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Para além da punição e da repressão juvenil: plasticidades para entender o tráfico de drogas em Teresina1 Marcondes Brito da Costa Marlucia Valeria da Silva Resumo: O artigo relaciona aspectos da construção histórica da noção de tráfico de drogas com a atual situação do tráfico em Teresina-PI. Ressalta os sujeitos envolvidos, as dinâmicas e características do fenômeno em geral, traçando linhas relevantes para a sua compreensão na contemporaneidade, ao tempo em que aponta algumas particularidades piauienses, localizando os desdobramentos que o tráfico engendra para o tecido social e para os jovens enquanto principais implicados na impactante realidade local. Avança discutindo como as noções repressoras e criminalizantes acerca do tráfico desencadeiam ações deslocadas para o enfrentamento dessa problemática e geram estigmas para com certos grupos sociais. Para início de conversa: o tráfico de drogas e o que o discurso hegemônico não diz Para compreendermos o tráfico de drogas, no Brasil, mas especialmente a sua manifestação no Piauí, em sua capital, Teresina, se faz necessário visualizar a sua construção histórica e o processo de sua qualificação enquanto realidade de destaque no mundo, rompendo com a naturalização contemporânea acerca do que seja este fenômeno. É fato, hoje o comércio de drogas é algo ilegal, tido como imoral e fato arduamente combatido pelas sociedades mundo afora. Mas em nossa breve historiografia nem sempre foi assim, pois até 1938 maconha e cocaína podiam ser adquiridas nas farmácias de vários lugares do Brasil para fins medicinais. Além disso, muito embora as primeiras leis de repressão se 1 Apresentação Oral em GT. O conteúdo pode ser encontrado na sua integralidade em http://www.encontro2011.abrapso.org.br/. relacionassem às práticas de grupos marginalizados, somente a partir da primeira guerra mundial (COSTA, 1991, p.50), a repressão se instaurou numa perspectiva de criminalização social de alguns segmentos sociais. O que cabe aqui pensar, e que se mostra como foco deste artigo, é justamente perceber o perigo de naturalizar processos dinâmicos e conflitantes, ligados a poderes, instituições, interesses e ações de grupos dominantes, como alerta Soares (1993). Nesse sentido, se mostra pouco procedente pensar que o tráfico de drogas, em sua complexidade, sempre existiu e foi tal qual hoje é apresentado pela mídia, numa visão homogeneizadora e satanizadora, povoada por personagens típicos, quase todos pobres, moradores de favelas ou vilas das periferias do Brasil afora. Quem constrói o discurso, posto como único e atualmente válido sobre o tráfico, conta com o apoio de uma parte da mídia que toma como tarefa extrapolar a real dimensão dos fatos, elevando-os a níveis dramáticos o suficiente para comoção e medo enquanto precedentes da análise complexa da questão. Nesse contexto, a perspectiva da proibição da droga, aliada à repressão daqueles que gravitam em torno dela é a tônica da abordagem veiculada, caracterizando com a violência as medidas de enfrentamento desenvolvidas. Como consequência, deixa-se de lado o centro do problema quando da implementação das políticas, optando-se por reprimir, segregar e estigmatizar grupos, especialmente os jovens em situação de tráfico de drogas, “os culpados” pela sua existência. A característica repressora da intervenção pública também gera outra consequência de maior amplitude que é a desmistificação do institucionalmente construído acerca de vivenciarmos um Estado democrático e de direitos. Nas vilas e favelas temos um histórico de democracia fragilizada por processos autoritários, violações cotidianas dos direitos civis e pouca eficácia dos direitos sociais, onde a polícia, mesmo quando tenta, não consegue se desvincular de sua lógica opressora e repressora. E é desse lugar que a força policial se impõe aos moradores, indiscriminadamente. Do ponto de vista dos resultados quanto à produção e consumo, os estudiosos apontam que as drogas nunca estiveram mais alastradas na sociedade. Argumentando nesse sentido, Zaluar (2008, p.9) postula que: Apesar desta política repressiva de combate as drogas, apesar dos fortes preconceitos apontados contra os usuários e aqueles que defendem uma política menos repressiva, o consumo delas continua se alastrando rapidamente, em especial entre os mais jovens e entre as populações mais pobres. Nesses setores mais vulneráveis à ação policial, os efeitos da própria repressão podem ser desastrosos por estimularem a criminalidade violenta. Isto, porque no combate ao uso de drogas, a polícia tem um enorme poder em determinar quem será ou não processado e preso como traficante, crime considerado hediondo. Quando trazemos esse problema a Teresina, nos aproximando cada vez mais de nossa realidade, nos deparamos cotidianamente - via jornais impressos ou televisivos - com reportagens que tratam a temática sempre de forma superficial. A título de ilustração, uma reportagem estampada na capa de grande jornal de circulação estadual traz, na segunda-feira, dia 06 de setembro de 2010, a seguinte chamada: DROGAS IMPÕEM CERCO A IGREJA SÃO BENEDITO. (Jornal Meio Norte, Ano XV. Nº 6618. Teresina: 06 set.2010). Quando fala no tal “cerco” imposto a catedral, a matéria se refere aos usuários de drogas que ocupam a área externa da igreja, onde pedem dinheiro aos frequentadores das missas. Para o jornal, amedrontam as pessoas que vão em busca de conforto e “paz celestial”, como referido. Posto o problema, os próprios jornalistas propõem duas soluções básicas para a questão: em primeiro lugar, chamar a polícia para conter os viciados e protegê-los, num segundo momento - e esse é o mais aceitável para resolver de vez esse problema e dar “conforto” e “segurança” aos que lá frequentam - seria cercar toda a Igreja de São Benedito com um grande muro ou pelo menos com uma cerca que impedisse a entrada do que o jornal elenca como “perigo constante” e único a afastar os fiéis pelo medo que provocam, afetando a paz que deve reinar nos espaços religiosos. Como pode ser visto, o tom das reportagens investe na geração e difusão do medo, componente necessário para alimentar decisões arbitrárias e desfocar a discussão do que seria o verdadeiro nó górdio da segurança pública. O ponto central de cada discurso midiático ou política posta, evidentemente, se situa no âmbito dos reflexos do tráfico, articulados, mas distanciados das suas causas, daquilo que o move em primeiro lugar. Elegem os pequenos traficantes ou mesmo os usuários de drogas jovens e empobrecidos para atores da vitrine comunicativa, os elos mais visíveis e frágeis da cadeia por isso mesmo, os mais penalizáveis (ZALUAR, 2004). Põem-nos como sendo, se não os únicos, os principais responsáveis pelos danos e perdas, como também encontrou Zaluar (2004), em seus estudos: O tráfico de drogas, organizado internacionalmente, mas localizado em suas pontas nos bairros pobres e nos centros de boemia das cidades, além de criar centros de conflitos sangrentos nessas vizinhanças, além de corromper as instituições encarregadas de reprimi-los, também criou na população da cidade um medo indeterminado, aumentou o preconceito sobre os pobres em geral, tomados como os agentes da violência, e auxiliou a tendência a demonizar os usuários de drogas, a considerá-los a fonte do mal, de toda a violência. (p. 35, grifos nossos). Além disso, segue esclarecendo mais detalhadamente que “a atividade do tráfico de drogas é altamente rentosa no atacado, onde empresários,fazendeiros, negociantes e banqueiros com vínculos transnacionais comandam o investimento, a produção, a comercialização e a lavagem de dinheiro” (ZALUAR, 2004, p. 59). Assim, caso desejemos nos ocupar do fulcro da questão outro aspecto surge para análise é o grande montante de recursos gerados no mercado de substâncias ilícitas, aparecendo articulado nos continentes e pelo mundo inteiro. Essa realidade coloca sob dúvida o real poder que grupos minoritários das comunidades, geralmente de pessoas com baixa instrução, sem treinamento profissional e vivendo sob condições cotidianas extremadas de vida - rotineira ameaça, sem paradeiro certo, desconfiando de todos e sem maior estrutura física – tem de gerenciar com sucesso um negócio que gera montantes consideráveis de recurso por ano, envolvendo um sem número de equipes por todo o país, no caso do Brasil. Não seria o caso de se perguntar quais outros sujeitos estariam envolvidos no aquecido mercado do tráfico? Refletindo sobre a problemática, Zaluar, 2004 não se intimida em atestar: “A organização internacional é complexa, cambiante, móvel, e dependente das armas para a resolução dos conflitos comerciais, traições aos princípios e regras da organização ou questões pessoais[...]” (p. 73). Entretanto, do modo como se estabelecem, com a capilaridade que exibem, a força que demonstram, os processos nos quais se fazem presentes, fazem-nos ver que algumas atividades dos traficantes seriam impossíveis de acontecer sem a participação do Estado, como a aquisição de armas de grosso calibre de posse exclusiva do exército e da polícia militar e civil, a lavagem de dinheiro etc. Não obstante, a corrupção, ao invés de ser entendida como uma anomalia deve ser pensada como uma parte fundamental da lógica de funcionamento do comércio de drogas ilícitas, que por sua vez, tem como limite a sociedade capitalista. Portanto, se a mercadoria precisa circular para propiciar a geração de riquezas e dividendos, os obstáculos precisam ser removidos, entre esses, a presença da polícia: essa precisa ser controlada, se não comprada, negociada, transformada numa parte do circuito por onde tem que circular a droga. Por outro lado, a investida da polícia contra as rotas de comércio ou contra uma facção do tráfico implica em mudanças na dinâmica local da atividade em si, não na solução do que seria o problema. Isto significa dizer que a polícia se torna o fiel da balança do mercado ilegal de drogas, na medida em que sua presença, mais ou menos efetiva, altera a relação de custo da droga nos territórios do tráfico. Quando a polícia atua em um nível mais local de repressão, em muitos casos altera o nível de risco da circulação da droga e a possibilidade de maior estoque da mesma. Ao ocorrerem prisões de membros uma quadrilha numa certa área, perde-se o estoque e havendo migração de alguns integrantes para outro local, acarretando o enfraquecimento desse grupo perante outros. Nesse caso, ou submete-se à dominação sumária por outra facção via confronto dilacerante ou por adesão subalterna, quando não contesta o domínio do grupo antigo. Outra alternativa possível é o grupo reprimido passar a aliar-se em condições de igualdade a grupos da região, potencializando as ações naquele território e, novamente, influenciando a geopolítica do tráfico na cidade. Assim, a ação da polícia altera a conformação territorial das quadrilhas, dos traficantes, o movimento das bocas e o preço da droga, daí a relevância de contar com a sua aquiescência de algum modo para comercializar a droga propriamente dita e para se estabelecer enquanto comerciante potente. Outro ponto relevante é a questão da lavagem do dinheiro do tráfico. Neste aspecto corroboram Soares (2000) e Zaluar (2008), avançando na concordância que demonstram acerca de outros pontos realmente relevantes da questão do tráfico. Zaluar (2004) esclarece a inaptidão dos órgãos públicos dedicados à abordagem do tráfico de drogas em focar o seu real nascedouro quando afirma: “a investigação sobre o tráfico de drogas não tem seguido o caminho do dinheiro, ninguém sabe, por exemplo, onde os muitos milhões já arrecadados no tráfico de drogas no Brasil [...] foram parar” (ZALUAR, 1998, p. 96). Essa realidade é também nítida em Teresina, como tem apontado os jornais locais quanto a atividades desenvolvidas no espaço de lojas de carros e de outros ramos empresariais. (Portalaz, 25 de março de 2010: Traficantes montam farmácias e lojas de carros para lavagem de dinheiro acessado em:2) Compreendemos, portanto, que entender o tráfico de drogas pela perspectiva reducionista de repressão e punição dos elos visíveis da cadeia, como veicula a mídia cotidianamente, tira o foco, obscurece a questão, simplificando-a e responsabilizando quem, na escala do sistema, é o mais prejudicado, ou seja, os usuários ou os pequenos traficantes. Essa maneira de se tratar a criminalidade urbana, e nela imbricada o tráfico de drogas, revela a “denúncia” do domínio de uma força, a do mal, que deve ser alijada, extirpada do convívio social, para que se restabeleça a harmonia. Já quando se fala no homem de bem a referência é 2 Data não especificada no original ao pólo da virtude, da visibilidade, da normalidade. No caso da reportagem, representados pelos fiéis da Igreja. Partindo dessa lógica, os traficantes são demonizados, representam a “banda podre da sociedade”. Os policiais, no entanto, são valorizados a partir de casos isolados, de atos de heroísmo e nunca por uma ação coletiva, como uma instituição que trabalha para garantir direitos cidadãos. Nessa perspectiva, a mídia tem um papel extremamente importante na construção de uma imagem de medo e de descontrole que parte de uma violência da qual desconhecemos a origem primeira, mas apenas que é gerada por jovens pobres, desempregados, pequenos traficantes ou usuários de drogas, oriundos das favelas de Teresina. É importante salientar que em muitos casos, o poder dos traficantes cresce na fraqueza do poder público, em sua ausência ou em sua corrupção. Todavia, tal fraqueza não significa unicamente ausência de políticas públicas, mas sim o enfraquecimento do público como esteio da sociedade moderna, como regulador das relações, tendo no estado moderno liberal o seu representante primeiro. De fato, em Teresina, o poder do tráfico não se constitui em um estado “paralelo”, e sim em uma instância privada de resolução dos problemas, poder e controle no território das vilas e favelas, trata-se de uma impostura decorrente de certa lógica mercantil e empresarial. Logo, dentro desse movimento privatista de caráter mercadológico, envolve vários atores: usuários, aviões, soldados do tráfico, boqueiros, traficantes locais, traficantes nacionais, internacionais e instituições públicas, várias denunciadas cotidianamente por práticas de corrupção junto ao tráfico e pela ação majoritariamente punitiva junto a usuários e pequenos negociantes de drogas instalados em vilas e favelas. Esses são aspectos, dentre outros, que aclaram a complexidade do tráfico. Tráfico de drogas, consumo e violência: vários aspectos, uma só questão No campo de pesquisa observamos que essas mortes são reavivadas em todos os momentos de encontro juvenis nas bocas ou mesmo nos momentos de lazer do domingo, onde alguns jovens traficantes se encontram em locais neutros para jovens de várias galeras, para conversar, dialogar e rememorar essas narrativas. Uma característica marcante nessas ações é a extrema crueldade para com os oponentes, sempre reavivada, em atos ou em discursos. Como exploradasà exaustão, as ações violentas se tornam banais em curto tempo, perdendo o sentido para o grupo e demandando que sejam reeditadas, e cada vez com um in put a mais de crueldade, de modo que alimente o novo medo/respeito. Mostrar que é cruel e capaz de punir com severidade todo aquele que se opõe ao seu poder, deve ser uma condição inquestionável para quem quer manter o controle sobre os demais à sua volta para que percebam que estão expostos ao mesmo tipo de possibilidade. A leitura textual e subtextual dos depoimentos colhidos revela a forma e os momentos em que a sociedade, seguida e constantemente, não lhes tem oferecido outras possibilidades, obstruindo-lhes os caminhos e as formas de caminhar, encurtando suas possibilidades de ancoragem positiva, restringindo a possibilidade de acesso unicamente ao mercado, reservando também este único caminho para sua humanização. As interlocuções os jovens mantêm com o mundo lhes diz que é comprando aquilo que desejam que serão alguém no mundo: vista a roupa A, com ela você ficará mais bonito e terá sucesso profissional; beba refrigerante B, é o mais gostoso, para conquistar a garota que você deseja; use a vitamina C para ter uma vida saudável; dirija o carro D para ter uma vida com mais adrenalina. Bombardeando os ”novos” valores, o tráfico e o dinheiro dele advindo despontam para estes jovens como meio de satisfazer necessidades socialmente construídas, de estar pelo menos na perspectiva do acreditar que assim o será, dentro desse sistema que enquadra as subjetividades e a cidadania no plano meramente econômico. A força do apelo é tão forte que tem justificado o risco que correm no tráfico, dando sequência ao modelo de cidadania capitalizada e mercantil - que atribui valores a aparência – geradora de produtos, violentos e indigestos, mas necessário para alimentar a eugenia do sistema. Para o jovem que vive nas vilas e favelas, essa realidade é gritante e violenta, pois se depara com os chamamentos do discurso mercadológico e com poucas possibilidades de inserção no mercado formal de trabalho. Visto na complexidade posta, concordamos com Feffermann (2006, p. 16), quando identifica o tráfico não como uma anomalia, mas como “um protótipo da sociedade de consumo, mas, em adição a outros, expressa toda a violência nela embutida e produz ainda mais violência”. É expressão da lógica do capitalismo em sua face mais cruel e menos aceitável, pois foge a tutela estatal e a seu controle, concorrendo com ele, porém ganhando cada vez mais adeptos. Por outro lado, no universo juvenil excluído, vítima primeira do alastramento do tráfico, Para conseguir ter o respeito dos colegas e admiração das mulheres, o jovem necessita estar com dinheiro no bolso que lhe permita consumir rapidamente o que conseguir ganhar rapidamente. Segue-se a isso a exibição constante da disposição para a briga e a orgia do consumo interminável, na qual o jovem cria para si mesmo um círculo vicioso, do qual não consegue sair. É preciso estar repetindo sempre o ato criminoso para ganhar o dinheiro fácil que sai fácil do seu bolso. Esse círculo demoníaco fecha-se ainda mais pelo pagamento do butim aos quadrilheiros mais armados e poderosos do que ele, assim como ao policial corrupto. Para continuar a agir criminalmente a fim de ganhar dinheiro fácil, o jovem cria em torno de si uma rede de obrigações em forma de pagamentos de dinheiro e outros favores, como, por exemplo, matar algum inimigo desses poderosos chefes do mundo da contravenção e do crime. (ZALUAR, 2004. p. 63) No ambiente do tráfico encontramos em curso o uso da violência como medida orgânica das atividades, mas também a vivência da autoafirmação dos sujeitos pelos gestos violentos, aliados ao enfraquecimento do ethos do trabalho e da moralidade. O universo consumista e violento de produção de identidades faz do crime uma forma de autoafirmação e subjetivação. Para enfatizar a questão, Zaluar (1998, p.304) diz que: O próprio funcionamento ineficiente e iníquo do sistema de justiça no Brasil certamente teve um papel crucial no modo como a crise da moralidade, o enfraquecimento do ethos do trabalho, a importância cada vez maior do lazer e do prazer de gastar na sociedade de consumo, bem como as novas organizações transnacionais, inclusive as criminais, vieram a se concretizar neste país. Nesse cenário, os valores vinculados à família, à religião, à vizinhança e ao trabalho, instrumentos de controle social da classe hegemônica no decorrer deste Século XX, começam a perder o poder diante das novas leis de mercado, do fetiche da mercadoria, do aumento das desigualdades sociais e do desejo de consumir destes jovens, que, aliados à falta de perspectivas de um futuro, fazem do imediato – e das figuras a ele vinculadas - a regra de suas existências, e com cada vez mais intensidade. O bom jogador de futebol, o bom sambista, o bom pai de família, o trabalhador habilidoso e o malandro esperto que dividia com todos esses personagens o poder no bairro estão deixando de ser referências para o adolescente pobre que se torna um ‘revoltado’, aquele que não ouve ninguém, que não obedece nenhuma regra socialmente aceita. O poder do bandido armado e montado na grana é incontestável. Todos eles o temem. O adolescente que procura seus espelhos vê cada vez mais apenas essa figura que ostenta todos os atributos do poder que não admite oposição – a arma na cintura -, bem como os objetos mais cobiçados do consumismo atual – o carro do ano, as roupas de grife, o brilho do pó. (ZALUAR, 2004, p. 64). Temos nesse sentido uma triste realidade se constituindo. Uma realidade em que o tráfico passa a permitir, solitariamente, às camadas mais pobres e miseráveis das vilas e favelas por esse Brasil a fora a expressassem suas ambiguidades latentes, seu desprezo, ódio e frustrações; seu recalque, suas pequenas e grandes humilhações, fazendo desses lugares os geradores do tipo de inserção que produzem na vida em sociedade. Para aqueles que assistem ao problema à distância, fica cômodo julgar e condenar ex-ante os jovens pelo envolvimento com as drogas e cobrar, a qualquer custo, rígidas punições, uma vez que não indagam como e porque nossa sociedade anula, impossibilita, eclipsa, segrega, negligencia, restringe, solapa possibilidades a seus integrantes de uma tal forma que os leva a encarar uma atividade criminosa e mortífera como possibilidade de melhoria de suas condições de vida e, por conseguinte, de construção da construção da existência e subjetivação. Essa dinâmica retém os jovens sob o controle do tráfico, deixando-os com pouca possibilidade de contestação. As festas patrocinadas por traficantes, embora inclua a farta distribuição de drogas, de remédios, de comida e até eletrodomésticos – como ocorre na zona norte de Teresina - são estratégias assentadas na busca da legitimação, mas pressupõem também a obediência cega e o castigo severo ou até a morte para os desobedientes. Na resolução dos conflitos na esfera privada do tráfico de drogas, concentrar inclusive o poder de matar transforma o traficante no todo-poderoso, alguém a ser imitado. Assim, ou os jovens estão enredados simbolicamente, comprometidos com o ethos do tráfico, ou por ele estão impedidos de viver alternativas fora da lógica da droga, como experimentar a confiança no outro enquanto lugar de construção de laços duradouros. Embora tratando de outra realidade, Soares (2000) destaca consequências igualmente desastrosas para as comunidades pobres do Rio de Janeiro. A partir de dados empíricos de observação participativa, afirma que:o tráfico provoca um assustador número de mortes, dos homicídios dolosos que ocorreram em 1992 na “cidade do Rio de Janeiro, cerca de 65 % apresentavam alguma vinculação, direta ou indireta, com o tráfico de drogas”, ocorre um processo de desorganização da vida associativa e política das comunidades, uma vez que o domínio criminoso na favela manifesta-se no controle, direto ou indireto, sobre as organizações civis locais. As comunidades passam a ser subordinadas pelos criminosos que lidam com o comércio de drogas; a pobreza e os pobres são estigmatizados, porque os bairros populares são vistos como fontes do mal pelos indivíduos que não moram nesses ambientes [...] (p. 267- 273, grifos do autor). Como se pode ver, além do cerceamento individual, as ações desencadeadas pelo tráfico de drogas em comunidades pobres por todo o Brasil, têm chegado ao controle das organizações comunitárias, afetando diretamente os nascentes processos democráticos. Os micro-poderes da teia do tráfico, violentos e autoritários, são instrumentos utilizados para eclipsar ou silenciar os demais grupos comunitários das decisões e da participação comunitária, eliminando qualquer possibilidade de oposição via pena de morte e torturas diversas. Essa lógica é simultânea à ineficiência de uma proteção mínima por parte do Estado, combinada com a política de repressão e violência indiscriminada para com esses moradores, que não diferencia traficantes de pessoas não envolvidas ao tráfico. Comparando a convivência que têm entre o tráfico e o Estado, a população empobrecida tem escolhido buscar nos traficantes a resolução de problemas cotidianos de carências, desproteção etc. pela certeza que vem construindo de uma distância maior em relação ao poder público. No círculo vicioso em curso, os filhos que assistem a esse gesto dos pais e mães, revalidam a referência de que no tráfico está a saída. Fecha-se o cerco. É pelo tráfico que os jovens passam a buscar o retorno financeiro para consumir e o respeito para colocar-se diante da comunidade. O tráfico em Teresina: notas preliminares para sua compreensão Em Teresina notamos, no transcorrer da pesquisa, tanto em nossas observações de campo, como nas entrevistas, algumas particularidades. Aqui existem pelo menos duas constituições de tráfico, quais sejam: o tráfico endógeno, que é aquele em que o traficante cresce na comunidade e apesar da violência empregada nos seus atos para com os locais, estabelece uma relação simultânea de proximidade, de apadrinhamento, sendo tais laços originários (e mantidos) dos processos de socialização da infância, alimentadas pelas trajetórias dos jovens traficantes e das comunidades. Ao que parece, as memórias de partilhas que antecederam a realidade do tráfico, permanecem – de algum modo – orientando a ação dos traficantes locais na sua relação com os moradores, num processo de mão dupla. Os moradores, por exemplo, permanecem se referindo aos traficantes como “o fulano, filho de beltrano” ou com expressões íntimas que denotam os vínculos do passado. Talvez pudéssemos dizer que algum afeto persiste, mesmo que não endossado pela racionalidade do discurso, mas como marca presente das relações longínquas onde todos eram apenas as crianças do bairro, parceiros de brincadeiras inocentes. O traficante, por sua vez, no limite possível da ação que concretiza, também deixa antever essa referência, embora distante. Pelo proceder de ambos, o traficante não deixa de ser “do grupo” comunitário, tendo sua presença e ações guardadas pelo silêncio e aceitação nas vilas e favelas, sendo o gesto possivelmente incrementado pela repulsa que essas comunidades vêm adquirindo ao poder público devido a constante violação de seus direitos pelo aparato policial ou pela ausência de serviços básicos. A origem do tráfico endógeno, conforme encontrado nas vilas pesquisadas, também se relaciona diretamente com a ocupação territorial das vilas, capitaneada por lideranças políticas do meio ou por movimentos sociais consolidados, e, na maioria das vezes, motivada pela carência de moradia e clareza mínima acerca do direito negado. Alguns jovens que após participar desse momento inicial de ocupação, posteriormente se transformam em traficantes da área, mantêm uma relação diferenciada com os moradores, tendo sua liderança aceita com maior tranquilidade. Além disso, algo facilita o seu trabalho: os territórios consolidados a partir das ocupações urbanas normalmente se originam e se desenvolvem territorial e urbanamente nos limites das possibilidades locais, no vácuo da presença estatal, desprovidos de tudo. Mostra-se compreensível que as pessoas se aproximem e defendam aquilo que pode viabilizar sua existência mais imediata. A outra presença do tráfico é a exógena, que se consuma quando um traficante de outra favela ou vila ou mesmo de outra cidade/estado extermina um traficante local, tomando sua boca e se mantendo nela unicamente pela truculência de suas ações ou ancorado no poder violento do grupo do qual passa a fazer parte, normalmente temido nas comunidades. Nesse caso não há legitimação mínima, não há trocas simbólicas assentadas na partilha de memórias comuns. O líder se mantém pela via da opressão, expulsão ou extermínio sumário de quem se coloca contra ele. Essa nova forma começa a surgir em Teresina pelas disputas de bocas de fumo e, especialmente, via entrada de traficantes de outras regiões, principalmente do eixo Rio-São Paulo. A introdução de grupos exógenos no tráfico de Teresina aponta para a mudança do modo do tráfico relacionar-se com as comunidades, além de revelar alterações no modo do tráfico organizar-se comercialmente. Observamos que pode estar se desenhando uma nova dinâmica para o tráfico de drogas em Teresina, o qual passa a ter um comando central localizado fora do Piauí. Possivelmente se imporá na perspectiva da violência para se estabelecer, e mais violência ainda para se manter, estabelecendo alianças e concessões com alguns traficantes locais e retaliando severamente os opositores – traficantes ou não. Na nossa avaliação, a mudança apontada radicalizará o uso da violência nas vilas e favelas, aumentando o nível de vulnerabilidade daqueles que escolhem viver fora das condições do tráfico, mas também dos jovens que se envolverem com os novos chefes das drogas, consumando o mesmo percurso que os jovens já vivenciam no eixo-Rio São Paulo, por exemplo. Isso nos leva a uma constatação básica: nem todo o poder do traficante é oriundo do seu autoritarismo e violência. Apesar de se firmar nessas relações, uma parte desse poder, dependendo de como as relações do tráfico foram estabelecidas em determinada comunidade. Aquilo que numa visão unilateral venha a se chamar de medo, pode ser traduzido nesse contexto como respeito ou confiança tecida em uma rede de afetividade e solidariedade construída antes do acirramento das relações trazidas pelas relações do tráfico de drogas. Relações de outrora vizinhança, de associativismo, de enfrentamentos e partilha de problemas em conjunto. Quando as relações e ordenamentos são estabelecidos pelo tráfico consolidado externamente à constituição das comunidades, normalmente o nível da opressão é maior e até dirigido a algumas pessoas. Essa é prática comum, por exemplo, quando uma boca de fumo é tomada por outra, estabelecendo a perseguição contra muitos dos parentes, aliados ou simpatizantes do traficante anterior. Embora tímida essa é uma realidade que já encontramos em Teresina. Quando o traficante surge entre os moradores da própria comunidade - perfil de todos os entrevistados -, emgeral, as relações são de apoio e respeito, remontando àquelas vigentes antes do ingresso do jovem na vida do tráfico. Não queremos com isso dizer que o tráfico local não significa medo, violência, exceção. Que as relações entre a população e os traficantes sejam harmônicas, mas apontar que as relações entre traficantes locais, moradores das vilas e favelas são marcadas por uma profunda ambiguidade de sentidos e interesses, mas certamente estabelecendo a tensão como regra maior. Não obstante as diferenças entre as manifestações do tráfico em Teresina, uma questão merece ser destacada quanto à posição assumida pela população atingida pelo tráfico, que é de dependência e ausência de possibilidades maiores de resistência. Imaginar que os moradores de favelas, acossados por traficantes e sem o apoio do poder público, têm a opção de ser ou não coniventes com os traficantes, é uma posição profundamente idealista. A exacerbação das dificuldades faz com que, em alguns momentos, os traficantes funcionem até como ícones para os moradores, principalmente quando empreendem ousadas ações contra a polícia e em defesa de parentes, vizinhos ou conhecidos. Uma outra interpretação é possível: apontamentos conclusivos A despeito da complexidade que caracteriza a questão do tráfico e da sua localização na intrincada rede das tensões urbanas contemporâneas, o discurso hegemônico ainda fala do domínio de uma força, a do mal, que deve ser alijada, separada e extirpada do convívio social, para que este tenha harmonia. Já quando se refere à virtude, à normalidade a referência é o homem de bem, independente de suas ações ou crimes anteriores, para os quais, se forem contra os cofres públicos e de grande abrangência de recursos, seu perdão, às vezes, vem mais rapidamente. Assim se consolida o conveniente discurso maniqueísta punitivo. Esse protótipo de forma societária é, para a imprensa e os planejadores da segurança pública, a sociedade, a boa sociedade. Aquela que estão construindo com empenho. Esse é o modelo que uma determinada visão de mundo busca implantar e sustentar como a forma possível de relacionamento entre agentes sociais. A má sociedade é a dos bandidos, dos traficantes ou de todos aqueles que ofendem a harmonia desse padrão de relacionamento social, seja pela proposição de outro modelo social, seja como resultante da efetividade de suas práticas extremas, que negam parâmetros e valores das práticas hegemônicas. A boa sociedade é a dos burgueses e a má sociedade é a de todos os outros que não a aceitam conforme posta em suas regras e dinâmicas. Aquela é e a outra não é. No entanto, não podemos esquecer que nessas duas construções de sociedade parece haver um mimetismo da criadora e da criatura, sendo que a sociedade da maldade (criada) é alimentada pela sociedade da bondade com seus instrumentos midiáticos e simbólicos, para sustentá-la e lhe servir de argumento para suas ações de repressão e discursos produzidos sobre as mesmas, como os discursos do medo e da violência. Infelizmente essa visão de mundo dicotomizada e maniqueísta tem se apresentado e sido plantada com uma força e intensidade cada vez mais presentes e nos momentos de crise social se amplia, passando a ignorar outras formas de se pensar a realidade. Nesse emaranhado de práticas e sentidos não conseguiremos conceber as construções oferecidas pelo tráfico de drogas se não o percebermos dentro da ampla teia de significações que ele representa. O propósito de realçar os reais determinantes e as capilaridades do tráfico em nossa sociedade precisa abarcar não apenas o fenômeno em seu aspecto macro, mas também nas suas manifestações localizadas, como é o caso apontado de Teresina. Embora tenhamos clareza das especificidades piauienses, assim o compreendemos por três razões: a primeira, em virtude das dimensões e sistemática porque se manifesta o tráfico no Brasil e no mundo, articulando intensamente o local com o regional. A segunda por considerarmos que o Estado brasileiro, aqui e alhures, enfrenta problemas similares na sua relação com o tráfico de drogas e, por fim, que a juventude tem se constituído na vítima preferencial da problemática do tráfico, independente de como e onde ela se estabeleça. Isso deveria implica que instituições, pensadores e a sociedade se sentissem suficientemente estimulados em levar a questão a sério e abordá-la na complexidade exigida. Assim, possivelmente, poderíamos colaborar para o estancamento de uma realidade onde os jovens – e demais - elejam o consumo como parâmetro maior das relações sociais. Uma realidade onde, para serem vistos e respeitados como consumidores, não tenham de apelar para o “dinheiro fácil” do tráfico; para existirem como sujeitos sociais, não tenham que colocar sob alto risco sua própria existência física. Não há mais o que esperar para dividirmos socialmente essa responsabilidade. No caso de Teresina a situação requer urgência, uma vez que, ao que sugerem as informações coletadas, o consumo de drogas tem se expandido, inclusive com a maior presença de mulheres, ano a ano. Claro, também se expandem todas as consequências do fenômeno, como proliferação de grupos, confrontos de bocas, envolvimento dos jovens como comerciantes e consumidores de droga. Além disso, estamos atualmente saindo de uma lógica, de algum modo, própria de comércio de drogas, para a entrada numa sistemática nacional, o que - pelo que analisamos - implica num recrudescimento das dificuldades, dos danos e da vitimização de incontáveis famílias, seus pais, mães, filhos... especialmente, seus jovens. Referências COSTA, P.F. As drogas perante a lei. In: BUCHER,R(org). Prevenção ao uso indevido de drogas. 2. Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991. COSTA, M.B.; SILVA, V. Juventude, estado e tráfico de drogas em Teresina-PI: uma mistura explosiva. In: Políticas Públicas e Direitos Humanos, Teresina: EDUFPI, 2011 (no prelo). FEFFERMANN, M. Vidas Arriscadas: o cotidiano dos jovens trabalhadores do tráfico. Petrópolis: Vozes, 2006. JORNAL MEIO NORTE. 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