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1 A cr ítica de cinema como agente historiográfico e a história canônica do cinema brasilei ro CALEIRO, Maurício (doutorando)1 Universidade Federal de Viçosa/MG Resumo: O artigo em tela investiga o papel que, no Brasil, a crítica de cinema – acadêmica ou não – exerceria na conformação da história canônica do cinema brasileiro e na reafirmação periódica desta em detrimento da difusão e aceitação de múltiplas versões e caminhos historiográficos no que concerne à cinematografia nacional. Examina-se tal temática a partir da clivagem de aspectos peculiares à evolução da crítica de cinema no país ao longo do tempo – particularmente sua oscilação entre o elitismo predominante e o dialogismo ocasional -, tendo como objetivo questionar a permanência, na produção analítica da crítica contemporânea, de parâmetros axiológicos caros à historiografia canônica do cinema brasileiro, notadamente a adoção de critérios estético-temáticos e da produção de determinados diretores do Cinema Novo dos anos 60 como exemplos modelares atemporais para a produção cinematográfica de qualidade no país. Palavras-chave: crítica; cinema; Brasil; historiografia, história 1. Introdução Talvez a mais emblemática das ressurreições de uma cinematografia cuja história vem sendo feita de “assassinatos e renascimentos precários” (Moura: 1998, p. 178), o “cinema da retomada” (1995-2003) foi contemporâneo da proliferação da crítica cinematográfica nas revistas eletrônicas, sites, blogs e demais espaços virtuais da Internet e da multiplicação exponencial da atividade analítica nos Estudos de Cinema na academia brasileira. Devido a esse processo, recebeu um inédito volume de massa crítica concomitantemente ao momento em que era produzido. No entanto, o status crítico que usufrui tal cinematografia e o locus axiológico que ocupa na historiografia do cinema brasileiro têm sido, conforme verificado em outras etapas da pesquisa à qual este artigo se filia muito mais estanques, negativos, e baseados em parâmetros analíticos repetitivos do que a profusão de pólos críticos poderia vir a sugerir. Para se compreender a que conjuntura historiográfica estamos nos referindo é necessário rever criticamente, em linhas gerais, o processo de formação da história do 1 Professor de Jornalismo na Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutorando em Comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF). Endereço eletrônico: mauricio_m_caleiro@yahoo.com.br 2 cinema brasileiro – na verdade, de uma determinada visão de história do cinema brasileiro que, por razões que serão examinadas, se tornou hegemônica -, assim como para entender as razões de a crítica de cinema ter assumido a feição que assumiu durante a “retomada” é necessário apreender, ainda que precariamente, sua história, e como sua trajetória se relaciona com a do cinema brasileiro. A pesquisa preliminar realizada para elaboração deste artigo – que é subproduto de uma tese de doutorado em desenvolvimento - concentrou-se, no que se refere especificamente à produção analítica sobre a “retomada”, nos relativamente poucos e, no nosso entender, em sua maior parte, insatisfatórios livros publicados sobre o período, complementados por uma amostra significativa de catálogos, comunicações e artigos, acadêmicos ou não.2 Identifica-se nesse material uma série de vicissitudes e lacunas nas análises sobre o cinema do período, que serão discutidos ao longo do texto, as quais acabam por enfatizar a urgência de se produzir, no âmbito do cinema brasileiro, o que Fredric Jameson conceitualiza como um “mapa cognitivo” do presente (1991) - no caso, expressado na necessidade de um aggiornamento do ideário e de práticas analíticas referentes ao “cinema da retomada”, com vistas à revisão de seu status historiográfico e, em decorrência, da axiologia orientadora dominante na historiografia canônica do cinema brasileiro. No âmbito deste artigo, interessa-nos sobretudo questionar as causas e efeitos da manutenção, pela crítica de cinema contemporânea, de determinados parâmetros axiológico-historiográficos herdados da história canônica do cinema brasileiro – a qual abordaremos a seguir -, notadamente em relação ao papel modelar que o Cinema Novo desempenharia em tal esquema analítico, numa operação analítica repetitiva e pouco inovadora que faz de um movimento cultural outrora revolucionário um fator de repressão ao novo e ao contemporâneo. 2. A construção da historiografia do cinema brasilei ro As tentativas de se sistematizar uma história do cinema brasileiro, descontados 2 A pesquisa incluiu os seguintes livros: (Almeida: 2003); (Butcher: 2005); (Caetano: 2005); (Nagib: 2002); (Nagib: 2007); (Oricchio: 2003); os quatro últimos volumes publicados pela Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema (SOCINE); quinze edições da revista Cinemais; o acervo de teses e dissertações defendidas na ECA-USP desde 1990, além de demais artigos avulsos, incluídos em antologias ou disponíveis na Internet, citados em Bibliografia. 3 alguns esforços diletantes, encontram na Introdução ao Cinema Brasileiro (1959), de Alex Viany, o que Jean-Claude Bernardet classifica como a “primeira narrativa extensa que abrange a história dessa cinematografia desde os primeiros tempos até o momento de sua publicação” (Autran: 2003, p. 19). A seguir, dois textos clássicos fornecem balizas e visões que se perpetuarão através dos tempos. No primeiro, a Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), o jovem Glauber Rocha “age como um inventor de tradições” (Xavier: 2001, p. 3), fazendo “uma avaliação do passado para legitimizar o presente” (id., ibid.), em um texto que “é de combate e deve abrir caminho entre os contemporâneos a machado, discriminar” (id., ibid.). No segundo, o ensaio “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, publicado dez anos depois e que sumariza, em alto estilo, um trabalho crítico-historiográfico de mais de uma década, pulverizado em artigos esparsos mas de grande influência sobre o pensamento cinematográfico brasileiro, Paulo Emílio Salles Gomes “faz o balanço do cinema brasileiro na história” (id., ibid.), enfatizando a chave do, em suas palavras, subdesenvolvimento de nosso cinema, que identificara “em 1960 num artigo devastador” (id., ibid.), “A situação colonial”. O incremento de uma visão historiográfica nas décadas imediatamente seguintes dá-se mormente via contribuições parciais, centradas em determinados períodos, temas ou realizadores, como os livros de Maria Rita Galvão sobre os primórdios do cinema paulista (1975) e a Vera Cruz (1981), o exame da Belle Époque por Vicente de Paula Araújo (1976), A chanchada no Cinema Brasileiro, de Afrânio Mendes Catani e José Inácio de Melo Souza (1983), e a obra-prima de Paulo Emílio sobre Humberto Mauro (1974), entre outros poucos títulos. Bernardet, autor mais prolífico dos estudos de cinema no período, acabaria por contribuir sobremaneira para o debate historiográfico brasileiro, seja na contra-corrente, desempenhando papel de contestador de visões canônicas - como na identificação de anseios da classe média na produção pretensamente revolucionária do Cinema Novo ou na proposição do fim da oferta do estudo do cinema brasileiro enquanto disciplina acadêmica -, seja na formulação de um modelo trifásico que se tornou referencial para a periodização analítica do Cinema Novo. Nesse cenário, a há muito fora de catálogo História do Cinema Brasileiro (1987), organizada por Fernão Ramos e que, apesar de algum desnível entreo grau de preparação dos colaboradores, apresenta uma maioria de textos de alto nível, 4 transformar-se-ia em referência canônica, notadamente quanto à periodização que adota e à posição axiológica que nela o Cinema Novo ocupa. Assim, alguns fatores que ajudam a explicar as razões para a hegemonia do movimento nos Estudos de Cinema (e, pior, de visões cinemanovistas descontextualizadas de seu tempo histórico, como debateremos em breve) começam se evidenciar: Ramos reserva para a si o capítulo sobre Cinema Novo, ato que é comumente entendido como fornecedor de indício de valor (o que ele não desmente); embora cubra o menor dos períodos histórico- cinematográficos adotados (15 anos), é, de longe, o capítulo mais longo do livro, com cem páginas, quase o dobro do espaço ocupado pelos outros colaboradores; o texto é escrito num tom épico cujos efeitos sobrepõem o entusiasmo reprimido do fã ao aparente rigor iconoclasta do pesquisador acadêmico; por fim, Ramos comete um deslize metodológico, ao dispensar tratamento indiferenciado a textos “de combate”, no melhor estilo glauberiano, críticas jornalísticas e análises proto-acadêmicas. Elaborada durante um período de afirmação teórico-acadêmica (e editorial) dos Estudos de Cinema no Brasil, a obra organizada por Ramos viria a funcionar, ainda, como uma fonte para referências sobre a relação entre a crítica e o cinema brasileiro, tema que, no contexto de seu objeto de estudo, Paulo Emílio Salles Gomes havia examinado com detalhe em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte (1974). Dando início a um novo exame historiográfico, cuja trajetória imbricar-se-á, no futuro, com a reflexão acadêmica sobre cinema, Paulo Emílio traça um perfil da relação da crítica com o cinema brasileiro que não se limita ao exame da revista citada no título, incluindo vasto material de publicações como Para Todos...e A Scena Muda e excertos da produção pregressa de críticos como Mário Behring, Pedro Lima, Henrique Pongetti e, claro, Adhemar Gonzaga. Para além de questões e modos de ver inerentes ao período em que tais críticas foram produzidas (anos 20 e 30), o autor registra, por um lado, a existência de uma série de vicissitudes analíticas para com o cinema nativo – notadamente, a eleição do padrão técnico-narrativo das grandes produções hollywoodianas como parâmetro de comparação contra o qual evidencia-se a inferioridade do produto nacional. Por outro lado, capta o surgimento de uma nova postura – uma declaração de intenções - para com a qual o próprio intelectual uspiano é até hoje identificado, e que pode ser resumida no lema da campanha de Cinearte em prol do cinema nativo: “Todo filme brasileiro deve ser visto” (apud Gomes: 1974, 317). 5 2. A crítica em perspectiva histórica: entre o elit ismo e o dialogismo Do lado de fora das muralhas da academia, a crítica cinematográfica brasileira nasce e é por décadas conservada no formol de um pseudo-elitismo datado, cuja adesão ao modelo hollywoodiano de produção e narração não apenas aproxima-se da adoração, como obnubila a percepção acerca do potencial de desenvolvimento próprio de cinematografias não hegemônicas. Tal é, notadamente, o caso de Pedro Lima, por décadas o expert supremo das primeiras publicações cinematográficas nativas – A Scena Muda (1921), Paratodos (1919) e Cinearte (1926) -, co-adjuvado por Henrique Pongetti e, mais tarde, em registro menos autocrático, por Francisco Luís de Almeida Salles (BENDER e BRUNHILDE, 1998; SALLES GOMES, 1974). O paroxismo (mas não ao fim) do elitismo crítico-cinematográfico nacional, no entanto, só é atingido por Moniz Vianna, reverenciado por mais de uma geração como “o patrono da crítica cinematográfica” e de fato exercendo, com o paternalismo que tal título implica, seu ofício diário no Correio da Manhã, no longo período que se estende de 1946 a 1973, sempre duplamente fiel: à sua idolatria pelo cinema norte-americano clássico e à repulsa (ou ao desprezo) ao que fosse formalmente inovador, seja no cinema brasileiro, francês ou de qualquer outra parte (MENDONÇA, 2001; VIANA, 2004). Por outro lado, pode-se argumentar, com base no exame de compilações de suas próprias produções críticas (como, por exemplo, VIANY, 1959 e 1999; e SALLES GOMES, 1982) ou na reavalição de suas obras por terceiros (como, respectivamente, AUTRAN, 2002; e CALIL e MACHADO, 1986), que Alex Viany e Paulo Emílio Salles Gomes, exerceram, avant la lettre e por um longo período, um tipo de escrutínio cinematográfico (com interações sociológicas) que guarda profunda identidade com o que Todorov define como a prática crítica de cunho dialógico. Tornou-se corrente considerar que os cineastas/críticos do Cinema Novo, imersos na efervescência cultural e política de um período perpassado por “uma imensa e inflacionada emissão de crédito superestrutural” (JAMESON. 1984, p. 179), acabaram por inflexionar – a seu favor, evidentemente – o “peso” do movimento na história do cinema nacional e sua elevação à condição de régua axiológica a partir da qual se mede o cinema nacional anterior e posterior ao movimento. Mas enquanto a geração cinemanovista, nos anos 70, agora sob o lema “mercado é cultura”, fazia as pazes com o público que não tivera na década anterior, a pretensão 6 da revista F ilme Cultura de se tornar a Cahiers du Cinèma tupiniquim, fazia com que, não obstante financiada pelos mesmos cofres da Embrafilme que estavam levando o cinema brasileiro à sua melhor década em termos de público (PARANAGUÁ, 1987, p. 112-115), a crítica brasileira voltasse não apenas a torcer sistematicamente o nariz – então mais empinado do que nunca – ao cinema nativo, mas a recusar desdenhosamente o debate que, com frequência, a reação dos cineastas às críticas recebidas queria deflagrar. Porem, a história da crítica cinematográfica brasileira tem sido escrita de forma ainda mais insuficiente – e fragmentária – do que a da própria atividade cinematográfica, não existindo ainda sequer um livro de referência, que forneça um sumário tout court do tema. Em 1988, chegam ao mercado um volume contendo críticas de Francisco de Almeida Salles (Bender e Laurito) e, de forma independente, um livro com resenhas de Ely Azeredo, por ele editado. Somente na presente década são lançadas duas antologias – ambas organizadas por Ruy Castro - contemplando o trabalho de Moniz Viana (2004), o de José Lino Grünewald (2001) e o de Rubens Biáfora (Mota: 2006), sendo que estudos analíticos foram produzidos em relação à produção do ex- crítico do Correio da Manhã (Mendonça: 2004) e do crítico e cineasta Alex Viany (Autran: 2003); Walter Silveira, grande nome da crítica baiana, teve quatro volumes de seus ensaios lançados. Se, certamente devido a seu status como poeta e artista da MPB, Vinicius de Moraes teve um livro com suas críticas cinematográficas publicadas, a história do Chaplin Club de Plinio Sussekind Rocha, Claudio e Saulo Pereira de Mello – a primeira agremiação cinéfila a apreciar o cinema brasileiro – ainda não transpôs os limites das bibliotecas de teses e dissertações acadêmicas, onde também repousam estudos sobre a Revista de Cinema (MG), de Maurício Gomes Leite, que teria elevado o nível da reflexão cinematográfica nos anos 60; não é certo se tais pesquisas já tenham contemplado o trabalho de críticos como Caio Shelby, Benedito Duarte ou Paulo Perdigão. Mesmo em relação a F ilme Cultura, a pretensa versão tropical da Cahiers du Cinèma patrocinada pela EMBRAFILME, lar de mestres da crítica como Ronald F. Monteiro, Ely Azeredo e José Carlos Monteiro, os estudos de cinema no Brasil ainda estão a dever uma pesquisa de fôlego. Concomitantes aovácuo generacional advindo com a aposentadoria ou alteração de rota profissional de vários dos críticos acima citados e à redução do espaço analítico 7 dos jornais e das revistas especializadas, o campo da crítica cinematográfica passa por grandes alterações após a grave crise econômica dos anos 80 e a reestruturação, à americana, das redações jornalísticas naquela década, o campo da crítica cinematográfica passa por grandes modificações,. Tais mudanças coincidem com o deslocamento e virtualização do locus do intelectual no tecno-capitalismo, com a universidade funcionando como um espaço de adensamento e reclusão, e a Internet como meio de expansão e pulverização. Dois fenômenos conectam-se a tal conjuntura, que iria propiciar uma configuração renovada do campo nos anos 90: a já mencionada profissionalização tardia dos estudos de cinema na universidade brasileira, que leva ao incremento na produção editoral cinematográfica (ainda que o grau de alcance de tais livros seja tema de debate) e o deslocamento da crítica cinematográfica de maior fôlego (leia-se preparo, talento e espaço para desenvolver suas idéias), da chamada “grande mídia” para sites específicos da internet – como os das revistas eletrônicas Contracampo, Cinética, e Trópico. Essa “nova crítica” virtual marcaria o primeiro momento em que, graças à internet, profissionais formados na universidade assomam à linha de frente da crítica cinematográfica podendo exercer seu ofício livre das pressões mercadológicas típicas dos órgãos de imprensa corporativos. Tal liberdade de ação fora ainda vetada aos críticos de cinema que a procederam – profissionais que vivenciaram, no âmbito dos cadernos de cultura do jornalismo diário, o declínio do Jornal do Brasil e a ascensão da Folha de S. Paulo como principal referência cultural na “grande imprensa”, antes de também migrarem em grande número para o ambiente virtual, mas sem o mesmo sucesso de seus sucessores. Assim, a antinomia que tradicionalmente marca a passagem do ambiente acadêmico para o universo das redações jornalísticas – no qual as demandas do grande capital se impõem estruturalmente – é, no caso das revistas eletrônicas virtuais, substituída por um maior grau de simbiose entre formação educacional e prática profissional. Com efeito, pertencendo a estratos sociais mais ou menos próximos – não apenas em termos socioeconômicos, mas inclusive em relação a hábitos e valores culturais – a intelectualidade acadêmica e seus ex-alunos agora convertidos em protagonistas da “nova crítica” cinema teriam em comum a formação de uma axiologia em relação aos bens simbólicos gerados no interior da classe social e do campo de 8 atuação aos quais pertencem, à maneira sugerida por Pierre Bourdieu em La Distinction (1979)? Seria esse um possível fator de homogeneização, não das idéias em si, mas do referencial analítico e dos parâmetros valorativos associados à crítica cinematográfica? Como explicar, então, a permanência da hegemonia axiológica e modelar do Cinema Novo nos escritos da “nova crítica”, demonstrada em outra ocasião (CALEIRO, 2009)? 4. Sob a sombra do C inema Novo Nem mesmo o aumento da diversidade de temas e de abordagens que teve lugar, por um lado, com a disseminação – o boom - dos estudos de cinema na academia brasileira a partir de meados dos anos 90 e, por outro lado, a novidade de uma crítica cinematografica de bom nível sendo exercida através da internet, embora venham atingindo resultados mais do que louváveis em diversas aspectos da reflexão cinematográfica - e mesmo em relação à história do cinema brasileiro, produzindo relativizações e questionamentos pontuais -, não foram ainda capazes de erigir contra- discursos historiográficos suficientemente coesos e fundamentados que pusessem em xeque o que Bernardet, não sem problematizá-la, chama de “Historiografia clássica do cinema brasileiro” (1995). Um dos fatores que possivelmente mais vêm contribuindo para a ausência de uma (ou várias) contra-história do cinema brasileiro de aceitação mais ampla parece ser o modo como setores majoritários da crítica atual, na academia ou fora dela, se relacionam com o passado do cinema brasileiro, notadamente a pouca atenção que concedem a tendências como a pornochanchada ou o cinema urbano dos anos 80 em prol do Cinema Novo, num processo que, dada a desproporção no volume de artigos, comunicações e teses sobre o movimento em comparação com o cinema produzido em outros períodos no Brasil – da ordem de 65% do total, se tomarmos como amostra o principal congresso de cinema do país, o da Socine -, só podemos classificar como um culto excessivo. As relações do Cinema Novo com o “cinema da retomada” não se limitam a eventuais influências geradas, através da natureza mesma do processo histórico, por uma “linha evolutiva do cinema nacional” (para parafrasear o conceito caro à música popular) ou pelas intencionais referências temáticas, narrativas ou estéticas perpetuadas 9 pelos cineastas dos anos 90. As mais tensas referências – quase sempre comparativas - ao Cinema Novo no período em questão não pertencem às telas, mas aos textos, alguns deles abrasivos - como o pugilato verbal Ivana Bentes versus Mariza Leão - que alimentaram algumas das principais polêmicas do período. O movimento cinematográfico dos anos 60 geralmente aparece nesses textos como representante de uma alteridade imaculada e salvadora, como se o fantasma de Glauber Rocha, travestido de crítico cinematográfico e encarnando os ideiais de um cinema narrativa e ideologicamente transgressor em sua autoralidade radical, tivesse, mais que o direito, o dever de assombrar a produção contemporânea. Marc Vernet promove, em “Film Noir on the Edge of Doom” (1993) uma contundente crítica revisionista do f ilm noir hollywoodiano dos anos 40 – esse “gênero” que é uma criação da crítica francesa, portanto filho dileto dos estudos de cinema -, questionando não apenas seu grau de autoralidade, as supostas influências das vanguardas européias que teria recebido, sua importância histórica, mas sua existência mesma enquanto corpus uno e identificável. É notável que algo do gênero – uma revisão crítica de fôlego, provocadora e iconoclasta, e por isso mesmo polêmica – não tenha ainda se feito ouvir no no Brasil, em relação ao Cinema Novo, no âmbito dos Estudos de Cinema (excluindo-se, portanto, os ataques advindos do grupo que deflagrou o cinema marginal ao final dos anos 1960). Quais as implicações da escolha, por parte de setores do pensamento cinematográfico, do “período heróico” do Cinema Novo - aquele no qual as ambições estético-ideológicas e “autorais” sobrepunham-se ao ímpeto industrialista e à busca de público - como contraponto crítico ao cinema produzido durante a “retomada”? Em que medida – se alguma - tal opção traduz uma “nostalgia do não-vivido” na forma de mitificação excessiva da zeitzeig de um período marcado por “uma imensa e inflacionada emissão de crédito superestrutural”, como sugere Fredric Jameson (1984, p. 179), mitificação essa que inclui o desprezo pelo papel que as escolhas daquela década desempenharam na reação conservadora subsequente”? Que outros fatores explicariam a predileção-quase-obsessão pelo Cinema Novo como contra-modelo analítico, virtualmente ignorando outras fases históricas, principalmente as cronologicamente mais recentes, como o período que se seguiu à promulgação do Plano Nacional de Cultura, em 1975, com o qual, como demonstrado em outro artigo 10 (CALEIRO, 2008), há marcadas semelhanças na busca por um cinemapopular de feições nacionais? Produtos culturais produzidos de maneira pré-industrial, no âmbito de uma atmosfera política altamente ideologizada – seja no bojo do horizonte revolucionário do início da década dos 1960 ou nos anos de “hegemonia cultural da esquerda” (SCHWARZ, 1969, P. 19) que marcaram a fase pré-AI5 da ditadura militar – são contrapostos, sem ressalvas ou nuances analíticas, a filmes gerados numa era marcada pela crise das ideologias e pelos efeitos da hegemonia neoliberal, sendo estes tratados como um corpus uno e uniforme, a despeito de cobrirem um arco de produção que vai do “filme caseiro” (Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos, Marcelo Masagão, 1998) às produções de nível técnico internacional e orçamento com oito casas decimais (Central do Brasil, Walter Salles, 1998). Como aponta Luiz Zanin Oricchio:, “a tentativa de unificação a posteriori daquilo que era diverso e fragmentado em seu tempo, são as armadilhas suplementares para um tipo de crítica que se auto-elege reserva moral da nação” (2003, p. 215). A elaboração dessa crítica a-histórica, que não leva em conta nem as particularidades ideológico-sociais com as quais se inter-relaciona o cinema contemporâneo nem aquelas com as quais retroagia o Cinema Novo, a despeito de se pretender “esquerdista” ou “radical” em sua cobrança por ousadia formal e comprometimento ideológico a la Glauber, não acabaria por girar em falso em torno de um ideário regressivo incompatível com as condições de produção objetivas de seu objeto de estudo, revelando-se, portanto, não apenas ineficaz e contraproducente, mas, literalmente, conservadora e reacionária? Dois críticos – um ligado à academia, outro à “grande imprensa” – fornecem relevantes exemplos do grau de generalização e leviandade com que tal comparação entre passado e presente é estabelecido: para André Parente, “Glauber, ou qualquer outro cineasta que tenha contribuído para a nossa já extensa tradição cinematográfica inventiva, experimentalista, é um perfeito contraponto ao cinema de hoje, onde não há nada a ser dito, nenhuma realidade a ser inventada, nem mesmo a do cinema, que se torna cada vez mais terra estrangeira” (1997, p. 196); já o crítico Inácio Araújo é taxativo: “Nosso cinema não comporta mais coisas inquietantes” (em Caetano, 2004: p 219). A que “nosso cinema” se refere o crítico de televisão da Folha de São Paulo? Àquele que produziu Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2002), um dos filmes 11 poeticamente mais inventivos feitos no mundo em qualquer tempo? Àquele que deu à luz o deslumbrante exercício de montagem como elemento criador que é Estamira (Marcos Prado, 2004)? Parente não vê nada a ser dito, nem mesmo em termos cinematográficos, em obras de extremo rigor formal, como Crede-mi (Bia Lessa e Dany Roland, 1996) e Céu de estrelas (Tata Amaral, 1996), “dois filmes que fazem uma década por si mesmos”, como assinalou Eduardo Valente (2000), e ambos, aliás, dirigidos por mulheres (gênero da raça humana que, a propósito, não tinha voz no Cinema Novo)? Não inquieta os passadistas a estupenda produção recente dos mestres do documentário no Brasil? eles não se deixam impressionar pelos filmes dirigidos no período pelo gênio eremita Julio Bressane e pelo cronista urbano Carlos Reichenbach? (ou conceberiam o talento deles apenas como uma herança do passado?) Essa obsessão em se contrapôr comparativamente duas cinematografias que, a rigor, são diferentes – pois, como apontado parágrafos acima, produzidas em períodos históricos distantes entre si e sob conformações sociais e ideologias consideravelmente diversas - significa, em termos psicanalíticos, o estabelecimento de uma verdadeira “ordem do pai”, um interdito totêmico, no sentido freudiano, que visa a manutenção de postos privilegiados de opinião, no campo cultural, nas mãos de uma pseudo(pois elitista)-esquerda intelectual. A mais nociva conseqüência de tal interdito talvez seja bloquear sistematicamente a apreensão crítica da produção da “retomada” segundo valores de seu próprio tempo histórico, pois, como sugere Walter Benjamin, “irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela” (1996, p. 224) Espanta que tais cobranças sejam feitas em nome do passado, nominalmente, do Cinema Novo e de Glauber Rocha, cujo gênio intempestivo - que o levou a afirmar, por exemplo, para estupefação geral, que “Golbery é o gênio da raça” – impede que se faça qualquer prognóstico sobre qual seria a reação dele ao “cinema da retomada”, como sustenta Mariza Leão em sua resposta a Ivana Bentes (2001). Há de se questionar, também, que se generalize a crítica que enxerga em um cinema tão multifacetado como o da “retomada” como comercial, publicitário e pouco inventivo formalmente, desprezando um número significativo de obras e realizadores que apostam na ousadia e no rigor formal (número quantitativamente talvez superior ao das próprias produções cinemanovistas) e, talvez mais grave, que se demonize a parcela desse cinema que 12 busca o industrialismo e é adepta da linguagem clássica, não apenas porque tal visão ignora a importância – geopolítica, comercial, ideológica, em termos de oferta de postos de trabalho em um mercado invadido pelo produto estrangeiro - da construção de uma indústria cinematográfica no país (que fatalmente terá filmes comerciais), mas também porque, como interroga Denílson Lopes, “Quem disse que conciliação com o mercado e com o público implica necessariamente conformismo?” (2005, p. 12). 5. Conclusões Durante muitas décadas acreditou-se que a posição economicamente marginal ao qual de ordinário relegava-se o cinema brasileiro – e, em decorrência, os estudos sobre tal cinematografia – fosse a principal causa para o parco material sobre sua história e, nos períodos imediatamente posteriores, para a o engessamento canônico de tal história e das formas de abordá-la e recriá-la, ou seja, de sua historiografia. Nas duas últimas décadas, no entanto, à medida que os Estudos de Cinema se difundiam e se enriqueciam, foi ficando cada vez mais claro que concorre para o conservadorismo que impregna a história do cinema brasileiro uma variedade de fatores. A eleição do Cinema Novo como modelo axiológico supremo, por este trabalho abordada, é apenas um deles, mas traz em seu bojo vários reflexos dos fatores supracitados, alguns mais óbvios e compreensíveis – como a confluência lato sensu entre ideologia política dos cinemanovistas e de seus atuais cultores na crítica -, outros menos pronunciáveis – como a conservação de feudos privados na academia que a manutenção de um historicismo conservador facilita. Tanto em um caso como em outro, evidencia-se a urgência de atualizar, a um tempo, os padrões da crítica cinematográfica brasileira no que concerne à sua relação com a história do cinema nacional e, através de um aggionarmento teórico- metodológico que incorpore novas vertentes e abordagens – aí incluídas as múltiplas perspectivas do pós-estruturalismo e dos estudos culturais -, da própria historiografia do cinema brasileiro, que precisa não só da renovação de sua história, mas da fragmentação multiplicadora desta, um devir do singular para o plural, transformando-a em muitas histórias. 13 Referências AUTRAN, Arthur. A lex Viany: Crítico e Historiador. São Paulo: Perspectiva e Rio de Janeiro: Petrobrás, 2003. BARTHES, Roland. C rítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007. BENDER, Christina; e BRUNHILDE, Ilka Laurito (orgs.). F rancisco Luizde A lmeida Salles - C inema e verdade - M arilyn, Buñuel, etc. por um escritor de cinema. 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