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ilha de Dobu, este povo de feiticeiros (R. Fortune, 1972). Se houver, entre estes, indiv´ıduos que na˜o tenham nenhum sentimento de suspeic¸a˜o, nenhum gosto pelo roubo, e detestem brigar, na˜o deixara˜o de aparecer como margi- nais, enquanto estariam perfeitamente bem adaptados (e considerados como conformistas) na sociedade pueblo. A partir de exemplos desse tipo, Ruth Benedict elabora sua teoria do ”arco cultural”. Cada cultura realiza uma escolha. Valoriza um determinado seg- mento do grande arcode c´ırculo das possibilidades da humanidade. Encoraja um certo nu´mero de comportamentos em detrimento de outros que se veˆem censurados. Atrave´s de um processo de selec¸a˜o (na˜o biolo´gico, mas cultu- ral), todos os membros de uma mesma sociedade compartilham um certo nu´mero de preocupac¸o˜es, sentem as mesmas inclinac¸o˜es e averso˜es. O que caracteriza uma determinada sociedade e´ uma ”configurac¸a˜o cultural”, uma lo´gica que se encontra ao mesmo tempo na especificidade das instituic¸o˜es e na dos comportamentos. Toda cultura persegue um objetivo, desconhecido dos indiv´ıduos. Cada um de no´s possui em si todas as tendeˆncias, mas a cul- tura a` qual pertencemos realiza uma selec¸a˜o. As instituic¸o˜es (e, em especial, as instituic¸o˜es educativas: famı´lias, escolas, ritos de iniciac¸a˜o) pretendem – inconscientemente – fazer com que os indiv´ıduos se conformem aos valores pro´prios de cada cultura. Cr´ıticas, frequ¨entemente severas, na˜o faltaram aos cul-turalismo americano,4 que esta´ longe de fazer a unanimidade entre os antropo´logos, sobretudo na Franc¸a onde o mı´nimo que se pode dizer e´ que na˜o tem boa reputac¸a˜o. Tra- balhando com uma abordagem muito emp´ırica (a localizac¸a˜o das func¸o˜es, dos conflitos e das significac¸o˜es, em detrimento da investigac¸a˜o das normas, das regras e dos sistemas, de acordo com os termos de Michel Foucault aos quais nos referimos acima), tende a efetuar uma reduc¸a˜o dos comportamentos hu- manos a tipos, e a esboc¸ar tipologias que devem muito mais a` intuic¸a˜o e a` pro´pria personalidade do pesquisador, do que a` construc¸a˜o rigorosa de um objeto cient´ıfico. Ale´m disso, e em consequ¨eˆncia mesmo dos pressupostos que sa˜o seus (a observac¸a˜o daquilo que, em uma sociedade, e´ manifesto, em detri- mento daquilo que e´ recalcado e inconsciente), desenvolve uma concepc¸a˜o do 4Autorizo-me a indicar ao leitor dois de meus livros anteriores (L’Ethnopsychiatrie, Ed. Universitaires, 1973, pp. 33-36; Les 50 Mots Cle´s de 1’Anthropologie, Ed. Privat, 1974, pp. 46-50) e a sublinhar que, a meu ver, foi Georges Devereux (1970). colocando-se no corac¸a˜o mesmo do campo de estudo privilegiado por essa tendeˆncia da antropologia, quem propoˆs a cr´ıtica mais radical desta. Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Highlight Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Underline 102 CAPI´TULO 9. A ANTROPOLOGIA CULTURAL: relativismo cultural (expressa˜o forjada por Herskovitz) que o impede de dar o passo que separa o estudo das variac¸o˜es culturais da ana´lise da variabilidade da cultura; variabilidade esta que sera´ o objeto das pesquisas examinadas no pro´ximo cap´ıtulo. Isso na˜o impede que, levando-se em ’conta essas cr´ıticas, levando-se em conta, tambe´m, o fato de que o projeto desses autores e´ frequ¨entemente menos am- bicioso do que geralmente se diz (cf. particularmente a obra de Ruth Be- nedict), a antropologia cultural, pela a´rea de investigac¸a˜o que e´ sua e que e´ frequ¨entemente deixada de lado em nosso pa´ıs, pela amplitude do campo dos materiais recolhidos, pela importaˆncia dos problemas colocados, represente uma contribuic¸a˜o bastante considera´vel para nossa disciplina. Andre Sobrinho Underline Cap´ıtulo 10 A Antropologia Estrutural E Sisteˆmica: Para a antropologia cultural, cada cultura particular, caracterizada por um conjunto de tendeˆncias tais como aparecem empiricamente ao observador, e´ um pouco compara´vel a`s pec¸as de um quebra-cabec¸a. Sa˜o entidades parce- ladas, frutos de uma pra´tica parceladora. E nessas condic¸o˜es, a cultura e´ concebida como uma espe´cie de mosaico, um traje de Arlequim. Na perspec- tiva na qual nos situaremos agora, as culturas sa˜o apreendidas, ou melhor, tratadas, em um n´ıvel que na˜o e´ mais dado, e sim constru´ıdo: o do sis- tema. Na˜o se trata mais de estudar tal aspecto de uma sociedade em si, relacionando-o ao conjunto das relac¸o˜es sociais (antropologia social),’e muito menos tal cultura particular na lo´gica que lhe e´ pro´pria (antropologia cultu- ral, mas tambe´m simbo´lica): trata-se de estudar a lo´gica da cultura. Ou seja, ale´m da variedade das culturas e organizac¸o˜es sociais, procuraremos explicar a variabilidade em si da cultura: o que dizem e inventem os homens deve ser compreendido como produc¸o˜es do esp´ırito humano, que se elaboram sem que estes tenham conscieˆncia disso. Isso colocado, reuniremos nesse cap´ıtulo um certo mimero de tendeˆncias do pensamento e da pra´tica antropologica, aparentemente bastante distantes entre si: • o que se pode qualificar de antropologia da comunicac¸a˜o, que, com o impulso de Gregory Bateson e da escola de Paio Alto, estuda as dife- rentes modalidades da comunicac¸a˜o entre os homens, na˜o a partir dos interlocutores que seriam considerados como elementos separados uns dos outros, mas a partir dos processos de interac¸a˜o formando sistemas de troca, integrando notadamente tudo o que, no encontro, se da´ ao 103 Andre Sobrinho Underline Andre Sobrinho Highlight 104CAPI´TULO 10. A ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL E SISTEˆMICA: n´ıvel (na˜o verbal) das sensac¸o˜es, dos gestos, das mı´micas, e da posturas; • a enopsiquiatria, cujo fundador e´ Georges Devereux, e que e´ uma pra´tica claramente pluridisciplinar, procurando compreender ao mesmo tempo a dimensa˜o e´tnica dos distu´rbios mentais e a dimensa˜o psi- colo´gica e psicopatolo´gica da cultura; • o estruturalismo franceˆs, finalmente, do qual muitos gostam hoje de dizer que esta´ ha´ muito tempo ultrapassado, mas que eu considero pessoalmente como mais atual do que nunca. * * * Existem, e´ claro, diferenc¸as essenciais entre essas diversas correntes da an- tropologia contemporaˆnea. Mas reu´nem-se no entanto em torno de um certo nu´mero de opc¸o˜es. 1) Trata-se em primeiro lugar da importaˆncia dada aos modelos episte- molo´gicos formados no aˆmbito das cieˆncias da natureza ou, mais precisa- mente, da necessidade de um confronto entre abordagens aparentemente ta˜o afastadas uma das outras quanto a etnologia, a neurofisiologia, as ma- tema´ticas (e no campo das cieˆncias humanas, a psicana´lise, a lingu¨´ıstica). Todos os autores que acabamos de citar colocam o problema da passagem de um modo de conhecimento para outro, assim como a questa˜o da validade da transfereˆncia dos modelos. Partindo do ”princ´ıpio de incerteza”de Heiscnbcrg (e´ imposs´ıvel determinar ao mesmo tempo e com igual precisa˜o a velocidade e a posic¸a˜o do ele´tron, pois sua observac¸a˜o cria uma situac¸a˜o que o modifica), Devereux, o primeiro, mostra que o que e´ verdadeiro no campo da f´ısica quaˆntica e´ mais verdadeiro ainda no das cieˆncias humanas e, particularmente, da etnologia: a presenc¸a de um observador (no caso, o etno´grafo) provoca uma perturbac¸a˜o do que e´ observado, e essa perturbac¸a˜o, longe de ser uma fonte de erros a ser neutra- lizada, e´ pelo contra´rio uma fonte de informac¸o˜es que conve´m explorar. Partindo da ciberne´tica inventada por Norbert Wiener em 1848 a partir da elaborac¸a˜o da pilotagem automa´tica, Bateson, de volta de Bali, percebe que os princ´ıpios de Wiener podem trazer uma renovac¸a˜o total para o estudo da comunicac¸a˜o humana, e, particularmente, das ferramentas, ate´ enta˜o na˜o utilizadas para abordar os sistemas interativos em jogo nas nossas trocas. Ora, Le´vi-Strauss, quase