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PARTE I INTRODUÇÃO C A P Í T U L O 1 DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO FÁBIO TÁPIA SALZANO TÁKI ATHANÁSSIOS CORDÁS A arte começa quando, de um grande número de noções fornecidas pela experiência, se forma uma só concepção geral que se aplica a todos os casos semelhantes. ARISTÓTELES Etimologicamente, o termo diagnóstico refere- se ao reconhecimento do todo através de suas partes. O prefixo grego dia significa a separação de um componente do outro e gnosis significa reconhecer, perceber. A identificação de uma doença ou de um transtorno é o objetivo final do processo diagnóstico. A correção do erro e do preconceito de cha- mar o diagnóstico psiquiátrico de “rótulo” é es- sencial no combate aos que julgam que sua fun- ção é o mero enquadramento e controle social do indivíduo. A identificação do diagnóstico é 18 z PARTE I INTRODUÇÃO um dos postulados que o modelo médico impõe à psiquiatria, e, desde a década de 1950, o pro- blema de sua elaboração progrediu muito cien- tificamente. Estabelecer um diagnóstico psiquiátrico é a única forma de conhecer as causas ou as hipóte- ses explicativas, os mecanismos, a evolução da doença e a melhor forma de determinar uma conduta terapêutica e preventiva se possível. A classificação baseia-se sempre em um passo posterior ao da obtenção de informações sobre o problema e da caracterização do quadro clíni- co do paciente, mediante suas queixas e sofri- mento, e é um passo anterior à instituição do tratamento. A partir da coleta dos dados da anamnese (do grego ana, remontar; meneses, memória), a complexidade dos fenômenos apresentados deve ser reduzida à sua essência e alocada em uma ou mais categorias de acordo com critérios previamente estabelecidos. Diagnóstico e classi- ficação caminham juntos, aquele é uma ques- tão individual e dinâmica, ao passo que esta é geral e impessoal (Nogueira, 2002). CONFIABILIDADE (RELIABILITY) Como foi dito, a retomada, desde a década de 1950, da questão do diagnóstico decorre do de- senvolvimento de novas formas de tratamento farmacológicas e do progresso da neurociência. Esses fatos aproximaram a psiquiatria do res- tante da medicina, o que, juntamente com a necessidade de entendimento entre os profis- sionais da área, iniciou um processo de aper- feiçoamento do diagnóstico psiquiátrico. A par- tir daí, foram criados critérios operacionais, com fatores de inclusão e exclusão para cada diag- nóstico, além de entrevistas semi-estruturadas e estruturadas, geralmente adaptadas a esses critérios. Os critérios inicialmente utilizados foram os de Saint Louis (Feighner, 1972), seguidos pelo Research Diagnostic j Criteria (RDC) Spitzer, 1978, inspirando o DSM-III-R (APA, 1987), o DSM-IV (1990) e o DSM-IV-R (1997) (Lotufo Neto Andrade e Gentil Filho, 1995). Dois conceitos são relevantes ao se discutir a questão do diagnóstico: a confiabilidade e a validade. Uma das questões centrais do diagnóstico psiquiátrico é a necessidade tanto de que indi- víduos de diferentes línguas e culturas nomei- em igualmente os fenômenos como de que a confiabilidade (realiability) entre eles seja gran- de. Entenda-se confiabilidade como a qualidade de uma classificação com a qual avaliadores di- ferentes cheguem ao mesmo diagnóstico (in- terrater reliability) e que esse diagnóstico apre- sente resultados consistentes em circunstâncias variadas, como com o passar do tempo (test- retest-reliability). Um dos mais famosos trabalhos desenvolvi- dos nos anos de 1970 com essa finalidade foi o Projeto US-UK (Estados Unidos – Reino Uni- do), em que psiquiatras (sem contato com seus colegas do outro lado do Atlântico) examina- vam, através de fitas gravadas, os mesmos pa- cientes para avaliar o grau de acerto, ou melhor, de concordância dos diagnósticos. O diagnóstico psiquiátrico oferece uma por- centagem aceitável de confiabilidade maior em algumas categorias diagnósticas e menor em outras. VALIDADE (VALIDITY) A validade refere-se à qualidade ou à força que um sistema ou instrumento diagnóstico é capaz de reportar ao que de fato está ocorrendo. A construção teórica de determinado diagnóstico deve saber reconhecer com o máximo de acerto os indivíduos com certa doença, sem incluir in- divíduos que não apresentam o problema (fal- so-positivo) nem excluir os que, de fato, o apre- sentam (falso-negativo). Como afirmam Lotufo Neto Andrade e Gen- til Filho (1995), o modelo utilizado para o diag- nóstico médico é hipotético-dedutivo, no qual as hipóteses diagnósticas são geradas a partir do encontro com o paciente na entrevista clíni- ca. Uma visão esquemática dos quatro princi- pais estágios do diagnóstico descritos por Cooper (1983) está na Tabela 1.1. SÍNDROMES PSIQUIÁTRICAS z 19 A EXPANSÃO DO DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO A Tabela 1.2 mostra a expansão das categorias psiquiátricas ao longo dos anos. O critério norte-americano atual, DSM-IV-TR, lista 365 transtornos, divididos em 17 seções. TABELA 1.1 VISÃO ESQUEMÁTICA DOS QUATRO PRINCIPAIS ESTÁGIOS DO DIAGNÓSTICO DESCRITOS POR COOPER (1983) Estágios Aspectos relevantes 1º Estágio – O psiquiatra entrevista o paciente – Formação teórica do psiquiatra – Destreza técnica para detecção das aterações psicopatológicas – Capacidade de estabelecer uma boa e confiável relação médico-paciente – Busca voluntária ou involuntária de atendimento por parte do paciente – Capacidade de expressão de sua queixa (do paciente) limitada por questões individuais e socioculturais 2º Estágio – Percepção que o psiquiatra tem – Necessidade de várias entrevistas do paciente a partir da anamnese subjetiva – Necessidade de entrevistar familiares (anamnese (com o paciente) subjetiva) – Risco de efeito halo, possibilidade de o médico influenciar-se por sua primeira impressão, em geral no início da entrevista, e direcionar a investigação para a confirmação do diagnóstico que foi sua primeira hipótese 3º Estágio – O psiquiatra categoriza as – Antecedentes pessoais informações recebidas – Antecedentes familiares – Traços pré-mórbidos – Sinais e sintomas – o exame psíquico – Problemas psicológicos e sociais – Exames físicos e complementares 4º Estágio – O psiquiatra faz seu diagnóstico – Esse diagnóstico pode obedecer a uma necessidade clínica, portanto, menos ou mais restritivo se a intenção for a seleção de pacientes para pesquisa Essa expansão deu-se em função do melhor conhecimento e descrição dos quadros clínicos. As limitações, no entanto, ocorrem na medi- da em que o critério não pode, em função do estado atual de conhecimento, ser feito a partir de bases etiológicas (Cordás, 2002). 20 z PARTE I INTRODUÇÃO TABELA 1.2 CLASSIFICAÇÃO DOS TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS Censo norte-americano de 1840 Censo norte-americano de 1880 DSM-III, 1980 Insanidade Mania 285 transtornos em 17 seções Melancolia Monomania Paresia Demência Dipsomania Epilepsia QUADRO 1.1 CATEGORIAS CLASSIFICADAS PELO DSM-IV-TR 365 transtornos em 17 categorias: – Transtornos da infância e adolescência – Delirium, demência, transtornos cognitivos – Transtornos alimentares resultantes de condição médica geral – Transtornos relacionados a uso de substâncias – Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos – Transtornos do humor – Transtornos ansiosos – Transtornos somatoformes – Transtornos factícios – Transtornos dissociativos – Transtornos da alimentação – Transtornos sexuais e de identidade de gênero – Transtorno do sono – Transtornos do impulso não descritos em outro local – Transtornos de ajustamento– Transtornos da personalidade – Outras condições REFERÊNCIAS COOPER, N. E.. Diagnostic and the diagnostic process. In: SHEPERD, M.; ZANGWILL, O.L. (ED.). Handbook of psychiatry. Cambridge: Cambridge University, 1983. Vol. 1: General psychopatology. CORDÁS, T.A. Depressão: da bile negra aos neurotransmis- sores. São Paulo: Lemos, 2002 FEIGHNER, J.P.; ROBINS, E.; GUZE, S.M. Diagnostic criteria for use in psychiatric research. Arch. Gen. Psychiatry, v. 26, n. 57-63, 1972. LOTUFO NETO, F.; ANDRADE, L.H.S.G.; GENTIL FILHO, V. Diagnóstico e tratamento. In: LOUZÃ NETO, M.R. et al. (Ed.). Psiquiatria básica. Porto Alegre: Artmed, 1995. NOGUEIRA, M.J. Diagnóstico psiquiátrico: um guia. São Pau- lo: Lemos, 2002. SPITZER, R.Z.; ENDICOTT, J.; ROBINS, E. Research diagnostic criteria: rationale and reliability. Arch. Gen. Psychiatry, v. 35, n. 773-782, 1978.
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