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EROTIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLÍTICA DO DESEJO: NARRATIVAS DE GÊNERO E SEXUALIDADES EM TEMPOS DE CÓLERA. Paulo César García Djalma Thürler Organizadores EROTIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLÍTICA DO DESEJO: NARRATIVAS DE GÊNERO E SEXUALIDADES EM TEMPOS DE CÓLERA. Paulo César García Renata Pimentel Flávio Camargo Berenice Bento Leandro Colling Ana Gabriela Pio André Luís Mitidieri Lorena Dantas Rodrigues Daniel de Campos Oliveira Emerson da Cruz Inácio Djalma Thürler Salvador 2016 ...o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à autonomia e à vida. Judith Butler "E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também". Caio Fernando Abreu, em Terça-feira gorda. RESUMO A proposta de produzir um livro que apresente questionamentos em torno da erotização da política e a política do desejo tem a ver com os respaldos de leituras e linhas transversais de interpretação de estudos que movem relatos, experiências, narrativas. Pensar em tempos não somente pelas instâncias dissidentes que deslocam significados para raças, mulheres, lésbicas, gays, transexuais, sem dúvida, é um exercício de compreensão crítico, mas também de poder reportar como, em que medida as polaridades atadas às estruturas lógicas centralizam e ainda mais movimentam, incitam e repetem de modo colérico as expressões de identidades, a exemplo do que acontecem com as de gêneros e de sexualidades. Ao trazer à tona a palavra política, pretendemos avançar nos posicionamentos que veem e desconstroem o sujeito pela ótica da igualdade e da afirmação identitária próxima ao padrão heteronormativo. Para este livro, problemas que reconheçam o hibridismo cultural, as políticas fluídas, uma erotização que subverta a fixidez, que rompam com noções e ideais normativos serão suportes de reflexão preciosos com as intersecções em tempos de cólera. Narrativas da literatura, poesia, artes cênicas e demais textualidades do conhecimento que aferem reconduzir as referidas discussões, certamente, terá, aqui, um panorama reflexivo e de repercussões relevantes. SUMÁRIO 04 PREFÁCIO EROTIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLÍTICA DO DESEJO: NARRATIVAS DE GÊNERO E DE SEXUALIDADES EM TEMPOS DE CÓLERA. Paulo César García e Djalma Thürler 12 O DIÁRIO DE CORPOS ABJETOS Paulo César García 29 A LITERATURA E AS CONSTELAÇÕES FAMILIARES: COMO INSTAURAR OUTROS “MELHORES MUNDOS POSSÍVEIS”. Renata Pimentel 46 OBSCENOS DESEJOS Flávio Pereira Camargo 57 DSM-5: A INVENÇÃO DO GÊNERO COMO CATEGORIA DIAGNÓSTICA Berenice Bento 74 A EMERGÊNCIA DO ARTIVISMO DA DISSIDÊNCIA SEXUAL E DE GÊNERO NO BRASIL DA ATUALIDADE. Leandro Colling 87 ESCRITAS EXCESSIVAS: DISPOSIÇÕES DE LESBIANIDADES EM AS TRAÇAS, DE CASSANDRA RIOS Ana Gabriela Pio Pereira 105 EVA PERÓN NA MIRA DO SEU COIFFEUR André Luís Mitidieri Lorena Dantas Rodrigues 119 NÔMADES ERÓTICOS: MICHETAGEM E VIRILIDADES EM ORGIA, DE TULIO CARELLA. Daniel de Campos Oliveira 135 MANIFESTO PARA UMA CRÍTICA POÉTICA DE UMA POSSÍVEL EXISTÊNCIA DO CORPO NA DIFERENÇA Emerson Inácio 144 O OUTRO LADO DE TODAS AS COISAS Djalma Thürler PREFÁCIO Erotização da política e a política do desejo: narrativas de gênero e de sexualidades em tempos de cólera. Paulo César García e Djalma Thürler A proposta em produzir um livro que apresente questionamentos em torno da erotização da política e a política do desejo tem a ver com os respaldos de leituras e linhas transversais de interpretação de estudos que movem relatos, experiências, narrativas. Pensar em tempos não somente pelas instâncias dissidentes que deslocam significados para raças, mulheres, lésbicas, gays, transexuais, sem dúvida, é um exercício de compreensão crítico, mas também poder reportar como, em que medida as polaridades atadas às estruturas lógicas centralizam e ainda mais movimentam, incitam e repetem de modo colérico as expressões de identidades, a exemplo do que acontecem com as de gêneros e de sexualidades. Um ponto nevrálgico em torno dos debates trata da naturalização e da normatização ao falar de sexo e de gênero, o que coloca em evidência a afirmação da identidade como procedimento único de classificação para o indivíduo, tornando assim uma prática que o essencializa e o identifica, como também daqueles que se excluem. Ao trazer à tona a palavra política, pretendemos avançar nos posicionamentos que implicam analisar discursos que veem e desconstroem o sujeito pela ótica da igualdade e da afirmação identitária, por marcos legais e leis, por discriminações e injúrias, pela aderência aos dois gêneros (masculino e feminino) como “naturais” e gerados pela instância biológica e genética, em considerar a afirmação da identidade pela linha de filiação LGBT, criando aí uma imagem de aceitação próximo ao padrão heteronormativo. Uma política do desejo que nutre a diferença assume o perfil de impactar e desconstruir essas bases, o que seguindo a linha de raciocínio de Colling (2016), busca-se “uma visão não-essencialista sobre as identidades”, o que só poderá “destacar, respeitar e até festejar as diferenças, as características comuns e partilhadas, as mudanças das identidades. Também irá defender que não há uma identidade ‘verdadeira’”. Assim, para esse livro, problemas que reconheçam o hibridismo cultural, as políticas fluídas, uma erotização que subverta a fixidez, dos desejos que rompam com noções e ideais normativos serão suportes de reflexão preciosos com as intersecções em tempos de cólera. Narrativas da literatura, poesia, artes cênicas, e demais textualidades do conhecimento que aferem reconduzir as referidas discussões, certamente, terá, aqui, um panorama reflexivo e de repercussões relevantes. Atendendo ao edital da Editora da Universidade do Estado da Bahia para publicação de livros, nós nos aliamos de modo muito especial, para reunir todxs Professores e Pesquisadores que desejem compartilhar dos seus estudos e apresentar publicamente por onde pensam e como pensam a proposta em exposição. O que quer O diário de Genet com uma impossível nulidade em tempos de cólera? Seria apresentado nogesto de corporificar os atos das personagens-atores: o poder ser, ao dizer, ao criar a si desnormatizando-os? O texto de Paulo César García consiste em analisar a leitura dramática construída a partir e por meio da visão poética do dramaturgo Djalma Thürler. Trata de deslocar do Diário do ladrão uma genealogia da história criada do fruto da escrita do escritor francês Jean Genet e retomá-la em outra fonte discursiva, reposicionando o sujeito por lugares mais fluidos. “A liberdade de conjugar a obra literária de Genet com a representação dramática é um modo de subverter a vivacidade do recalcado, de esbarrar com a estranheza que se aplica com o nosso jeito impotente de compreender existências outras” propõe o estudo de Paulo César que procura refletir as bases que nutrem a tendência do contemporâneo, as dissidências de gênero e das sexualidades facultadas na confluência de cisões e rupturas. Segundo o autor, o teatro que produz Thürler está em sintonia de exercitar outros fundos de verdades, os que representam a própria maneira de politizar a assunção do corpo, de como posicionar existências que espantam a regularidade do desejo. A leitura dramática de O diário de Genet, como propõe o texto, é ávido com a problematização que enuncia formular as abjecções do corpo, uma diretriz para as intersecções dos gêneros que importam pensar. Renata Pimentel dá enfoque sobre obras que recebem constantemente ‘adjetivações reducionistas’ a estigmatizá-las, como “literatura gay/ homossexual/ lésbica”. Segundo a autora, estes rótulos parecem ser usados para depreciar e disfarçar a importância objetiva de uma produção artística que reflete sobre os desvãos e os interditos sociais, sobre olhares que revelam as “normas” e suas arbitrariedades. Tendo em mente as obras de Copi (pseudônimo de Raul Botana: o argentino ficcionista, dramaturgo, ator e desenhista radicado em Paris), de Hilda Hilst (poeta, ficcionista e dramaturga paulista), de Caio Fernando Abreu (ficcionista e dramaturgo gaúcho), Alberto Manguel (escritor e crítico argentino) e Beatriz Preciado (filósofa e professora espanhola). Destaca aí a força dos estudos culturais, sobretudo os estudos de gênero e a teoria queer, como modo de repensar os espaços e as configurações individuais e familiares. Tais obras revelam a mesma urgência: desmascarar a norma instituída e a falácia que representa um estereótipo único e pasteurizado de parentalidade. Instauram- se, pois, nestes universos artísticos, novos e melhores “mundos possíveis”, acordando para o status crítico e político em torno das leituras produzidas. Obscenos desejos, de Flávio Pereira Camargo tem o objetivo de analisar o conto “Obs-ceno”, do escritor de Antonio de Pádua. A partir de uma perspectiva entre literatura e homoerotismo com fundamentação nas discussões teóricas dos estudos de Didier Eribon (2008), Eliane Robert Moraes (2003), Georges Bataille (1987), Julia Kristeva (1982), Octávio Paz (1995, 2014) e Zygmunt Bauman (2004), Flávio Camargo visa como as questões referentes à identidade, à autodescoberta de si e do desejo homoerótico do protagonista da narrativa são representados, provocando uma ruptura e uma transgressão com a interdição do erotismo dos corpos e dos desejos por meio de uma linguagem que encena o próprio erotismo dos corpos. Aspectos concernentes à questão do armário e da injúria, compreendidos como elementos constitutivos de uma subjetividade gay, também, são meios discursivos para o debate que apresenta. A leitura de Berenice Bento nos põe uma questão provocadora em DSM-5: A invenção do gênero como categoria diagnóstica: “Deveriam as identidades trans continuar a ser diagnosticável como um transtorno psiquiátrico?” Para ela, esta é a pergunta que parte considerável dos artigos escritos nos últimos 10 anos tem tentado responder. Conforme argumenta, O DSM-5 é um manual da American Psychiatric Association (APA), mas o seu poder não é limitado às fronteiras de Estados Unidos. O objetivo do texto da autora é apresentar o processo de debate que resultou na mudança de nome da categoria de diagnóstico de “transtornos da identidade sexual” para “disforia de gênero” e encontra a metodologia da pesquisa baseada em pesquisas nos bancos de dados, entre os anos de 2013-14, na City University of New York (CUNY). Mas, é no texto A emergência do artivismo da dissidência sexual e de gênero no Brasil da atualidade, que Leandro Colling procura refletir, através das pistas para a construção de uma genealogia, as condições de emergência de vários artistas ativistas das dissidências sexuais e de gênero que surgiram nos últimos anos no Brasil. O trabalho foi realizado em diálogo com as produções de Foucault, Deleuze e Guattari e Butler. Pode ser que em Escritas excessivas: disposições de lesbianidades, Ana Gabriela Pio Pereira, ao analisar o romance As traças, de Cassandra Rios debata com desenvoltura o que se envolve a proposta do livro. O texto propõe demonstrar que a produção literária da escritora paulista Odete Rios, conhecida no cenário nacional, sobretudo, nas décadas de 1960 e 1970, pelo pseudônimo Cassandra Rios. O texto investe na desmontagem de toda uma tradição discursiva da obra da autora, visado na produção de corpos, desejos e subjetividades. A escrita de Rios promove um estado político quando opera expressões de gênero e da categoria da lesbianidade. Gabriela Pio percebe o processo de leitura construída pela crítica cultural, dando voz à desestabilização das identidades e atropelando conceitos que afirmam os sujeitos, atrelando-os à fixidez e aos discursos heteronormativos. Em Eva Perón na mira do seu coiffeur, revelam conceitos efetivados com a imagem de Eva Perón e sua atuação nos palcos de poder, conforme representada na narrativa romanesca Santa Evita, a obra literária argentina mais traduzida em todos os tempos, publicada originalmente pelo jornalista em 1995 pelo jornalista e ficcionista tucumano Tomás Eloy Martínez. A partir do olhar e da perspectiva de Julio Alcaraz, personagem fundamentada na figura histórica do cabeleireiro Pedro Alcaraz, um dos responsáveis pela transformação da imagem da primeira dama peronista, a formulação in progress de “biografema homocultural camp” é o eixo analítico do discurso de André Luís Mitidieri e Lorena Dantas Rodrigues que diz respeito ao biografema homocultural e camp. Por sua vez, Daniel de Campos Oliveira apresenta a leitura em Nômades eróticos: michetagem e virilidade em Orgia, de Túlio Carella, compreendendo a virilidade dos michês presente no texto de Carella como potência de discurso que aflora na relação binária e sexista. A obra Orgia do escritor argentino foi publicada em 1968 no Brasil com tradução de Hermilo Borba Filho e trata dos diários de Lúcio Ginarte. Ao aceitar o convite para viver um ano no Brasil, ensinando no curso de teatro da Universidade Federal do Recife, Carella / Ginarte se entregam ao devaneio homossexual, autor e personagem são contagiados pelas derivas do sexo pago com garotos de programa. O deleite aos corpos com homens negros que se vendem é o tom da análise do texto de Daniel Oliveira, que permite pensar as questões que movem o relato da obra, como a masculinidade viril e o ambiente onde homens se relacionam sexualmente com outros homens, sem identificarem a orientação sexual. A partir dos estudos de Néstor Perlongher (1987), propõe analisar a posição dos michês entre o personagem e autor, compreendendo as rupturas e travestimentos em torno das identidades sexuais. Mas há um manifesto que é pertinente com os objetivos do livro. Trata-se do Manifesto para uma Crítica Poética de uma possível existência do Corpo na Diferença,de Emerson Inácio. Existe uma construção metacrítica apresentada no texto do autor que leva em consideração teorias, postulados, propostas e assertivas que permearam os estudos cuir, de gênero, sexualidades e diversidade sexual e identitária. Da experiência e dos atravessamentos nascidos das várias leituras, intenta-se a construção de um manifesto, que se delineie pelo duplo movimento entre o ético e o poético, mas ao mesmo tempo também entre o exercício crítico e a criatividade estética, impondo-se como um questionamento aos diversos formatos a que a tarefa crítica se autoimpõe, mesmo quando trata de questões relacionadas ao corpo, às sexualidades, às novas subjetividas, instâncias pelas quais se demanda liberdade. As palavras aqui estranham ao rigor formal da língua, mas ela tem a intenção de encontros, ou seja, é revelação. Revela a ação entre as diversas dinâmicas teórico-críticas, mas, com o questionamento fértil em torno da visão sempre iminente do que somos, de como somos traduzidos, sentidos e compreendidos, e pela instauração de uma dúvida, aquilo que pretendemos e queremos em termos culturais, sociais e políticos cabe nos formatos fechados do pensamento, da escrita, da expressão? Eis que corpo, metacrítica, identidade e “cuir” são exercícios de leituras e fórum de interpretação na linguagem que adota Emerson Inácio. Djalma Thürler, no ano em que se comemora 20 anos da morte de Caio Fernando Abreu (1948-1996), nos apresenta a forma escrita da sua Performativa Palestra de quando Caio próximo ao som da minha voz. No texto, em forma dramática, Thürler mergulha no universo amoroso de Caio e cria novas estratégias de construtividade textual, mudanças, transposições, uma interpretação possível (dentre tantas possibilidades) das tantas vozes lidas e ouvidas. O outro lado de todas as coisas, ao se apropriar das vozes sociais e políticas “amorosas” de Caio F. extrai um significado diferente que interessa ao leitor ou espectador contemporâneo em seu momento histórico presente, que ainda não aprendeu sobre a fragilidade do amor, ou daquilo, que com algum descuido, chamamos de amor. O DIÁRIO DE CORPOS ABJETOS Paulo César García Na hora, no momento em que escrevia, talvez eu desejasse engrandecer sentimentos, atitudes ou objetos que um rapaz magnífico, diante de cuja beleza eu me curvava, honrava, mas hoje, quando me releio, esqueci aqueles rapazes, só ficou deles aquele atributo que cantei, e é ele que irá resplandecer em meus livros com um brilho igual ao orgulho, ao heroísmo, à audácia. Jean Genet. O diário de um ladrão A minha vida é assim: pois era preciso muito orgulho para embelezar esses personagens imundos e desprezados. Eu precisei de muito talento. Ele me veio pouco a pouco. A minha vida miserável me permitiu criar. Djalma Thürler. O diário de Genet. 1. Diários: escritas de afetos. Cena 1. Brevidades Encontrar com um diário que resplandece o poder da palavra que se quer guerrear com o outro, tem lugar na escrita de Jean Genet. Quem lê a obra do escritor francês com o propósito de se aventurar na bonança sexual em Diário de um ladrão, não terá exatamente um mergulho nas zonas erógenas do sexo à deriva, mas de uma estética que produz subjetividades que mira o poder amar, flertar e atrair, trair e afetar, de revelar perfis de garotos, gays, pobres, abjetos, verdades de ladrão em estilização de vidas. A obra de Genet, no amparo lírico de um eu enredado, é movida no espaço da escrita cujo lugar é do gozo, ou seja, de jorrar na cara do leitor o existente em excesso, o que não se diz numa realidade calcada por regularidades e disciplinas. A epígrafe do autor em destaque neste texto mira a audácia e o heroísmo de um sujeito que se satisfaz na e pela escrita, no ato em si de ultrapassar as fronteiras. O objetivo deste texto consiste em propor a leitura dramática construída a partir e por meio da visão poética de Genet. Deslocar do diário do ladrão uma genealogia da história criada do fruto da escrita do escritor francês e retomá-la em outra fonte discursiva, reposicionando o sujeito por lugares mais fluidos. Ao conjugar o relato autobiográfico para o texto da dramaturgia, formata-se aí a representação não somente por exaltar a força da atuação do ator/personagem no palco, como por oferecer traços menos convencionais e menos mascaradas da cultura e da vida com a ação de o autor extrair de si mesmo visões próprias e do mundo, com pensa Artaud (1984). Assim penso que a leitura dramática d’ O Diário de Genet1, de Djalma Thürler é uma criação dramática que reverbera tons ecoados da escrita de Jean Genet e com a qual traduz o outro não para intrigar a história em si de sujeitos reportados na esfera da trama, mas das possibilidades de diálogos de muitos eus perdidos, aflitos e à deriva com a sexualidade. Talvez, conhecer a si se autentica com o escrever sobre si. A elaboração de ficções híbridas em que os corpos de personagens de criações literárias são aludidos tem respaldo no jogo teatral do dramaturgo. O exemplo da obra de Genet ganha crédito no gênero dramático e encabeça as fontes do teatro feito por Thürler que firma o propósito de perceber um horizonte de expectativas que envolve a literatura e dramaturgia, o teatro e outras difusões artísticas. Se o teatro existe para focar também na instância do 1 A dramaturgia O diário de Genet estreou em 2013 na Mostra Oficial de Festival de Curitiba. A peça não trata de uma montagem clássica com o teor de interpretação entre dois personagens registrados por falas com histórias lineares e nem se trata de um veio introspectivo. O diário mergulha no campo intertextual em que os recortes da obra de Jean Genet se configuram e são balizados pela ótica de discursos da contemporaneidade. São registros apresentados por intérpretes, na composição de dois atores, Duda Woyda e Rafael Medrado, que representam no espaço do palco a formação de sujeitos criada na estabilidade da cultura ocidental e patriarcalista, como dos rompimentos e improvisos das subjetividades encenadas e que causam o veio dialógico com a obra de Genet, permitindo interpelar as identidades, os corpos, as sexualidades, a liberdade. O diário de Genet, criado pelo autor e diretor da montagem textual Djalma Thürler, cabe no exercício de linguagens que revisitam o poder e se coloca como crítica de saberes pós-coloniais. Para não dizer de um teatro mimetizado, fixado em conteúdos historicistas, o texto com o qual exercito a busca dessas linguagens sinaliza para um teatro abjeto, quero dizer, com encenações e, sobretudo, com gestos e palavras que buscam fugir da previsibilidade e encontrar a noção lúcida de subverter ordenas e normas que afrontam o poder-dizer, o poder-ser sujeitos de sexualidades livres das amarras e das sociabilidades tacanhas. É o teatro de estilização de vidas, o que as torna uma obra de arte. recalcado, “uma espécie de atroz poesia expressa-se através de atos estranhos onde as alterações do fato de viver mostram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria dirigi-la melhor” (ARTAUD, 1994, p. 17). A liberdade de conjugar a obra literária de Genet com a representação dramática é um modo de subverter a vivacidade do recalcado, de esbarrar com a estranheza que se aplica com o nosso jeito impotente de compreender existências outras. Sendo estas confiadas pelas basesque nutrem a tendência do contemporâneo, ou seja, das dissidências de gênero e das sexualidades que buscam o altar da reflexão, a leitura dramática faculta a confluência de cisões e rupturas. Assim a complacência da estética do texto de Thürler desativa a sociedade do espetáculo, justamente por não adequar a sintonia sensibilidade e moral, de maneira que o lado mau das coisas é para se vingar de atos insanos impulsionados pelos pertencimentos e direitos roubados pelo sistema hegemônico e patriarcal. A companhia Ateliê Voador se baseia na ávida maneira de formalizar intermediações, de outros textos focados na estrutura do dramático que acolhem o leitor-espectador cujas desenvolturas das leituras produzidas geram identificações entre o lugar do sujeito que fala e as devidas desconstruções com os contextos operados. A sua dramaturgia vincula a assunção de vozes à comunicação de pretensão pedagógica que incita pensar em conceitos que são perniciosos e os que identificam nossos atos com nossos pensamentos. A aposta é para discursos que não se quer fronteiriços e exercite redes de reflexões. Entende que não confiscar a verdade ao pé da letra, assimilável à verossimilhança do romance do século XVIII, significa não estar à mercê de conteúdos e de histórias narradas. É preciso também esconder as máscaras, como enaltece Artaud (1984). O teatro que produz Thürler está em sintonia de exercitar outros fundos de verdades, os que representam a própria maneira de politizar a assunção do corpo, de como posicionar existências que espantam a regularidade do desejo. A leitura dramática de O diário de Genet é ávido com a problematização que enuncia formular as abjecções do corpo, uma diretriz para as intersecções dos gêneros que importam pensar. O grau de percepção d’O diário de Genet surge do espaço do cárcere. O lugar em que a razão para a sensibilidade a todo instante desintegra a palavra que não atinge as subjetividades em estado de liberdade de expressar o poder do corpo e contradiz as sólidas histórias de muitos eus que se afetam, nos afetam por aprisionar o amor e os desejos periféricos. A primeira impressão que se busca configurar diante das marcas de performances de subjetividades repercute no ato de enunciar e desfazer sentidos homogêneos, visando às masculinidades e aos corpos reunidos em torno das esferas homoeróticas, tomando estas como princípio de rupturas, ao gestar palavras que geram incômodos, que estranham o real pelo insight epifânico. Quer dizer, revelar a si pelo toque, pelo cheiro, pela fala que não trasveste o pensamento e o corpo que instaura em estado-devir-sujeitos. A leitura dramática O diário de Genet por esse campo de exercitação reflexiva dos sujeitos atuantes leva em consideração o corpus teórico que conduz a face poética a um estágio político. Não se quer a criação da dramaturgia fundada essencialmente no relato de histórias do livro de Genet, como já anunciado, nem por demarcar a arte literária dramática do escritor francês nutrida de referências. Do bom ladrão espera-se um desertor de corpos para expor vidas nas aversões de um sistema pautado pelos conservadorismos e paradigmas sociais. O Diário de Genet remete à esta reposição de corpos abjetos que desarmam e chocam, e para movê-los fora das estruturas binárias do sistema logocêntrico e inscrevê-los nas desordens que o próprio Genet enuncia. Para além das identidades focalizadas por ambos autores, o poder de afetar e romper é enunciado, tornando as identidades sexuais inteligíveis, de um lado, para referir à vida consumida no ritual e repetição das performatividades (BUTLER, 2001); de outro, os diretos à vida, ao corpo, ao nome que giram em expressões sem cair nos centrismos que encadeiam na naturalização de ser legítimo, e despolitizar alguns sentidos para a pessoa e em outros não são operados, tornando-a abjeta. O dramaturgo com formação em Letras Djalma Thürler destaca a arte híbrida, operante de um teatro anfíbio, termo baseado na noção de Silviano Santiago (2004), no qual se esmera para a injeção da criação dramática sortida por um despojo de signos, despojos que são perceptíveis na inter-relação que funda na paixão dos textos outros. Ampara-se no espelho da obra de Genet como para desfazer sujeitos e permitam desmimetizar espaços em que circunscrevem domínios de discursos e incidem horizontes desfamiliares. As personagens do universo teatral de Thürler restauram dos escritos do autor francês falas que se deslocam e se refazem no plano do estado de exceção. Corpos, desejos, amor são retomados das histórias da escrita do outro e se suplementam no diário como gesto de descontínua reflexão da cena teatral e, sem fechamento de sentidos, as performances à sexualidade visíveis visam sem pressuposições, torna-as pensáveis com as posturas de saberes colonizados. Das práticas do heroísmo de ser o ladrão para as abjeções do corpo, a transposição de ordens e visões da obra literária de Jean Genet com as quais a montagem dramática dialoga, o pensamento anfíbio d’O diário é uma peça política e analítica de sujeitos-atores instados como abjetos, cuja impetuosidade de corpos arrisca na descolonização do peso das sexualidades. O diário torna teoricamente sujeitos autobiográficos, pois o desejo é de todos e todas nós, de muitos outros eus que se veem n’O diário de Genet. Como uma refazenda de posições, de cortes e alinhavos, o tempo que a leitura proporciona traz à tona retratos atuais dos óbvios fluxos de subjetividades, com todas as buscas, conflitos, dores existenciais, com o poder de expressar diferenças, serem diferentes nas confluentes infâmias de se auto- representarem. O projeto de escrita de Jean Genet, acolhido por Jean Paul Sartre (2005), é potencialmente crítico quando compreende a poesia que brota dos relatos de Genet. Diferentemente dos referenciais da literatura francesa e ocidental moderna, Sartre nota uma enunciação informe da escrita e do perfil do autor. Talvez, com o próprio Genet, Sartre buscou o motivo que o qualificava, a exemplo do que expressa: Escrevendo, consegui o que procurava. Sendo para mim um ensinamento, o que vai me guiar não é aquilo que vivi mas o tom que uso para relatá-lo. Não as anedotas mas a obra de arte. Não a minha vida mas a sua interpretação. É aquilo que a linguagem me oferece para evocá-la, para falar dela, traduzi-la. Construir a minha lenda. Sei o que quero. Sei para onde vou. Os capítulos que seguem (já disse que um grande número se perdeu), entrego-os sem qualquer ordem. (GENET, 2005, p. 180). Diário de um ladrão parece referir aos momentos cruciais da tendência da contemporaneidade, que tem no registro autobiográfico a busca para interpretar a vida por meio da obra de arte. Mapear o presente pelas escrituras do cotidiano, da linguagem que oferece Genet para traduzir subjetividades sem direcionamento, é pauta de leituras que apresentam testemunhos ou anotações aí giradas como Barthes sugere “uma nova escuta das coisas”, instigando o aparecimento de um “gosto novo” que se introjeta na cena da escrita. Ser o sujeito que procura o tom para se expor constitui o ponto nodal para a dramaturgia de Thürler recolher o processo de criação de si. Ao lado da figura do autor francês que mostra a cara na escrita, configura aquele que traz as suas paixões e a própria forma de incorporar momentos em que há um largo espectro de si, de personagem e narrador que se dirigem para a mesma trilha e partilhas, para os que os envolvem no ato de escrever no tom que usa para enunciar histórias de vidas, para a linguagem que visa traduzir os efeitos próprios dela para se marcar e para o percurso que dá margem paradizer o que quer, como pensa, o que deseja, sem amedrontações, além das desamarras para inovar a subjetividade que opera dentro do texto. A mistura de exposição de falas, as reconvexas formas de enunciar os textos de Genet parecem dar pano para manga, pois elas são similares às histórias não escritas, às outras vidas que podem ser reconhecidas. Diante do que se diz do sujeito, existe o jogo da representatividade que entra no seio da dissimulação, ensaiando a persona que fala e não fechando o modo como é enunciado. Pensar a obra literária de Genet articulada com a dramaturgia de Thürler dispõe do sentido com o qual Philipe Lejeune (1996), em seu livro Pacto autobiográfico mostra, quer dizer, um misto de ficção de acontecimentos e de seleção do campo do real fundado na relação de verdades que se buscam entre autor, narrador, leitor. À primeira vista, textos e entre-textos rodeados com o registro da autobiografia passam pela formatação de um texto dramático cujo próprio nome do autor estampado também autentica a relação na voz dos personagens-atores e, sendo protagonistas do drama, o espectador procura os meios para atingir os seus pactos, não com a verdade propriamente dita, mas da exterioridade que ela transmite, com os alcances que são propositais para destituir vozes, silêncios, poder. A figura de Genet na leitura de O diário de Genet se estreita no jeito de compor uma outra criação de si, porque não é o autor que ali se representa, mas a interpretação de vidas intensas que, por meio da linguagem da dramaturgia, ressurgem e repatriam de forma diferente a exercitação de identidades com as quais Genet enuncia em suas obras. Como foco, a leitura dramática reproduz paradigmas como protesto, como para reestruturar as identidades por meio da encenação e com recursos peculiares do teatro moderno, os que espreitam com o intuito de revelar formas de subjetividades e a aproximação com o espectador. A licença inventiva que Djalma Thürler processa no texto dramático adentra no plano da veracidade e do extra muro do cárcere com a promessa de chegar ao ponto maior: o questionamento das identidades homoeróticas e queer. O poder estratégico de considerar as subjetividades como cúmplices de um teatro abjeto oferece as asas para outras maneiras de expressar sujeitos que desejam cortes profundos com uma realidade higienizada. O prazer é pelo rompimento, pelo gesto de pessoalidade estampada e no qual a função distinta com a literatura traz o cogito da intersecção de textos configurados nos dialogismos, no cruzamento de expressões e de experiências que nos transporta pelos afetos, de nos envolver na potência de um mapa geopolítico que reflete os atravessamentos das subjetividades. Como estado abjeto de representar sujeitos, O diário de Genet quer deixar as pegadas frente aos retrospectos poderes heteronormativos e aos dissidentes corpos visar aos meios de expressar a si encontrando tensões com o arquétipo de identidades fixadas e modeladas. As vozes dos ex-cêntricos vistas como parte de territórios propagados a descolonizar chegam ao fora-de-lugar. Eis a erotização política do desejo que nega o paternalismo e pátrias famílias que restauradas nas falas do texto não se curva aos estreitos do pensamento reprodutor, um modo de incorporar o próprio Genet que diz: “Este livro, Diário de um ladrão: busca da Impossível Nulidade” (GENET, 2005, p. 87). O que quer O diário de Genet com uma impossível nulidade em tempos de cólera? Seria apresentado no gesto de corporificar os atos das personagens-atores: o poder ser, ao dizer, ao criar a si desnormatizando-os? Seria o encontro com o desejo que tarda, falha por não querer reproduzir o mesmo, defronte de masculinidades viris e machistas, não gerando signos que disciplinam os gêneros? Estariam por incorporar as subjetividades concebidas em corpos informes, abjetos e recriados como representatividade ativa? O que se questiona aí e dar a ver na textualidade cênica digere pouco a pouco a liberdade de poder subjetivar desejos. A exemplo do autor Jean Genet, a dramaturgia de Thürler encabeça a paixão pelo subalterno no exercício de repensá-lo num formato mais questionador e mais livre quando renovam posturas com a linguagem do teatro, poder problematizar os limites, de atar aos lugares diferentes as bio-falas que se refazem com Genet, na ocasião de internalizar posições abjetas para se tornar sujeitos com direitos ao corpo. A leitura de O diário de Genet pela ótica do Diário de um ladrão tem o mero objetivo de interpretar a enunciação que destila e filtra os eus que falam, de sujeitos que digerem a audácia, o heroísmo, as paixões, amores livres, putos, abjetos, nos subalternos estilos que se reapresentam e fazem enunciá-los. 2. Política da erotização. Cena 2 – Corpos abjetos em cena. Tratar de corpo abjeto em O diário de Genet é um problema que intriga os paradigmas sociais, o modo de lançá-lo e desafiar o sistemático padrão heteronormativo. Questões como atração do amor binário e a retração a este, a impulsão de sentir desejos normatizados e a repulsão a este são práticas de discursos que importam para ver a subjetividade gay na exaustão de ser diferente, de estar fora-de- lugar. Assim o corpo abjeto como corpo corrompido, na instância em que ele mexe com a identidade heterossexual, tem respaldo na representação d’ O diário ao absorver corpos para além das fronteiras e que comunicam em outros espaços em que o sujeito não é marcado por um único domínio de exercitar a subjetividade, posto que atores- personagens encenam gestos como para desregrar, mais do que isso, estão na concessão do poder enunciar os queer(eres) sujeitos que desejam e, não deixando se contaminar pelas injúrias adotadas, desarma-os. É a partir da leitura dramática de O diário de Genet que os aportes da crítica da hegemonia têm um retorno na dramaturgia visada para conturbar a categoria do homem másculo, macho e heterossexual reconfigurando o processo de higienização dos espaços a ele pertencente. A escrita do diário consagra vidas pela linha do geopolítico e choca a racionalização patológica de indivíduos. Através da desconstrução da patologia, o ato de romper e por que romper as grades da prisão são expressivos na leitura da dramaturgia pelo pressuposto de enaltecer o corpo se introjetando nos contextos culturais. Bem próximo do raciocínio de Butler (2000, p. 155), “o abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitat sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito.” Se o livro de Jean Genet aponta para o ato heroico entre o aprisionamento e a liberdade, a paixão e a deriva, os corpos masculinos que amam, por hora, a derrota de quem comprime as falas, o falar do outro é motivo para validar e mover o alcance politizado entre os personagens. Quero dizer com isso que O diário de Genet politiza as subjetividades que expressam sem artimanhas a nervura da carne como para posicioná- la fora da linearidade do amar, como modo de combate da anomalia e de atos submissos, pois a zona de inabilidade, como pensa Butler, e que comunica em O diário de Genet, “constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida identificação contra o qual – e em virtude do qual – o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à autonomia e à vida” (BUTLER, 2000, p. 155). Transcrevo a cena da montagem O diário de Genet: A: ‘Aquele que com o corpo está entregue à mercê de um outro, / É a partir daí quese abre isto que pode-se chamar gozo puro’. É em homenagem a esses crimes que escrevo esse espetáculo! B: ‘Objeto de queda e de dejeto, de resto do advento subjetivo’. A: Homenagem sem anjos! T: Masoquista! B: Escrevo para não dormir A: Falo para não esquecer B: Luto com esta maldita insônia A: Perco as palavras B: Latrina (THÜRLER, 2013, p. 48) A interposição da voz de Genet no trecho da citação, em destaque na dramaturgia, revela estados de dejetos corpos em ação, vistos pelo gozo puro de sujeitos entregue à mercê do outro. Esta mesma voz ecoa nas palavras de Thürler, pois é preciso escrever, falar de gozos afetados, da linguagem que incorpora o expelido, o excremento. O que torna Genet, a voz autoral refletido n’O diário é o gozo da escrita, a dramaticidade do agora, de corpos que se escrevem para contagiar o que pode se afetar. O caráter performativo da linguagem está nos atos, nos desejos para cair no non-sense, ou melhor, no impensável direcionado pelos sentidos que não se permitem falar: “Perco as palavras. Latrina” (THÜRLER, 2013, p. 48). Erguido o eu na coleção de ditas palavras estranhadas ao meio, nauseadas ao sistema reprodutivo com as quais o livro Diário do ladrão enuncia, as dores de Genet, também, se afetam por falar do outro, ao procurar uma forma de existência que se reinventa no relato autobiográfico. O desejo do eu em O diário de Genet ganha domínio próprio ao transportar sujeitos em estado-abjeto, melhor, ser-abjeto que se revela como um devir, na alternativa ao poder majoritário de escritas hegemônicas, canônicas. Não quero propor que o drama não se traveste com raiz autoral, mas a partir da produção textual, a dramaturgia desmascara as muitas outras faces que um tempo do contemporâneo imprime com corpos em possibilidades. Isso porque as cenas pontuam a homofobia, a expulsão do heteronormativo, do sexismo, da virilidade machista erguidos com a repulsão de falas presentes na cultura ocidental. O Ateliê VoadOR Companhia de Teatro foi criado em 2002 por Djalma Thürler, dramaturgo, Professor e Pesquisador. Considerado, atualmente, um dos grandes arautos do teatro da contemporaneidade, as produções de peças giram numa série de criações que atraem temas relacionados a problemas de gênero e de identidades sexuais, como a trilogia do cárcere: O melhor do homem, Salmo 91, O diário de Genet, além de A alma encantadora do beco, escrita e dirigida por ele próprio e Coral: Uma Etono(cena)grafia. As criações artísticas do Ateliê, talvez, engrossam o coro da excelência do contemporâneo, puxado pelas lésbicas, gays, transexuais, travestis cujas subjetividades aí não estão incluídas de maneira muitíssimo precisa e o modo de subjetivação também não está completamente excluído. Os contextos aí enunciados operam como para desfazer as fronteiras no rito de passagem de sujeitos, tendo em mente as fraturas do cotidiano. Os impedimentos para um tempo composto apenas na esfera da referencialidade e da totalidade das coisas como são se traduzem pela forma de demarcar a persistência de ser revolucionário, quando singularizar as identidades por exclusão significa investir em dissidentes corpos que atuam e se constituem no pilar da contestação, na e pela diferença dos cêntricos modos de ser. Não se quer enunciar somente sujeito de uma ação por uma estrutura montada, mas das suas reversões. Como a matriz de uma vida normatizada passa pelo démodé, a leitura dramática realizada por Thürler consente o valor de um discurso imbuído por imagens e ecos descentralizados. Atingir as fobias em torno dos gêneros e das sexualidades é propositadamente uma aposta que agencia os espaços do fora, de ocupar pela distinção de espaços entre o interior e o exterior, afetando o fora pela desordem, do fora de moda ordinário, de ex- postos sujeitos arrochados por serem diferentes e diferenciáveis ao sistema padrão de existir. Para isso Deleuze e Guattari é significativamente presente numa leitura em que os excrementícios são baseados na instituição e instaurando uma “diferença entre personagens conceituais e figuras estéticas que consiste de início no seguinte: uns são potências de conceitos, os outros, potências de afectos e perceptos”. Também, complementam que “o plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 87-88 e 89). Pelo campo de atuação dos pensamento abjeto, o exemplo do dandismo, como abordado por Baudelaire, é uma amostra que culmina na relevância de fórum cultural da masculinidade, que aquele já se encontra em pé de guerra com as estruturas bipolares, no tempo em que os passantes, os prostitutos, os garotos de programa aparecem na cidade vertiginosa dos tempos modernos exibindo-se, mostrando-se desejosos diante do prazer que oferecem e que são movidos pela escrita dos poetas em que todos eles passam a serem filtrados pelo olhar do alheio e se suplementam no deslize da potência de perceptos, traduzindo a perseverança crítica ao social. “Objeto de queda e de dejeto, de resto do advento subjetivo” como dar a ver Thürler, (THÜRLER , 2013, p. 48), o enunciado mostra o quanto o outro vira merda já pensado por Butler ao tratar dos atos corporais subversivos, o que estabelece o plano de ação que desfalca as fronteiras d’O diário de Genet baseadas nos deslizes dos sujeitos desta montagem dramática. Creio que a leitura se constrói num plano do ethos cujo espaço cênico enreda as subjetivações constantemente deslocadas para locais em que sempre as personagens recaem num devir desejo, porque resistem e reforçam a revolução do corpo, tendo em mente os constructos sexuais visualizados como incomuns, não assimilados na cultura patriarcal e, portanto, abjetos. As linguagens acusam a práticas de sujeitos que se repetem e rompem, apresentam e resistem determinadamente à maquinaria do Estado, deslizando pelas linhas de fuga comunicativas. Butler reconhece que a questão não é como atingir um estado ou a forma final para a organização política da sociedade. Trata-se de um efeito desorganizador que toma o poder, exercita o poder sob condições nas quais a violência legal e estatal estão profundamente conectadas (BUTLER, 2003). A teórica dialoga com o que Althusser pensa sobre “um mal sujeito” ou um anarquista provisório, a fim de desvincular a lei do processo de subjetivação. Ver assim que os artistas que fundam estilos e temperamentos diferenciáveis têm procurado formas para romper dialogicamente a rede da comunicação espetacular, massificada e consumista com a sociedade heteronormativa. A leitura dos diários, ao associar os percalços da cultura falocêntrica, na encenação das performances, intervém na moral sexual e identitária sob projeções de leituras anfíbias. Aí a dilatação do eu atrai o “bom” jogo com as outras novas versões da história, dando respaldo para a reatualização de denominadores comuns que se arriscam nas falas que cospem para fora a expulsão de elementos estranhos. Se as respostas intrigam o contratempo da raiz cultural masculinizada, os sobressaltos ao poder dizer do sujeito reatualizam a si mesmo, como o próprio Genet cria os sentidos que escapam não para ser o anônimo, mas das performances de corpos sobressaídos num lirismo personificado. Assim a dramaticidade do diário de Genet mescla, hibridiza, cola textos, suplementa palavras, dialoga com o impensável, dando eco às abjetas cenas que violentam o dia-a-dia. Uma maneira de serem repensadas é sentir como o mal-estar da cultura ressoa e mobiliza a desestabilização de nós mesmos. Sendo assim, o corpo abjeto é uma forma de corromper a existência das coisas como nos apresentam.É a história que venho contar a vocês... B: É meu amor e minha maldição! A: “Dou o nome de violência a uma audácia em repouso apaixonada pelo perigo. Pode ser percebida num olhar, num andar, num sorriso, e é dentro de nós que ela produz redemoinhos. Ela nos desmonta. Essa violência é uma calma que nos agita.” (THÜRLER, 2013, p. 49) A Espanha e a minha vida de mendigo me fizeram conhecer os faustos da abjeção2, pois era preciso muito orgulho para embelezar os personagens imundos e desprezados que encontrei, mas se me é impossível descrevê-los todos, pelos menos posso dizer que lentamente me obriguei a considerar essa vida miserável com uma necessidade procurada. Nunca tentei fazer dela nada além do que era, não tentei enfeitá-la, mascará-la; ao contrário. Eu quis afirmá-la em sua mais exata sordidez, e os sinais mais sórdidos tornaram para mim, sinais de grandeza. (GENET, 2005, p. 99) A confissão de Genet que se desloca para o texto da dramaturgia do diário é um complexo de forças atuantes, agenciando o sentido de abjeto desbaratando o corpo em estado mais sórdido, como aquele que subjetiva identidades marginais, gays, negros, travestis, sem a carga da pura proibição. Ao incorporar do texto dramático a possibilidade de romper com as dicotomias, desestrutura a base regulatória da vida, cristaliza as “fronteiras variáveis”, como “campos de possibilidades interpretativas” (BUTLER, 2003). O fenômeno do ‘segredo aberto’ não produz, como se poderia pensar, o colapso desses binarismos e de seus efeitos ideológicos, mas, ao contrário, atesta sua recuperação fantasmática”, de acordo com Sedgwick (2007, p. 21). Assim também o destaque de si sob as rupturas do social bem como a crítica às relações tradicionais hierárquicas dão margem ao texto mais politizado e remexendo com “o local de afetos e memórias” (LOPES, 2002, p. 28), descrevendo os ruídos sob ruínas. É quando Foucault dialoga com o campo do habitus da amizade e, uma vez a ferida surgindo, quando homens ousam amar homens, emerge as afrontas em que este habitus é visualizado. Diante do sentido que o abjeto aflora na leitura do diário enquanto “atos corporais subversivos” (BUTLER, 2003), ele é tomado por uma visão “impensável” e “indizível” nos termos cultural existente. Para Butler, o que permanece no estágio do não pensável e não dizível não é “necessariamente o que é excluído da matriz da inteligibilidade presente no interior dessa forma; ao contrário, o marginalizado, e não o excluído, é que é a possibilidade cultural causadora de medo ou, no mínimo, da perda de sanções (BUTLER, 2003, p. 116-117). Dada a analítica da diferença sexual, via o da “desintegração” de corpos culturalmente instituídos, tipicamente resultantes da formação do sistema social conservador e heterocêntrico, como também afirma Monique Wittig (2010), a fronteira que interliga a união fraternal também serve para 2 Grifo nosso. romper os dogmas constituídos, rompendo com as categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade, “ocasionando sua re-significação subversiva e sua proliferação além da estrutura binária” (BUTLER, 2003, p. 11). Afrontar o reconhecimento social da heterossexualidade é como perder a identidade possível em troca de uma que é radicalmente menos sancionada. “O ‘impensável’ está assim plenamente dentro da cultura, mas é plenamente excluído da cultura dominante3.” (BUTLER, 2003, p.117) Vocês sabem o que é isso? Alguém sabe o que é isso? Não tenham vergonha! Um lubrificante, um objeto carregado de signo. E se for uma vaselina usada ainda mais carregado. Mas não de qualquer signo, eu falo do que maldiz, do que humilha, do que consterna e foi “uma consternação quando revistando-me depois de uma batida policial, um dos alibans admirado tirou do meu bolso, entre outras coisas, esse tubo de vaselina. Sobre ele ousaram fazer piadas já que era vaselina perfumada: - Quer dizer então que a negrada te enraba pelo nariz, não é? - Vê se não resfria, tá? O teu macho pode pegar coqueluche, viado nojento! Viado nojento, foi a primeira vez que alguém disse essa palavra na minha direção. E quando entendi que o ‘viado’ era eu, o mundo brutalmente se revelou, com essa simples palavra que brotava como uma explosão fora da frase, algo que eu não deveria ter feito, algo que eu não deveria ter sido. O ‘Viado’ vindo da boca daquele não-viado me fez saber que sou alguém que não é como os outros, que não está na norma. E tratava-se apenas de um tubo de vaselina com uma das extremidades já bem enrolada. Isso mostrava o quanto já tinha sido útil. Em meio aos objetos elegantes tirados do bolso dos homens apanhados naquela batida, a vaselina era o sinal da própria abjeção e me traria uma sentença quase definitiva, uma condenação perpétua e com a qual vai ser preciso viver. (THÜRLER, 20013, p. 52) A subversão considerada pelo gesto fútil é comparável ao sentido do abjeto. Visto como nojento, o viado mostra-se diante do contato flagrado pela batida policial e revisitado depara com a insignificação do tubo de vaselina julgada para a pessoa que o marginaliza, apontando-o como ininteligível frente à cultura diante da sexualidade gay. Mas a acusação de um não-viado pode expressar o ato revolucionário, porque faz guerrear contra a virilidade pública e dominadora, colocando em destaque termos importados e que são portados por discursos que veem os viados como frágeis, desamparados, efeminados, inúteis, desamparados, não produtíveis e nada comunicáveis dentro da ordem do sistema operante. Sobre o ponto de vista da indecidibilidade, como argumenta Derrida (2014), as forças políticas entram em ação direta a favor de perfis de 3 Grifo da autora. identidades que operam como resistentes ao domínio e controle dos indivíduos à margem do sistema logocêntrico. Portanto, Ser-abjeto absolutamente corrompe o modo de ser heterossexual ao deflagrar uma forma de vida que excede e parte da apropriação do corpo sem pânico moral, sem medo, sem dor. A leitura atua na variação de mundos possíveis e intercambiáveis, ultrapassando as fronteiras em que o objeto do desejo, a vaselina carregada de signos, não somente sinaliza a abjeção, como projeta enunciar a verdade. O signo se reveste do não sancionado, do impensável, da identificação que acontece por um repúdio. “Trata-se de um repúdio que cria a valência da ‘abjeção’ – e seu status para o sujeito – como um espectro ameaçador.” (BUTLER, 2000, p. 156). A representação do objeto vista como princípio do excesso e do extremo faz aflorar o instante em que a palavra é dita e se equivale a colocar “o indivíduo não apenas numa singularidade, mas também numa solidão que é irremediável.” (FOUCAULT, 2016 p. 157). Ou seja, bebendo da fonte de Foucault, o discurso efetivamente não apaga a existência de uma realidade palpável pelo excesso, pelo anormatizado, pelo ilegal. A partir daí é que o significado para o abjeto ganha estatuto para descontruir o plano que pretende apontar a verdade para a sexualidade. Creio que a sujeira que comunica, o expelir e o ato de cuspir para os sujeitos de orientação homossexual, revela o ser nojento concentrado simplesmente para “desregular prática identificatória” para sujeitos de práticas abjetas. Contudo, a abjeção negada “ameaçará denunciar as presunções auto-fundantes do sujeito sexuado, fundado como está aquele sujeito num repúdio cujas consequências não pode plenamente controlar.” (BUTLER, 2000, p. 156). Dizer que o signo do tubo de vaselina gera os seus sinais antissépticos é um modo de rever osdesejos capazes de negar, capazes de repelir o princípio da realidade, do lícito e do ilícito e torná-los sem contestação o exterior possível que se permite. Contudo, para Butler, a ameaça e a perturbação não devem ser apontadas como permanentes confrontos para as normas sociais, condenado ao pathos do fracasso perpétuo, ao contrário disso, “como um recurso crítico na luta para rearticular os próprios termos da legitimidade e da inteligibilidade simbólicas” (BUTLER, 2000, p. 156). A enunciação ao “viado nojento” recorre a descrições de práticas do enojar-se. O signo que indicia a abjeção ao “outro” está duplamente amparado pela palavra viado e a adjetivação nojento como gesto de depreciação, fundando assim, as margens para os sujeitos de-negados. A expressão denegar que Freud utiliza faculta o sentido de recalcado, “no código elementar do Ego-Prazer que consiste na diferenciação binária entre ‘introduzir em mim’ e eliminar de si” (In: SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 36). Freud trata disso na língua das pulsões orais mais antigas: “eu quero comer isso ou quero cuspir, e traduzindo de modo aberto: eu quero introduzir isto em mim e retirar aquilo de mim”, ou seja, para ele, o Ego-Prazer originário quer “introjetar tudo o que é bom, e expulsar tudo o que é ruim” (In: SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 36). O prazer como herança arcaica vista no campo do excremento evidencia não só o recalcado e o perverso, como o seio cultural que dá voz ao limite do enojado e a fixidez que aponta para as perversões. O incentivo à limpeza impulsiona a livrar-se das impurezas, das excreções e ao desagradável das relações interindividuais. A cena que abjeta o sujeito captura os disparos que ronda a higienização das subjetividades gays, contudo, ironiza o meio em que se reproduz. Eis o porquê também se atentar para a crítica constante para a legitimação dos conceitos operados pelo sistema e que reproduz performatividade heterossexual para os gays tornando-os homonormativos. Não por acaso a cena enuncia o canal civilizatório com a pedra de toque que refunda os meios do discurso a partir da negatividade e por ela não alcançar subjetivar pelos significados de injúria e sim a desconstrução que desperta o saber manifestando outras descobertas: “O ‘Viado’ vindo da boca daquele não-viado me fez saber que sou alguém que não é como os outros, que não está na norma. E tratava-se apenas de um tubo de vaselina com uma das extremidades já bem enrolada. Isso mostrava o quanto já tinha sido útil”. (THÜRLER, 2013, p. 52). A personagem toma a palavra como ser abjeto para reivindica a si, cuspindo na cara de um não-viado. Assim visto, a exposição do objeto compartilha de uma linguagem que cria em nós a vergonha de um seio civilizatório em que, entre as rupturas, tornamo-nos e, nos círculos da inteligibilidade, resta guerrear com os corpos normatizados ou daqueles que performatizam-nos. A tarefa é desestabilizar a ordem moderna que focaliza o peso do corpo, com destaque para as cenas pós-modernas em que o híbrido das identidades sexuais possibilita, com escala operada nos desmontes de valores neocoloniais e o que nos restam desconstruir. 3. Revelar-se abjeto. Contestações finais Cena 3 – Atuar nos provocantes gozos O argumento para a abjeção na leitura dramática de O diário de Genet produz o que proponho ser uma política de discursos que se reportam para subjetividades repugnantes que se mostram no agenciamento das identidades sexuais. Kristeva aborda a característica do abjeto nutrido pelo que se difere do aceitável, mas a abjeção não se nutre somente pelo que se rejeita e sim a sua exercitação ou excitação de potências de sentidos que, de certo modo, são prazerosos. Isso equivale a, paradoxalmente, constituir força corrente de atração e de repulsão por entrarem no circuito de práticas eróticas e com as quais o corpo imprime a fluidez de desejos. A subjetividade que põe para fora ser o rejeitado, o descartado, a disciplina que a sufoca, aponta assim para a ideia de como a abjeção se constrói no intervalo, na intermitente onda de falas que ora atraem, ora desfazem os paradigmas que conduzem atos de proibições e liberações para o sujeito. Se, para Kristeva não é, “portanto, falta de assepsia ou saúde que causa a abjeção, mas sim aquilo que perturba a identidade, o sistema, a ordem”, a abjeção “[...] é imoral, sinistra, calculista e sombria: o terror que dissimula, o ódio que sorri, a paixão que usa o corpo para troca, ao invés de inflamá-lo, um devedor que te vende, um amigo que te apunhala. (KRISTEVA, 1980, p. 4.) Em todos os instantes da representação de O diário de Genet o gozo é pensado no gesto da desestabilização. O gozo no sentido dado por Barthes (2004), aquele provocador, pensante, que contradiz a evidência e o vínculo operacional do discurso, o que visa à desconstrução efetiva do enunciado. O gozo como efeito de um assistir/ler o inadmissível, que movimenta o informe e com o qual formaliza os descentramentos dos sujeitos. Assim o palco se abre para além dos signos experimentados, naturalizados, de fluxos contínuos. A leitura dramática pauta as cenas teatrais com as quais a desconformidade forma parâmetros reflexivos. Leitor e espectador atém-se aos fascínios abjetos da obra de Genet como rastros de vozes da cultura atual e anal que atravessam o jogo dramático para especular o que nos regula e torna o sujeito ali exposto uma obra de arte. Referências ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Perspectiva, 2004. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. BUTLER, Judith. El gênero em disputa. Mexico: Paidós, 2001. BUTLER, Judith. Corpos que importam: sobre os limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 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A LITERATURA E AS CONSTELAÇÕES FAMILIARES: COMO INSTAURAR OUTROS “MELHORES MUNDOS POSSÍVEIS”. Renata Pimentel 1. Reconhecendo o terreno Tão logo um indivíduo trava contato com uma obra de arte, mundos se põem em relação: por vezes de estranhamento; de reconhecimento ou até de confronto. Mas o que faz um leitor, quando põe a máquina literária a funcionar? Torna-se, ele próprio, um dos construtores dos mundos “possíveis” e imaginados que lhe são apresentados. Nem sempre, porém, recebe pacificamente ou identifica-se com os ingredientes deste universo. Como diz Renato Cordeiro Gomes (1994: 15): “É arrastado, enquanto leitor, pelo movimento permutacional no mundo vicário dos signos. O jogo da circulação da linguagem se descentra e possibilita novas leituras”. É instaurada uma espécie de jogo, no qual o leitor se converte em peça fundamental dos sentidos, como uma espécie de espião, flâneur, voyeur ou penetra. Ainda nas palavras de Renato Gomes, referindo-se a si próprio em sua experiência: “... constituo-me tal qual um eu à deriva, que, embora não solto no espaço e no tempo, inscreve-se no movimento da dança, entre o deslocar e o estatelar.” (1994: 15). Mas é preciso estar atento: deslocamentos exigem escolhas e implicam surpresas. Por mais planejamento que se faça, o inesperado surge; e, mais ainda, se estamos situados neste particular terreno que é a arte, cujas relações são muito estreitas, diversas e imbricadas quanto aos mais variados planos da vida humana: espiritual, ética, moral, mundana, social, política, econômica... Para além de ser testemunho e legado cultural do ser humano, a obra de arte traz em si as idiossincrasias e contradições dos tempos e contextos em que foi criada e, por sua potência transtemporal, presentifica-se a cada nova recepção e passa a revelar também aspectos deste particular momento em que é “posta em funcionamento” pelo seu leitor/público. Algumas manifestações artísticas, ainda, em seu caráter transtemporal e multifacetado como discurso/ representação, valem como terreno de luta política e humana por direitos. As relações entre a produção literária e a ordem de valores (como já apontado) são inúmeras e multifacetadas: desde servindo a projetos de dominância quanto os questionando e propondo novos paradigmas. Mas certo conjunto de obras nesta linguagem artística, muitas vezes se vê reduzido ou diminuído em sua relevância, ao dissociar-se de concepções hegemônicas interessadas na manutenção da “moral dominante” - do status quo -, ou mesmo ao contrapor-se a estes valores. Precisamente neste último conjunto estão as obras que nos interessarão e ocuparão nossas reflexões. Nosso enfoque recai sobre obras que recebem constantemente ‘adjetivações reducionistas’ a estigmatizá-las (“literatura gay/ homossexual/ lésbica”). Esses rótulos parecem ser usados para depreciar e disfarçar a importância objetiva de uma produção artística que reflete sobre os interditos sociais, sobre olhares que revelam as “normas” e suas arbitrariedades. Se aqui vamos pensar a literatura e o modo como as configurações familiares (particularmente as homoparentais) nela aparecem, precisamos ter atentos os sentidos da “peça-leitor” que somos para fazer funcionar a engrenagem e perceber os tantos questionamentos gerados a partir desse universo ficcional. Podemos e devemos lembrar que em épocas distintas as relações estabelecidas entre os artistas e o financiamento/ status e a recepção de suas atividades se configuraram em bases diferentes, modificadas ao longo das transformações sociais e econômicas em cada tempo, lugar, povo, cultura. Tomemos um breve recorte a partir dos séculos XVII e XVIII, quando imperava o mecenato a eleger e sustentar os pintores, compositores, poetas... É relativamente fácil supor que boa parte desses criadores buscava agradar quem lhes financiava, mesmo quando enxergava mazelas e injustiças. Mesmo assim, havia artistas que se contrapunham ao código moral estabelecido e impunham reflexões incômodas. Mas tratava-se de outra ordem, o acesso às artes era restrito demais à corte. Com a Revolução Francesa e a tomada de poder pelos burgueses, começa o avanço avassalador do poder do capital, o império do mercado (iniciado já no sistema mercantil convertido em capitalismo) transforma a vida do artista que passa a precisar se estabelecer no mercado e comercializar sua obra de arte. A literatura romântica produzida pelos burgueses no século XIX (tanto no contexto europeu, quanto no da colônia ultramarina, convenientemente “alçada a Reino Unido” ou, em seguida, transformada em império “independente”) revela, então, o projeto político-econômico moralista da família, do casamento como um negócio que envolvia educar as mulheres para se manterem reprodutoras e guardiãs do lar, fiéis aos seus senhores/ maridos, pois a prole precisaria ser legítima, para garantir a condição de herdar os bens familiares.4 4 Embora haja a dominante literatura folhetinesca e os romances para educar o público-leitor feminino aos valores da fidelidade (como na obra de José de Alencar); há as irônicas exceções. Um exemplo interessante é a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicada em 1881. Apesar de inserir-se na sociedade (ter sido amigo de Alencar e fundador da ABL), Machado era um “pária” para aquela burguesia (mulato, gago, epilético, criado pela madrasta lavadeira). Cria em Cubas o personagem que ironiza o casamento burguês em todos os aspectos: tem uma amante prostituta Em sua História da sexualidade (volume 1 - A Vontade de saber), Michel Foucault principia pela retomada de parte do mesmo percurso aqui evocado, indicando- nos como herdeiros e ainda suscetíveis de submissão à era vitoriana5: A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. (...) O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe- se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade (...) No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se (...). E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. (1997: 9-10) O discurso sobre o sexo vai ganhando contornos e regras: há lugares em que ele é silenciado, mas em outros “o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder” (Foucault, 1997: 22). Logo, por razões políticas, econômicas e até técnicas, o sexo entra na ordem do dia, literalmente, pois ele precisa ser vigiado, prescrito no funcionamento interessante à lógica das sociedades. A polícia, a medicina, a igreja e as leis vão gerir a vida e o sexo, para regular o estabelecido por estas instâncias de poder como sendo o “bem comum”: taxa de natalidade e mortalidade; expectativa de vida; nascimentos legítimos e ilegítimos e diversos outros aspectos que vão se desdobrar (ao longo dos séculosXX e XXI) em índices de produtividade, IDH, qualidade de vida, potencial de consumo... Assim resume Foucault: Toda esta atenção loquaz com que nos alvoroçamos em torno da sexualidade, há dois ou três séculos, não estaria ordenada em função de uma preocupação elementar: assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora? (1997: 37- 38) Neste cenário, a relação matrimonial e o modelo de família burguesa heterossexual, formada pelo “casal legítimo, monogâmico, fértil”, se converte em norma (Marcela), vive uma inteira trajetória de fracassos, sua relação mais duradoura é um adultério e morre sem deixar descendentes. 5 A Era Vitoriana foi o período no qual a Rainha Vitória reinou sobre a Inglaterra, no século XIX, de junho de 1837 a janeiro de 1901. rígida. As instâncias reguladoras de poder se empenham em questionar, perseguir e condenar os “desvios”: as sexualidades, os comportamentos ou desejos e as relações não férteis; não convencionais; consideradas ‘loucas, patológicas, pecadoras ou criminosas’. Introduzimos nesta discussão a voz do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Destacamos sua afirmação sobre o homoerotismo como uma forma de sexualidade que se opõe às estruturas do poder, dos jogos de relação de dominação e, sobretudo, da diferença binária do sexo, porque é uma relação de livre troca igualitária, sem sobreposição de um ao outro: No caso em que, como se dá nas relações homossexuais, a reciprocidade é possível, os laços entre a sexualidade e o poder se desvelam de maneira particularmente clara, e as posições e os papéis assumidos nas relações sexuais, ativos ou passivos principalmente, mostram-se indissociáveis das relações entre as condições sociais que determinam, ao mesmo tempo, sua possibilidade e sua significação. (1999: 31) A homossexualidade parece esvaziar a relação de dominação a que ficou presa a oposição masculino/ feminino, pois ela é um lugar de desvelamento/ revelação de antagonismos institucionalizados, de relações de poder predeterminadas. É uma sexualidade de fronteiras ou sem fronteiras, que se desvincula da tradição (mesmo com ela diretamente se relacionando, claro), para instaurar outro modo de se relacionar na vida, diverso das estruturas orgânicas quando percebidas como puramente naturalizadas. Estas ideias de Bourdieu ecoam a noção de Deleuze quanto à “posição marginal” da homossexualidade como aquela que instaura “o espaço para desconstrução” da identidade de sujeito e do encarceramento das relações de poder e dominância de gênero: É do fundo de um novo estilo que a homossexualidade produz hoje enunciados que não versam, e não devem versar sobre a própria homossexualidade. Caso se tratasse de dizer “todos os homens são bichas”, isso não é de interesse algum, é proposição nula que só diverte os débeis. Todavia, a posição marginal do homossexual torna possível e necessário que exista algo a ser dito sobre o que não é homossexualidade: “com os movimentos homossexuais, o conjunto dos problemas sexuais dos homens apareceu”. (Deleuze, 2005: 353) Portanto, o ‘personagem’ - que segundo Foucault foi ‘inventado’ no século XIX - ‘homossexual’ começa a produzir e agenciar desejos e enunciados que pulverizam as fixações identitárias. Pode ser aqui lembrada e invocada a metáfora deleuziana do espaço liso, de onde surgem as subjetividades transgressoras. A nomeada homossexualidade se imiscui em espaços lisos e porosos e se afirma como uma alternativa possível de relacionamento(s) na contramão do estabelecido. Mas como se trata de transgressão, insurge nos espaços marginais: “... o afastamento geográfico, a procura de lugares diferentes, a inscrição em outros espaços é a condição de uma reconstrução de si.” (ERIBON, 2008: 303) 2. Minando de dentro: ou quando se evidencia o gênero como uma proliferação de epifanias. Se retomarmos as ideias de Foucault, mais uma vez, quanto à biopolítica, como uma estratégia de controle dos corpos (sexo, gênero, desejo, práticas), fica claro o quanto é fundamental a este exercício de poder a fixação identitária como mecanismo de classificação e gerência sociopolítica e econômica, que se verte em todas as formas, inclusive tentando criar “valores culturais” que são meras traduções da moral que se quer manter vigente. A filósofa e professora espanhola Beatriz Preciado, cujo pensamento convidamos agora para esta discussão e acompanharemos mais detalhadamente em seus desdobramentos, avança a partir de sua leitura da biopolítica foucaultiana, ao pensar assim o sexo (o qual pode ser também substituído na sentença a seguir por ‘gênero’): O sexo é uma tecnologia de dominação heterossexual que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/ masculino) (...). A natureza humana é um efeito da tecnologia sexual que reproduz nos corpos, nos espaços e nos discursos a equação natureza = heterossexualidade. O sistema heterossexual é um dispositivo social de produção de feminilidade e masculinidade que opera por divisão e fragmentação do corpo: recorta órgãos e gera zonas de alta intensidade sensitiva e motriz (visual, tátil, olfativa...) que depois identifica como centros naturais e anatômicos da diferença sexual. (2014: 25) A identidade sexual, após se constatarem as armadilhas desta tecnologia biopolítica, pode ser claramente compreendida não como uma expressão ‘instintiva’ e ‘natural’ desta verdade ‘pré-discursiva’ que se tenta atribuir à carne (aos genitais), mas sim como uma série de efeitos de inserção e reinserção das práticas (e das performances) do gênero no corpo6. Por isso, aqui, escolhemos permitir que a própria literatura - objeto no qual adentraremos mais para pensar como ele problematiza os enlaces (homo)parentais – nos fornece uma nova imagem e expressão para melhor matizarmos o fluido universo das identidades (ou identificações) de gênero e sexo: a ‘epifania’. Etimologicamente, trata-se de uma palavra de origem grega epiphainein e significa manifestação ou aparição. A raiz da palavra (phainein) pode ser traduzida como mostrar, fazer ou aparecer. É um vocábulo muito usado em sentido religioso, como sinônimo de uma manifestação divina. No caso da literatura brasileira, em particular, é impossível desassociar o termo epifania da escritura de Clarice Lispector, que fez deste um verdadeiro momento-chave desencadeador de seu universo diegético. Assim, propomos pensar o gênero e o sexo como verdadeiras epifanias do humano: momentos de revelação, de manifestação e revelação que engendram grande carga significativa, mas não cristalizam e podem se suceder ao longo da vida. Oprimeiro fragmento literário destacado por nós foi extraído justamente da irmã de Clarice. No romance No Exílio, no qual ficcionaliza a experiência de sua família na fuga ao nazismo (na diáspora judaica), atravessando países até fixar-se no Brasil, Elisa Lispector é autora e matriz com a qual não podemos deixar de identificar (usando das ferramentas legítimas da crítica biográfica) a personagem da filha mais velha, Lizza. É entre esta e o pai (Pinkhas) que se estabelece o seguinte diálogo: - Lizza, não se pode viver só a vida inteira. Você não é mais criança, é uma moça culta. Ouça-me. Ainda hesitou um pouco, depois prosseguiu. – Sei de um jovem que se interessa
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