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PATRIMÔNIO: ATUALIZANDO O DEBATE Os organizadores deste livro, na verdade, aproveitaram-se de uma rara oportunidade editorial para trazer à baila questões referentes às políticas e critérios de salvaguarda e restauração de bens culturais, sobretudo arquitetônicos, visando debater idéias e, quem sabe, chegar a consensos. Rara ocasião porque é extremamente difícil que companhias editoras de livros se aventurem em publicar obras versando sobre esse assunto de pouco interesse popular e mais difícil ainda que entidades oficiais venham a discutir em público procedimentos de seu mister, como se estivessem a se justificar. Enfim, não desperdiçaram esta ocasião em que a DERSA prontificou-se a publicar os resultados das pesquisas arqueológicas efetuadas sob a supervisão do IPHAN às margens de segmento em obras do Rodoanel Mário Covas. Carlos Alberto Cerqueira Lemos PATRIM Ô N IO : A T U A L IZ A N D O O D E B A T E PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA Ministério da Cultura 9a Superintendência Regional do IPHAN São Paulo GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Secretaria dos Transportes DERSA Desenvolvimento Rodoviário S.A. ISBN 85-99542-02-8 Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo Organização: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo 9 7 8 8 5 9 9 5 4 2 0 2 6 IPHAN IPH A N 2006 PATRIMÔNIO: ATUALIZANDO O DEBATE IPHAN 2006 Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Cultura Gilberto Passos Gil Moreira Presidência do IPHAN Luiz Fernando de Almeida Chefia de Gabinete Aloysio Guapindaia Procuradoria Jurídica Federal Tereza Beatriz da Rosa Miguel Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização Dalmo Vieira Filho Departamento do Patrimônio Imaterial Márcia Genésia de Sant’Anna Departamento de Planejamento e Administração Maria Emília Nascimento Santos Departamento de Museus e Centros Culturais José do Nascimento Júnior Coordenação Geral de Promoção do Patrimônio Cultural João Tadeu Gonçalves Coordenação Geral de Pesquisa, Documentação e Referência Lia Motta Gerência do Patrimônio Arqueológico Rogério José Dias 9ª Superintendência Regional - São Paulo Victor Hugo Mori Divisão Técnica Mauro Artur David Bondi Divisão Administrativa Regina Celi Moreira Setor de Arqueologia Marise Campos de Souza Projeto gráfico: Vera Lucia Mariotti Editoração eletrônica: CONAP Consultoria Aplicada Andrade, Antonio Luiz Dias; Bastos, Rossano Lopes; Calil, Carlos Augusto Machado; Gallo, Haroldo; Robrahn-González, Érika Marion; Rodrigues, José Eduardo Ramos; Lemos, Carlos Alberto Cerqueira; Meneses, Ulpiano Toledo Bezerra de; Morais, José Luiz de; Mori, Victor Hugo; Souza, Marise Campos de; Zanettini, Paulo Eduardo. Patrimônio: atualizando o debate Autoria: Antonio Luiz Dias de Andrade, Rossano Lopes Bastos, Carlos Augusto M. Calil, Haroldo Gallo, Érika M. Robrahn-González, José Eduardo R. Rodrigues, Carlos Alberto C. Lemos, Ulpiano T. Bezerra de Meneses, José Luiz de Morais, Victor Hugo Mori, Marise Campos de Souza, Paulo E. Zanettini - Organização: Victor Hugo Mori, Marise Campos de Souza, Rossano Lopes Bastos, Haroldo Gallo - São Paulo : 9a SR/IPHAN, 2006. 240 p. : il. ISBN: 85-99542-02-8 1. Preservação do Patrimôno Cultural e Ambiental 2. Arqueologia 3. Restauração 4. História Capa: Engenho São Jorge dos Erasmos, Santos - SP Fotografia: Victor Mori Concepção artística: Mauro Artur David Bondi Páginas 1 e 2: Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto - MG - Foto Victor Mori Página 3: Estação da Luz, São Paulo - SP e Fazenda do Pinhal, São Carlos - SP - Fotos Victor Mori PATRIMÔNIO : ATUALIZANDO O DEBATE ORGANIZAÇÃO: Victor Hugo Mori Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Haroldo Gallo TEXTOS: Carlos Alberto Cerqueira Lemos Antonio Luiz Dias de Andrade Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses Carlos Augusto Machado Calil Victor Hugo Mori Haroldo Gallo Marise Campos de Souza Rossano Lopes Bastos Erika Marion Robrahn-González José Luiz de Morais Paulo Eduardo Zanettini José Eduardo Ramos Rodrigues Largo do Pelourinho, Salvador- BA Foto Victor Mori SUMÁRIO Prefácio ................................................................... 7 Participação ........................................................... 9 Apresentação Carlos Alberto Cerqueira Lemos .............. 11 O IPHAN e o sofá de Mário de Andrade Antonio Luiz Dias de Andrade ................... 19 Aldeia de Carapicuíba Antonio Luiz Dias de Andrade ................... 24 A cidade como bem cultural — Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses ......... 33 Sob o signo do Aleijadinho — Blaise Cendrars precursor do Patrimônio Histórico Carlos Augusto Machado Calil ................. 77 Arqueologia, arquitetura e cidade: a preservação entre a identidade e a autenticidade Haroldo Gallo ............................................. 91 Arqueologia e Restauração: anotações para debate Victor Hugo Mori ..................................... 117 Uma visão da abrangência da gestão patrimonial Marise Campos de Souza ....................... 139 A arqueologia pública no Brasil: novos tempos Rossano Lopes Bastos ............................ 155 O programa arqueológico do Rodoanel Metropolitano de São Paulo, trecho oeste: ciência, preservação e sustentabilidade social Erika Marion Robrahn-González .............. 169 Reflexões acerca da arqueologia preventiva José Luiz de Morais ................................ 191 Arqueólogos de volta à metrópole Paulo Eduardo Zanettini ........................... 221 Da Proteção Jurídica ao Patrimônio Cultural Arqueológico José Eduardo Ramos Rodrigues ............. 233 Capela de São João Batista, Carapicuíba- SP Foto Victor Mori PREFÁCIO O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional há setenta anos é órgão formulador e executor da política de preservação do patrimônio brasileiro. A necessária inclusão do tema Patrimônio Cultural nas agendas prioritárias do país só se viabilizará se, por pressuposto, os processos e procedimentos de identificação, documentação, interpretação, salvaguarda e promoção que se acumulam como conhecimento, prática e reflexão na instituição, forem socialmente compartilhados. Com certeza, o debate e os livros, como instrumentos de explicitação de idéias, têm um lugar importante dentro do desafio permanente que se coloca para uma instituição que se move e que trabalha no campo dos valores. Luiz Fernando de Almeida Presidente do IPHAN AGRADECIMENTOS Sinceros agradecimentos a Ana Cristina Bandeira Lins, principal responsável pela publicação deste livro PARTICIPAÇÃO A legislação brasileira desde 1981 passou a contar com a Política Nacional do Meio Ambiente (lei Federal n.º 6.938/81). A partir de então uma séria de normas relativas à elaboração eaprovação de estudos de impacto ambiental (EIAs) e relatórios de impacto ambiental (RIMAs) foram emitidas regulando o licenciamento de empreendimentos como os relacionados à infra-estrutura de transportes. A Resolução CONAMA n.º 001, de 23 de janeiro de 1986, esclareceu e definiu “impacto ambiental” e considerou a necessidade de diagnóstico ambiental, antes da implantação de um projeto, considerando, entre outros, o meio sócio-econômico “destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade...”. A constituição Federal de 1988 reafirmou e consolidou todos os princípios relativos à matéria, até então adotados. Neste contexto, este livro é resultado da Compensação Ambiental do Trecho Oeste do Rodoanel Mario Covas, rodovia perimetral circundando a Região Metropolitana de São Paulo onde se desenhou, nos primórdios da sua fundação, o circuito caipira que nos mostra uma parte da história da colonização e o desenvolvimento não só do nosso Estado, mas também do Brasil através das Bandeiras que tiveram seu ponto de origem em São Paulo. Com apoio do então Secretário dos Transportes - Dario Rais Lopes - e seu secretário adjunto - Paulo Tromboni Nascimento, a DERSA nesse sentido não se furtou a participar dos trabalhos de arqueologia na região, tanto que em seu programa de trabalho incluiu o restauro de sítios arqueológicos como os sítios do Mandu, Padre Inácio e Santo Antônio, e a futura construção de um museu de arqueologia no município de Carapicuíba, que irá abrigar os achados de todo o Rodoanel, preservando a arqueologia e a cultura de nosso País. Secretaria de Estado dos Transportes Mauro Guilherme Jardim Arce DERSA Desenvolvimento Rodoviário S.A. Thomáz de Aquino Nogueira Neto - Presidente José Carlos Karabolad - Diretor de Engenharia José Fernando Bruno - Assessoria de Meio Ambiente APRESENTAÇÃO Carlos Alberto Cerqueira Lemos Professor Titular e Livre-Docente da FAUUSP 12 IPHAN Carlos Alberto Cerqueira Lemos É arquiteto, Professor Titular e Livre-Docente da FAU-USP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e membro do ICOMOS – International Council on Monuments and Sites. Chefiou o escritório de Oscar Niemeyer na década de 1950 em São Paulo, foi Diretor e Conselheiro do CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, representante do IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil no Conselho Consultivo do IPHAN. Possui inúmeros trabalhos publicados no Brasil e no exterior como: Cozinhas, etc. (Perspectiva, 1978), Arquitetura Brasileira (Melhoramentos, 1979), O que é Patrimônio Histórico (Brasiliense, 1985), Dicionário da Arquitetura Brasileira, com Eduardo Corona (EDART, 1972), Alvenaria Burguesa (Nobel, 1985), Casa Paulista (Edusp, 1999), etc. Fachada da Estação da Luz em São Paulo Foto Victor Mori 13Patrimônio: Atualizando o Debate APRESENTAÇÃO Carlos Alberto Cerqueira Lemos Os organizadores deste livro, na verdade, aproveitaram-se de uma rara oportunidade editorial para trazer à baila questões referentes às políticas e critérios de salvaguarda e restauração de bens culturais, sobretudo arquitetônicos, visando debater idéias e, quem sabe, chegar a consensos. Rara ocasião porque é extremamente difícil que companhias editoras de livros se aventurem em publicar obras versando sobre esse assunto de pouco interesse popular e mais difícil ainda que entidades oficiais venham a discutir em público procedimentos de seu mister, como se estivessem a se justificar. Enfim, não desperdiçaram esta ocasião em que a DERSA prontificou-se a publicar os resultados das pesquisas arqueológicas efetuadas sob a supervisão do IPHAN às margens de segmento em obras do Rodoanel Mário Covas. Assim, aqui estão publicados artigos e ensaios ligados a dois enfoques distintos relacionados à questão única, aquela do zelo de nossa cultura material. Parte dos textos fala do resgate de vestígios de eras que há muito se foram e a outra parte preocupa-se com o artefato visível à volta de todos nós e esse cuidado está ligado aos vários modos de encará-lo. Evidentemente, são raras as disputas intelectuais relativas aos procedimentos cabíveis quanto aos artefatos, ou seus restos, descobertos nas camadas subjacentes do solo. O arqueólogo procura, acha, analisa, classifica, guarda e, se for o caso, expõe. O técnico preservacionista, no entanto, está permanentemente cercado de opiniões, até conflitantes, relativas a critérios de conservação, a comportamentos perante monumentos arquitetônicos e a respeito das cidades. Muita filosofia, muita teoria. Daí a diferença entre os enfoques arqueológico e o preservacionista do patrimônio sobre a terra. Daí esta apresentação estar mais voltada à segunda questão, fazendo reflexões sobre a variedade de pensamentos e procedimentos em face do Patrimônio Cultural Arquitetônico aqui expostos academicamente pelos ilustres colegas e amigos de sempre e nisso reside outra ocasião rara: um empírico empedernido fazendo apreciações sem constrangimentos de trabalhos teóricos de alto nível contendo até raciocínios e abstrações totalmente alheias aos seus pés no chão. O caro leitor sabe que as atuações dos órgãos responsáveis pelo tombamento, conservação e restauração de bens arquitetônicos significativos são regidas pelas determinações emanadas das chamadas “Cartas Patrimoniais”, documentos aceitos pelos vários governos participantes da UNESCO. A mais famosa e atuante delas é a Carta de Veneza, redigida em 1964 e, depois, em importância, vem o documento resultante da Conferência de Nara, de novembro de 1994. Os técnicos vivem, então, sempre às voltas com as resoluções desses papéis de orientação de procedimentos. Ocorre que também, prioritariamente, estão a vigir as leis do país, aquelas próprias da criação das entidades ditas “zeladoras” de nosso Patrimônio Cultural. As leis e decretos dificilmente são renovados e suas datas de vigência, no tempo, às vezes, antecedem ou, então, se intercalam com as épocas dos encontros internacionais de técnicos encarregados de criar novas normas reguladoras da conduta de todos frente ao resguardo de nosso acervo da cultura material, notadamente o antigo, também chamado de histórico. E, ainda, temos correndo por fora, os filósofos, os pensadores da estética, os historiadores e críticos, enfim, gurus dos tratadistas paroquiais que chegam a tumultuar as discussões ao redor de obras paralisadas enquanto não se chegue a uma conclusão de aceitação unânime – o que raramente acontece. Mas, no frigir dos ovos, as leis e decretos governamentais são o que ainda têm alguma prevalência, como o decreto-lei nº 25, de 1937, promulgado por Getúlio Vargas, 27 anos antes da redação da Carta de Veneza. Todos sabemos que esse decreto-lei levado à assinatura do ditador estado- novista por Gustavo Capanema tivera, pelas mãos de Rodrigo Mello Franco de Andrade, uma redação inspirada num célebre projeto de Mário de Andrade. O que poucos sabem, no entanto, é que o autor de Macunaíma fora antecedido pelo poeta suíço Blaise Cendrars. Esse é o tema do texto aqui reproduzido de autoria do professor da ECA Carlos Augusto Calil. O célebre poeta modernista, em maio de 1924, redigiu um projeto que de modo evidente influenciou Mário e nele, espantosamente, arrola não só a produção cultural tangível (era obcecado por Aleijadinho e pelo barroco mineiro) como também toda a realização imaterial como a música, canções e danças populares; como a arte culinária e o saber fazer e o mundo espiritual dos índios. 14 IPHAN Sob o ponto de vista das atribuições históricas, esse texto do professor Calil é muito importante porque nos remete aos mecenas cafezistas e modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922 realmente preocupados com nossa arte do passado. O ensaio carro-chefe desta publicaçãoé sem dúvida o de autoria do professor Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, não só historiador e antropólogo de renome como, também, arqueólogo emérito, com prolongados trabalhos de escavações na Grécia, a experiência paradigmática de todos os pesquisadores do subsolo. Como diz o autor, as questões levantadas pressupõem debates dada a raridade das discussões considerando a cidade como um “fato social”. Há de se compreender os permanentes conflitos entre “preservação” e “ordenação urbana” e nesse embate inevitavelmente surge o tema das “áreas envoltórias”. Modestamente, não deseja chegar a proposições concretas para os problemas, mas identificá-los e, então, definir premissas para ensejar reflexões. No âmbito das cidades, imagina três dimensões que agem solidariamente: a dimensão do artefato, já que a urbanização é um produto próprio da sociedade; a dimensão do campo de forças, isto é, onde os homens se envolvem uns com os outros e em cujo espaço se desenvolvem tensões, conflitos, energias em confronto na economia, na política, na vida social, nos processos culturais, etc. e, finalmente, a dimensão das significações. Como deve ser, cremos nós, Ulpiano, ao teorizar, não pensa no caráter ou na ética comportamental dos cidadãos; as cidades todas seriam habitadas por anjos, cada qual no seu lugar e as tensões e conflitos entre eles estariam sempre voltadas para o bem, para o melhor, para a cordialidade dos homens justos. Acontece, porém, que o Capeta também paira sobre a paisagem urbana; está sempre a entrar e a sair pelas janelas, mesmo pelas trancadas, espalhando a vaidade, o egoísmo, a mentira, a corrupção, a politiquice e mais desonestidades mil, que marcam indelevelmente a cidade, qualquer cidade, sobretudo São Paulo. Em nossa Capital, nunca os pretensos planos diretores foram levados a sério. Bastou a saída de Prestes Maia da Prefeitura, por exemplo, para o seu plano histórico de ordenação urbana ser solapado, principalmente quanto aos gabaritos dos edifícios. É enorme a quantidade de loteamentos clandestinos invadindo áreas de mananciais, reservas florestais, terrenos públicos. Os zoneamentos nunca foram obedecidos; ruas e ruas oficialmente residenciais estão acolhendo lojas, como a Rua Gabriel Monteiro da Silva, que chegou ultimamente a não ter em seu percurso uma residência sequer e nunca houve alguém que realmente obstaculizasse o processo de uso indevido. A cidade cresce segundo as conveniências dos bolsos de cada um. Não há em São Paulo o costume das construções acabadas serem exatamente como foram projetadas e aprovadas pela Prefeitura. Prevarica-se a qualquer hora e em qualquer lugar e todos sempre estão à espera da anistia que sempre vem; antigamente falava-se em “conservação” e seja qual for o nome, o certo é que todos os pecados serão perdoados pelos anjos municipais ávidos pelo crescimento dos impostos provocado pelo perdão. É claro que as reflexões de Ulpiano não irão resolver esse problema, mas acreditamos que leis mais severas vindas de pertinentes alterações na Constituição ao lado de campanhas educacionais poderão, com o tempo, dar mais esperanças aos planejadores de boa vontade que, por sinal, ainda existem. A questão das áreas envoltórias de monumentos, tão bem conduzida pelo professor Ulpiano em seu texto também nos leva à triste realidade do desentendimento entre IPHAN, CONDEPHAAT e o DPH da Prefeitura. Fomos testemunhas da criação daquele órgão estadual e sempre interpelamos dona Lúcia Falkenberg sobre os celebrados 300 metros de raio para o círculo à volta do monumento e suas respostas infalivelmente mencionavam o “Vinicius (de Campos) que achou que a lei do IPHAN, nesse caso, era muito vaga, não definindo bem o que fosse área envoltória”. Aquele fatídico número, aperfeiçoador da lei federal, hoje inferniza a vida dos paulistanos donos de imóveis próximos a monumentos, sobretudo aqueles que dependem de aprovação do DPH municipal, pois lá aquela vizinhança nunca é necessariamente compromissada com as visuais que garantam o correto enquadramento do monumento na paisagem; discutem, aprovam e desaprovam projetos de obras em locais donde nunca o bem tombado poderia ser avistado. Como afirma o professor Ulpiano, as atuações preservacionistas necessariamente deveriam andar de mãos dadas com as decisões das entidades de planejamento, o que não ocorre. Na prática cotidiana, pensamos nós, além das elucubrações de planos em geral, o IPHAN, o CONDEPHAAT e o CONPRESP deveriam por lei, ao mesmo tempo em que definem suas resoluções de tombamento, elaborar projetos diretores das obras que possam comprometer a adequação paisagística e a presença soberba do monumento; isso porque tais providências de modo 15Patrimônio: Atualizando o Debate necessário sempre precisaram e ainda necessitam ter a aprovação da Câmara Municipal, pois só a vereança é que pode regulamentar legalmente o modus faciendi das construções em geral. Nesse sentido, tivemos tristes experiências no CONDEPHAAT, que, certa vez, encomendou a três arquitetos planejadores projetos das áreas envoltórias das igrejas matrizes de Itanhaém e de São Sebastião, além do ajustamento das visuais em relação ao prédio do Museu Paulista, no Ipiranga. Planos solenemente ignorados pelas respectivas prefeituras porque nem contactadas a respeito foram. Se naquelas encomendas o CONDEPHAAT chegou a mostrar boa vontade, não foi além disso e não procurou a legislação apropriada e o pior, com a mudança de chefias e presidências passou até a tolerar infrações às regras, sobretudo quanto a gabaritos de edifícios vizinhos. Nisso tudo, podemos vislumbrar uma certa dose de displicência ou de comodismo. Embora a lei mande, nunca os tombamentos foram anotados à margem dos registros dos imóveis nos livros dos cartórios. O mesmo comportamento desleixado existe em relação às áreas envoltórias, inclusive na Prefeitura que, afinal, tem a sua Câmara Municipal para ajudá-la em seus problemas de resguardo urbano dos monumentos de todos nós. Neste livro, o artigo de Antônio Luís Dias de Andrade, o nosso distante e imprescindível amigo Janjão, e mais os ensaios dos arquitetos Victor Hugo Mori e Haroldo Gallo, respectivamente “Arqueologia e Restauração: anotações para debate” e “Arqueologia, arquitetura e cidade: as preservações entre identidade e autenticidade” tratam de temas instigantes e permanentes nas dúvidas cotidianas ocorridas nas atuações de recuperação do Patrimônio Arquitetônico. Debates sobre os temas ali expostos sempre irão acontecer porque os teóricos pretendem normas, códigos, consensos e conceitos abrangentes para regulamentar procedimentos tais como enumera Victor Hugo : “reforma, reconstrução, reconversão, reciclagem, reuso, complementação ou conclusão, modernização ou reatualização, conservação, etc.” E lembramos, também da palavra restauração, que no português coloquial pode assumir significados correlatos, todos é claro, pressupondo obras, cuja validade é que pode acirrar os ânimos, conforme a posição conceitual dos críticos fiscalizadores do trabalho alheio. Daí, os tais debates inevitáveis na maioria das ocasiões. É extremamente interessante o fato da expressão programa de necessidades não ter sido mencionada pelos ensaístas deste livro quando tratam dos edifícios históricos, isto é, dos monumentos tombados prestes a sofrer intervenções. Esse é um assunto muito importante. Toda construção é imaginada para atender a uma demanda ou necessidade de espaços destinados a funções específicas. Assim sendo, ao contrário dos líquidos que assumem as formas dos respectivos vasilhames, o programa, seja qual for a técnica construtiva, é que determina o partido arquitetônico; o conteúdo sugere a forma do continente. Acontece, porém, que os programas necessariamente variam com o correr dos anos, com o progresso e as construções são imutáveis na sua rigidez da pedra, do tijolo, dataipa de pilão e do concreto armado. Esse é o desafio aos arquitetos: imaginar edifícios que satisfaçam a seus usuários originais o maior tempo possível sem adaptações ou aumentos de área disponível. Só um parêntese: entre nós, apenas um programa praticamente permaneceu inalterável, o referente às igrejas católicas, pois a liturgia do culto religioso é sempre a mesma desde Anchieta. O fato da missa agora ser rezada com o celebrante de frente para os fiéis, dando as costas para o retábulo é irrelevante sob o ponto de vista arquitetônico e por isso é que os únicos edifícios íntegros de taipa de pilão colonial entre nós são as igrejas; não se alteraram inclusive porque, proporcionalmente, o número de fiéis não cresceu na metrópole. Voltando ao caso das incompatibilidades entre conteúdo e continente, na hipótese de aumento das solicitações do programa de necessidades, constatamos a inexorabilidade de intervenções ajustadoras prevendo acréscimos visíveis na volumetria original da construção ou, então, deduzimos que a edificação seja abandonada para ser reaproveitada por novo destino funcional. Esse abandono também se dá quando o programa gerador do imóvel desaparece, como é o caso freqüente das antigas estações de estrada de ferro já sem seus trilhos, que foram levados pelos diligentes caminhões rodoviários. E, finalmente há a hipótese do programa minguar de tal maneira que os espaços ociosos tornam- se um estorvo e antieconômicos, como, por exemplo, o caso de um grande e rico palacete de fazendeiro de café se tornar incômodo ao velho casal depois da debandada de todos os filhos e é, então vendido ao governo para ali ser instalada uma repartição pública. 16 IPHAN Nestas reflexões, não cogitamos a possibilidade de uma construção abandonada, de um invólucro vazio, à permanente espera de agasalhamento de um programa qualquer compatível com seus espaços disponíveis porque todas as cartas e o bom senso sabem que a falta de uso necessariamente leva o imóvel à degradação ou a periódicas despesas destinadas à sua conservação, como está procedendo o IPHAN, por exemplo, com as casas bandeiristas sem uso de Cotia e São Roque e com as construções da fortaleza de Anhatomirim em Santa Catarina. Como vimos, ao longo do tempo, conclui-se que são inevitáveis obras em bens tombados, tanto nos conservados como nos em mau estado. Tais trabalhos é que sempre geram polêmicas quanto à natureza das intervenções, quanto aos novos programas a serem introduzidos no monumento vazio ou semivazio. Nessa hora, são chamados, lembrados e invocados todos os pensadores, gurus dos técnicos e críticos e, como são relativamente poucos, talvez uns dez, quase todos italianos na moda, muitas vezes são então recorridos por todos os lados da celeuma; servem tanto para o bem como para o mal e, no final das contas, todos concluem que cada caso é um caso. Já o velho e simpático especialista em conservação de monumentos, o italiano Ambrogio Annoni, como Victor Hugo relata, dizia que “cada monumento ditaria o seu critério” de intervenção. Dizia ele: “il caso per caso”. As especificidades de cada monumento, na verdade, sempre estão a sugerir e aceitar esse viés de exceção baseado nas reais e peculiares exigências daquela intervenção, como nos lembra Haroldo Gallo. Nos variados projetos e principalmente nos canteiros de obras, “na prática, a teoria é outra”, como certa vez escreveu o economista Joelmir Beting. Algumas palavras são repetidas à exaustão neste livro e justamente por isso merecem comentários à guisa de explicação ao leitor pouco afeito a conversas em torno de trabalhos de restauração de bens arquitetônicos. Lembramo-nos de três: originalidade, autenticidade e identidade. Suas acepções são muito próximas. A originalidade se refere às primeiras soluções ou manifestações envolvendo a construção do monumento tombado; tanto pode se referir ao sistema construtivo original, como ao programa de necessidades, como, também, à intenção plástica ou estilo manifestado. A autenticidade, a nosso ver, tem dois sentidos, tanto a palavra pode ser aplicada para qualificar o imóvel, como pode estar ligada à legitimidade da substância, do material ou do sistema de construção primeiramente empregados. Na primeira acepção, a autenticidade está ligada à peculiaridade do partido arquitetônico decorrente das condições intrínsecas do programa de necessidades. Exemplificando: quando aquele citado palacete encomendado a Ramos de Azevedo pelo fazendeiro rico e projetado sob medida para atender a todas as demandas e circunstâncias familiares se transformou em repartição pública, teve seu programa original substituído, e assim perdeu sua autenticidade. Nele, desapareceram as relações necessárias originais que mantinham entre si os espaços compartimentados segundo as condições familiares. O segundo significado que pode ter a palavra autenticidade, como dissemos, está voltado para a natureza da substância ou do material de construção do monumento. Todos conhecemos a redação emanada da Conferência de Nara que acabou permitindo a reposição periódica total do madeiramento de certos templos japoneses. Ali houve a substituição de peças por outras de mesma substância sem que houvesse ofensa à autenticidade programática e, de mais a mais, naquele momento, imposições de ordem cultural estavam sendo atendidas e é justamente o que interessa. No entanto, uma nova construção usando técnicas e materiais modernos numa reconstrução copiando fielmente um monumento desaparecido não passa de mera falsificação, sobretudo se o programa pensado for diferente daquele da obra original. Acontece que muita gente acha essa falsificação legal, conforme a intenção do empreendimento e não vê nada de mais, por exemplo, em levantar um simulacro mal reproduzido do colégio jesuítico e de sua igreja no local onde os padres fundaram o seu estabelecimento, em 1554, em Piratininga. Ali se misturaram firmação religiosa, política e saudosismo piegas. Bem que o CONDEPHAAT lutou contra a idéia, restando de sua resistência apenas uma publicação comandada pelo professor Ulpiano Bezerra de Meneses. No julgamento desse fingimento arquitetônico muitos levam a sério à data da contrafação, se anterior ou posterior à Carta de Veneza e daí, ninguém condenar enfaticamente a reconstrução do palácio de Pedro, o Grande, que hoje abriga o museu de arte dito do Ermitage. Todos aceitam a reconstrução fidedigna do casario medieval do centro de Varsóvia, destruído por bombardeios da 2ª Guerra Mundial como no exemplo russo, pois os brios da nacionalidade falaram mais alto exigindo a volta da paisagem de sempre e de todos. Caso curioso ocorreu em Carapicuíba, a aldeia missioneira tombada pelo IPHAN na década dos anos 40, percucientemente analisada pelo Janjão neste livro. Ali, Luís Saia reconstruiu certa moradia feita de taipa de mão substituindo o barro da vedação dos vãos estruturais 17Patrimônio: Atualizando o Debate por argamassa de outra receita. Trinta e tantos anos depois essa mesma casa foi novamente refeita pelo competente restaurador Antonio Luiz Sarasá. Finalmente, há de se falar da palavra identidade, também muito freqüente nesta tão oportuna publicação. Ela deve ser entendida em seu sentido aristotélico, que se refere à mesma essência que caracteriza um conjunto de coisas. No caso do nosso palacete rico de Campos Elíseos, quando ele se transformou em repartição pública, também deixou de elencar o grupo de residências nobres dos cafezistas paulistanos. Tudo isso, entretanto, não impede que ele seja tombado como documento pertencente à arquitetura eclética trazida pelo ouro verde a São Paulo no último quartel do século XIX. A nosso ver, essas três palavras constituem um assunto menor que, às vezes, pode ser lembrado para embasar uma ou outra reflexão envolvendo o ato de tombar, mas tais atributos não concorrem diretamente nas atuaçõesde preservação da construção. Aliás, as coisas antigas hoje tombadas são aquelas que sobraram, na maioria das ocasiões, à nossa revelia; aquelas provenientes, principalmente, dos acervos da classe dominante ou da Igreja. Quase nada do povo. Enfim, de modo independente de suas identidades ou autenticidades, os bens participantes do nosso patrimônio têm que sofrer intervenção de natureza variada. Na verdade, o que nos interessou comentar nesta apresentação foi justamente o comportamento das instituições e dos técnicos em face dos trabalhos de restauração, de reconversão ou reuso de edifícios ditos históricos ou de grande significado arquitetônico, onde sempre esteve envolvida uma certa dose de subjetividade que, quase sempre, é a deflagradora das celeumas entre os referidos especialistas. A nosso ver, nenhum monumento é intocável, destinado somente à sua conformação original. O tombamento, todo mundo concorda, não é um processo de mumificação, os monumentos têm naturalmente a capacidade de satisfazer a programas quais forem, conforme seus espaços disponíveis, quais forem as circunstâncias ou quais forem as conveniências. Se a própria Carta de Veneza fala que, nas restaurações, as intervenções ocorridas no passado devem permanecer como testemunhos de sucessivas expressões culturais, ela admite a liceidade de acréscimos ao longo do tempo e em lugar algum ela proíbe interferências legítimas posteriores ao tombamento da construção histórica e bela. Devemos respeitar o monumento por tudo o que ele tem de significativo ou peculiar, seu partido arquitetônico, sua volumetria, toda a sua decoração aderente, por dentro e por fora, e seus espaços internos fundamentais decorrentes das determinações básicas do programa original e inclusive sua ambientação. Assim, num teatro tombado, o nosso municipal, por exemplo, todo o seu interior grandiloqüente de acesso ao público deve ser conservado e cuidado, ficando claro, no entanto, que toda a modernidade e progresso não poderão ficar excluídos do trato ao urdimento da cena, aos camarins, ao condicionamento do ar, etc. No caso da Estação da Luz, onde recentemente houve discussões acaloradas entre técnicos do IPHAN e os fiscais patrulhadores de sempre do comportamento alheio, o motivo da briga era a demolição de dezenas de paredes divisórias formadoras de um renque de escritórios da administração da velha SPR e sucessores, hoje desativada. Tal compartimentação era normal a qualquer prédio de escritórios da cidade, não era específica da função ferroviária. Por sorte o bom senso vigorou, pois a bela estação ao lado do Jardim da Luz, embora adaptada, permanece intocada e íntegra, com suas cores originais e sua sobranceira torre está a dizer: não me amolem! Raramente, surge o caso de um tombamento de bem arquitetônico incompleto ou inacabado como esse das construções do Parque Ibirapuera. Cremos que todos os leitores já sabem que o programa dos festejos do Quarto Centenário de São Paulo e o respectivo projeto da equipe comandada por Oscar Niemeyer (o verdadeiro criador) previam ali uma entrada monumental ao lado de um grande auditório, infelizmente não construído por falta de dinheiro. O referido conjunto arquitetônico do parque foi tombado assim, sem ter sido terminado. Cinqüenta anos depois, a própria Prefeitura, uma das tombadoras, permite seja construída nova casa de espetáculos, pelo mesmo arquiteto, no mesmo local antes imaginado. Foi um consentimento correto, o bem tombado completou-se parcialmente, ficando ainda por fazer a plataforma de entrada. Acontece que essa falta passou a exigir do arquiteto uma nova solução para harmonizar o auditório à marquise ali presente, e, para isso, há necessidade que se corte um segmento daquela imensa passagem coberta, providência mais que normal num processo de adequação, pois nada foi desfigurado; a dita marquise sempre será a ligação monumental entre os distantes edifícios projetados por Oscar. Aí, aconteceu uma coisa espantosa: a própria Prefeitura (leia-se CONPRESP) que permitiu a construção do teatro passou a proibir a execução da praça imaginada pelo arquiteto. Note-se que as outras entidades, o CONDEPHAAT e o IPHAN concordam com as obras alvitadas. 18 IPHAN É claro que nessa negativa contam bastante subjetivismos equivocados e muita teimosia, que um dia, esperamos sejam levados pelos ventos da política para o bem do parque. Talvez esta apresentação tenha se alongado muito, mas julgamos oportunas nossas ponderações porque poderão abrir mais os olhos do leitor neófito nessa problemática da preservação em geral, pois, se somos de pouca teoria, sabemos aproveitar a oportunidade de juntar aos doutos ensaios aqui presentes um pouco do pensamento de quem na vida somente enfrentou obras de salvaguarda de nossa memória construída. Perdoem-nos por esse desejo inoportuno de participar, também, dos debates sugeridos pelo título do livro. São Paulo, janeiro de 2006 O IPHAN E O SOFÁ DE MÁRIO DE ANDRADE ALDEIA DE CARAPICUÍBA Antonio Luiz Dias de Andrade Ex-Diretor do IPHAN em São Paulo 20 IPHAN Fotomontagem executada pela Divisão Técnica do IPHANAntonio Luiz Dias de Andrade Nasceu em 14/03/1948 e faleceu em 1997. Arquiteto formado em 1972 na FAU-USP recebeu os títulos de Mestre em 1984 com a Dissertação “Técnicas Construtivas, Vale do Paraíba” e de Doutorado em 1993 com a Tese “Um estado completo que pode jamais ter existido” na FAU-USP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde atuou como Professor desde 1976. Foi Conselheiro do CONDEPHAAT de 1978 a 1994, Diretor Regional do IPHAN em São Paulo de 1978 a 1994, membro do ICOMOS – International Council on Monuments and Sites desde 1981, membro do Conselho Superior do IAB, membro da delegação brasileira na 18ª Sessão do Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO, realizado no período de 12 a 17 de dezembro de 1994, na cidade de Phuket, Tailândia. Responsável por dezenas de projetos e obras de restauração no Brasil, foi autor de inúmeros trabalhos publicados sobre a preservação do patrimônio cultural. 21Patrimônio: Atualizando o Debate O IPHAN E O SOFÁ DE MÁRIO Antonio Luiz Dias de Andrade No dia 18 de junho de 1991, Antonio Luiz Dias de Andrade (Janjão) foi reconduzido como Coordenador do “Patrimônio”, como é conhecido o IPHAN em São Paulo, depois de dirigir a Regional paulista desde 1978. O seu afastamento da direção em 1990 foi motivado pela truculenta extinção da SPHAN e da Fundação Nacional Pró-Memória naquele período de triste memória. Os veículos haviam sido leiloados, os equipamentos fotográficos “doados”, os funcionários demitidos ou afastados, tudo em nome da “modernização” e do novo plano econômico que se implantava. No sobrado da Rua Baronesa de Itu até um velho sofá da recepção tinha como destino o descarte. A resistência interna dos servidores contra o “desmonte da Cultura” teve como símbolo a manutenção e a defesa do velho sofá – metáfora da nossa necessidade de sobrevivência. Como justificativa para a sua conservação inventou-se a tese que o tal sofá teria pertencido ao nosso patrono Mário de Andrade. Os novos dirigentes intimidados diante do “atributo histórico” do desgastado artefato preferiram guardá-lo na garagem. DE ANDRADE A designação do arquiteto Jayme Zettel, integrante dos quadros da instituição, para a presidência do IBPC – Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, pelo novo ministro da Cultura Paulo Sérgio Rouanet deu um novo alento aos servidores do “Patrimônio”. O texto-discurso da posse de Janjão transcreve este momento especial na história desta Superintendência Regional e continua atual ao enfatizar a necessidade de se restaurar e revitalizar a nossa septuagenária instituição. Muito tempo depois, encontramos nos arquivos do IPHAN uma velha fotografia da antiga sede do Patrimônio na Rua Marconi: Máriode Andrade, Luís Saia e Bruno Giorgi, todos sentados no nosso sofá. Conforme queríamos demonstrar. Victor Hugo Mori Fotografia na sede do IPHAN na Rua Marconi em 1944: Bruno Giorgi, Mário de Andrade e Luís Saia Reprodução do IPHAN (1977) – Original do IEB 22 IPHAN Sr. Presidente do IBPC, Arq. Jaime Zettel, Minhas Amigas, Meus Amigos. Há nesta casa um sofá. Um sofá, roído, “amarfanhado” e desgastado, inclusive, alterado por sucessivas reformas que lhe furtaram a primitiva feição. Ninguém sabe ao certo como veio parar aqui. Alguns pretendem haver pertencido a Mario de Andrade, outros afirmam que o sofá constitui parte remanescente do mobiliário original da sede da então 6ª Região da SPHAN, que já sob o comando do Arquiteto Luis Saia, ocupava a sala nº 412 do edifício nº 87 da Rua Marconi. Seja qual for a versão verdadeira, estamos acostumados há muito a compartilhar nesta casa de sua veneranda presença. Temos pelo velho - ou antigo - sofá, um especial apreço e sentimos por ele uma grande afinidade. Vários de nós igualmente demonstramos os sinais do tempo, seqüelas de desgastes, cicatrizes de sucessivas crises. Recentemente o velho sofá foi motivo de polêmica. Em face de seu combalido aspecto chegou-se a pensar em se desfazer de sua incômoda presença, afinal um velho sofá não condiz com o novo tempo que se pretende inaugurar. Tal desígnio não foi aceito passivamente. A maioria se manifestou em favor de sua conservação, dividiu-se, todavia, quanto aos critérios a serem empregados. Os mais ortodoxos julgaram que o sofá deveria ser restaurado em obediência rigorosa às suas formas originais, devendo receber o mesmo revestimento de couro e semelhantes ágrafos de latão agaloados. Os partidários da modalidade da conservação levantaram-se em defesa da manutenção do “curvim” de segunda classe, como testemunho da ação do tempo, das mudanças dos movimentos do gosto e da decadência dos recursos disponíveis no âmbito das instituições públicas. O sofá permaneceu, muito embora não se chegasse a uma solução definitiva para o problema de sua conservação. Os partidários do simples descarte nisso enxergaram uma enérgica manifestação de um enraizado imobilismo, um forte apego a uns passados míticos, que procura interromper qualquer processo de mudança. Os defensores do sofá, no entanto, não são contra as mudanças, julgam-nas extremamente necessárias, sobretudo em um momento em que vemos ampliadas nossas responsabilidades na preservação do patrimônio cultural, momento em que o assunto deixou de constituir o domínio de reduzidos grupos de abnegados, integrando as preocupações e os anseios de expressivas parcelas da opinião pública. 23Patrimônio: Atualizando o Debate Não deixa de representar uma forma de paradoxo pensar o “novo” numa instituição que se dedica ao passado. As alternativas serão sempre polêmicas. Deverão prevalecer aquelas que adquirirem o maior consenso. E hoje, se fizemos questão de reuni-los aqui é porque continuamos a perseguir uma solução para o nosso sofá. Sozinhos, será difícil encontrá-la. Carecemos, hoje mais do que nunca, do auxílio de todos vocês. São Paulo, 18 de junho de 1991. Antonio Luiz Dias de Andrade “O retorno triunfal do sofá na Rua Baronesa de Itu” Mário de Andrade na frente com o sofá sendo conduzido por Mauro Bondi e José Saia em caricatura de autoria de Antonio Luiz Dias de Andrade (1991) 24 IPHAN Introdução O presente trabalho tem por objetivo levantar algumas questões sobre a cultura material, a partir da análise dos artefatos, em especial, das habitações e de suas estruturas, consideradas no contexto de um assentamento humano. Bem como caracterizar no tempo, as adaptações resultantes dos processos de mudanças culturais. Optamos por definir uma área de interesse: a Aldeia de Carapicuíba, devido à sua importância como único exemplo de aldeamento jesuítico que sobreviveu aos momentos posteriores, segundo os padrões pré- estabelecidos de organização social; e também ao acesso a alguns dados empíricos sobre a natureza das atividades do grupo humano ali estabelecido e, sobretudo, a respeito da habitação. Descrição da Aldeia A localidade conhecida por Aldeia Velha ou Carapicuíba é um distrito do Município de Carapicuíba, pertencente à área metropolitana de São Paulo, com função residencial, de caráter popular, contando com algumas indústrias nas proximidades, estabelecimentos de prestação de serviços e comércio, sítios e chácaras de cultivo, residencial e de recreio. O sítio original foi criado sobre uma colina que domina ampla paisagem ao redor, organizado de modo a estabelecer um espaço central aberto, em torno do qual localizam-se as unidades residenciais, com a capela no lado superior, em posição de destaque. A praça da Aldeia é cortada pela estrada asfaltada que liga a via Raposo Tavares com a sede municipal. ALDEIA DE CARAPICUÍBA * Antonio Luiz Dias de Andrade 25Patrimônio: Atualizando o Debate Dos demais cantos da praça partem outros caminhos e ruas de chão batido, ao longo dos quais foram traçados novos loteamentos. Nos terrenos superiores da colina, do lado direito de quem da praça olha a capela, estão localizados os lotes que concentram o maior número de novas construções. No lado esquerdo está implantado o Sanatório Anhembi, que ocupa grande área. Junto à sua divisa inferior há novos lotes que se expandem pela colina, até atingirem as várzeas dos córregos que a envolvem. Nestas áreas, verificamos a existência de algumas pequenas chácaras, cujos limites encontram os quintais das casas localizadas na praça. Os terrenos mais baixos, até atingirem os limites da várzea, encontram-se desimpedidos, existindo uma ou outra casa isolada. Novas concentrações estão localizadas na colina oposta à Aldeia na direção NO, segundo os mesmos padrões de loteamento popular, havendo também uma indústria de plástico, do lado esquerdo da estrada principal, junto aos limites do bairro vizinho de Vila Dirce. Em torno desta indústria observam-se novos focos de residências, de construção bastante precária, expandindo-se para os terrenos que circundam a Aldeia. Na estrada de terra (Estrada da aldeia de Carapicuíba) que também atinge a praça, comunicando-se com os bairros de Granja Velha e Granja Viana, está localizado o Estabelecimento Escolar, assim como algumas residências de mesmo padrão, ocupando lotes maiores, chácaras e sítios. Vista do lado norte da Aldeia de Carapicuíba; na página ao lado, desenho da Aldeia em 1938 e vista do lado sul com a Capela ao centro Fotos Victor Mori, Desenho Luís Saia * Nota dos organizadores: Após o falecimento do autor em 1997, a Prefeitura de Carapicuíba desapropriou a área do entorno da Aldeia criando o Parque da Aldeia de Carapicuíba. O Museu Arqueológico do Rodoanel será edificado neste parque mediante acordo de compensação ambiental assinado entre a DERSA e o IPHAN. 26 IPHAN Os tipos de habitação: 1 – As antigas casas do “terreiro” da Aldeia Apesar da uniformidade aparente verificada no conjunto das residências que constituem o antigo núcleo da Aldeia, estas apresentam padrões de organização dos espaços internos bastante diferenciados entre si. Podem ser observadas casas bastante simples, com um ou dois cômodos, ao lado de outras com plantas mais complexas de caráter “erudito” (1), era função de uma interpretação popular da casa média típica do século XIX, já bastante descrita e caracterizada, formada por dois ou três lanços onde é organizado, em faixas sucessivas, o programa da residência. As áreas fronteiras são reservadas aos espaços de convívio social, os quartos e alcovas estão dispostos nas áreas intermediárias e, nos fundos, o estar cotidiano e serviços domésticos. Constata-se também, a existência de alguns casos cuja planta é definida segundo a simples justaposição de cômodos,sem que haja evidências de um plano mais racional de organização, assim como a adaptação, em alguns exemplos, em função do atual uso comercial (bares e vendas). No entanto, nota-se a característica comum entre todos os edifícios da Aldeia, quanto às técnicas empregadas em sua construção, bem como a forma de assentamento no terreno. Todas as casas são construídas através de emprego da estrutura autônoma de madeira com vedos de pau-a-pique. Nota-se que em alguns exemplares as paredes primitivas foram substituídas por outras de alvenaria de tijolos. No interior do correr lateral de casas, à esquerda da capela, existem três “empenas” de taipa de pilão, apresentando as mesmas dimensões, assim como igual espaçamento. No mesmo sentido, podemos observar no lanço fronteiro à capela, junto aos oitões da casa vizinha ao botequim da esquina, dois vãos que isolam esta habitação, na largura de uma parede de taipa, com o mesmo comprimento e espaçamento daquelas primeiras. A declividade dos terrenos da área nuclear da Aldeia encontrou resposta adequada no “partido” (2) construtivo das habitações, determinando que os sucessivos cômodos adotassem níveis diferentes, através do estabelecimento de plataformas. O conseqüente plano de cobertura, de duas águas, tem a cumeeira paralela à testada do lote e está disposta no eixo da faixa fronteira. O estabelecimento das plataformas em diferentes cotas, assim como a forma de cobertura, permitiu com bastante facilidade que, no decorrer do tempo, as casas fossem sendo ampliadas, na medida das necessidades e conveniências, através do simples prolongamento da água posterior do telhado, mantendo inclusive variações próximas do pé-direito, sem exigir maiores complementações estruturais. As áreas externas, posteriores à habitação, caracterizam-se de modo geral, como locais de serviço, nos quais localiza-se a série de equipamentos necessários às atividades ali desenvolvidas, ligadas ao preparo de alimentos, lavagem de roupas e trem de cozinha. 27Patrimônio: Atualizando o Debate As áreas dos quintais também são usadas para a criação doméstica de aves e animais, plantio de hortaliças e uma ou outra árvore frutífera. No fundo dos quintais ou junto à casa, localizam-se as fossas negras. A água utilizada para todas as necessidades provém de poços e cisternas existentes junto às áreas de serviço. Todas as casas possuem energia elétrica e em várias se constata o conjunto motor-bomba instalado junto ao poço que abastece um sistema de canalização. 2 – A casa popular de construção recente Nas áreas de expansão recente da Aldeia de Carapicuíba, verificamos, da mesma maneira que foi observado em relação às antigas habitações da praça, vários tipos de solução ou formas de organização dos programas residenciais. Não possuímos os dados necessários para uma adequada descrição das habitações existentes em tais áreas, assim nos limitaremos a uma caracterização genérica dos principais tipos, resultado de uma observação superficial. O tipo de residência mais simples pode ser verificado, geralmente nos menores lotes (5 x l5 m), implantado junto à divisa dos fundos, ocupando quase toda sua largura e constituída por um ou dois cômodos. A utilização das áreas internas é bastante confusa com sobreposição de diferentes funções. Quando a casa possui dois cômodos, um deles destina-se a servir como quarto onde estão dispostos camas, armários, baús e caixas onde se armazenam os mais diversos 28 IPHAN pertences. Dado às suas exíguas dimensões, dificilmente existe espaço para a circulação. O outro compartimento é reservado para a cozinha, estar e refeição e mesmo como área de dormir, quando o número de pessoas da família excede aquilo que o quarto pode comportar (3). O espaço externo é utilizado normalmente como extensão natural das áreas de estar e de serviços. A unidade observada nas antigas casas do “quadrado”, em relação aos aspectos construtivos, emprego de materiais e assentamento no terreno em observância à topografia, não é percebida quando analisamos as áreas de expansão. Nota-se a preferência pela plataforma plana quando o lote se apresenta em condições naturais adversas, ela é construída por meio de cortes e aterros, determinando a perda de unidade no conjunto das edificações. Também verificamos o emprego das mais variadas técnicas construtivas, assim como o uso de materiais como a alvenaria de tijolos, blocos de concreto ou mesmo a madeira para as paredes, e telhas cerâmicas, folhas de zinco, placas onduladas de fibrocimento ou lajes pré-moldadas para a cobertura. Entretanto vários outros tipos de habitações são encontrados em tais áreas, com padrões residenciais médios, muitas vezes em obediência a projetos de casa popular, fornecidos pela Administração Municipal, contando inclusive com financiamentos das instituições de crédito, como pode ser notado através de placas de identificação das casas que se encontram em obras. Observa-se que outras habitações resultam de processos construtivos por etapas, na medida das disponibilidades financeiras ou das solicitações dos programas, sem apresentar, contudo, a unidade existente nas residências da praça, constituindo-se geralmente de uma série de cômodos justapostos e mal agenciados. 3- Casas isoladas Cumpre destacar, das residências encontradas fora das áreas loteadas, nos arredores da praça da Aldeia, dois tipos principais de habitação. O primeiro é aquele resultante de uma ocupação mais antiga, constituindo- se geralmente de pequenas casas, cujo partido tradicional não difere das casas localizadas na praça, a não ser por seu caráter de construção isolada e da aglutinação, em torno de si, de pequenas construções destinadas aos serviços, armazenamento, criação e abrigo de equipamentos. O outro tipo é estabelecido pelas habitações implantadas em lotes maiores, pequenas chácaras, de caráter residencial ou de recreio, constituindo padrão de exceção em consideração àquelas predominantes. Localizam-se principalmente na “estrada da Aldeia de Carapicuíba” em direção ao loteamento “Granja Velha”. Análise dos padrões de habitação O objetivo inicial deste trabalho não poderá ser atingido tendo em vista exclusivamente a análise das habitações, urna vez que cremos que a tipificação de seus padrões descrita sumariamente, não é suficiente para a caracterização do grupo social estabelecido na Aldeia de Carapicuíba, assim como também a identificação das formas de adaptações ocorridas. É necessário que nos orientemos no conhecimento decorrente de outras fontes de informações. Sabemos que o núcleo teve sua origem a partir de uma povoação jesuítica, implantada no fim do primeiro século de colonização e que, apesar da tentativa frustrada de remover o contingente indígena ali reunido 29Patrimônio: Atualizando o Debate para Itapecerica, tendo sido inclusive destruído o conjunto das instalações primitivas, a Aldeia foi reconstruída em 1736, no mesmo local, acreditando- se, de acordo com a disposição original. Também é conhecida a orientação dos padres da Companhia de Jesus, na criação de seus núcleos de Catequese, quanto à organização dos espaços e formas de habitação. Ainda diante dos fatos revelados pela documentação textual, é sabido que, após a expulsão daqueles padres, a população indígena remanescente sofreu processo de aculturação, determinado pelo maior contato com o colono paulista (4). Fotos da remontagem em 1956 da Casa que abriga hoje o Correio - Fotos Germano Graeser Última restauração executada em 2004 Foto Antonio L. Sarasá O grupo social resultante pode ser caracterizado como predominantemente rural, isolado e dedicado às atividades de agricultura e criação de subsistência, não diferente dos demais núcleos localizados nas proximidades (5). Somente o crescimento da cidade de São Paulo, provocado pela expansãodas atividades industriais e comerciais, definindo novas áreas de desenvolvimento irá alterar o quadro cultural do grupo instalado em Carapicuíba, através da introdução de novos componentes em sua estrutura social. A correspondência que procuramos estabelecer no processo evolutivo do núcleo de Carapicuíba, através de sua habitação, nos revela que do primitivo aldeamento dos jesuítas, permaneceu a forma básica de organização do espaço nuclear. 30 IPHAN Conforme somos levados a acreditar, as habitações dos indígenas não eram estruturalmente diferentes daqueles tipos verificados nas demais povoações jesuíticas, de acordo com os documentos existentes. A Aldeia era formada pelo correr de unidades uniformes, sem divisões internas e não havendo padrões especiais que as distinguissem uma das outras (6). Em relação às casas mais antigas, hoje existentes no núcleo histórico da Aldeia, constatamos padrões diversos de organização interior. A existência de paredes internas às mesmas, construídas segundo técnicas diferentes das usualmente utilizadas no conjunto, podemos atribuir como sendo remanescente das primitivas habitações indígenas, pela semelhança com os padrões descritos por Peramás. A compartimentação das unidades residenciais dos índios não foi capaz de abrigar os programas resultantes dos novos momentos. Assim, é possível que as casas tenham sido adaptadas conforme a solicitação das necessidades básicas. No entanto, verifica-se que tais adaptações foram sobrepostas à primitiva estrutura espacial, envolvendo apenas a reorganização dos espaços internos, adequando-se à nova ordem social. A série de soluções em planta reflete diferenças existentes no meio cultural, quer através de classes sociais distintas, quer da disponibilidade de recursos no atendimento às necessidades. Imagem da Casa 13 depois da restauração efetuada em 2005 - Foto Victor Mori Fotografia de 1956 da mesma edificação Foto Germano Graeser 31Patrimônio: Atualizando o Debate Vista aérea da Aldeia de Carapicuíba em 2002 - Foto da Prefeitura Municipal de Carapicuíba Da mesma forma, os sucessivos acréscimos estabelecidos através dos prolongos (7), ampliando as residências, evidenciados pela análise construtiva de seus elementos estruturais, revelam instabilidade dos programas transitórios, decorrente de uma sociedade rural, baseada na exploração de gêneros de subsistência. E é este o quadro que permaneceu até recentemente, salvo a incorporação dos benefícios determinados pelo contato com áreas culturais diversas, por meio de um sistema de comunicação mais eficiente (8). A transformação maior da Aldeia inicia-se após a Segunda Guerra, por ocasião do acelerado desenvolvimento industrial da região de Osasco e da afirmação do município de Cotia como centro de produção agrícola. As áreas de expansão de tais regiões atingem os limites do aglomerado rural que, devido à sua proximidade com aqueles centros, é invadido desordenadamente por bairros residenciais operários, facilitados pela implantação de vias e sistema de transportes mais eficazes. Nota-se, através da observação das recentes unidades residenciais, construídas nos loteamentos que ocupam as antigas áreas de cultivo, a convivência entre os tipos de habitação estritamente urbanos, que podem ser identificados em qualquer vila próxima a São Paulo, com aqueles outros tipos onde persistem formas tradicionais de organização vinculadas ao passado rural. Mesmo em relação aos edifícios mais antigos da Aldeia, embora sujeitos à situação especial, decorrente das restrições impostas pelo seu tombamento, o desenvolvimento acarretou transformações em seus programas com o surgimento de um pequeno comércio, subdivisão em lotes para construção de novas residências, dada a valorização crescente dos terrenos e a exploração do turismo, principalmente nas ocasiões de festas populares. 32 IPHAN NOTAS 1 “.... O plano da residência do sr. Virgílio, não tenho dúvidas que é francamente erudito..... sobretudo por causa da existência aí, de um compartimento de entrada e de um corredor....” (Luís Saia, A Aldeia de Carapicuíba - original datilografado, 1938). Saia atribui esta “erudição” à ação dos jesuítas “... O meu amigo Gilberto Chaves, viajando no Rio Grande do Sul, colheu para mim, na antiga redução jesuítica de São Tiago do Boqueirão, um plano de habitação antiga exatamente idêntico ao deste exemplo carapicuibano. Seria coincidência muito estranhável que se encontrassem dois planos complexos iguais em lugares de mesma formação, sem que se atribuísse sua procedência a uma mesma fonte, neste caso a jesuítica erudita.” (Luís Saia, op. cit.) 2 “Quando se estuda qualquer obra de arquitetura, importa ter primeiro em vista, além das imposições do meio físico e social, consideradas no seu sentido mais amplo, o programa, isto é, quais as finalidades dela e as necessidades de natureza funcional a satisfazer; em seguida a “técnica”, quer dizer os materiais e o sistema de construção adotado; depois o “partido”, ou seja, de que maneira, com utilização dessa técnica, foram traduzidos em termos de arquitetura as determinações daquele programa; finalmente a “comodulação” e a “modenatura”, entendendo-se por isto as qualidades plásticas do monumento.” (Lúcio Costa, Arquitetura dos Jesuítas no Brasil – Revista do SPHAN nº 5 R.J. 1945). 3 “A cozinha na verdade é a sala de estar. A atividade culinária fica circunscrita a um pequeno canto para o fogão. Panelas e louças são lavadas fora num puxado à beira da cisterna ou no quintal ao ar livre”. (Carlos Lemos, Pesquisa sobre a habitação popular –1961 – FAU - USP). 4 “.... A sua população confunde-se com a civilizada...” (Almanak da Província de São Paulo -1873 -organizado por A.J.B. de Luné e P. D. da Fonseca). 5 “cinturão caipira” da cidade de São Paulo. 6 “.... una sola era Ia medida para todas las casas, su superficie abarcaba unas sietes brazas cuadradas aproximadamente (25a30m 2). Agrupábanse en manzanas, de seis o siete casas cada una, separadas, como dije, por calles de anchura uniforme.” (Peramás, La Republica de Platon y los Guaranies – EMECÉ Editores S.A. – Buenos Aires, 1946 – Trad. Juan Cortés del Pino – original latino “De Admnistratione Guaranica comparate Rempublicam Platonis Comentarius). BIBLIOGRAFIA CITADA BLANTON, Richard E. - Anthropological Studies of Cities. BOURDIEU, Pierre - La Maison Kabyle ou Le Monde Renversé. COSTA, Lúcio - A Arquitetura dos Jesuítas no Brasil - Revista do IPHAN R.J. nº 5. FLORESTAN FERNANDES - Caracteres Rurais e Urbanos na Formação da Cidade de São Paulo. Aspectos do Povoamento de São Paulo no século XVI. in: Mudanças Sociais no Brasil - Coleção Corpo e Alma do Brasil - Difel - S.P. 1974. GULIK, John -Urban Anthropology. LEMOS, Carlos C. - Pesquisas sobre habitação Popular -1964 - 1965. FAU-USP 1976. PENTEADO, A.R. e Petrone, P. - São Caetano do Sul e Osasco, Subúrbios Industriais. in: A Cidade de São Paulo - Estudos de Geografia Urbana- volume IV - Os Subúrbios Paulistanos - Associação dos Geógrafos Brasileiros - C.E.N. - S.P. 1958. PERAMÁS, J.M. - La Republica de Platon y los Guaranies - EMECÉ - Editores, S.A. Buenos Aires - 1946. SAIA, Luis -Aldeia de Carapicuíba -original datilografado - 1938. 7 Prolongo: diz-se de uma água de telhado paralela a outra água maior ou mais importante na cobertura. Prolongamento de um telhado, que vai abaixo da linha do frechal. Telhado de um puxado . Dicionário da Arquitetura Brasileira Corona & Lemos - Carlos A. C. Lemos e Eduardo Corona - Edart- São Paulo Livraria Editora, 1972. 8 “... um ou outro rancho de pau a pique, roças de milho, batata, cebola e um largo panorama de colinas é o que se vê de um lado e outro do caminho. O tom predominante da paisagem é dado pelos pastos, apenas interrompido por alguma capoeira sem importância.” (Luís Saia,op. cit.). A CIDADE COMO BEM CULTURAL Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses Professor Titular do DH-FFLCH/USP Membro do Conselho Consultivo do IPHAN 34 IPHAN Fotografia tirada do alto do Edifício do Banco do Estado na cidade de São Paulo - no primeiro plano o Mosteiro de São Bento e ao fundo a Serra da Cantareira Foto Victor Mori Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses É professor Titular da USP - Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas - Departamento de História, Doutor pela Universidade de Paris e Livre-Docente pela USP. Autor de inúmeros trabalhos publicados na área de Patrimônio Cultural, História, Arqueologia, Filosofia e Teoria de História, é membro fundador do Comitê Brasileiro de História da Arte e membro fundador do Comitê Brasileiro do ICOMOS – International Council on Monuments and Sites e Conselheiro do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 2005. Foi Conselheiro, Vice-Presidente e Presidente interino do CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo e Vice- Presidente do Comitê Brasileiro do ICOM - International Council of Museums/ UNESCO. 35Patrimônio: Atualizando o Debate Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses A CIDADE COMO BEM CULTURAL - Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance da preservação do patrimônio ambiental urbano APRESENTAÇÃO O tema deste texto e o enfoque de muitas questões delicadas pressupõem o interesse de um debate. Em outras palavras, embora acredite na consistência e coerência dos argumentos de que me valho, acredito também que certas questões podem acolher tratamento alternativo, luzes diversas das que projetei e aspectos que subestimei. No fundo, porém, o caráter provocador que acentua a tonalidade de alguns desses tópicos deve-se, antes de mais nada, a uma certa raridade de discussões, entre nós, que tomem a problemática do patrimônio cultural no seu nervo próprio: o de fato social. Tal perspectiva exigiria uma moldura de conceitos e categorias para, dentro dela, balizar o tratamento das inúmeras facetas envolvidas e articuladas. Esta pretensão de summa, todavia, não está no meu horizonte. Pelo contrário, procedi a vários cortes e selecionei questões, referenciado por minha experiência no órgão encarregado da preservação do patrimônio cultural no Estado de São Paulo, o CONDEPHAAT. O eixo de articulação foi, sempre, o dos conflitos entre preservação1 e ordenação urbana. Daí, por exemplo, o espaço aparentemente excessivo dedicado à questão das “áreas envoltórias” de bens tombados, ao lado do quase silêncio no exame do tombamento, em si, e de institutos introduzidos pela Constituição Federal de 1988 ou pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257 de 10.07.2001). Por sua relevância, complexidade e particularidades, estas questões merecem um tratamento à parte, que fica para outra ocasião. Impõe- se reconhecer, portanto, o caráter parcial do presente trabalho quanto às expectativas presumidas pelo título escolhido. Seja como for, dentre os alvos prioritários do texto não estava chegar a proposições concretas para os problemas que serão apresentados, mas identificá-los e definir as premissas para uma reflexão mais aprofundada, sem o que qualquer encaminhamento seria frágil e enganoso. A experiência do CONDEPHAAT serviu, como se disse, de referência primeira para todas as reflexões. Não que o alcance delas limite-se às fronteiras do órgão de preservação do Estado de São Paulo; mutatis mutandis, o alcance vale para o país em geral. Uma observação indispensável diz respeito ao partido de evitar, como foi dito, o modelo da summa que compendiasse as regras e as cartas que integravam meu jogo. Não teria sentido apresentá-las todas aqui. Mas a necessidade de lastrear entendimentos que nem sempre coincidem com o expresso pelo senso comum e pelas opiniões correntes obrigou-me a um número considerável de citações de outros trabalhos, inclusive meus. Quanto ao propósito da auto- referência não foi o de aproveitar a oportunidade para merchandising acadêmico, mas o de abrir pistas para a identificação precisamente das cartas que orientam meu jogo e das regras a que me submeto, sem comprometer, tanto quanto possível, a legibilidade do texto. A inspiração que sustentou a redação do trabalho foi a crença de que, apesar de tudo, a cidade pode ser vivida como um bem cultural. Além disso, permanece a esperança de que a agenda proposta dos temas para discussão possa efetivar-se em breve e contribuir para orientar a atuação dos profissionais do campo do patrimônio cultural. BEM CULTURAL Como pode a cidade ser considerada um “bem”? “Bem” quer dizer coisa boa, aprazível, benéfica, gratificante, confiável. É o sentido vulgar, mas não há razão para descartá-lo e ele nos bastará, aqui. Trata- se sempre de um valor positivo – ao menos no singular já que, por exemplo, a expressão “homem de bens” tem mais desdobramentos e ambigüidades que “homem de bem”. Seja como for, cidade, assim como família, universidade, museu, política, economia, etc., são conceitos que, hoje, parecem imersos em crise 1 A palavra preservação está aqui empregada no sentido mais amplo, que inclui não só diversas modalidades de proteção legal e física do patrimônio cultural (tombamento, desapropriação etc.etc.etc., mas ainda conservação, restauração, reabilitação etc.etc.), como, também, as operações de identificação (pesquisa, documentação, análise) e valorização (principalmente pelo uso e garantias de fruição social). 36 IPHAN permanente. Cidade, então, parece ser um caso agravado, e desde o século XIX dificilmente vem desacoplada da noção de “problema urbano”. O adjetivo urbano, aliás, como que acrescenta dose maior de problema àquilo que deve qualificar: violência urbana, marginalidade urbana etc. soam muito mais graves que os substantivos desadjetivados. E se, de fato, olharmos em torno, na cidade, o espetáculo observado em nada desmente estas primeiras impressões. Não seria melhor dizer, então, “bens culturais na cidade”, pois haverá, por certo, descontinuidade nos problemas, bolsões de tranqüilidade e ilhas de compensação? Ocorre, porém, que o caráter problemático da cidade não se encontra nela – entendida como uma forma espacial de assentamento humano – mas na sociedade, no tipo de relações entre os homens que a institui e organiza. É possível, pois, que a cidade, a cidade ela própria (de maneira diferencial, é claro, com escalas variadas e pelos mais diversificados atores) seja qualificável positivamente, apesar dos problemas que estejam a infestá-la. No entanto, para melhor compreender esta atribuição de qualidades à cidade (no seu todo, como síntese, ou a partes dela), é necessário examinar três dimensões em que toda cidade se realiza. São dimensões intimamente imbricadas e que agem solidariamente: a dimensão do artefato, a do campo de forças e a das significações. Dimensões da cidade: artefato, campo de forças, representações sociais Não se trata de estratos, segmentos ou compar- timentos, nem de propriedades diferentes, formas diferentes, efeitos diferentes — mas de focos diferentes para a observação da natureza, estrutura, funcionamento e transformação de uma realidade altamente complexa e dinâmica. A primeira dimensão é a da cidade como artefato. A cidade é coisa feita, fabricada. Artefato, no sentido mais genérico, é um segmento da natureza física socialmente apropriado, isto é, ao qual se impôs, segundo padrões sociais, uma forma ou uma função ou um sentido (seja conjuntamente, seja isoladamente ou em diversas combinações). Foi na condição de artefato que a cidade mereceu maior atenção dos estudiosos. Grande parte da literatura dehistória urbana, por exemplo, diz respeito à cidade tratada como artefato complexo: é a história dos padrões locacionais, das configurações topográficas, dos traçados urbanos e das formas arquitetônicas, dos arranjos espaciais, das estruturas, equipamentos, infinitos objetos. Mas tal artefato não se gerou numa atmosfera abstrata: foi produzido no interior de relações que os homens desenvolvem uns com os outros. A segunda dimensão, assim, é a do campo de forças. A expressão é tomada de empréstimo à Física, para ilustrar um espaço definível de tensões, conflitos, de interesses e energias em confronto constante, de natureza territorial econômica, política, social, cultural e assim por diante. O artefato, em última instância, é o produto deste campo de forças, mas também é seu vetor e permite sua reprodução. Nesta perspectiva, por exemplo, é que se têm desenvolvido estudos de processos de formação e transformação – a urbanização, seus fatores e contingências, seus efeitos. No entanto, a cidade não é apenas um artefato socialmente produzido, nesse campo de forças, como numa máquina. As práticas que dão forma e função ao espaço e o instituem como artefato, também lhe dão sentido e inteligibilidade e, por sua vez, alimentam- se, elas próprias, de sentido. Por isso, a cidade é também representação, imagem. A imagem que os habitantes se fazem da cidade ou de fragmentos seus é fundamental para a prática da cidade. Apesar da voga recente do imaginário urbano como tema de estudo, é raro encontrá-lo inserido entre as demais dimensões e tratado adequadamente como fenômeno social2. Ora, para compreender a cidade como bem cultural, é preciso enfrentá-la simultaneamente nas três dimensões. O bem cultural tem matrizes no universo dos sentidos, da percepção e da cognição, dos valores, da memória e das identidades, das ideologias, expectativas, mentalidades, etc. Todavia, as representações, para deixarem de ser mero fato mental ou psíquico e integrarem a vida social, precisam passar pelo mundo sensorial, do universo físico: o patrimônio ambiental urbano tem matrizes na dimensão física da 2 Ao falar de imaginário urbano – que entendo como modalidade específica do fenômeno mais amplo das representações sociais – suponho imagens estruturadas e operadas a partir de grupos sociais e práticas espaciais específicas e não simples conjuntos de imagens, refugiadas nas mentes ou na consciência dos indivíduos (Meneses 1997). 3 Trata-se de um conjunto no Bexiga, extraordinária obra de bricolage, hoje degradada e servindo de habitação em condições precárias. 37Patrimônio: Atualizando o Debate cidade, pois é por meio de elementos empíricos do ambiente urbano que os significados são instituídos, criados, circulam, produzem efeitos, reciclam-se e se descartam. Afinal, a corporalidade é base de nossa condição humana. Além disso, não sendo os significados derivados de nossa constituição genética, nem tendo natureza estável, mas sendo produto de escolha e, portanto, historicamente instituídos, mutáveis e diversificáveis, não são nas coisas selecionadas elas próprias que devemos buscar critérios conclusivos para identificar o que compõe esse sistema de referências e guias. São nas forças que geram os interesses e nos conflitos que podem opô-los uns aos outros e nos jogos variados de proposição, imposição ou negociação que encontraremos as chaves pelas quais certos atributos geométricos e físico-químicos (os únicos imanentes) das coisas permitem sua mobilização a serviço do sentido. Sem as práticas sociais, não há significados sociais. Mas também não há significados sociais sem vetores materiais. É, portanto, apenas dentro do campo de forças e dos padrões segundo os quais elas agem (e valendo-se de suportes materiais de sentidos e valores), que se pode compreender a gênese e a prática do patrimônio. Usos da cidade como bem cultural: usos culturais? Em 1976 a Coordenadoria de Ação Regional da Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo organizou um concurso de fotografias que teve como mote “A cidade é também sua casa”, sob a coordenação de Maria Adélia de Souza e Eduardo Yázigi. A idéia, muito oportuna, era induzir os habitantes a identificar aquilo que, em suas cidades, lhes parecesse “significativo” – capaz, diríamos nós, de gerar sentido, de servir como referencial cognitivo, afetivo, estético, sígnico, pragmático, ético. Solicitava- se que, além de fotografar espaços, edifícios e outros elementos do ambiente urbano, os concorrentes preenchessem um formulário justificando suas escolhas e propondo usos adequados para elas. A participação foi numerosa e os resultados instigantes, vindos de todos os pontos do Estado. Um fato, porém, me pareceu preocupante. Convidado a selecionar dentre as 5.300 fotos enviadas as 640 que integrariam uma exposição, descobri que, se os critérios e motivos para eleger os monumentos, lugares e coisas eram bastante diversificados, os usos propostos se canalizavam todos para um mesmo funil, de caráter exclusiva ou predominantemente contemplativo, “usos culturais”. Para exemplificar, em São Paulo, bens tão diferentes entre si como o Mercado Velho, ou o Mercado de Santo Amaro ou a Vila Itororó3 tiveram adesão consistente, com múltiplos fundamentos. Mas as propostas (mesmo no caso de potencial funcional presente) eram todas deAntigo Mercado de Santo Amaro na capital paulista, convertido em Centro Cultural Foto João Bacellar (acervo IPHAN- 9a SR) 38 IPHAN preservação com vistas à sua transformação em museus, “centros de criatividade”, espaços de lazer, bares, ateliês de artistas... (O Mercado Velho de Santo Amaro é, hoje, um centro cultural). É como se as qualidades reconhecidas nesses edifícios não pudessem ser contaminadas por usos “menos nobres” atribuídos ao trabalho e ao cotidiano. Compreende-se (embora não se justifique) a desvalorização do trabalho, associada a um alto padrão de desperdício, numa sociedade que ainda tem muito que fazer para superar sua herança escravocrata. O desprezo pela função de habitar tem a ver com a exclusão da cultura no horizonte do cotidiano e se agrava em relação ao trabalho: toda publicidade imobiliária de alto padrão, hoje em dia, insiste em exilar do espaço de habitação, com rigorosa assepsia, qualquer ameaça de presença visível do trabalho. Quanto ao cotidiano, observe-se, ainda, o desconforto inconsciente que ele provoca, já que, muito mais do que uma inofensiva repetição de si mesmo no dia-a-dia, ele é por excelência a instância em que concretamente se instituem as relações sociais, em que as práticas sociais dão corpo e efeito aos interesses em jogo. Em relação a ambos os referenciais, porém, a cultura é concebida como um segmento da vida à parte, embora nobilitado e nobilitante, e que, por isso, deve receber atenção e uso “compatível”. Universo autônomo, seccionado dos circuitos em que a vida segue seu curso – salvo em ações, momentos e lugares privilegiados – tal cultura gera seu universo próprio, que inclui os produtos e os produtores culturais, os consumidores culturais, os equipamentos culturais, os órgãos culturais e assim por diante mas, acima de tudo, os usos culturais4. Tem-se, assim, uma pirâmide sem base (que seria precisamente o universo do trabalho e do cotidiano), apenas com o topo isolado, concentrado fora do alcance dos espaços vitais, que poderiam irrigá-lo. Não é, aqui, o lugar para questionar o que alimenta tal noção espasmódica de cultura, cultura-cólica, que se realiza em instantes privilegiados e, depois se relaxa, preferencialmente sem deixar sementes ou marcas. Basta apontarmos para o mercado de bens simbólicos (que, aliás, é apenas uma modalidade operacional de mercado), cuja lógica dá sustentação a essa esquizofrênica delimitação de fronteiras. É sintomático, a esse respeito, como tal conceito de cultura e o de lazer se entrelaçam
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