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Ulpiano patrimonio atualizando debate 2006

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PATRIMÔNIO:
ATUALIZANDO O DEBATE
Os organizadores deste livro, na verdade,
aproveitaram-se de uma rara oportunidade editorial
para trazer à baila questões referentes às políticas e
critérios de salvaguarda e restauração de bens
culturais, sobretudo arquitetônicos, visando debater
idéias e, quem sabe, chegar a consensos. Rara
ocasião porque é extremamente difícil que
companhias editoras de livros se aventurem em
publicar obras versando sobre esse assunto de pouco
interesse popular e mais difícil ainda que entidades
oficiais venham a discutir em público procedimentos
de seu mister, como se estivessem a se justificar.
Enfim, não desperdiçaram esta ocasião em que a
DERSA prontificou-se a publicar os resultados das
pesquisas arqueológicas efetuadas sob a supervisão
do IPHAN às margens de segmento em obras do
Rodoanel Mário Covas.
Carlos Alberto Cerqueira Lemos
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PRESIDÊNCIA DA
REPÚBLICA
Ministério da Cultura
9a Superintendência
Regional do IPHAN
São Paulo
GOVERNO DO ESTADO
DE SÃO PAULO
Secretaria dos
Transportes
DERSA Desenvolvimento
Rodoviário S.A.
ISBN 85-99542-02-8
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
Organização:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
9 7 8 8 5 9 9 5 4 2 0 2 6
IPHAN
IPH
A
N
2006
PATRIMÔNIO:
ATUALIZANDO O DEBATE
IPHAN
2006
Presidência da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Cultura
Gilberto Passos Gil Moreira
Presidência do IPHAN
Luiz Fernando de Almeida
Chefia de Gabinete
Aloysio Guapindaia
Procuradoria Jurídica Federal
Tereza Beatriz da Rosa Miguel
Departamento do Patrimônio Material e
Fiscalização
Dalmo Vieira Filho
Departamento do Patrimônio Imaterial
Márcia Genésia de Sant’Anna
Departamento de Planejamento e
Administração
Maria Emília Nascimento Santos
Departamento de Museus e Centros
Culturais
José do Nascimento Júnior
Coordenação Geral de Promoção do
Patrimônio Cultural
João Tadeu Gonçalves
Coordenação Geral de Pesquisa,
Documentação e Referência
Lia Motta
Gerência do Patrimônio Arqueológico
Rogério José Dias
9ª Superintendência Regional -
São Paulo
Victor Hugo Mori
Divisão Técnica
Mauro Artur David Bondi
Divisão Administrativa
Regina Celi Moreira
Setor de Arqueologia
Marise Campos de Souza
Projeto gráfico: Vera Lucia Mariotti
Editoração eletrônica: CONAP Consultoria Aplicada
Andrade, Antonio Luiz Dias; Bastos, Rossano Lopes; Calil, Carlos
Augusto Machado; Gallo, Haroldo; Robrahn-González, Érika
Marion; Rodrigues, José Eduardo Ramos; Lemos, Carlos
Alberto Cerqueira; Meneses, Ulpiano Toledo Bezerra de;
Morais, José Luiz de; Mori, Victor Hugo; Souza, Marise
Campos de; Zanettini, Paulo Eduardo.
Patrimônio: atualizando o debate
Autoria: Antonio Luiz Dias de Andrade, Rossano Lopes
Bastos, Carlos Augusto M. Calil, Haroldo Gallo, Érika M.
Robrahn-González, José Eduardo R. Rodrigues, Carlos Alberto
C. Lemos, Ulpiano T. Bezerra de Meneses, José Luiz de
Morais, Victor Hugo Mori, Marise Campos de Souza, Paulo
E. Zanettini - Organização: Victor Hugo Mori, Marise Campos
de Souza, Rossano Lopes Bastos, Haroldo Gallo -
São Paulo : 9a SR/IPHAN, 2006.
240 p. : il.
ISBN: 85-99542-02-8
1. Preservação do Patrimôno Cultural e Ambiental
2. Arqueologia 3. Restauração 4. História
Capa: Engenho São Jorge dos Erasmos, Santos - SP
Fotografia: Victor Mori
Concepção artística: Mauro Artur David Bondi
Páginas 1 e 2: Igreja de São Francisco de Assis em
Ouro Preto - MG - Foto Victor Mori
Página 3: Estação da Luz, São Paulo - SP e Fazenda
do Pinhal, São Carlos - SP - Fotos Victor Mori
 PATRIMÔNIO : ATUALIZANDO O DEBATE
ORGANIZAÇÃO:
Victor Hugo Mori
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Haroldo Gallo
TEXTOS:
Carlos Alberto Cerqueira Lemos
Antonio Luiz Dias de Andrade
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
Carlos Augusto Machado Calil
Victor Hugo Mori
Haroldo Gallo
Marise Campos de Souza
Rossano Lopes Bastos
Erika Marion Robrahn-González
José Luiz de Morais
Paulo Eduardo Zanettini
José Eduardo Ramos Rodrigues
Largo do Pelourinho, Salvador- BA
Foto Victor Mori
SUMÁRIO
Prefácio ................................................................... 7
Participação ........................................................... 9
Apresentação
Carlos Alberto Cerqueira Lemos .............. 11
O IPHAN e o sofá de Mário de Andrade
Antonio Luiz Dias de Andrade ................... 19
Aldeia de Carapicuíba
Antonio Luiz Dias de Andrade ................... 24
A cidade como bem cultural — Áreas envoltórias e
outros dilemas, equívocos e alcance na preservação
do patrimônio ambiental urbano
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses ......... 33
Sob o signo do Aleijadinho — Blaise Cendrars
precursor do Patrimônio Histórico
Carlos Augusto Machado Calil ................. 77
Arqueologia, arquitetura e cidade: a preservação
entre a identidade e a autenticidade
Haroldo Gallo ............................................. 91
Arqueologia e Restauração: anotações para debate
Victor Hugo Mori ..................................... 117
Uma visão da abrangência da gestão patrimonial
Marise Campos de Souza ....................... 139
A arqueologia pública no Brasil: novos tempos
Rossano Lopes Bastos ............................ 155
O programa arqueológico do Rodoanel
Metropolitano de São Paulo, trecho oeste:
ciência, preservação e sustentabilidade social
Erika Marion Robrahn-González .............. 169
Reflexões acerca da arqueologia preventiva
José Luiz de Morais ................................ 191
Arqueólogos de volta à metrópole
Paulo Eduardo Zanettini ........................... 221
Da Proteção Jurídica ao Patrimônio Cultural
Arqueológico
José Eduardo Ramos Rodrigues ............. 233
Capela de São João Batista, Carapicuíba- SP
Foto Victor Mori
PREFÁCIO
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional há setenta anos é órgão formulador e
executor da política de preservação do patrimônio
brasileiro.
A necessária inclusão do tema Patrimônio
Cultural nas agendas prioritárias do país só se
viabilizará se, por pressuposto, os processos e
procedimentos de identificação, documentação,
interpretação, salvaguarda e promoção que se
acumulam como conhecimento, prática e reflexão
na instituição, forem socialmente compartilhados.
Com certeza, o debate e os livros, como
instrumentos de explicitação de idéias, têm um
lugar importante dentro do desafio permanente
que se coloca para uma instituição que se move
e que trabalha no campo dos valores.
Luiz Fernando de Almeida
Presidente do IPHAN
AGRADECIMENTOS
Sinceros agradecimentos a
Ana Cristina Bandeira Lins, principal
responsável pela publicação deste livro
PARTICIPAÇÃO
A legislação brasileira desde 1981 passou a contar
com a Política Nacional do Meio Ambiente (lei Federal
n.º 6.938/81). A partir de então uma séria de normas
relativas à elaboração eaprovação de estudos de
impacto ambiental (EIAs) e relatórios de impacto
ambiental (RIMAs) foram emitidas regulando o
licenciamento de empreendimentos como os
relacionados à infra-estrutura de transportes.
A Resolução CONAMA n.º 001, de 23 de janeiro de
1986, esclareceu e definiu “impacto ambiental” e
considerou a necessidade de diagnóstico ambiental,
antes da implantação de um projeto, considerando,
entre outros, o meio sócio-econômico “destacando os
sítios e monumentos arqueológicos, históricos e
culturais da comunidade...”. A constituição Federal
de 1988 reafirmou e consolidou todos os princípios
relativos à matéria, até então adotados.
Neste contexto, este livro é resultado da Compensação
Ambiental do Trecho Oeste do Rodoanel Mario Covas,
rodovia perimetral circundando a Região Metropolitana
de São Paulo onde se desenhou, nos primórdios da
sua fundação, o circuito caipira que nos mostra uma
parte da história da colonização e o desenvolvimento
não só do nosso Estado, mas também do Brasil através
das Bandeiras que tiveram seu ponto de origem em
São Paulo.
Com apoio do então Secretário dos Transportes - Dario
Rais Lopes - e seu secretário adjunto - Paulo Tromboni
Nascimento, a DERSA nesse sentido não se furtou a
participar dos trabalhos de arqueologia na região, tanto
que em seu programa de trabalho incluiu o restauro de
sítios arqueológicos como os sítios do Mandu, Padre
Inácio e Santo Antônio, e a futura construção de um
museu de arqueologia no município de Carapicuíba,
que irá abrigar os achados de todo o Rodoanel,
preservando a arqueologia e a cultura de nosso País.
Secretaria de Estado dos Transportes
Mauro Guilherme Jardim Arce
DERSA Desenvolvimento Rodoviário S.A.
Thomáz de Aquino Nogueira Neto - Presidente
José Carlos Karabolad - Diretor de Engenharia
José Fernando Bruno - Assessoria de Meio Ambiente
APRESENTAÇÃO
Carlos Alberto Cerqueira Lemos
Professor Titular e Livre-Docente da FAUUSP
12 IPHAN
Carlos Alberto Cerqueira Lemos
É arquiteto, Professor Titular e Livre-Docente da
FAU-USP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo e membro do ICOMOS
– International Council on Monuments and Sites.
Chefiou o escritório de Oscar Niemeyer na década de
1950 em São Paulo, foi Diretor e Conselheiro do
CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado
de São Paulo, representante do IAB – Instituto dos
Arquitetos do Brasil no Conselho Consultivo do IPHAN.
Possui inúmeros trabalhos publicados no Brasil e no
exterior como: Cozinhas, etc. (Perspectiva, 1978),
Arquitetura Brasileira (Melhoramentos, 1979), O que
é Patrimônio Histórico (Brasiliense, 1985), Dicionário
da Arquitetura Brasileira, com Eduardo Corona
(EDART, 1972), Alvenaria Burguesa (Nobel, 1985),
Casa Paulista (Edusp, 1999), etc.
Fachada da Estação da Luz em São Paulo
Foto Victor Mori
13Patrimônio: Atualizando o Debate
APRESENTAÇÃO
Carlos Alberto Cerqueira Lemos
Os organizadores deste livro, na verdade,
aproveitaram-se de uma rara oportunidade editorial
para trazer à baila questões referentes às políticas e
critérios de salvaguarda e restauração de bens
culturais, sobretudo arquitetônicos, visando debater
idéias e, quem sabe, chegar a consensos. Rara ocasião
porque é extremamente difícil que companhias
editoras de livros se aventurem em publicar obras
versando sobre esse assunto de pouco interesse
popular e mais difícil ainda que entidades oficiais
venham a discutir em público procedimentos de seu
mister, como se estivessem a se justificar. Enfim, não
desperdiçaram esta ocasião em que a DERSA
prontificou-se a publicar os resultados das pesquisas
arqueológicas efetuadas sob a supervisão do IPHAN
às margens de segmento em obras do Rodoanel Mário
Covas. Assim, aqui estão publicados artigos e ensaios
ligados a dois enfoques distintos relacionados à
questão única, aquela do zelo de nossa cultura material.
Parte dos textos fala do resgate de vestígios de eras
que há muito se foram e a outra parte preocupa-se
com o artefato visível à volta de todos nós e esse
cuidado está ligado aos vários modos de encará-lo.
Evidentemente, são raras as disputas intelectuais
relativas aos procedimentos cabíveis quanto aos
artefatos, ou seus restos, descobertos nas camadas
subjacentes do solo. O arqueólogo procura, acha,
analisa, classifica, guarda e, se for o caso, expõe.
O técnico preservacionista, no entanto, está
permanentemente cercado de opiniões, até
conflitantes, relativas a critérios de conservação, a
comportamentos perante monumentos arquitetônicos
e a respeito das cidades. Muita filosofia, muita teoria.
Daí a diferença entre os enfoques arqueológico e o
preservacionista do patrimônio sobre a terra. Daí esta
apresentação estar mais voltada à segunda questão,
fazendo reflexões sobre a variedade de pensamentos
e procedimentos em face do Patrimônio Cultural
Arquitetônico aqui expostos academicamente pelos
ilustres colegas e amigos de sempre e nisso reside
outra ocasião rara: um empírico empedernido fazendo
apreciações sem constrangimentos de trabalhos
teóricos de alto nível contendo até raciocínios e
abstrações totalmente alheias aos seus pés no chão.
O caro leitor sabe que as atuações dos órgãos
responsáveis pelo tombamento, conservação e
restauração de bens arquitetônicos significativos são
regidas pelas determinações emanadas das
chamadas “Cartas Patrimoniais”, documentos aceitos
pelos vários governos participantes da UNESCO. A
mais famosa e atuante delas é a Carta de Veneza,
redigida em 1964 e, depois, em importância, vem o
documento resultante da Conferência de Nara, de
novembro de 1994. Os técnicos vivem, então, sempre
às voltas com as resoluções desses papéis de
orientação de procedimentos. Ocorre que também,
prioritariamente, estão a vigir as leis do país, aquelas
próprias da criação das entidades ditas “zeladoras”
de nosso Patrimônio Cultural. As leis e decretos
dificilmente são renovados e suas datas de vigência,
no tempo, às vezes, antecedem ou, então, se
intercalam com as épocas dos encontros internacionais
de técnicos encarregados de criar novas normas
reguladoras da conduta de todos frente ao resguardo
de nosso acervo da cultura material, notadamente o
antigo, também chamado de histórico. E, ainda, temos
correndo por fora, os filósofos, os pensadores da
estética, os historiadores e críticos, enfim, gurus dos
tratadistas paroquiais que chegam a tumultuar as
discussões ao redor de obras paralisadas enquanto
não se chegue a uma conclusão de aceitação unânime
– o que raramente acontece. Mas, no frigir dos ovos,
as leis e decretos governamentais são o que ainda
têm alguma prevalência, como o decreto-lei nº 25, de
1937, promulgado por Getúlio Vargas, 27 anos antes
da redação da Carta de Veneza. Todos sabemos que
esse decreto-lei levado à assinatura do ditador estado-
novista por Gustavo Capanema tivera, pelas mãos de
Rodrigo Mello Franco de Andrade, uma redação
inspirada num célebre projeto de Mário de Andrade.
O que poucos sabem, no entanto, é que o autor de
Macunaíma fora antecedido pelo poeta suíço Blaise
Cendrars. Esse é o tema do texto aqui reproduzido de
autoria do professor da ECA Carlos Augusto Calil. O
célebre poeta modernista, em maio de 1924, redigiu
um projeto que de modo evidente influenciou Mário e
nele, espantosamente, arrola não só a produção cultural
tangível (era obcecado por Aleijadinho e pelo barroco
mineiro) como também toda a realização imaterial
como a música, canções e danças populares; como a
arte culinária e o saber fazer e o mundo espiritual dos
índios.
14 IPHAN
Sob o ponto de vista das atribuições históricas, esse
texto do professor Calil é muito importante porque
nos remete aos mecenas cafezistas e modernistas da
Semana de Arte Moderna de 1922 realmente
preocupados com nossa arte do passado.
O ensaio carro-chefe desta publicaçãoé sem dúvida o
de autoria do professor Ulpiano Toledo Bezerra de
Meneses, não só historiador e antropólogo de renome
como, também, arqueólogo emérito, com prolongados
trabalhos de escavações na Grécia, a experiência
paradigmática de todos os pesquisadores do subsolo.
Como diz o autor, as questões levantadas pressupõem
debates dada a raridade das discussões considerando
a cidade como um “fato social”. Há de se compreender
os permanentes conflitos entre “preservação” e
“ordenação urbana” e nesse embate inevitavelmente
surge o tema das “áreas envoltórias”. Modestamente,
não deseja chegar a proposições concretas para os
problemas, mas identificá-los e, então, definir
premissas para ensejar reflexões. No âmbito das
cidades, imagina três dimensões que agem
solidariamente: a dimensão do artefato, já que a
urbanização é um produto próprio da sociedade; a
dimensão do campo de forças, isto é, onde os homens
se envolvem uns com os outros e em cujo espaço se
desenvolvem tensões, conflitos, energias em confronto
na economia, na política, na vida social, nos processos
culturais, etc. e, finalmente, a dimensão das
significações.
Como deve ser, cremos nós, Ulpiano, ao teorizar, não
pensa no caráter ou na ética comportamental dos
cidadãos; as cidades todas seriam habitadas por
anjos, cada qual no seu lugar e as tensões e conflitos
entre eles estariam sempre voltadas para o bem, para
o melhor, para a cordialidade dos homens justos.
Acontece, porém, que o Capeta também paira sobre a
paisagem urbana; está sempre a entrar e a sair pelas
janelas, mesmo pelas trancadas, espalhando a
vaidade, o egoísmo, a mentira, a corrupção, a
politiquice e mais desonestidades mil, que marcam
indelevelmente a cidade, qualquer cidade, sobretudo
São Paulo.
Em nossa Capital, nunca os pretensos planos diretores
foram levados a sério. Bastou a saída de Prestes Maia
da Prefeitura, por exemplo, para o seu plano histórico
de ordenação urbana ser solapado, principalmente
quanto aos gabaritos dos edifícios. É enorme a
quantidade de loteamentos clandestinos invadindo
áreas de mananciais, reservas florestais, terrenos
públicos. Os zoneamentos nunca foram obedecidos;
ruas e ruas oficialmente residenciais estão acolhendo
lojas, como a Rua Gabriel Monteiro da Silva, que chegou
ultimamente a não ter em seu percurso uma residência
sequer e nunca houve alguém que realmente
obstaculizasse o processo de uso indevido. A cidade
cresce segundo as conveniências dos bolsos de cada
um. Não há em São Paulo o costume das construções
acabadas serem exatamente como foram projetadas
e aprovadas pela Prefeitura. Prevarica-se a qualquer
hora e em qualquer lugar e todos sempre estão à espera
da anistia que sempre vem; antigamente falava-se
em “conservação” e seja qual for o nome, o certo é que
todos os pecados serão perdoados pelos anjos
municipais ávidos pelo crescimento dos impostos
provocado pelo perdão. É claro que as reflexões de
Ulpiano não irão resolver esse problema, mas
acreditamos que leis mais severas vindas de
pertinentes alterações na Constituição ao lado de
campanhas educacionais poderão, com o tempo, dar
mais esperanças aos planejadores de boa vontade que,
por sinal, ainda existem.
A questão das áreas envoltórias de monumentos, tão
bem conduzida pelo professor Ulpiano em seu texto
também nos leva à triste realidade do desentendimento
entre IPHAN, CONDEPHAAT e o DPH da Prefeitura.
Fomos testemunhas da criação daquele órgão estadual
e sempre interpelamos dona Lúcia Falkenberg sobre
os celebrados 300 metros de raio para o círculo à
volta do monumento e suas respostas infalivelmente
mencionavam o “Vinicius (de Campos) que achou
que a lei do IPHAN, nesse caso, era muito vaga, não
definindo bem o que fosse área envoltória”. Aquele
fatídico número, aperfeiçoador da lei federal, hoje
inferniza a vida dos paulistanos donos de imóveis
próximos a monumentos, sobretudo aqueles que
dependem de aprovação do DPH municipal, pois lá
aquela vizinhança nunca é necessariamente
compromissada com as visuais que garantam o correto
enquadramento do monumento na paisagem;
discutem, aprovam e desaprovam projetos de obras
em locais donde nunca o bem tombado poderia ser
avistado.
Como afirma o professor Ulpiano, as atuações
preservacionistas necessariamente deveriam andar de
mãos dadas com as decisões das entidades de
planejamento, o que não ocorre. Na prática cotidiana,
pensamos nós, além das elucubrações de planos em
geral, o IPHAN, o CONDEPHAAT e o CONPRESP
deveriam por lei, ao mesmo tempo em que definem
suas resoluções de tombamento, elaborar projetos
diretores das obras que possam comprometer a
adequação paisagística e a presença soberba do
monumento; isso porque tais providências de modo
15Patrimônio: Atualizando o Debate
necessário sempre precisaram e ainda necessitam ter
a aprovação da Câmara Municipal, pois só a vereança
é que pode regulamentar legalmente o modus faciendi
das construções em geral. Nesse sentido, tivemos
tristes experiências no CONDEPHAAT, que, certa vez,
encomendou a três arquitetos planejadores projetos
das áreas envoltórias das igrejas matrizes de Itanhaém
e de São Sebastião, além do ajustamento das visuais
em relação ao prédio do Museu Paulista, no Ipiranga.
Planos solenemente ignorados pelas respectivas
prefeituras porque nem contactadas a respeito foram.
Se naquelas encomendas o CONDEPHAAT chegou a
mostrar boa vontade, não foi além disso e não procurou
a legislação apropriada e o pior, com a mudança de
chefias e presidências passou até a tolerar infrações
às regras, sobretudo quanto a gabaritos de edifícios
vizinhos. Nisso tudo, podemos vislumbrar uma certa
dose de displicência ou de comodismo. Embora a lei
mande, nunca os tombamentos foram anotados à
margem dos registros dos imóveis nos livros dos
cartórios. O mesmo comportamento desleixado existe
em relação às áreas envoltórias, inclusive na Prefeitura
que, afinal, tem a sua Câmara Municipal para ajudá-la
em seus problemas de resguardo urbano dos
monumentos de todos nós.
Neste livro, o artigo de Antônio Luís Dias de Andrade,
o nosso distante e imprescindível amigo Janjão, e mais
os ensaios dos arquitetos Victor Hugo Mori e Haroldo
Gallo, respectivamente “Arqueologia e Restauração:
anotações para debate” e “Arqueologia, arquitetura e
cidade: as preservações entre identidade e
autenticidade” tratam de temas instigantes e
permanentes nas dúvidas cotidianas ocorridas nas
atuações de recuperação do Patrimônio Arquitetônico.
Debates sobre os temas ali expostos sempre irão
acontecer porque os teóricos pretendem normas,
códigos, consensos e conceitos abrangentes para
regulamentar procedimentos tais como enumera
Victor Hugo : “reforma, reconstrução, reconversão,
reciclagem, reuso, complementação ou conclusão,
modernização ou reatualização, conservação, etc.”
E lembramos, também da palavra restauração, que
no português coloquial pode assumir significados
correlatos, todos é claro, pressupondo obras, cuja
validade é que pode acirrar os ânimos, conforme a
posição conceitual dos críticos fiscalizadores do
trabalho alheio. Daí, os tais debates inevitáveis na
maioria das ocasiões.
É extremamente interessante o fato da expressão
programa de necessidades não ter sido mencionada
pelos ensaístas deste livro quando tratam dos edifícios
históricos, isto é, dos monumentos tombados prestes
a sofrer intervenções. Esse é um assunto muito
importante. Toda construção é imaginada para atender
a uma demanda ou necessidade de espaços
destinados a funções específicas. Assim sendo, ao
contrário dos líquidos que assumem as formas dos
respectivos vasilhames, o programa, seja qual for a
técnica construtiva, é que determina o partido
arquitetônico; o conteúdo sugere a forma do
continente. Acontece, porém, que os programas
necessariamente variam com o correr dos anos, com o
progresso e as construções são imutáveis na sua
rigidez da pedra, do tijolo, dataipa de pilão e do
concreto armado. Esse é o desafio aos arquitetos:
imaginar edifícios que satisfaçam a seus usuários
originais o maior tempo possível sem adaptações ou
aumentos de área disponível. Só um parêntese: entre
nós, apenas um programa praticamente permaneceu
inalterável, o referente às igrejas católicas, pois a
liturgia do culto religioso é sempre a mesma desde
Anchieta. O fato da missa agora ser rezada com o
celebrante de frente para os fiéis, dando as costas
para o retábulo é irrelevante sob o ponto de vista
arquitetônico e por isso é que os únicos edifícios
íntegros de taipa de pilão colonial entre nós são
as igrejas; não se alteraram inclusive porque,
proporcionalmente, o número de fiéis não cresceu na
metrópole. Voltando ao caso das incompatibilidades
entre conteúdo e continente, na hipótese de aumento
das solicitações do programa de necessidades,
constatamos a inexorabilidade de intervenções
ajustadoras prevendo acréscimos visíveis na
volumetria original da construção ou, então, deduzimos
que a edificação seja abandonada para ser
reaproveitada por novo destino funcional. Esse
abandono também se dá quando o programa gerador
do imóvel desaparece, como é o caso freqüente das
antigas estações de estrada de ferro já sem seus
trilhos, que foram levados pelos diligentes caminhões
rodoviários. E, finalmente há a hipótese do programa
minguar de tal maneira que os espaços ociosos tornam-
se um estorvo e antieconômicos, como, por exemplo,
o caso de um grande e rico palacete de fazendeiro de
café se tornar incômodo ao velho casal depois da
debandada de todos os filhos e é, então vendido ao
governo para ali ser instalada uma repartição pública.
16 IPHAN
Nestas reflexões, não cogitamos a possibilidade de
uma construção abandonada, de um invólucro vazio, à
permanente espera de agasalhamento de um programa
qualquer compatível com seus espaços disponíveis
porque todas as cartas e o bom senso sabem que a
falta de uso necessariamente leva o imóvel à
degradação ou a periódicas despesas destinadas à
sua conservação, como está procedendo o IPHAN, por
exemplo, com as casas bandeiristas sem uso de Cotia
e São Roque e com as construções da fortaleza de
Anhatomirim em Santa Catarina.
Como vimos, ao longo do tempo, conclui-se que são
inevitáveis obras em bens tombados, tanto nos
conservados como nos em mau estado. Tais trabalhos
é que sempre geram polêmicas quanto à natureza das
intervenções, quanto aos novos programas a serem
introduzidos no monumento vazio ou semivazio. Nessa
hora, são chamados, lembrados e invocados todos os
pensadores, gurus dos técnicos e críticos e, como são
relativamente poucos, talvez uns dez, quase todos
italianos na moda, muitas vezes são então recorridos
por todos os lados da celeuma; servem tanto para o
bem como para o mal e, no final das contas, todos
concluem que cada caso é um caso. Já o velho e
simpático especialista em conservação de
monumentos, o italiano Ambrogio Annoni, como Victor
Hugo relata, dizia que “cada monumento ditaria o seu
critério” de intervenção. Dizia ele: “il caso per caso”.
As especificidades de cada monumento, na verdade,
sempre estão a sugerir e aceitar esse viés de exceção
baseado nas reais e peculiares exigências daquela
intervenção, como nos lembra Haroldo Gallo. Nos
variados projetos e principalmente nos canteiros de
obras, “na prática, a teoria é outra”, como certa vez
escreveu o economista Joelmir Beting.
Algumas palavras são repetidas à exaustão neste livro
e justamente por isso merecem comentários à guisa
de explicação ao leitor pouco afeito a conversas em
torno de trabalhos de restauração de bens
arquitetônicos. Lembramo-nos de três: originalidade,
autenticidade e identidade. Suas acepções são
muito próximas. A originalidade se refere às primeiras
soluções ou manifestações envolvendo a construção
do monumento tombado; tanto pode se referir ao
sistema construtivo original, como ao programa de
necessidades, como, também, à intenção plástica ou
estilo manifestado. A autenticidade, a nosso ver, tem
dois sentidos, tanto a palavra pode ser aplicada para
qualificar o imóvel, como pode estar ligada à
legitimidade da substância, do material ou do sistema
de construção primeiramente empregados.
Na primeira acepção, a autenticidade está ligada à
peculiaridade do partido arquitetônico decorrente das
condições intrínsecas do programa de necessidades.
Exemplificando: quando aquele citado palacete
encomendado a Ramos de Azevedo pelo fazendeiro
rico e projetado sob medida para atender a todas as
demandas e circunstâncias familiares se transformou
em repartição pública, teve seu programa original
substituído, e assim perdeu sua autenticidade. Nele,
desapareceram as relações necessárias originais que
mantinham entre si os espaços compartimentados
segundo as condições familiares. O segundo
significado que pode ter a palavra autenticidade, como
dissemos, está voltado para a natureza da substância
ou do material de construção do monumento. Todos
conhecemos a redação emanada da Conferência de
Nara que acabou permitindo a reposição periódica
total do madeiramento de certos templos japoneses.
Ali houve a substituição de peças por outras de mesma
substância sem que houvesse ofensa à autenticidade
programática e, de mais a mais, naquele momento,
imposições de ordem cultural estavam sendo
atendidas e é justamente o que interessa. No entanto,
uma nova construção usando técnicas e materiais
modernos numa reconstrução copiando fielmente um
monumento desaparecido não passa de mera
falsificação, sobretudo se o programa pensado for
diferente daquele da obra original. Acontece que muita
gente acha essa falsificação legal, conforme a intenção
do empreendimento e não vê nada de mais, por
exemplo, em levantar um simulacro mal reproduzido
do colégio jesuítico e de sua igreja no local onde os
padres fundaram o seu estabelecimento, em 1554,
em Piratininga. Ali se misturaram firmação religiosa,
política e saudosismo piegas. Bem que o
CONDEPHAAT lutou contra a idéia, restando de sua
resistência apenas uma publicação comandada pelo
professor Ulpiano Bezerra de Meneses. No julgamento
desse fingimento arquitetônico muitos levam a sério à
data da contrafação, se anterior ou posterior à Carta
de Veneza e daí, ninguém condenar enfaticamente a
reconstrução do palácio de Pedro, o Grande, que hoje
abriga o museu de arte dito do Ermitage. Todos aceitam
a reconstrução fidedigna do casario medieval do centro
de Varsóvia, destruído por bombardeios da 2ª Guerra
Mundial como no exemplo russo, pois os brios da
nacionalidade falaram mais alto exigindo a volta da
paisagem de sempre e de todos. Caso curioso ocorreu
em Carapicuíba, a aldeia missioneira tombada pelo
IPHAN na década dos anos 40, percucientemente
analisada pelo Janjão neste livro. Ali, Luís Saia
reconstruiu certa moradia feita de taipa de mão
substituindo o barro da vedação dos vãos estruturais
17Patrimônio: Atualizando o Debate
por argamassa de outra receita. Trinta e tantos anos
depois essa mesma casa foi novamente refeita pelo
competente restaurador Antonio Luiz Sarasá.
Finalmente, há de se falar da palavra identidade,
também muito freqüente nesta tão oportuna
publicação. Ela deve ser entendida em seu sentido
aristotélico, que se refere à mesma essência que
caracteriza um conjunto de coisas. No caso do nosso
palacete rico de Campos Elíseos, quando ele se
transformou em repartição pública, também deixou
de elencar o grupo de residências nobres dos cafezistas
paulistanos. Tudo isso, entretanto, não impede que ele
seja tombado como documento pertencente à
arquitetura eclética trazida pelo ouro verde a São Paulo
no último quartel do século XIX.
A nosso ver, essas três palavras constituem um
assunto menor que, às vezes, pode ser lembrado para
embasar uma ou outra reflexão envolvendo o ato de
tombar, mas tais atributos não concorrem diretamente
nas atuaçõesde preservação da construção. Aliás, as
coisas antigas hoje tombadas são aquelas que
sobraram, na maioria das ocasiões, à nossa revelia;
aquelas provenientes, principalmente, dos acervos da
classe dominante ou da Igreja. Quase nada do povo.
Enfim, de modo independente de suas identidades ou
autenticidades, os bens participantes do nosso
patrimônio têm que sofrer intervenção de natureza
variada. Na verdade, o que nos interessou comentar
nesta apresentação foi justamente o comportamento
das instituições e dos técnicos em face dos trabalhos
de restauração, de reconversão ou reuso de edifícios
ditos históricos ou de grande significado arquitetônico,
onde sempre esteve envolvida uma certa dose de
subjetividade que, quase sempre, é a deflagradora
das celeumas entre os referidos especialistas.
A nosso ver, nenhum monumento é intocável, destinado
somente à sua conformação original. O tombamento,
todo mundo concorda, não é um processo de
mumificação, os monumentos têm naturalmente a
capacidade de satisfazer a programas quais forem,
conforme seus espaços disponíveis, quais forem as
circunstâncias ou quais forem as conveniências. Se a
própria Carta de Veneza fala que, nas restaurações,
as intervenções ocorridas no passado devem
permanecer como testemunhos de sucessivas
expressões culturais, ela admite a liceidade de
acréscimos ao longo do tempo e em lugar algum ela
proíbe interferências legítimas posteriores ao
tombamento da construção histórica e bela. Devemos
respeitar o monumento por tudo o que ele tem de
significativo ou peculiar, seu partido arquitetônico, sua
volumetria, toda a sua decoração aderente, por dentro
e por fora, e seus espaços internos fundamentais
decorrentes das determinações básicas do programa
original e inclusive sua ambientação. Assim, num teatro
tombado, o nosso municipal, por exemplo, todo o seu
interior grandiloqüente de acesso ao público deve ser
conservado e cuidado, ficando claro, no entanto, que
toda a modernidade e progresso não poderão ficar
excluídos do trato ao urdimento da cena, aos camarins,
ao condicionamento do ar, etc. No caso da Estação da
Luz, onde recentemente houve discussões acaloradas
entre técnicos do IPHAN e os fiscais patrulhadores de
sempre do comportamento alheio, o motivo da briga
era a demolição de dezenas de paredes divisórias
formadoras de um renque de escritórios da
administração da velha SPR e sucessores, hoje
desativada. Tal compartimentação era normal a
qualquer prédio de escritórios da cidade, não era
específica da função ferroviária. Por sorte o bom senso
vigorou, pois a bela estação ao lado do Jardim da Luz,
embora adaptada, permanece intocada e íntegra, com
suas cores originais e sua sobranceira torre está a
dizer: não me amolem!
Raramente, surge o caso de um tombamento de bem
arquitetônico incompleto ou inacabado como esse das
construções do Parque Ibirapuera. Cremos que todos
os leitores já sabem que o programa dos festejos do
Quarto Centenário de São Paulo e o respectivo projeto
da equipe comandada por Oscar Niemeyer (o
verdadeiro criador) previam ali uma entrada
monumental ao lado de um grande auditório,
infelizmente não construído por falta de dinheiro. O
referido conjunto arquitetônico do parque foi tombado
assim, sem ter sido terminado. Cinqüenta anos depois,
a própria Prefeitura, uma das tombadoras, permite
seja construída nova casa de espetáculos, pelo mesmo
arquiteto, no mesmo local antes imaginado. Foi um
consentimento correto, o bem tombado completou-se
parcialmente, ficando ainda por fazer a plataforma de
entrada. Acontece que essa falta passou a exigir do
arquiteto uma nova solução para harmonizar o auditório
à marquise ali presente, e, para isso, há necessidade
que se corte um segmento daquela imensa passagem
coberta, providência mais que normal num processo
de adequação, pois nada foi desfigurado; a dita
marquise sempre será a ligação monumental entre os
distantes edifícios projetados por Oscar. Aí, aconteceu
uma coisa espantosa: a própria Prefeitura (leia-se
CONPRESP) que permitiu a construção do teatro
passou a proibir a execução da praça imaginada pelo
arquiteto. Note-se que as outras entidades, o
CONDEPHAAT e o IPHAN concordam com as obras
alvitadas.
18 IPHAN
É claro que nessa negativa contam bastante
subjetivismos equivocados e muita teimosia, que um
dia, esperamos sejam levados pelos ventos da política
para o bem do parque.
Talvez esta apresentação tenha se alongado muito,
mas julgamos oportunas nossas ponderações porque
poderão abrir mais os olhos do leitor neófito nessa
problemática da preservação em geral, pois, se somos
de pouca teoria, sabemos aproveitar a oportunidade
de juntar aos doutos ensaios aqui presentes um pouco
do pensamento de quem na vida somente enfrentou
obras de salvaguarda de nossa memória construída.
Perdoem-nos por esse desejo inoportuno de participar,
também, dos debates sugeridos pelo título do livro.
 São Paulo, janeiro de 2006
O IPHAN E O SOFÁ DE MÁRIO DE ANDRADE
ALDEIA DE CARAPICUÍBA
Antonio Luiz Dias de Andrade
Ex-Diretor do IPHAN em São Paulo
20 IPHAN
Fotomontagem executada pela Divisão
Técnica do IPHANAntonio Luiz Dias de Andrade
Nasceu em 14/03/1948 e faleceu em 1997. Arquiteto
formado em 1972 na FAU-USP recebeu os títulos de
Mestre em 1984 com a Dissertação “Técnicas
Construtivas, Vale do Paraíba” e de Doutorado em
1993 com a Tese “Um estado completo que pode
jamais ter existido” na FAU-USP – Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo, onde atuou como Professor desde 1976. Foi
Conselheiro do CONDEPHAAT de 1978 a 1994,
Diretor Regional do IPHAN em São Paulo de 1978 a
1994, membro do ICOMOS – International Council on
Monuments and Sites desde 1981, membro do
Conselho Superior do IAB, membro da delegação
brasileira na 18ª Sessão do Comitê do Patrimônio
Mundial da UNESCO, realizado no período de 12 a
17 de dezembro de 1994, na cidade de Phuket,
Tailândia. Responsável por dezenas de projetos e obras
de restauração no Brasil, foi autor de inúmeros
trabalhos publicados sobre a preservação do
patrimônio cultural.
21Patrimônio: Atualizando o Debate
O IPHAN E O SOFÁ DE MÁRIO
Antonio Luiz Dias de Andrade
No dia 18 de junho de 1991, Antonio Luiz Dias
de Andrade (Janjão) foi reconduzido como
Coordenador do “Patrimônio”, como é conhecido o
IPHAN em São Paulo, depois de dirigir a Regional
paulista desde 1978. O seu afastamento da direção
em 1990 foi motivado pela truculenta extinção da
SPHAN e da Fundação Nacional Pró-Memória
naquele período de triste memória. Os veículos
haviam sido leiloados, os equipamentos fotográficos
“doados”, os funcionários demitidos ou afastados,
tudo em nome da “modernização” e do novo plano
econômico que se implantava.
No sobrado da Rua Baronesa de Itu até um velho
sofá da recepção tinha como destino o descarte. A
resistência interna dos servidores contra o
“desmonte da Cultura” teve como símbolo a
manutenção e a defesa do velho sofá – metáfora da
nossa necessidade de sobrevivência. Como
justificativa para a sua conservação inventou-se a
tese que o tal sofá teria pertencido ao nosso patrono
Mário de Andrade. Os novos dirigentes intimidados
diante do “atributo histórico” do desgastado artefato
preferiram guardá-lo na garagem.
DE ANDRADE
A designação do arquiteto Jayme Zettel, integrante
dos quadros da instituição, para a presidência do
IBPC – Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural,
pelo novo ministro da Cultura Paulo Sérgio Rouanet
deu um novo alento aos servidores do “Patrimônio”.
O texto-discurso da posse de Janjão transcreve
este momento especial na história desta
Superintendência Regional e continua atual ao
enfatizar a necessidade de se restaurar e revitalizar a
nossa septuagenária instituição.
Muito tempo depois, encontramos nos arquivos do
IPHAN uma velha fotografia da antiga sede do
Patrimônio na Rua Marconi: Máriode Andrade, Luís
Saia e Bruno Giorgi, todos sentados no nosso sofá.
Conforme queríamos demonstrar.
Victor Hugo Mori
Fotografia na sede do IPHAN na Rua Marconi em 1944: Bruno Giorgi, Mário de Andrade e Luís Saia
Reprodução do IPHAN (1977) – Original do IEB
22 IPHAN
Sr. Presidente do IBPC,
Arq. Jaime Zettel,
Minhas Amigas, Meus Amigos.
Há nesta casa um sofá. Um sofá, roído, “amarfanhado” e desgastado, inclusive, alterado por
sucessivas reformas que lhe furtaram a primitiva feição.
Ninguém sabe ao certo como veio parar aqui.
Alguns pretendem haver pertencido a Mario de Andrade, outros afirmam que o sofá constitui
parte remanescente do mobiliário original da sede da então 6ª Região da SPHAN, que já sob
o comando do Arquiteto Luis Saia, ocupava a sala nº 412 do edifício nº 87 da Rua Marconi.
Seja qual for a versão verdadeira, estamos acostumados há muito a compartilhar nesta casa
de sua veneranda presença. Temos pelo velho - ou antigo - sofá, um especial apreço e sentimos
por ele uma grande afinidade.
Vários de nós igualmente demonstramos os sinais do tempo, seqüelas de desgastes, cicatrizes
de sucessivas crises.
Recentemente o velho sofá foi motivo de polêmica. Em face de seu combalido aspecto
chegou-se a pensar em se desfazer de sua incômoda presença, afinal um velho sofá não
condiz com o novo tempo que se pretende inaugurar.
 Tal desígnio não foi aceito passivamente. A maioria se manifestou em favor de sua conservação,
dividiu-se, todavia, quanto aos critérios a serem empregados.
Os mais ortodoxos julgaram que o sofá deveria ser restaurado em obediência rigorosa às
suas formas originais, devendo receber o mesmo revestimento de couro e semelhantes ágrafos
de latão agaloados.
Os partidários da modalidade da conservação levantaram-se em defesa da manutenção do
“curvim” de segunda classe, como testemunho da ação do tempo, das mudanças dos
movimentos do gosto e da decadência dos recursos disponíveis no âmbito das instituições
públicas.
O sofá permaneceu, muito embora não se chegasse a uma solução definitiva para o problema
de sua conservação.
Os partidários do simples descarte nisso enxergaram uma enérgica manifestação de um
enraizado imobilismo, um forte apego a uns passados míticos, que procura interromper
qualquer processo de mudança.
Os defensores do sofá, no entanto, não são contra as mudanças, julgam-nas extremamente
necessárias, sobretudo em um momento em que vemos ampliadas nossas responsabilidades
na preservação do patrimônio cultural, momento em que o assunto deixou de constituir o
domínio de reduzidos grupos de abnegados, integrando as preocupações e os anseios de
expressivas parcelas da opinião pública.
23Patrimônio: Atualizando o Debate
Não deixa de representar uma forma de paradoxo pensar o “novo” numa instituição que se
dedica ao passado.
As alternativas serão sempre polêmicas.
Deverão prevalecer aquelas que adquirirem o maior consenso.
E hoje, se fizemos questão de reuni-los aqui é porque continuamos a perseguir uma solução
para o nosso sofá.
Sozinhos, será difícil encontrá-la.
Carecemos, hoje mais do que nunca, do auxílio de todos vocês.
São Paulo, 18 de junho de 1991.
Antonio Luiz Dias de Andrade
“O retorno triunfal do sofá na Rua Baronesa de Itu”
Mário de Andrade na frente com o sofá sendo conduzido por Mauro Bondi e José Saia em caricatura de
autoria de Antonio Luiz Dias de Andrade (1991)
24 IPHAN
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo levantar algumas
questões sobre a cultura material, a partir da análise
dos artefatos, em especial, das habitações e de suas
estruturas, consideradas no contexto de um
assentamento humano. Bem como caracterizar no
tempo, as adaptações resultantes dos processos de
mudanças culturais.
Optamos por definir uma área de interesse: a Aldeia
de Carapicuíba, devido à sua importância como único
exemplo de aldeamento jesuítico que sobreviveu aos
momentos posteriores, segundo os padrões pré-
estabelecidos de organização social; e também ao
acesso a alguns dados empíricos sobre a natureza
das atividades do grupo humano ali estabelecido e,
sobretudo, a respeito da habitação.
Descrição da Aldeia
A localidade conhecida por Aldeia Velha ou
Carapicuíba é um distrito do Município de
Carapicuíba, pertencente à área metropolitana de São
Paulo, com função residencial, de caráter popular,
contando com algumas indústrias nas proximidades,
estabelecimentos de prestação de serviços e
comércio, sítios e chácaras de cultivo, residencial e
de recreio.
O sítio original foi criado sobre uma colina que domina
ampla paisagem ao redor, organizado de modo a
estabelecer um espaço central aberto, em torno do
qual localizam-se as unidades residenciais, com a
capela no lado superior, em posição de destaque.
A praça da Aldeia é cortada pela estrada asfaltada
que liga a via Raposo Tavares com a sede municipal.
ALDEIA DE CARAPICUÍBA *
Antonio Luiz Dias de Andrade
25Patrimônio: Atualizando o Debate
Dos demais cantos da praça partem outros caminhos
e ruas de chão batido, ao longo dos quais foram
traçados novos loteamentos.
Nos terrenos superiores da colina, do lado direito de
quem da praça olha a capela, estão localizados os
lotes que concentram o maior número de novas
construções.
No lado esquerdo está implantado o Sanatório
Anhembi, que ocupa grande área. Junto à sua divisa
inferior há novos lotes que se expandem pela colina,
até atingirem as várzeas dos córregos que a envolvem.
Nestas áreas, verificamos a existência de algumas
pequenas chácaras, cujos limites encontram os
quintais das casas localizadas na praça.
Os terrenos mais baixos, até atingirem os limites da
várzea, encontram-se desimpedidos, existindo uma
ou outra casa isolada.
Novas concentrações estão localizadas na colina
oposta à Aldeia na direção NO, segundo os mesmos
padrões de loteamento popular, havendo também uma
indústria de plástico, do lado esquerdo da estrada
principal, junto aos limites do bairro vizinho de Vila
Dirce. Em torno desta indústria observam-se novos
focos de residências, de construção bastante precária,
expandindo-se para os terrenos que circundam a
Aldeia.
Na estrada de terra (Estrada da aldeia de Carapicuíba)
que também atinge a praça, comunicando-se com os
bairros de Granja Velha e Granja Viana, está localizado
o Estabelecimento Escolar, assim como algumas
residências de mesmo padrão, ocupando lotes
maiores, chácaras e sítios.
Vista do lado norte da Aldeia de Carapicuíba; na
página ao lado, desenho da Aldeia em 1938 e vista
do lado sul com a Capela ao centro
Fotos Victor Mori, Desenho Luís Saia
* Nota dos organizadores: Após o falecimento do autor em
1997, a Prefeitura de Carapicuíba desapropriou a área do
entorno da Aldeia criando o Parque da Aldeia de
Carapicuíba. O Museu Arqueológico do Rodoanel será
edificado neste parque mediante acordo de compensação
ambiental assinado entre a DERSA e o IPHAN.
26 IPHAN
Os tipos de habitação:
1 – As antigas casas do “terreiro” da Aldeia
Apesar da uniformidade aparente verificada no
conjunto das residências que constituem o antigo
núcleo da Aldeia, estas apresentam padrões de
organização dos espaços internos bastante
diferenciados entre si.
Podem ser observadas casas bastante simples, com
um ou dois cômodos, ao lado de outras com plantas
mais complexas de caráter “erudito” (1), era função
de uma interpretação popular da casa média típica do
século XIX, já bastante descrita e caracterizada,
formada por dois ou três lanços onde é organizado,
em faixas sucessivas, o programa da residência. As
áreas fronteiras são reservadas aos espaços de
convívio social, os quartos e alcovas estão dispostos
nas áreas intermediárias e, nos fundos, o estar
cotidiano e serviços domésticos.
Constata-se também, a existência de alguns casos
cuja planta é definida segundo a simples justaposição
de cômodos,sem que haja evidências de um plano
mais racional de organização, assim como a
adaptação, em alguns exemplos, em função do atual
uso comercial (bares e vendas).
No entanto, nota-se a característica comum entre todos
os edifícios da Aldeia, quanto às técnicas empregadas
em sua construção, bem como a forma de
assentamento no terreno. Todas as casas são
construídas através de emprego da estrutura autônoma
de madeira com vedos de pau-a-pique. Nota-se que
em alguns exemplares as paredes primitivas foram
substituídas por outras de alvenaria de tijolos.
No interior do correr lateral de casas, à esquerda da
capela, existem três “empenas” de taipa de pilão,
apresentando as mesmas dimensões, assim como
igual espaçamento.
No mesmo sentido, podemos observar no lanço
fronteiro à capela, junto aos oitões da casa vizinha ao
botequim da esquina, dois vãos que isolam esta
habitação, na largura de uma parede de taipa, com o
mesmo comprimento e espaçamento daquelas
primeiras.
A declividade dos terrenos da área nuclear da Aldeia
encontrou resposta adequada no “partido” (2)
construtivo das habitações, determinando que os
sucessivos cômodos adotassem níveis diferentes,
através do estabelecimento de plataformas.
O conseqüente plano de cobertura, de duas águas,
tem a cumeeira paralela à testada do lote e está
disposta no eixo da faixa fronteira.
O estabelecimento das plataformas em diferentes
cotas, assim como a forma de cobertura, permitiu com
bastante facilidade que, no decorrer do tempo, as
casas fossem sendo ampliadas, na medida das
necessidades e conveniências, através do simples
prolongamento da água posterior do telhado,
mantendo inclusive variações próximas do pé-direito,
sem exigir maiores complementações estruturais.
As áreas externas, posteriores à habitação,
caracterizam-se de modo geral, como locais de serviço,
nos quais localiza-se a série de equipamentos
necessários às atividades ali desenvolvidas, ligadas
ao preparo de alimentos, lavagem de roupas e trem
de cozinha.
27Patrimônio: Atualizando o Debate
As áreas dos quintais também são usadas para a
criação doméstica de aves e animais, plantio de
hortaliças e uma ou outra árvore frutífera.
No fundo dos quintais ou junto à casa, localizam-se as
fossas negras. A água utilizada para todas as
necessidades provém de poços e cisternas existentes
junto às áreas de serviço. Todas as casas possuem
energia elétrica e em várias se constata o conjunto
motor-bomba instalado junto ao poço que abastece
um sistema de canalização.
2 – A casa popular de construção recente
Nas áreas de expansão recente da Aldeia de
Carapicuíba, verificamos, da mesma maneira que foi
observado em relação às antigas habitações da praça,
vários tipos de solução ou formas de organização dos
programas residenciais.
Não possuímos os dados necessários para uma
adequada descrição das habitações existentes em tais
áreas, assim nos limitaremos a uma caracterização
genérica dos principais tipos, resultado de uma
observação superficial.
O tipo de residência mais simples pode ser verificado,
geralmente nos menores lotes (5 x l5 m), implantado
junto à divisa dos fundos, ocupando quase toda sua
largura e constituída por um ou dois cômodos.
A utilização das áreas internas é bastante confusa com
sobreposição de diferentes funções. Quando a casa
possui dois cômodos, um deles destina-se a servir
como quarto onde estão dispostos camas, armários,
baús e caixas onde se armazenam os mais diversos
28 IPHAN
pertences. Dado às suas exíguas dimensões,
dificilmente existe espaço para a circulação. O outro
compartimento é reservado para a cozinha, estar e
refeição e mesmo como área de dormir, quando o
número de pessoas da família excede aquilo que o
quarto pode comportar (3).
O espaço externo é utilizado normalmente como
extensão natural das áreas de estar e de serviços.
A unidade observada nas antigas casas do
“quadrado”, em relação aos aspectos construtivos,
emprego de materiais e assentamento no terreno em
observância à topografia, não é percebida quando
analisamos as áreas de expansão.
Nota-se a preferência pela plataforma plana quando o
lote se apresenta em condições naturais adversas, ela
é construída por meio de cortes e aterros,
determinando a perda de unidade no conjunto das
edificações.
Também verificamos o emprego das mais variadas
técnicas construtivas, assim como o uso de materiais
como a alvenaria de tijolos, blocos de concreto ou
mesmo a madeira para as paredes, e telhas cerâmicas,
folhas de zinco, placas onduladas de fibrocimento ou
lajes pré-moldadas para a cobertura.
Entretanto vários outros tipos de habitações são
encontrados em tais áreas, com padrões residenciais
médios, muitas vezes em obediência a projetos de
casa popular, fornecidos pela Administração
Municipal, contando inclusive com financiamentos das
instituições de crédito, como pode ser notado através
de placas de identificação das casas que se encontram
em obras.
Observa-se que outras habitações resultam de
processos construtivos por etapas, na medida das
disponibilidades financeiras ou das solicitações dos
programas, sem apresentar, contudo, a unidade
existente nas residências da praça, constituindo-se
geralmente de uma série de cômodos justapostos e
mal agenciados.
3- Casas isoladas
Cumpre destacar, das residências encontradas fora
das áreas loteadas, nos arredores da praça da Aldeia,
dois tipos principais de habitação. O primeiro é aquele
resultante de uma ocupação mais antiga, constituindo-
se geralmente de pequenas casas, cujo partido
tradicional não difere das casas localizadas na praça,
a não ser por seu caráter de construção isolada e da
aglutinação, em torno de si, de pequenas construções
destinadas aos serviços, armazenamento, criação e
abrigo de equipamentos.
O outro tipo é estabelecido pelas habitações
implantadas em lotes maiores, pequenas chácaras,
de caráter residencial ou de recreio, constituindo padrão
de exceção em consideração àquelas predominantes.
Localizam-se principalmente na “estrada da Aldeia
de Carapicuíba” em direção ao loteamento “Granja
Velha”.
Análise dos padrões de habitação
O objetivo inicial deste trabalho não poderá ser atingido
tendo em vista exclusivamente a análise das
habitações, urna vez que cremos que a tipificação de
seus padrões descrita sumariamente, não é suficiente
para a caracterização do grupo social estabelecido na
Aldeia de Carapicuíba, assim como também a
identificação das formas de adaptações ocorridas. É
necessário que nos orientemos no conhecimento
decorrente de outras fontes de informações.
Sabemos que o núcleo teve sua origem a partir de
uma povoação jesuítica, implantada no fim do primeiro
século de colonização e que, apesar da tentativa
frustrada de remover o contingente indígena ali reunido
29Patrimônio: Atualizando o Debate
para Itapecerica, tendo sido inclusive destruído o
conjunto das instalações primitivas, a Aldeia foi
reconstruída em 1736, no mesmo local, acreditando-
se, de acordo com a disposição original.
Também é conhecida a orientação dos padres da
Companhia de Jesus, na criação de seus núcleos de
Catequese, quanto à organização dos espaços e formas
de habitação.
Ainda diante dos fatos revelados pela documentação
textual, é sabido que, após a expulsão daqueles
padres, a população indígena remanescente sofreu
processo de aculturação, determinado pelo maior
contato com o colono paulista (4).
Fotos da remontagem em 1956 da Casa que abriga
hoje o Correio - Fotos Germano Graeser
Última restauração executada em 2004
Foto Antonio L. Sarasá
O grupo social resultante pode ser caracterizado como
predominantemente rural, isolado e dedicado às
atividades de agricultura e criação de subsistência,
não diferente dos demais núcleos localizados nas
proximidades (5).
Somente o crescimento da cidade de São Paulo,
provocado pela expansãodas atividades industriais e
comerciais, definindo novas áreas de desenvolvimento
irá alterar o quadro cultural do grupo instalado em
Carapicuíba, através da introdução de novos
componentes em sua estrutura social.
A correspondência que procuramos estabelecer no
processo evolutivo do núcleo de Carapicuíba, através
de sua habitação, nos revela que do primitivo
aldeamento dos jesuítas, permaneceu a forma básica
de organização do espaço nuclear.
30 IPHAN
Conforme somos levados a acreditar, as habitações
dos indígenas não eram estruturalmente diferentes
daqueles tipos verificados nas demais povoações
jesuíticas, de acordo com os documentos existentes.
A Aldeia era formada pelo correr de unidades
uniformes, sem divisões internas e não havendo
padrões especiais que as distinguissem uma das
outras (6).
Em relação às casas mais antigas, hoje existentes no
núcleo histórico da Aldeia, constatamos padrões
diversos de organização interior.
A existência de paredes internas às mesmas,
construídas segundo técnicas diferentes das
usualmente utilizadas no conjunto, podemos atribuir
como sendo remanescente das primitivas habitações
indígenas, pela semelhança com os padrões descritos
por Peramás.
A compartimentação das unidades residenciais dos
índios não foi capaz de abrigar os programas
resultantes dos novos momentos. Assim, é possível
que as casas tenham sido adaptadas conforme a
solicitação das necessidades básicas.
No entanto, verifica-se que tais adaptações foram
sobrepostas à primitiva estrutura espacial, envolvendo
apenas a reorganização dos espaços internos,
adequando-se à nova ordem social.
A série de soluções em planta reflete diferenças
existentes no meio cultural, quer através de classes
sociais distintas, quer da disponibilidade de recursos
no atendimento às necessidades.
Imagem da Casa 13 depois da restauração efetuada
em 2005 - Foto Victor Mori
Fotografia de 1956 da mesma edificação
Foto Germano Graeser
31Patrimônio: Atualizando o Debate
Vista aérea da Aldeia de Carapicuíba em 2002 - Foto da Prefeitura Municipal de Carapicuíba
Da mesma forma, os sucessivos acréscimos
estabelecidos através dos prolongos (7), ampliando
as residências, evidenciados pela análise construtiva
de seus elementos estruturais, revelam instabilidade
dos programas transitórios, decorrente de uma
sociedade rural, baseada na exploração de gêneros
de subsistência. E é este o quadro que permaneceu
até recentemente, salvo a incorporação dos benefícios
determinados pelo contato com áreas culturais
diversas, por meio de um sistema de comunicação
mais eficiente (8).
A transformação maior da Aldeia inicia-se após a
Segunda Guerra, por ocasião do acelerado
desenvolvimento industrial da região de Osasco e da
afirmação do município de Cotia como centro de
produção agrícola.
As áreas de expansão de tais regiões atingem os
limites do aglomerado rural que, devido à sua
proximidade com aqueles centros, é invadido
desordenadamente por bairros residenciais operários,
facilitados pela implantação de vias e sistema de
transportes mais eficazes.
Nota-se, através da observação das recentes unidades
residenciais, construídas nos loteamentos que ocupam
as antigas áreas de cultivo, a convivência entre os
tipos de habitação estritamente urbanos, que podem
ser identificados em qualquer vila próxima a São Paulo,
com aqueles outros tipos onde persistem formas
tradicionais de organização vinculadas ao passado
rural.
Mesmo em relação aos edifícios mais antigos da
Aldeia, embora sujeitos à situação especial, decorrente
das restrições impostas pelo seu tombamento, o
desenvolvimento acarretou transformações em seus
programas com o surgimento de um pequeno
comércio, subdivisão em lotes para construção de
novas residências, dada a valorização crescente dos
terrenos e a exploração do turismo, principalmente
nas ocasiões de festas populares.
32 IPHAN
NOTAS
1 “.... O plano da residência do sr. Virgílio, não tenho
dúvidas que é francamente erudito..... sobretudo por
causa da existência aí, de um compartimento de
entrada e de um corredor....” (Luís Saia, A Aldeia de
Carapicuíba - original datilografado, 1938). Saia atribui
esta “erudição” à ação dos jesuítas “... O meu amigo
Gilberto Chaves, viajando no Rio Grande do Sul,
colheu para mim, na antiga redução jesuítica de São
Tiago do Boqueirão, um plano de habitação antiga
exatamente idêntico ao deste exemplo carapicuibano.
Seria coincidência muito estranhável que se
encontrassem dois planos complexos iguais em lugares
de mesma formação, sem que se atribuísse sua
procedência a uma mesma fonte, neste caso a jesuítica
erudita.” (Luís Saia, op. cit.)
2 “Quando se estuda qualquer obra de arquitetura, importa
ter primeiro em vista, além das imposições do meio
físico e social, consideradas no seu sentido mais
amplo, o programa, isto é, quais as finalidades dela e
as necessidades de natureza funcional a satisfazer;
em seguida a “técnica”, quer dizer os materiais e o
sistema de construção adotado; depois o “partido”, ou
seja, de que maneira, com utilização dessa técnica,
foram traduzidos em termos de arquitetura as
determinações daquele programa; finalmente a
“comodulação” e a “modenatura”, entendendo-se por
isto as qualidades plásticas do monumento.” (Lúcio
Costa, Arquitetura dos Jesuítas no Brasil – Revista do
SPHAN nº 5 R.J. 1945).
3 “A cozinha na verdade é a sala de estar. A atividade
culinária fica circunscrita a um pequeno canto para o
fogão. Panelas e louças são lavadas fora num puxado
à beira da cisterna ou no quintal ao ar livre”. (Carlos
Lemos, Pesquisa sobre a habitação popular –1961 –
FAU - USP).
4 “.... A sua população confunde-se com a civilizada...”
(Almanak da Província de São Paulo -1873 -organizado
por A.J.B. de Luné e P. D. da Fonseca).
5 “cinturão caipira” da cidade de São Paulo.
6 “.... una sola era Ia medida para todas las casas, su
superficie abarcaba unas sietes brazas cuadradas
aproximadamente (25a30m 2). Agrupábanse en
manzanas, de seis o siete casas cada una, separadas,
como dije, por calles de anchura uniforme.” (Peramás,
La Republica de Platon y los Guaranies – EMECÉ
Editores S.A. – Buenos Aires, 1946 – Trad. Juan Cortés
del Pino – original latino “De Admnistratione Guaranica
comparate Rempublicam Platonis Comentarius).
BIBLIOGRAFIA CITADA
BLANTON, Richard E. - Anthropological Studies of Cities.
BOURDIEU, Pierre - La Maison Kabyle ou Le Monde
Renversé.
COSTA, Lúcio - A Arquitetura dos Jesuítas no Brasil -
Revista do IPHAN R.J. nº 5.
FLORESTAN FERNANDES - Caracteres Rurais e Urbanos
na Formação da Cidade de São Paulo. Aspectos do
Povoamento de São Paulo no século XVI. in: Mudanças
Sociais no Brasil - Coleção Corpo e Alma do Brasil -
Difel - S.P. 1974.
GULIK, John -Urban Anthropology.
LEMOS, Carlos C. - Pesquisas sobre habitação Popular
-1964 - 1965. FAU-USP 1976.
PENTEADO, A.R. e Petrone, P. - São Caetano do Sul e
Osasco, Subúrbios Industriais. in: A Cidade de São
Paulo - Estudos de Geografia Urbana- volume IV - Os
Subúrbios Paulistanos - Associação dos Geógrafos
Brasileiros - C.E.N. - S.P. 1958.
PERAMÁS, J.M. - La Republica de Platon y los Guaranies
- EMECÉ - Editores, S.A. Buenos Aires - 1946.
SAIA, Luis -Aldeia de Carapicuíba -original datilografado -
1938.
7 Prolongo: diz-se de uma água de telhado paralela a
outra água maior ou mais importante na cobertura.
Prolongamento de um telhado, que vai abaixo da linha
do frechal. Telhado de um puxado . Dicionário da
Arquitetura Brasileira Corona & Lemos - Carlos A. C.
Lemos e Eduardo Corona - Edart- São Paulo Livraria
Editora, 1972.
8 “... um ou outro rancho de pau a pique, roças de milho,
batata, cebola e um largo panorama de colinas é o que
se vê de um lado e outro do caminho. O tom
predominante da paisagem é dado pelos pastos, apenas
interrompido por alguma capoeira sem importância.”
(Luís Saia,op. cit.).
A CIDADE COMO BEM CULTURAL
Áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance
na preservação do patrimônio ambiental urbano
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
Professor Titular do DH-FFLCH/USP
Membro do Conselho Consultivo do IPHAN
34 IPHAN
Fotografia tirada do alto do Edifício do Banco
do Estado na cidade de São Paulo -
no primeiro plano o Mosteiro de São Bento
e ao fundo a Serra da Cantareira
Foto Victor Mori
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
É professor Titular da USP - Universidade de São
Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências
Humanas - Departamento de História, Doutor pela
Universidade de Paris e Livre-Docente pela USP. Autor
de inúmeros trabalhos publicados na área de
Patrimônio Cultural, História, Arqueologia, Filosofia e
Teoria de História, é membro fundador do Comitê
Brasileiro de História da Arte e membro fundador do
Comitê Brasileiro do ICOMOS – International Council
on Monuments and Sites e Conselheiro do IPHAN –
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
desde 2005. Foi Conselheiro, Vice-Presidente e
Presidente interino do CONDEPHAAT – Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico do Estado de São Paulo e Vice-
Presidente do Comitê Brasileiro do ICOM -
International Council of Museums/ UNESCO.
35Patrimônio: Atualizando o Debate
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses
A CIDADE COMO BEM CULTURAL - Áreas envoltórias e outros dilemas,
equívocos e alcance da preservação do patrimônio ambiental urbano
APRESENTAÇÃO
O tema deste texto e o enfoque de muitas questões
delicadas pressupõem o interesse de um debate. Em
outras palavras, embora acredite na consistência e
coerência dos argumentos de que me valho, acredito
também que certas questões podem acolher
tratamento alternativo, luzes diversas das que projetei
e aspectos que subestimei. No fundo, porém, o caráter
provocador que acentua a tonalidade de alguns desses
tópicos deve-se, antes de mais nada, a uma certa
raridade de discussões, entre nós, que tomem a
problemática do patrimônio cultural no seu nervo
próprio: o de fato social.
Tal perspectiva exigiria uma moldura de conceitos e
categorias para, dentro dela, balizar o tratamento das
inúmeras facetas envolvidas e articuladas. Esta
pretensão de summa, todavia, não está no meu
horizonte. Pelo contrário, procedi a vários cortes e
selecionei questões, referenciado por minha
experiência no órgão encarregado da preservação do
patrimônio cultural no Estado de São Paulo, o
CONDEPHAAT.
O eixo de articulação foi, sempre, o dos conflitos entre
preservação1 e ordenação urbana. Daí, por exemplo, o
espaço aparentemente excessivo dedicado à questão
das “áreas envoltórias” de bens tombados, ao lado do
quase silêncio no exame do tombamento, em si, e de
institutos introduzidos pela Constituição Federal de
1988 ou pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257
de 10.07.2001). Por sua relevância, complexidade e
particularidades, estas questões merecem um
tratamento à parte, que fica para outra ocasião. Impõe-
se reconhecer, portanto, o caráter parcial do presente
trabalho quanto às expectativas presumidas pelo título
escolhido. Seja como for, dentre os alvos prioritários
do texto não estava chegar a proposições concretas
para os problemas que serão apresentados, mas
identificá-los e definir as premissas para uma
reflexão mais aprofundada, sem o que qualquer
encaminhamento seria frágil e enganoso.
A experiência do CONDEPHAAT serviu, como se
disse, de referência primeira para todas as reflexões.
Não que o alcance delas limite-se às fronteiras do
órgão de preservação do Estado de São Paulo; mutatis
mutandis, o alcance vale para o país em geral.
Uma observação indispensável diz respeito ao partido
de evitar, como foi dito, o modelo da summa que
compendiasse as regras e as cartas que integravam
meu jogo. Não teria sentido apresentá-las todas aqui.
Mas a necessidade de lastrear entendimentos que
nem sempre coincidem com o expresso pelo senso
comum e pelas opiniões correntes obrigou-me a um
número considerável de citações de outros trabalhos,
inclusive meus. Quanto ao propósito da auto-
referência não foi o de aproveitar a oportunidade para
merchandising acadêmico, mas o de abrir pistas para
a identificação precisamente das cartas que orientam
meu jogo e das regras a que me submeto, sem
comprometer, tanto quanto possível, a legibilidade
do texto.
A inspiração que sustentou a redação do trabalho foi a
crença de que, apesar de tudo, a cidade pode ser
vivida como um bem cultural. Além disso, permanece
a esperança de que a agenda proposta dos temas
para discussão possa efetivar-se em breve e contribuir
para orientar a atuação dos profissionais do campo do
patrimônio cultural.
BEM CULTURAL
Como pode a cidade ser considerada um “bem”?
“Bem” quer dizer coisa boa, aprazível, benéfica,
gratificante, confiável. É o sentido vulgar, mas não há
razão para descartá-lo e ele nos bastará, aqui. Trata-
se sempre de um valor positivo – ao menos no singular
já que, por exemplo, a expressão “homem de bens”
tem mais desdobramentos e ambigüidades que
“homem de bem”. Seja como for, cidade, assim como
família, universidade, museu, política, economia, etc.,
são conceitos que, hoje, parecem imersos em crise
1 A palavra preservação está aqui empregada no sentido
mais amplo, que inclui não só diversas modalidades de
proteção legal e física do patrimônio cultural
(tombamento, desapropriação etc.etc.etc., mas ainda
conservação, restauração, reabilitação etc.etc.), como,
também, as operações de identificação (pesquisa,
documentação, análise) e valorização (principalmente
pelo uso e garantias de fruição social).
36 IPHAN
permanente. Cidade, então, parece ser um caso
agravado, e desde o século XIX dificilmente vem
desacoplada da noção de “problema urbano”. O
adjetivo urbano, aliás, como que acrescenta dose
maior de problema àquilo que deve qualificar: violência
urbana, marginalidade urbana etc. soam muito mais
graves que os substantivos desadjetivados. E se, de
fato, olharmos em torno, na cidade, o espetáculo
observado em nada desmente estas primeiras
impressões.
Não seria melhor dizer, então, “bens culturais na
cidade”, pois haverá, por certo, descontinuidade nos
problemas, bolsões de tranqüilidade e ilhas de
compensação? Ocorre, porém, que o caráter
problemático da cidade não se encontra nela –
entendida como uma forma espacial de assentamento
humano – mas na sociedade, no tipo de relações entre
os homens que a institui e organiza. É possível, pois,
que a cidade, a cidade ela própria (de maneira
diferencial, é claro, com escalas variadas e pelos mais
diversificados atores) seja qualificável positivamente,
apesar dos problemas que estejam a infestá-la.
No entanto, para melhor compreender esta atribuição
de qualidades à cidade (no seu todo, como síntese,
ou a partes dela), é necessário examinar três
dimensões em que toda cidade se realiza. São
dimensões intimamente imbricadas e que agem
solidariamente: a dimensão do artefato, a do campo
de forças e a das significações.
Dimensões da cidade: artefato, campo de
forças, representações sociais
Não se trata de estratos, segmentos ou compar-
timentos, nem de propriedades diferentes, formas
diferentes, efeitos diferentes — mas de focos
diferentes para a observação da natureza, estrutura,
funcionamento e transformação de uma realidade
altamente complexa e dinâmica.
A primeira dimensão é a da cidade como artefato.
A cidade é coisa feita, fabricada. Artefato, no sentido
mais genérico, é um segmento da natureza física
socialmente apropriado, isto é, ao qual se impôs,
segundo padrões sociais, uma forma ou uma função
ou um sentido (seja conjuntamente, seja isoladamente
ou em diversas combinações). Foi na condição de
artefato que a cidade mereceu maior atenção dos
estudiosos. Grande parte da literatura dehistória
urbana, por exemplo, diz respeito à cidade tratada
como artefato complexo: é a história dos padrões
locacionais, das configurações topográficas, dos
traçados urbanos e das formas arquitetônicas, dos
arranjos espaciais, das estruturas, equipamentos,
infinitos objetos.
Mas tal artefato não se gerou numa atmosfera
abstrata: foi produzido no interior de relações que os
homens desenvolvem uns com os outros. A segunda
dimensão, assim, é a do campo de forças. A expressão
é tomada de empréstimo à Física, para ilustrar um
espaço definível de tensões, conflitos, de interesses
e energias em confronto constante, de natureza
territorial econômica, política, social, cultural e assim
por diante. O artefato, em última instância, é o produto
deste campo de forças, mas também é seu vetor e
permite sua reprodução. Nesta perspectiva, por
exemplo, é que se têm desenvolvido estudos de
processos de formação e transformação – a
urbanização, seus fatores e contingências, seus efeitos.
No entanto, a cidade não é apenas um artefato
socialmente produzido, nesse campo de forças, como
numa máquina. As práticas que dão forma e função ao
espaço e o instituem como artefato, também lhe dão
sentido e inteligibilidade e, por sua vez, alimentam-
se, elas próprias, de sentido. Por isso, a cidade é
também representação, imagem. A imagem que os
habitantes se fazem da cidade ou de fragmentos seus
é fundamental para a prática da cidade. Apesar da
voga recente do imaginário urbano como tema de
estudo, é raro encontrá-lo inserido entre as demais
dimensões e tratado adequadamente como fenômeno
social2.
Ora, para compreender a cidade como bem cultural, é
preciso enfrentá-la simultaneamente nas três
dimensões. O bem cultural tem matrizes no universo
dos sentidos, da percepção e da cognição, dos valores,
da memória e das identidades, das ideologias,
expectativas, mentalidades, etc. Todavia, as
representações, para deixarem de ser mero fato mental
ou psíquico e integrarem a vida social, precisam passar
pelo mundo sensorial, do universo físico: o patrimônio
ambiental urbano tem matrizes na dimensão física da
2 Ao falar de imaginário urbano – que entendo como
modalidade específica do fenômeno mais amplo das
representações sociais – suponho imagens estruturadas
e operadas a partir de grupos sociais e práticas espaciais
específicas e não simples conjuntos de imagens,
refugiadas nas mentes ou na consciência dos indivíduos
(Meneses 1997).
3 Trata-se de um conjunto no Bexiga, extraordinária obra
de bricolage, hoje degradada e servindo de habitação
em condições precárias.
37Patrimônio: Atualizando o Debate
cidade, pois é por meio de elementos empíricos do
ambiente urbano que os significados são instituídos,
criados, circulam, produzem efeitos, reciclam-se e se
descartam. Afinal, a corporalidade é base de nossa
condição humana. Além disso, não sendo os
significados derivados de nossa constituição genética,
nem tendo natureza estável, mas sendo produto de
escolha e, portanto, historicamente instituídos,
mutáveis e diversificáveis, não são nas coisas
selecionadas elas próprias que devemos buscar
critérios conclusivos para identificar o que compõe
esse sistema de referências e guias. São nas forças
que geram os interesses e nos conflitos que podem
opô-los uns aos outros e nos jogos variados de
proposição, imposição ou negociação que
encontraremos as chaves pelas quais certos atributos
geométricos e físico-químicos (os únicos imanentes)
das coisas permitem sua mobilização a serviço do
sentido. Sem as práticas sociais, não há significados
sociais. Mas também não há significados sociais sem
vetores materiais. É, portanto, apenas dentro do campo
de forças e dos padrões segundo os quais elas agem
(e valendo-se de suportes materiais de sentidos e
valores), que se pode compreender a gênese e a
prática do patrimônio.
Usos da cidade como bem cultural: usos
culturais?
Em 1976 a Coordenadoria de Ação Regional da
Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de
São Paulo organizou um concurso de fotografias que
teve como mote “A cidade é também sua casa”, sob a
coordenação de Maria Adélia de Souza e Eduardo
Yázigi. A idéia, muito oportuna, era induzir os
habitantes a identificar aquilo que, em suas cidades,
lhes parecesse “significativo” – capaz, diríamos nós,
de gerar sentido, de servir como referencial cognitivo,
afetivo, estético, sígnico, pragmático, ético. Solicitava-
se que, além de fotografar espaços, edifícios e outros
elementos do ambiente urbano, os concorrentes
preenchessem um formulário justificando suas
escolhas e propondo usos adequados para elas.
A participação foi numerosa e os resultados
instigantes, vindos de todos os pontos do Estado. Um
fato, porém, me pareceu preocupante. Convidado a
selecionar dentre as 5.300 fotos enviadas as 640 que
integrariam uma exposição, descobri que, se os
critérios e motivos para eleger os monumentos, lugares
e coisas eram bastante diversificados, os usos
propostos se canalizavam todos para um mesmo funil,
de caráter exclusiva ou predominantemente
contemplativo, “usos culturais”. Para exemplificar, em
São Paulo, bens tão diferentes entre si como o Mercado
Velho, ou o Mercado de Santo Amaro ou a Vila Itororó3
tiveram adesão consistente, com múltiplos
fundamentos. Mas as propostas (mesmo no caso de
potencial funcional presente) eram todas deAntigo Mercado de Santo Amaro na capital paulista,
convertido em Centro Cultural
Foto João Bacellar (acervo IPHAN- 9a SR)
38 IPHAN
preservação com vistas à sua transformação em
museus, “centros de criatividade”, espaços de lazer,
bares, ateliês de artistas... (O Mercado Velho de Santo
Amaro é, hoje, um centro cultural). É como se as
qualidades reconhecidas nesses edifícios não
pudessem ser contaminadas por usos “menos nobres”
atribuídos ao trabalho e ao cotidiano. Compreende-se
(embora não se justifique) a desvalorização do
trabalho, associada a um alto padrão de desperdício,
numa sociedade que ainda tem muito que fazer para
superar sua herança escravocrata. O desprezo pela
função de habitar tem a ver com a exclusão da cultura
no horizonte do cotidiano e se agrava em relação ao
trabalho: toda publicidade imobiliária de alto padrão,
hoje em dia, insiste em exilar do espaço de habitação,
com rigorosa assepsia, qualquer ameaça de presença
visível do trabalho. Quanto ao cotidiano, observe-se,
ainda, o desconforto inconsciente que ele provoca, já
que, muito mais do que uma inofensiva repetição de si
mesmo no dia-a-dia, ele é por excelência a instância
em que concretamente se instituem as relações
sociais, em que as práticas sociais dão corpo e efeito
aos interesses em jogo.
Em relação a ambos os referenciais, porém, a cultura
é concebida como um segmento da vida à parte,
embora nobilitado e nobilitante, e que, por isso, deve
receber atenção e uso “compatível”. Universo
autônomo, seccionado dos circuitos em que a vida
segue seu curso – salvo em ações, momentos e lugares
privilegiados – tal cultura gera seu universo próprio,
que inclui os produtos e os produtores culturais, os
consumidores culturais, os equipamentos culturais,
os órgãos culturais e assim por diante mas, acima de
tudo, os usos culturais4. Tem-se, assim, uma pirâmide
sem base (que seria precisamente o universo do
trabalho e do cotidiano), apenas com o topo isolado,
concentrado fora do alcance dos espaços vitais, que
poderiam irrigá-lo.
Não é, aqui, o lugar para questionar o que alimenta tal
noção espasmódica de cultura, cultura-cólica, que se
realiza em instantes privilegiados e, depois se relaxa,
preferencialmente sem deixar sementes ou marcas.
Basta apontarmos para o mercado de bens simbólicos
(que, aliás, é apenas uma modalidade operacional de
mercado), cuja lógica dá sustentação a essa
esquizofrênica delimitação de fronteiras. É
sintomático, a esse respeito, como tal conceito de
cultura e o de lazer se entrelaçam

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