou pessoais). Por elas, o dono é obrigado a ceder ou deixar de fazer algo em sua propriedade a fim de beneficiar outra pessoa. A servidão requer sempre uma atitude passiva do proprietário. No dizer de Pompônio, não é da natureza da servidão que alguém faça algo, mas que o aceite ou não faça.17 Não pode, porém, haver servidão da servidão, ou seja, o beneficiado pela servidão não pode cedê-la a outrem. Na época dos romanos, as servidões rurais mais comuns eram a passagem de pessoas ou animais e os aquedutos; as urbanas eram o direito de apoiar o muro no do vizinho e de não elevar demasiado a edificação em prejuízo do vizinho (vista, esgoto, tapagem). c) Foi criada uma ação judicial específica para a proteção das servidões (vindicatio servitutis), para reconhecer o direito do dono da propriedade dominante (o que precisa) sobre o serviente (o que cede). d) Por analogia às servidões reais, o uso e o usufruto eram consideradas servidões pessoais, porque também se trata de direitos sobre coisas alheias. O usufrutário tem garantido o ‘ius utendi’ e o ‘ius fruendi’; mas o usuário tem apenas o ‘ius utendi’. e) Os direitos reais pretorianos são aqueles criados pelos pretores ou pela legislação imperial, quais sejam: locação de terras públicas (ius in agro vectigali), enfiteuse, superfície, hipoteca, propriedade bonitária. • Locação de terras públicas - o ocupante de uma propriedade do estado pagava um tributo pela utilização, à moda de aluguel; é como se fosse uma enfiteuse sobre terrenos públicos. • Enfiteuse - vem do verbo grego ‘emphyteuin’ (plantar, cultivar), figura originária da Grécia e adotada pelos romanos. O proprietário cede a sua terra para ser cultivada por outrem, mediante um pagamento anual (foro). O proprietário tem o domínio direto da terra e o enfiteuta, o foreiro tem o domínio útil (ius emphyteuticum). Por ser um direito real, a enfiteuse pode ser transferida a outrem mediante o pagamento de um ‘laudêmio’, que significa uma espécie de concordância ou autorização do titular do domínio direto. • Superfície - direito de alguém fazer edificações sobre terreno alheio e dispor destas por longo tempo, mediante o pagamento de uma taxa anual (solarium). O 17 Servitutum non ea natura est ut aliquid faciat quis... sed ut aliquid patiatur, aut no faciat. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 10 titular do direito sobre a edificação (superficiário) tem os mesmos direitos do proprietário da terra (utendi, fruendi, abutendi). Este direito também é transferível, tal como a enfiteuse. • Hipoteca - é um desmembramento do direito de propriedade. O proprietário partilha com o credor hipotecário, até o resgate da dívida, o direito sobre a coisa que lhe pertence. É um ônus jurídico que recai sobre uma propriedade como garantia para o pagamento de alguma dívida, podendo aquela ser vendida pelo credor, ao final do prazo estipulado, caso o pagamento não se tenha efetuado. • Propriedade bonitária - direito criado pelos pretores para proteção do possuidor de propriedade quiritária não transferida de acordo com os formalismos legais, contra o alienante de má-fé, como forma de garantir ao comprador ter o pleno direito após o decurso temporal (usucapião). UNIDADE VIII – ATOS E FATOS JURÍDICOS - NEGÓCIO JURÍDICO CONCEITUAÇÕES A doutrina vigente atualmente sobre os atos jurídicos é uma elaboração dos juristas modernos, com base em elementos encontrados no Direito Romano. Desde aquela época, já se distinguia entre um fato simples da natureza sem consequências jurídicas de outros, naturais ou humanos, que têm consequências jurídicas. Genericamente, portanto, os fatos jurídicos podem ser voluntários, se dependem da vontade de alguém, ou involuntários, se não dependem da vontade de ninguém. Quanto aos voluntários podem ser lícitos ou ilícitos e são chamamos atos jurídicos, porque são manifestações de vontade. O Prof. Agerson Tabosa prefere usar a expressão negócio jurídico, por ser tecnicamente mais precisa para indicar um ato de vontade que gera uma relação entre dois ou mais sujeitos, pois estas são características do ato jurídico stricto sensu. O Direito Romano antigo, extremamente formalista, dava mais valor à forma dos atos jurídicos do que propriamente ao seu conteúdo. Por isso, os atos jurídicos regidos pelo direito quiritário (jus civile) exigiam formalidades complexas, cuja observância era necessária para a validade do ato e para gerar efeitos jurídicos. O efeito jurídico era consequência automática do uso do formalismo. Era o caso, por exemplo, da compra e venda das ‘res mancipi’, que devia ser celebrada com a cerimonia do ‘aes et libra’ e a pronúncia de certas fórmulas jurídicas quase mágicas, como garantia da validade do negócio. A evolução do Direito Romano foi aos poucos reduzindo as formalidades e valorizando sempre mais a manifestação da vontade, que devia ser clara e inequívoca e mais valiosa do que as formas solenes, as quais entretanto nãoforam totalmente abolidas. Assim, a essência do ato jurídico passou a ser a manifestação da vontade, mais do que a utilização das formalidades celebrativas. No direito antigo, tudo era feito apenas verbalmente, somente no tempo do império surgiram os termos com assinatura. Quando passaram a ser escritos esses atos, foi também reduzido o número de testemunhas necessárias. Em algumas situações, nem era mesmo necessária a manifestação expressa, bastando a manifestação tácita, através de um comportamento significativo. Por exemplo, o Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 11 herdeiro que passava a administrar sua parte da herança, não precisa dizer com palavras que a aceitou. Permitir que um escravo se sentasse à mesa da família era sinal de concessão da sua liberdade. CLASSIFICAÇÃO Quanto à forma, os negócios jurídicos eram simples ou solenes, conforme sejam acompanhados ou não de formalidades cerimoniais. Quanto à formação, os negócios jurídicos eram unilaterais ou bilaterais, dependendo de quando envolviam acordo entre as partes ou quando bastava uma declaração de vontade de uma delas. Quanto às vantagens decorrentes dos negócios jurídicos, estes podiam ser onerosos ou gratuitos, conforme representassem ônus para ambas as partes ou apenas para uma delas. Quanto à produção dos efeitos, os negócios jurídicos podiam ser ‘inter vivos’ ou ‘mortis causa’, conforme produzissem seus efeitos imediatamente ou após a morte do manifestante. ELEMENTOS DO NEGÓCIO JURÍDICO Os elementos essenciais do negócio jurídico são: capacidade de agir, manifestação da vontade, objeto lícito e possível. A capacidade de agir, em Roma, advinha com a puberdade (14 anos para os homens e 12 anos para as mulheres). Assim foi até o surgimento da Lex Laetoria (séc. II a.C.), que criou a regra da curatela para os menores de 25 anos, quando se tratava de praticar um ato que gerava obrigações. A finalidade dessa exigência era proteger a inexperiência dos jovens, embora fossem considerados civilmente capazes. Esses dispositivos valiam tanto para os ‘sui juris’ quanto para os ‘alieni juris’, com a diferença seguinte: os ‘sui juris’ adquiriam as coisas para si mesmos; os ‘alieni juris’, adquiriam as coisas para o paterfamilias ao qual estavam subordinados. Importa recordar que os menores impúbres 'sui juris' deviam estar representados por seus tutores e as mulheres impúberes ou adultas, mesmo sendo ‘sui juris’, estavam sob tutela perpétua, independente do limite de idade. Somente na época de Justiniano, foi reconhecido o direito das mulheres negociarem sozinhas, da mesma forma que os homens. A manifestação da vontade devia representar uma sintonia entre o interior e o exterior do manifestante. Para que não haja discrepância entre a vontade interna e a sua manifestação externa, é necessário que esta esteja livre de qualquer vício, que possa invalidá-la. A manifestação da vontade, de modo geral, era expressa, mas podia também ser tácita, de acordo com a regra do que cala consente. De acordo com o jurisprudente Paulo18, quem cala, embora não confesse, mas também não nega. Ora, se teve a oportunidade de se opor e não o fez, conclui-se que houve consentimento. Às vezes, este consentimento podia ser dado também por um mensageiro, devidamente autorizado. No Direito Romano antigo, os negócios jurídicos regulados pelo jus civile eram válidos ou nulos, não existindo a figura da anulação posterior, dando-se total crédito 18 Digesto, 12, 1, 6, Paulo: Qui tacet, non utique fatetur, sed tamen verum est eum non negare. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 12 ao formalismo. Tal possibilidade foi depois introduzida pelos pretores. Foi o ‘jus honorarium’ que admitiu a possibilidade de anulação dos negócios jurídicos, com base na regra de que ‘aquilo que tem um início vicioso não pode convalidar-se com o decurso do tempo’.19 Os vícios possíveis de invalidamento posterior dos negócios jurídicos são os mesmos aplicáveis aos contratos em geral: erro, dolo e coação. O erro pode ser de fato ou de direito. Exemplos de erros de fato: a) error in negotio (erro no próprio negócio) b) error in persona (erro sobre a identidade da pessoa) c) error in corpore (erro de identidade do objeto) d) error in substantia (erro de conteúdo). A ocorrência comprovada de um deles acarretava a nulidade do ato, se relacionado a um elemento essencial. O erro de direito (error juris), em regra, não podia ser invocado para invalidar um ato, porque a ignorância da lei não desculpa ninguém. Podiam alegá-lo, no entanto, as mulheres, os menores de 25 anos, os soldados e os camponeses. O dolo que tornava inválidos os negócios jurídicos era o que os romanos chamavam ‘dolus malus’, isto é, o engodo proposital da outra parte pelo uso de um artifício, para tirar uma vantagem ilícita.20 O pretor Aquilio Galo (68 a.C.) criou um tipo de ação judicial específica para esses casos, denominada ação aquiliana. Através dela, a parte prejudicada na transação podia alegar a 'exceptio doli' como motivo para anular um negócio jurídico. Este conceito chegou aos direitos modernos com o título de 'boa fé objetiva', que está consagrado no Código de Defesa do Consumidor.21 A coação é a pressão física ou psíquica exercida sobre alguém, levando-o a praticar algo contra a sua vontade. Quando ocorre através de força física, diz-se coação física (vis absoluta); quando ocorre através de ameaça, produzindo medo, diz-se coação moral (vis compulsiva). O pretor Octavius criou um tipo de ação judicial aplicável a esses casos, denominada ‘restitutio in integrum’, pela qual a parte enganadora era obrigada a devolver o objeto do negócio. Ele classificou a coação como um delito e impôs a pena de pagamento do quádruplo do valor do negócio em favor do ofendido. CONTEÚDO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS Existem negócios jurídicos que têm conteúdo específico e outros de conteúdo genérico, podendo aplicar-se a diversas situações. Exemplo do primeiro caso era a mancipatio; exemplo do segundo era a stipulatio. A mancipatio se fazia nos termos da lei, seguindo o formalismo para negociação das coisas mais importantes e de maior valor econômico. A stipulatio era utilizada sempre que a lei não contivesse uma determinação explícita. Num ou noutro casos, o conteúdo de um negócio jurídico devia ser sempre um objeto lícito, determinado e juridicamente possível. Além disso, as partes negociantes podiam incluir outros elementos acessórios, os 19 Quod initio vitiosum est, non potest tractu temporis convalescere. (Digesto, 50.17.29) 20 Cf, Agerson Tabosa, o ‘dolus bonus’, ou seja, a astúcia para enganar o inimigo ou as práticas dos comerciantes para vender mais facilmente as suas mercadorias não tinha implicações jurídicas (p. 158) 21 O art. 4º, III, do Código de Defesa do Consumidor, Lei no 8.078/90, anota que a política nacional das relações de consumo tem como objetivo, entre outros, o respeito pela dignidade do consumidor, a boa-fé e o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 13 quais eram inúmeros e variados. No entanto, a doutrina costuma sintetizá-los em três categorias: condição, termo e modo. Condição é a inclusão no negócio de um evento futuro e incerto, para que só então o negócio jurídico surta seus efeitos. São duas as características da condição: a futuridade - a sua ocorrência no futuro; a falibilidade - a incerteza acerca da sua ocorrência. Havendo certeza da sua ocorrência, mesmo que só a data seja incerta, não existe uma condição, mas um termo. O evento condicional podia ser positivo ou negativo, isto é, a condição podia ser a sua ocorrência ou a sua não-ocorrência. A incerteza podia ainda dependerda vontade de uma das partes ou depender do puro acaso (fenômeno natural). No direito atual, é possível estabelecer uma condição de modo que o efeito vigore até que tal fato ocorra (resolutiva) ou que passe a vigorar somente quando tal fato ocorrer (suspensiva). Os romanos, no entanto, conheciam somente a condição suspensiva. Para os romanos, alguns negócios não admitiam cláusula de condição, sob pena de nulidade. Por ex: a designação de herdeiro, a mancipatio. Não é possível designar um herdeiro só por algum tempo ou só se atender a alguma imposição do designante. Termo é a cláusula que subordina os efeitos de um negócio jurídico a um evento futuro e certo. Difere da condição por ter um data certa para acontecer. Tal como na condição, os efeitos do negócio também podem verificar-se até que o termo ocorra (dies ad quem) ou podem passar a vigorar quando o termo ocorrer (dies a quo). Foi o jurisprudente Paulo quem criou a regra utilizada ainda hoje de não se computar o dia do início do prazo, mas contar o dia final.22 Algumas situações jurídicas eram consideradas permanentes para os romanos, não podendo estar submetidas a termo ou condição, por exemplo, a propriedade, os direitos de servidão, a qualidade de herdeiro. Modo é a cláusula que impõe uma obrigação ao beneficiário do ato, a qual no entanto não influi na sua validade. Não se subordinam os efeitos do ato ao cumprimento da obrigação. Caso, porém, o favorecido negligenciasse na execução do encargo, os pretores introduziram ações judiciais específicas para obrigar ao cumprimento, o que foi aperfeiçoado na época de Justiniano, com uma ação executiva. A REPRESENTAÇÃO ‘AD NEGOTIA’ Os romanos não conheciam o instituto da representação, tal como existe hoje nos direitos modernos. Agir por conta de outrem e em nome de outrem era uma idéia estranha ao pensamento dos romanos. Isto está inscrito nas Instituta de Gaio: ‘a nós não é possível adquirir por meio de pessoa estranha’.23 A representação direta sempre teve resistência no ambiente romano, que no máximo admitiam a representação indireta ou imperfeita, pela qual o representante age em nome próprio, mas no interesse do representado. O negócio jurídico produzia efeitos inicialmente para o representante, que tinha a obrigação de transferi-lo ao representado, com base num contrato celebrado entre eles. Só muito tardiamente, o instituto da representação foi aperfeiçoado no Direito Romano. Por exemplo: um comerciante contrata um navegador para fazer compras para o seu armazém. O navegador faz as compras como se fossem para ele mesmo, negocia 22 Digesto, 28, 1, 5, Paulo: Quod in diem stipulamur, dies a quo non computatur in termino; dies termini computatur in termino. Ver tb. CPC, art. 27. 23 Per extraneam personam nobis adquiri non potest. (Gaio, Institutas, 2, 95) Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 14 diretamente com o vendedor. Ao retornar, renegocia com o autor da encomenda, de acordo com o contrato prévio, uma espécie de revenda combinada. A forma de representar pode basear-se na lei ou na vontade das partes. No primeiro caso, temos a representação dos tutores, dos curadores, dos syndicus de pessoas juridicas, que agem por disposição legal. No segundo caso, decorre de um contrato de mandato. Pode acontecer ainda de alguém espontaneamente se dispor a cuidar dos negócios de um amigo ausente, mesmo sem ter sido por ele encarregado disso. Neste caso, porém, não se trata de representação, mas de gestão de negócios (negotiorum gestio). Não nos alongamos muito neste tema porque, como se pode verificar, o direito atual mantém quase completamente as mesmas regras e tudo isso é estudado na parte do direito das obrigações e contratos. BIBLIOGRAFIA: Alves, José Carlos Moreira, Direito Romano, 13a. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003. Cretella Jr, José, Curso de Direito Romano, 30a ed. Rio de Janeiro, Forense, 2007. Filardi Luiz, Antônio, Curso de Direito Romano, 3a ed., São Paulo, Atlas, 1999. Marky, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano, 8a ed., São Paulo, Saraiva, 1995. Pessoa, Eduardo, História do Direito Romano, São Paulo, Habeas Editora, 2001 Riccobono, Salvatore, Roma, Madre de las Leyes, Buenos Aires, Depalma Ediciones, 1975. Tabosa, Agerson. Direito Romano. 2a. ed. Fortaleza, Editora FA7, 2003. QUESTIONÁRIO DE DE APROFUNDAMENTO E REVISÃO 1)Explique o conceito romano de 'res' (coisa). 2)Explique a divisão entre 'res in patrimonio' (in commercio) e 'res extra patrimonium' (extra commercium). 3)Que são 'res mancipi' e 'res nec mancipi'? 4)Como se dividem as 'res extra patrimonium'? 5)O que é posse e quais os elementos constitutivos desta? 6)Faça a distinção entre posse civil e posse pelos interditos. 7)O que são os interditos e a que se destinavam? 8)Explique os interditos 'utrubi' e 'uti possidetis'. 9)Quais são os vícios que incidem na posse e que consequências jurídicas isso acarreta? 10)O conceito de propriedade estava no centro do Direito Romano. O que isto significa? 11)De onde se origina o caráter absoluto e individualista do conceito de propriedade? 12)Quais os direitos básicos que expressam o pleno poder sobre a coisa? 13)De que modo a Lei das XII Tábuas impôs limites ao direito de propriedade? 14)Faça a relação entre as espécies de propriedade e o tipo de direito que as ampara. 15)Faça a distinção entre a 'mancipatio' e a 'usucapio', como formas de aquisição da propriedade. 16)Quais as ações judiciais que protegiam a propriedade? 17)Como se dava a perda da propriedade pela 'capitis deminutio'? 18)O que eram as servidões e a que se destinavam? 19)Explique os institutos da enfiteuse e da superfície no Direito Romano. Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 15 20)Quais os requisitos exigidos das partes contratantes? 21)Que vícios podem incidir sobre os contratos e invalidá-los? 22)Qual a relação entre a matéria e a forma dos atos jurídicos, no Direito Romano antigo? 23)O que eram 'dolus bonus' e 'dolus malus' e de que modo eles influíam nos atos jurídicos? 24)Como esses institutos jurídicos chegaram aos direitos modernos? 25)De que modo surgiu a regra da anulabilidade dos atos jurídicos em Roma? 26)Comente sobre as ações criadas pelos pretores Aquilio e Octavius. 27)Qual a diferença entre condição e termos nos negócios jurídicos? 28)Como era o instituto da representação, no Direito Romano? Fortaleza, setembro de 2013. Antonio Carlos Machado Direito Romano - Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado (2013.2) – pág. 15 UNIVERSIDADE DE FORTALEZA DISCIPLINA: DIREITO ROMANO Apontamentos do Prof. Antonio Carlos Machado
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