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EROTIZACAO DA POLITICA E A POLITICA DO DESEJO

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EROTIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLÍTICA DO 
DESEJO: NARRATIVAS DE GÊNERO E SEXUALIDADES 
EM TEMPOS DE CÓLERA. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Paulo César García 
Djalma Thürler 
Organizadores 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
EROTIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLÍTICA DO 
DESEJO: NARRATIVAS DE GÊNERO E SEXUALIDADES 
EM TEMPOS DE CÓLERA. 
 
 
Paulo César García 
Renata Pimentel 
Flávio Camargo 
Berenice Bento 
Leandro Colling 
Ana Gabriela Pio 
 André Luís Mitidieri 
 Lorena Dantas Rodrigues 
 Daniel de Campos Oliveira 
 Emerson da Cruz Inácio 
Djalma Thürler 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Salvador 
2016 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
...o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à 
autonomia e à vida. 
 
Judith Butler 
 
 
 
"E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de homem gostando 
de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, 
passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. 
Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, 
que por acaso era de homem também". Caio Fernando Abreu, em Terça-feira gorda. 
 
 
 
RESUMO 
 
 
 
 
 
A proposta de produzir um livro que apresente questionamentos em torno da 
erotização da política e a política do desejo tem a ver com os respaldos de leituras e 
linhas transversais de interpretação de estudos que movem relatos, experiências, 
narrativas. Pensar em tempos não somente pelas instâncias dissidentes que deslocam 
significados para raças, mulheres, lésbicas, gays, transexuais, sem dúvida, é um 
exercício de compreensão crítico, mas também de poder reportar como, em que medida 
as polaridades atadas às estruturas lógicas centralizam e ainda mais movimentam, 
incitam e repetem de modo colérico as expressões de identidades, a exemplo do que 
acontecem com as de gêneros e de sexualidades. 
Ao trazer à tona a palavra política, pretendemos avançar nos posicionamentos 
que veem e desconstroem o sujeito pela ótica da igualdade e da afirmação identitária 
próxima ao padrão heteronormativo. Para este livro, problemas que reconheçam o 
hibridismo cultural, as políticas fluídas, uma erotização que subverta a fixidez, que 
rompam com noções e ideais normativos serão suportes de reflexão preciosos com as 
intersecções em tempos de cólera. Narrativas da literatura, poesia, artes cênicas e 
demais textualidades do conhecimento que aferem reconduzir as referidas discussões, 
certamente, terá, aqui, um panorama reflexivo e de repercussões relevantes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
04 PREFÁCIO 
 EROTIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLÍTICA DO DESEJO: 
NARRATIVAS DE GÊNERO E DE SEXUALIDADES EM TEMPOS DE 
CÓLERA. 
 Paulo César García e Djalma Thürler 
 
 
12 O DIÁRIO DE CORPOS ABJETOS 
 Paulo César García 
 
 
29 A LITERATURA E AS CONSTELAÇÕES FAMILIARES: COMO 
INSTAURAR OUTROS “MELHORES MUNDOS POSSÍVEIS”. 
 Renata Pimentel 
 
 
46 OBSCENOS DESEJOS 
 Flávio Pereira Camargo 
 
 
57 DSM-5: A INVENÇÃO DO GÊNERO COMO CATEGORIA 
DIAGNÓSTICA 
 Berenice Bento 
 
 
74 A EMERGÊNCIA DO ARTIVISMO DA DISSIDÊNCIA SEXUAL E DE 
GÊNERO NO BRASIL DA ATUALIDADE. 
 Leandro Colling 
 
 
 
87 ESCRITAS EXCESSIVAS: DISPOSIÇÕES DE LESBIANIDADES EM AS 
TRAÇAS, DE CASSANDRA RIOS 
 Ana Gabriela Pio Pereira 
 
 
 
105 EVA PERÓN NA MIRA DO SEU COIFFEUR 
 André Luís Mitidieri 
 Lorena Dantas Rodrigues 
 
119 NÔMADES ERÓTICOS: MICHETAGEM E VIRILIDADES EM ORGIA, 
DE TULIO CARELLA. 
 Daniel de Campos Oliveira 
 
 
 
135 MANIFESTO PARA UMA CRÍTICA POÉTICA DE UMA POSSÍVEL 
EXISTÊNCIA DO CORPO NA DIFERENÇA 
 Emerson Inácio 
 
 
144 O OUTRO LADO DE TODAS AS COISAS 
 Djalma Thürler 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PREFÁCIO 
Erotização da política e a política do desejo: narrativas de gênero e de 
sexualidades em tempos de cólera. 
 Paulo César García e Djalma Thürler 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A proposta em produzir um livro que apresente questionamentos em torno da 
erotização da política e a política do desejo tem a ver com os respaldos de leituras e 
linhas transversais de interpretação de estudos que movem relatos, experiências, 
narrativas. Pensar em tempos não somente pelas instâncias dissidentes que deslocam 
significados para raças, mulheres, lésbicas, gays, transexuais, sem dúvida, é um 
exercício de compreensão crítico, mas também poder reportar como, em que medida as 
polaridades atadas às estruturas lógicas centralizam e ainda mais movimentam, incitam 
e repetem de modo colérico as expressões de identidades, a exemplo do que acontecem 
com as de gêneros e de sexualidades. 
Um ponto nevrálgico em torno dos debates trata da naturalização e da 
normatização ao falar de sexo e de gênero, o que coloca em evidência a afirmação da 
identidade como procedimento único de classificação para o indivíduo, tornando assim 
uma prática que o essencializa e o identifica, como também daqueles que se excluem. 
Ao trazer à tona a palavra política, pretendemos avançar nos posicionamentos que 
implicam analisar discursos que veem e desconstroem o sujeito pela ótica da igualdade 
e da afirmação identitária, por marcos legais e leis, por discriminações e injúrias, pela 
aderência aos dois gêneros (masculino e feminino) como “naturais” e gerados pela 
instância biológica e genética, em considerar a afirmação da identidade pela linha de 
filiação LGBT, criando aí uma imagem de aceitação próximo ao padrão 
heteronormativo. Uma política do desejo que nutre a diferença assume o perfil de 
impactar e desconstruir essas bases, o que seguindo a linha de raciocínio de Colling 
(2016), busca-se “uma visão não-essencialista sobre as identidades”, o que só poderá 
“destacar, respeitar e até festejar as diferenças, as características comuns e partilhadas, 
as mudanças das identidades. Também irá defender que não há uma identidade 
‘verdadeira’”. 
Assim, para esse livro, problemas que reconheçam o hibridismo cultural, as 
políticas fluídas, uma erotização que subverta a fixidez, dos desejos que rompam com 
noções e ideais normativos serão suportes de reflexão preciosos com as intersecções em 
tempos de cólera. Narrativas da literatura, poesia, artes cênicas, e demais textualidades 
do conhecimento que aferem reconduzir as referidas discussões, certamente, terá, aqui, 
um panorama reflexivo e de repercussões relevantes. Atendendo ao edital da Editora da 
Universidade do Estado da Bahia para publicação de livros, nós nos aliamos de modo 
muito especial, para reunir todxs Professores e Pesquisadores que desejem compartilhar 
dos seus estudos e apresentar publicamente por onde pensam e como pensam a proposta 
em exposição. 
O que quer O diário de Genet com uma impossível nulidade em tempos de 
cólera? Seria apresentado nogesto de corporificar os atos das personagens-atores: o 
poder ser, ao dizer, ao criar a si desnormatizando-os? O texto de Paulo César García 
consiste em analisar a leitura dramática construída a partir e por meio da visão poética 
do dramaturgo Djalma Thürler. Trata de deslocar do Diário do ladrão uma genealogia 
da história criada do fruto da escrita do escritor francês Jean Genet e retomá-la em outra 
fonte discursiva, reposicionando o sujeito por lugares mais fluidos. “A liberdade de 
conjugar a obra literária de Genet com a representação dramática é um modo de 
subverter a vivacidade do recalcado, de esbarrar com a estranheza que se aplica com o 
nosso jeito impotente de compreender existências outras” propõe o estudo de Paulo 
César que procura refletir as bases que nutrem a tendência do contemporâneo, as 
dissidências de gênero e das sexualidades facultadas na confluência de cisões e rupturas. 
Segundo o autor, o teatro que produz Thürler está em sintonia de exercitar outros fundos 
de verdades, os que representam a própria maneira de politizar a assunção do corpo, de 
como posicionar existências que espantam a regularidade do desejo. A leitura dramática 
de O diário de Genet, como propõe o texto, é ávido com a problematização que enuncia 
formular as abjecções do corpo, uma diretriz para as intersecções dos gêneros que 
importam pensar. 
Renata Pimentel dá enfoque sobre obras que recebem constantemente 
‘adjetivações reducionistas’ a estigmatizá-las, como “literatura gay/ homossexual/ 
lésbica”. Segundo a autora, estes rótulos parecem ser usados para depreciar e disfarçar a 
importância objetiva de uma produção artística que reflete sobre os desvãos e os 
interditos sociais, sobre olhares que revelam as “normas” e suas arbitrariedades. Tendo 
em mente as obras de Copi (pseudônimo de Raul Botana: o argentino ficcionista, 
dramaturgo, ator e desenhista radicado em Paris), de Hilda Hilst (poeta, ficcionista e 
dramaturga paulista), de Caio Fernando Abreu (ficcionista e dramaturgo gaúcho), 
Alberto Manguel (escritor e crítico argentino) e Beatriz Preciado (filósofa e professora 
espanhola). Destaca aí a força dos estudos culturais, sobretudo os estudos de gênero e a 
teoria queer, como modo de repensar os espaços e as configurações individuais e 
familiares. Tais obras revelam a mesma urgência: desmascarar a norma instituída e a 
falácia que representa um estereótipo único e pasteurizado de parentalidade. Instauram-
se, pois, nestes universos artísticos, novos e melhores “mundos possíveis”, acordando 
para o status crítico e político em torno das leituras produzidas. 
Obscenos desejos, de Flávio Pereira Camargo tem o objetivo de analisar o conto 
“Obs-ceno”, do escritor de Antonio de Pádua. A partir de uma perspectiva entre 
literatura e homoerotismo com fundamentação nas discussões teóricas dos estudos de 
Didier Eribon (2008), Eliane Robert Moraes (2003), Georges Bataille (1987), Julia 
Kristeva (1982), Octávio Paz (1995, 2014) e Zygmunt Bauman (2004), Flávio Camargo 
visa como as questões referentes à identidade, à autodescoberta de si e do desejo 
homoerótico do protagonista da narrativa são representados, provocando uma ruptura e 
uma transgressão com a interdição do erotismo dos corpos e dos desejos por meio de 
uma linguagem que encena o próprio erotismo dos corpos. Aspectos concernentes à 
questão do armário e da injúria, compreendidos como elementos constitutivos de uma 
subjetividade gay, também, são meios discursivos para o debate que apresenta. 
A leitura de Berenice Bento nos põe uma questão provocadora em DSM-5: A 
invenção do gênero como categoria diagnóstica: “Deveriam as identidades trans 
continuar a ser diagnosticável como um transtorno psiquiátrico?” Para ela, esta é a 
pergunta que parte considerável dos artigos escritos nos últimos 10 anos tem tentado 
responder. Conforme argumenta, O DSM-5 é um manual da American Psychiatric 
Association (APA), mas o seu poder não é limitado às fronteiras de Estados Unidos. O 
objetivo do texto da autora é apresentar o processo de debate que resultou na mudança 
de nome da categoria de diagnóstico de “transtornos da identidade sexual” para 
“disforia de gênero” e encontra a metodologia da pesquisa baseada em pesquisas nos 
bancos de dados, entre os anos de 2013-14, na City University of New York (CUNY). 
Mas, é no texto A emergência do artivismo da dissidência sexual e de gênero no 
Brasil da atualidade, que Leandro Colling procura refletir, através das pistas para a 
construção de uma genealogia, as condições de emergência de vários artistas ativistas 
das dissidências sexuais e de gênero que surgiram nos últimos anos no Brasil. O 
trabalho foi realizado em diálogo com as produções de Foucault, Deleuze e Guattari e 
Butler. 
Pode ser que em Escritas excessivas: disposições de lesbianidades, Ana 
Gabriela Pio Pereira, ao analisar o romance As traças, de Cassandra Rios debata com 
desenvoltura o que se envolve a proposta do livro. O texto propõe demonstrar que a 
produção literária da escritora paulista Odete Rios, conhecida no cenário nacional, 
sobretudo, nas décadas de 1960 e 1970, pelo pseudônimo Cassandra Rios. O 
texto investe na desmontagem de toda uma tradição discursiva da obra da autora, visado 
na produção de corpos, desejos e subjetividades. A escrita de Rios promove um estado 
político quando opera expressões de gênero e da categoria da lesbianidade. Gabriela Pio 
percebe o processo de leitura construída pela crítica cultural, dando voz à 
desestabilização das identidades e atropelando conceitos que afirmam os sujeitos, 
atrelando-os à fixidez e aos discursos heteronormativos. 
Em Eva Perón na mira do seu coiffeur, revelam conceitos efetivados com a 
imagem de Eva Perón e sua atuação nos palcos de poder, conforme representada na 
narrativa romanesca Santa Evita, a obra literária argentina mais traduzida em todos os 
tempos, publicada originalmente pelo jornalista em 1995 pelo jornalista e ficcionista 
tucumano Tomás Eloy Martínez. A partir do olhar e da perspectiva de Julio Alcaraz, 
personagem fundamentada na figura histórica do cabeleireiro Pedro Alcaraz, um dos 
responsáveis pela transformação da imagem da primeira dama peronista, a formulação 
in progress de “biografema homocultural camp” é o eixo analítico do discurso de André 
Luís Mitidieri e Lorena Dantas Rodrigues que diz respeito ao biografema homocultural 
e camp. 
Por sua vez, Daniel de Campos Oliveira apresenta a leitura em Nômades 
eróticos: michetagem e virilidade em Orgia, de Túlio Carella, compreendendo a 
virilidade dos michês presente no texto de Carella como potência de discurso que aflora 
na relação binária e sexista. A obra Orgia do escritor argentino foi publicada em 1968 
no Brasil com tradução de Hermilo Borba Filho e trata dos diários de Lúcio Ginarte. Ao 
aceitar o convite para viver um ano no Brasil, ensinando no curso de teatro da 
Universidade Federal do Recife, Carella / Ginarte se entregam ao devaneio 
homossexual, autor e personagem são contagiados pelas derivas do sexo pago com 
garotos de programa. O deleite aos corpos com homens negros que se vendem é o tom 
da análise do texto de Daniel Oliveira, que permite pensar as questões que movem o 
relato da obra, como a masculinidade viril e o ambiente onde homens se relacionam 
sexualmente com outros homens, sem identificarem a orientação sexual. A partir dos 
estudos de Néstor Perlongher (1987), propõe analisar a posição dos michês entre o 
personagem e autor, compreendendo as rupturas e travestimentos em torno das 
identidades sexuais. 
Mas há um manifesto que é pertinente com os objetivos do livro. Trata-se do 
Manifesto para uma Crítica Poética de uma possível existência do Corpo na Diferença,de Emerson Inácio. Existe uma construção metacrítica apresentada no texto do autor 
que leva em consideração teorias, postulados, propostas e assertivas que permearam os 
estudos cuir, de gênero, sexualidades e diversidade sexual e identitária. Da experiência e 
dos atravessamentos nascidos das várias leituras, intenta-se a construção de um 
manifesto, que se delineie pelo duplo movimento entre o ético e o poético, mas ao 
mesmo tempo também entre o exercício crítico e a criatividade estética, impondo-se 
como um questionamento aos diversos formatos a que a tarefa crítica se autoimpõe, 
mesmo quando trata de questões relacionadas ao corpo, às sexualidades, às novas 
subjetividas, instâncias pelas quais se demanda liberdade. As palavras aqui estranham 
ao rigor formal da língua, mas ela tem a intenção de encontros, ou seja, é revelação. 
Revela a ação entre as diversas dinâmicas teórico-críticas, mas, com o questionamento 
fértil em torno da visão sempre iminente do que somos, de como somos traduzidos, 
sentidos e compreendidos, e pela instauração de uma dúvida, aquilo que pretendemos e 
queremos em termos culturais, sociais e políticos cabe nos formatos fechados do 
pensamento, da escrita, da expressão? Eis que corpo, metacrítica, identidade e “cuir” 
são exercícios de leituras e fórum de interpretação na linguagem que adota Emerson 
Inácio. 
Djalma Thürler, no ano em que se comemora 20 anos da morte de Caio 
Fernando Abreu (1948-1996), nos apresenta a forma escrita da sua Performativa 
Palestra de quando Caio próximo ao som da minha voz. No texto, em forma dramática, 
Thürler mergulha no universo amoroso de Caio e cria novas estratégias de 
construtividade textual, mudanças, transposições, uma interpretação possível (dentre 
tantas possibilidades) das tantas vozes lidas e ouvidas. O outro lado de todas as coisas, 
ao se apropriar das vozes sociais e políticas “amorosas” de Caio F. extrai um significado 
diferente que interessa ao leitor ou espectador contemporâneo em seu momento 
histórico presente, que ainda não aprendeu sobre a fragilidade do amor, ou daquilo, que 
com algum descuido, chamamos de amor. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O DIÁRIO DE CORPOS ABJETOS 
Paulo César García 
 
 
 
 
 
Na hora, no momento em que escrevia, talvez eu desejasse engrandecer sentimentos, atitudes ou 
objetos que um rapaz magnífico, diante de cuja beleza eu me curvava, honrava, mas hoje, 
quando me releio, esqueci aqueles rapazes, só ficou deles aquele atributo que cantei, e é ele que 
irá resplandecer em meus livros com um brilho igual ao orgulho, ao heroísmo, à audácia. 
Jean Genet. O diário de um ladrão 
 
A minha vida é assim: pois era preciso muito orgulho para embelezar esses personagens 
imundos e desprezados. Eu precisei de muito talento. Ele me veio pouco a pouco. A minha vida 
miserável me permitiu criar. 
Djalma Thürler. O diário de Genet. 
 
1. Diários: escritas de afetos. 
Cena 1. Brevidades 
 
Encontrar com um diário que resplandece o poder da palavra que se quer 
guerrear com o outro, tem lugar na escrita de Jean Genet. Quem lê a obra do escritor 
francês com o propósito de se aventurar na bonança sexual em Diário de um ladrão, 
não terá exatamente um mergulho nas zonas erógenas do sexo à deriva, mas de uma 
estética que produz subjetividades que mira o poder amar, flertar e atrair, trair e afetar, 
de revelar perfis de garotos, gays, pobres, abjetos, verdades de ladrão em estilização de 
vidas. 
A obra de Genet, no amparo lírico de um eu enredado, é movida no espaço da 
escrita cujo lugar é do gozo, ou seja, de jorrar na cara do leitor o existente em excesso, o 
que não se diz numa realidade calcada por regularidades e disciplinas. A epígrafe do 
autor em destaque neste texto mira a audácia e o heroísmo de um sujeito que se satisfaz 
na e pela escrita, no ato em si de ultrapassar as fronteiras. 
O objetivo deste texto consiste em propor a leitura dramática construída a partir 
e por meio da visão poética de Genet. Deslocar do diário do ladrão uma genealogia da 
história criada do fruto da escrita do escritor francês e retomá-la em outra fonte 
discursiva, reposicionando o sujeito por lugares mais fluidos. Ao conjugar o relato 
autobiográfico para o texto da dramaturgia, formata-se aí a representação não somente 
por exaltar a força da atuação do ator/personagem no palco, como por oferecer traços 
menos convencionais e menos mascaradas da cultura e da vida com a ação de o autor 
extrair de si mesmo visões próprias e do mundo, com pensa Artaud (1984). Assim 
penso que a leitura dramática d’ O Diário de Genet1, de Djalma Thürler é uma criação 
dramática que reverbera tons ecoados da escrita de Jean Genet e com a qual traduz o 
outro não para intrigar a história em si de sujeitos reportados na esfera da trama, mas 
das possibilidades de diálogos de muitos eus perdidos, aflitos e à deriva com a 
sexualidade. 
Talvez, conhecer a si se autentica com o escrever sobre si. A elaboração de 
ficções híbridas em que os corpos de personagens de criações literárias são aludidos tem 
respaldo no jogo teatral do dramaturgo. O exemplo da obra de Genet ganha crédito no 
gênero dramático e encabeça as fontes do teatro feito por Thürler que firma o propósito 
de perceber um horizonte de expectativas que envolve a literatura e dramaturgia, o 
teatro e outras difusões artísticas. Se o teatro existe para focar também na instância do 
 
1 A dramaturgia O diário de Genet estreou em 2013 na Mostra Oficial de Festival de Curitiba. A peça não 
trata de uma montagem clássica com o teor de interpretação entre dois personagens registrados por falas 
com histórias lineares e nem se trata de um veio introspectivo. O diário mergulha no campo intertextual 
em que os recortes da obra de Jean Genet se configuram e são balizados pela ótica de discursos da 
contemporaneidade. São registros apresentados por intérpretes, na composição de dois atores, Duda 
Woyda e Rafael Medrado, que representam no espaço do palco a formação de sujeitos criada na 
estabilidade da cultura ocidental e patriarcalista, como dos rompimentos e improvisos das subjetividades 
encenadas e que causam o veio dialógico com a obra de Genet, permitindo interpelar as identidades, os 
corpos, as sexualidades, a liberdade. O diário de Genet, criado pelo autor e diretor da montagem textual 
Djalma Thürler, cabe no exercício de linguagens que revisitam o poder e se coloca como crítica de 
saberes pós-coloniais. Para não dizer de um teatro mimetizado, fixado em conteúdos historicistas, o texto 
com o qual exercito a busca dessas linguagens sinaliza para um teatro abjeto, quero dizer, com 
encenações e, sobretudo, com gestos e palavras que buscam fugir da previsibilidade e encontrar a noção 
lúcida de subverter ordenas e normas que afrontam o poder-dizer, o poder-ser sujeitos de sexualidades 
livres das amarras e das sociabilidades tacanhas. É o teatro de estilização de vidas, o que as torna uma 
obra de arte. 
recalcado, “uma espécie de atroz poesia expressa-se através de atos estranhos onde as 
alterações do fato de viver mostram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria 
dirigi-la melhor” (ARTAUD, 1994, p. 17). A liberdade de conjugar a obra literária de 
Genet com a representação dramática é um modo de subverter a vivacidade do 
recalcado, de esbarrar com a estranheza que se aplica com o nosso jeito impotente de 
compreender existências outras. Sendo estas confiadas pelas basesque nutrem a 
tendência do contemporâneo, ou seja, das dissidências de gênero e das sexualidades que 
buscam o altar da reflexão, a leitura dramática faculta a confluência de cisões e rupturas. 
Assim a complacência da estética do texto de Thürler desativa a sociedade do 
espetáculo, justamente por não adequar a sintonia sensibilidade e moral, de maneira que 
o lado mau das coisas é para se vingar de atos insanos impulsionados pelos 
pertencimentos e direitos roubados pelo sistema hegemônico e patriarcal. A companhia 
Ateliê Voador se baseia na ávida maneira de formalizar intermediações, de outros textos 
focados na estrutura do dramático que acolhem o leitor-espectador cujas desenvolturas 
das leituras produzidas geram identificações entre o lugar do sujeito que fala e as 
devidas desconstruções com os contextos operados. A sua dramaturgia vincula a 
assunção de vozes à comunicação de pretensão pedagógica que incita pensar em 
conceitos que são perniciosos e os que identificam nossos atos com nossos 
pensamentos. 
A aposta é para discursos que não se quer fronteiriços e exercite redes de 
reflexões. Entende que não confiscar a verdade ao pé da letra, assimilável à 
verossimilhança do romance do século XVIII, significa não estar à mercê de conteúdos 
e de histórias narradas. É preciso também esconder as máscaras, como enaltece Artaud 
(1984). O teatro que produz Thürler está em sintonia de exercitar outros fundos de 
verdades, os que representam a própria maneira de politizar a assunção do corpo, de 
como posicionar existências que espantam a regularidade do desejo. A leitura dramática 
de O diário de Genet é ávido com a problematização que enuncia formular as abjecções 
do corpo, uma diretriz para as intersecções dos gêneros que importam pensar. 
O grau de percepção d’O diário de Genet surge do espaço do cárcere. O lugar 
em que a razão para a sensibilidade a todo instante desintegra a palavra que não atinge 
as subjetividades em estado de liberdade de expressar o poder do corpo e contradiz as 
sólidas histórias de muitos eus que se afetam, nos afetam por aprisionar o amor e os 
desejos periféricos. A primeira impressão que se busca configurar diante das marcas de 
performances de subjetividades repercute no ato de enunciar e desfazer sentidos 
homogêneos, visando às masculinidades e aos corpos reunidos em torno das esferas 
homoeróticas, tomando estas como princípio de rupturas, ao gestar palavras que geram 
incômodos, que estranham o real pelo insight epifânico. Quer dizer, revelar a si pelo 
toque, pelo cheiro, pela fala que não trasveste o pensamento e o corpo que instaura em 
estado-devir-sujeitos. 
A leitura dramática O diário de Genet por esse campo de exercitação reflexiva 
dos sujeitos atuantes leva em consideração o corpus teórico que conduz a face poética a 
um estágio político. Não se quer a criação da dramaturgia fundada essencialmente no 
relato de histórias do livro de Genet, como já anunciado, nem por demarcar a arte 
literária dramática do escritor francês nutrida de referências. Do bom ladrão espera-se 
um desertor de corpos para expor vidas nas aversões de um sistema pautado pelos 
conservadorismos e paradigmas sociais. O Diário de Genet remete à esta reposição de 
corpos abjetos que desarmam e chocam, e para movê-los fora das estruturas binárias do 
sistema logocêntrico e inscrevê-los nas desordens que o próprio Genet enuncia. Para 
além das identidades focalizadas por ambos autores, o poder de afetar e romper é 
enunciado, tornando as identidades sexuais inteligíveis, de um lado, para referir à vida 
consumida no ritual e repetição das performatividades (BUTLER, 2001); de outro, os 
diretos à vida, ao corpo, ao nome que giram em expressões sem cair nos centrismos que 
encadeiam na naturalização de ser legítimo, e despolitizar alguns sentidos para a pessoa 
e em outros não são operados, tornando-a abjeta. 
O dramaturgo com formação em Letras Djalma Thürler destaca a arte híbrida, 
operante de um teatro anfíbio, termo baseado na noção de Silviano Santiago (2004), no 
qual se esmera para a injeção da criação dramática sortida por um despojo de signos, 
despojos que são perceptíveis na inter-relação que funda na paixão dos textos outros. 
Ampara-se no espelho da obra de Genet como para desfazer sujeitos e permitam 
desmimetizar espaços em que circunscrevem domínios de discursos e incidem 
horizontes desfamiliares. As personagens do universo teatral de Thürler restauram dos 
escritos do autor francês falas que se deslocam e se refazem no plano do estado de 
exceção. Corpos, desejos, amor são retomados das histórias da escrita do outro e se 
suplementam no diário como gesto de descontínua reflexão da cena teatral e, sem 
fechamento de sentidos, as performances à sexualidade visíveis visam sem 
pressuposições, torna-as pensáveis com as posturas de saberes colonizados. 
Das práticas do heroísmo de ser o ladrão para as abjeções do corpo, a 
transposição de ordens e visões da obra literária de Jean Genet com as quais a 
montagem dramática dialoga, o pensamento anfíbio d’O diário é uma peça política e 
analítica de sujeitos-atores instados como abjetos, cuja impetuosidade de corpos arrisca 
na descolonização do peso das sexualidades. O diário torna teoricamente sujeitos 
autobiográficos, pois o desejo é de todos e todas nós, de muitos outros eus que se veem 
n’O diário de Genet. Como uma refazenda de posições, de cortes e alinhavos, o tempo 
que a leitura proporciona traz à tona retratos atuais dos óbvios fluxos de subjetividades, 
com todas as buscas, conflitos, dores existenciais, com o poder de expressar diferenças, 
serem diferentes nas confluentes infâmias de se auto- representarem. 
O projeto de escrita de Jean Genet, acolhido por Jean Paul Sartre (2005), é 
potencialmente crítico quando compreende a poesia que brota dos relatos de Genet. 
Diferentemente dos referenciais da literatura francesa e ocidental moderna, Sartre nota 
uma enunciação informe da escrita e do perfil do autor. Talvez, com o próprio Genet, 
Sartre buscou o motivo que o qualificava, a exemplo do que expressa: 
Escrevendo, consegui o que procurava. Sendo para mim um 
ensinamento, o que vai me guiar não é aquilo que vivi mas o tom que 
uso para relatá-lo. Não as anedotas mas a obra de arte. Não a minha 
vida mas a sua interpretação. É aquilo que a linguagem me oferece 
para evocá-la, para falar dela, traduzi-la. Construir a minha lenda. Sei 
o que quero. Sei para onde vou. Os capítulos que seguem (já disse que 
um grande número se perdeu), entrego-os sem qualquer ordem. 
(GENET, 2005, p. 180). 
 
 
Diário de um ladrão parece referir aos momentos cruciais da tendência da 
contemporaneidade, que tem no registro autobiográfico a busca para interpretar a vida 
por meio da obra de arte. Mapear o presente pelas escrituras do cotidiano, da linguagem 
que oferece Genet para traduzir subjetividades sem direcionamento, é pauta de leituras 
que apresentam testemunhos ou anotações aí giradas como Barthes sugere “uma nova 
escuta das coisas”, instigando o aparecimento de um “gosto novo” que se introjeta na 
cena da escrita. Ser o sujeito que procura o tom para se expor constitui o ponto nodal 
para a dramaturgia de Thürler recolher o processo de criação de si. Ao lado da figura do 
autor francês que mostra a cara na escrita, configura aquele que traz as suas paixões e a 
própria forma de incorporar momentos em que há um largo espectro de si, de 
personagem e narrador que se dirigem para a mesma trilha e partilhas, para os que os 
envolvem no ato de escrever no tom que usa para enunciar histórias de vidas, para a 
linguagem que visa traduzir os efeitos próprios dela para se marcar e para o percurso 
que dá margem paradizer o que quer, como pensa, o que deseja, sem amedrontações, 
além das desamarras para inovar a subjetividade que opera dentro do texto. 
A mistura de exposição de falas, as reconvexas formas de enunciar os textos de 
Genet parecem dar pano para manga, pois elas são similares às histórias não escritas, às 
outras vidas que podem ser reconhecidas. Diante do que se diz do sujeito, existe o jogo 
da representatividade que entra no seio da dissimulação, ensaiando a persona que fala e 
não fechando o modo como é enunciado. Pensar a obra literária de Genet articulada com 
a dramaturgia de Thürler dispõe do sentido com o qual Philipe Lejeune (1996), em seu 
livro Pacto autobiográfico mostra, quer dizer, um misto de ficção de acontecimentos e 
de seleção do campo do real fundado na relação de verdades que se buscam entre autor, 
narrador, leitor. À primeira vista, textos e entre-textos rodeados com o registro da 
autobiografia passam pela formatação de um texto dramático cujo próprio nome do 
autor estampado também autentica a relação na voz dos personagens-atores e, sendo 
protagonistas do drama, o espectador procura os meios para atingir os seus pactos, não 
com a verdade propriamente dita, mas da exterioridade que ela transmite, com os 
alcances que são propositais para destituir vozes, silêncios, poder. 
A figura de Genet na leitura de O diário de Genet se estreita no jeito de compor 
uma outra criação de si, porque não é o autor que ali se representa, mas a interpretação 
de vidas intensas que, por meio da linguagem da dramaturgia, ressurgem e repatriam de 
forma diferente a exercitação de identidades com as quais Genet enuncia em suas obras. 
Como foco, a leitura dramática reproduz paradigmas como protesto, como para 
reestruturar as identidades por meio da encenação e com recursos peculiares do teatro 
moderno, os que espreitam com o intuito de revelar formas de subjetividades e a 
aproximação com o espectador. A licença inventiva que Djalma Thürler processa no 
texto dramático adentra no plano da veracidade e do extra muro do cárcere com a 
promessa de chegar ao ponto maior: o questionamento das identidades homoeróticas e 
queer. O poder estratégico de considerar as subjetividades como cúmplices de um teatro 
abjeto oferece as asas para outras maneiras de expressar sujeitos que desejam cortes 
profundos com uma realidade higienizada. O prazer é pelo rompimento, pelo gesto de 
pessoalidade estampada e no qual a função distinta com a literatura traz o cogito da 
intersecção de textos configurados nos dialogismos, no cruzamento de expressões e de 
experiências que nos transporta pelos afetos, de nos envolver na potência de um mapa 
geopolítico que reflete os atravessamentos das subjetividades. 
Como estado abjeto de representar sujeitos, O diário de Genet quer deixar as 
pegadas frente aos retrospectos poderes heteronormativos e aos dissidentes corpos visar 
aos meios de expressar a si encontrando tensões com o arquétipo de identidades fixadas 
e modeladas. As vozes dos ex-cêntricos vistas como parte de territórios propagados a 
descolonizar chegam ao fora-de-lugar. Eis a erotização política do desejo que nega o 
paternalismo e pátrias famílias que restauradas nas falas do texto não se curva aos 
estreitos do pensamento reprodutor, um modo de incorporar o próprio Genet que diz: 
“Este livro, Diário de um ladrão: busca da Impossível Nulidade” (GENET, 2005, p. 87). 
O que quer O diário de Genet com uma impossível nulidade em tempos de 
cólera? Seria apresentado no gesto de corporificar os atos das personagens-atores: o 
poder ser, ao dizer, ao criar a si desnormatizando-os? Seria o encontro com o desejo que 
tarda, falha por não querer reproduzir o mesmo, defronte de masculinidades viris e 
machistas, não gerando signos que disciplinam os gêneros? Estariam por incorporar as 
subjetividades concebidas em corpos informes, abjetos e recriados como 
representatividade ativa? 
O que se questiona aí e dar a ver na textualidade cênica digere pouco a pouco a 
liberdade de poder subjetivar desejos. A exemplo do autor Jean Genet, a dramaturgia de 
Thürler encabeça a paixão pelo subalterno no exercício de repensá-lo num formato mais 
questionador e mais livre quando renovam posturas com a linguagem do teatro, poder 
problematizar os limites, de atar aos lugares diferentes as bio-falas que se refazem com 
Genet, na ocasião de internalizar posições abjetas para se tornar sujeitos com direitos ao 
corpo. A leitura de O diário de Genet pela ótica do Diário de um ladrão tem o mero 
objetivo de interpretar a enunciação que destila e filtra os eus que falam, de sujeitos que 
digerem a audácia, o heroísmo, as paixões, amores livres, putos, abjetos, nos 
subalternos estilos que se reapresentam e fazem enunciá-los. 
 
2. Política da erotização. 
Cena 2 – Corpos abjetos em cena. 
 
Tratar de corpo abjeto em O diário de Genet é um problema que intriga os 
paradigmas sociais, o modo de lançá-lo e desafiar o sistemático padrão 
heteronormativo. Questões como atração do amor binário e a retração a este, a impulsão 
de sentir desejos normatizados e a repulsão a este são práticas de discursos que 
importam para ver a subjetividade gay na exaustão de ser diferente, de estar fora-de-
lugar. Assim o corpo abjeto como corpo corrompido, na instância em que ele mexe com 
a identidade heterossexual, tem respaldo na representação d’ O diário ao absorver 
corpos para além das fronteiras e que comunicam em outros espaços em que o sujeito 
não é marcado por um único domínio de exercitar a subjetividade, posto que atores-
personagens encenam gestos como para desregrar, mais do que isso, estão na concessão 
do poder enunciar os queer(eres) sujeitos que desejam e, não deixando se contaminar 
pelas injúrias adotadas, desarma-os. É a partir da leitura dramática de O diário de Genet 
que os aportes da crítica da hegemonia têm um retorno na dramaturgia visada para 
conturbar a categoria do homem másculo, macho e heterossexual reconfigurando o 
processo de higienização dos espaços a ele pertencente. 
A escrita do diário consagra vidas pela linha do geopolítico e choca a 
racionalização patológica de indivíduos. Através da desconstrução da patologia, o ato de 
romper e por que romper as grades da prisão são expressivos na leitura da dramaturgia 
pelo pressuposto de enaltecer o corpo se introjetando nos contextos culturais. Bem 
próximo do raciocínio de Butler (2000, p. 155), “o abjeto designa aqui precisamente 
aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, 
densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitat 
sob o signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito.” 
Se o livro de Jean Genet aponta para o ato heroico entre o aprisionamento e a 
liberdade, a paixão e a deriva, os corpos masculinos que amam, por hora, a derrota de 
quem comprime as falas, o falar do outro é motivo para validar e mover o alcance 
politizado entre os personagens. Quero dizer com isso que O diário de Genet politiza as 
subjetividades que expressam sem artimanhas a nervura da carne como para posicioná-
la fora da linearidade do amar, como modo de combate da anomalia e de atos 
submissos, pois a zona de inabilidade, como pensa Butler, e que comunica em O diário 
de Genet, “constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela constitui aquele local 
de temida identificação contra o qual – e em virtude do qual – o domínio do sujeito 
circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à autonomia e à vida” (BUTLER, 
2000, p. 155). 
Transcrevo a cena da montagem O diário de Genet: 
A: ‘Aquele que com o corpo está entregue à mercê de um outro, / É a 
partir daí quese abre isto que pode-se chamar gozo puro’. É em 
homenagem a esses crimes que escrevo esse espetáculo! 
B: ‘Objeto de queda e de dejeto, de resto do advento subjetivo’. 
A: Homenagem sem anjos! 
T: Masoquista! 
B: Escrevo para não dormir 
A: Falo para não esquecer 
B: Luto com esta maldita insônia 
A: Perco as palavras 
B: Latrina 
(THÜRLER, 2013, p. 48) 
 
 
A interposição da voz de Genet no trecho da citação, em destaque na 
dramaturgia, revela estados de dejetos corpos em ação, vistos pelo gozo puro de sujeitos 
entregue à mercê do outro. Esta mesma voz ecoa nas palavras de Thürler, pois é preciso 
escrever, falar de gozos afetados, da linguagem que incorpora o expelido, o excremento. 
O que torna Genet, a voz autoral refletido n’O diário é o gozo da escrita, a 
dramaticidade do agora, de corpos que se escrevem para contagiar o que pode se afetar. 
O caráter performativo da linguagem está nos atos, nos desejos para cair no non-sense, 
ou melhor, no impensável direcionado pelos sentidos que não se permitem falar: “Perco 
as palavras. Latrina” (THÜRLER, 2013, p. 48). 
Erguido o eu na coleção de ditas palavras estranhadas ao meio, nauseadas ao 
sistema reprodutivo com as quais o livro Diário do ladrão enuncia, as dores de Genet, 
também, se afetam por falar do outro, ao procurar uma forma de existência que se 
reinventa no relato autobiográfico. O desejo do eu em O diário de Genet ganha domínio 
próprio ao transportar sujeitos em estado-abjeto, melhor, ser-abjeto que se revela como 
um devir, na alternativa ao poder majoritário de escritas hegemônicas, canônicas. Não 
quero propor que o drama não se traveste com raiz autoral, mas a partir da produção 
textual, a dramaturgia desmascara as muitas outras faces que um tempo do 
contemporâneo imprime com corpos em possibilidades. Isso porque as cenas pontuam a 
homofobia, a expulsão do heteronormativo, do sexismo, da virilidade machista erguidos 
com a repulsão de falas presentes na cultura ocidental. 
O Ateliê VoadOR Companhia de Teatro foi criado em 2002 por Djalma Thürler, 
dramaturgo, Professor e Pesquisador. Considerado, atualmente, um dos grandes arautos 
do teatro da contemporaneidade, as produções de peças giram numa série de criações 
que atraem temas relacionados a problemas de gênero e de identidades sexuais, como a 
trilogia do cárcere: O melhor do homem, Salmo 91, O diário de Genet, além de A alma 
encantadora do beco, escrita e dirigida por ele próprio e Coral: Uma 
Etono(cena)grafia. 
As criações artísticas do Ateliê, talvez, engrossam o coro da excelência do 
contemporâneo, puxado pelas lésbicas, gays, transexuais, travestis cujas subjetividades 
aí não estão incluídas de maneira muitíssimo precisa e o modo de subjetivação também 
não está completamente excluído. Os contextos aí enunciados operam como para 
desfazer as fronteiras no rito de passagem de sujeitos, tendo em mente as fraturas do 
cotidiano. Os impedimentos para um tempo composto apenas na esfera da 
referencialidade e da totalidade das coisas como são se traduzem pela forma de 
demarcar a persistência de ser revolucionário, quando singularizar as identidades por 
exclusão significa investir em dissidentes corpos que atuam e se constituem no pilar da 
contestação, na e pela diferença dos cêntricos modos de ser. Não se quer enunciar 
somente sujeito de uma ação por uma estrutura montada, mas das suas reversões. Como 
a matriz de uma vida normatizada passa pelo démodé, a leitura dramática realizada por 
Thürler consente o valor de um discurso imbuído por imagens e ecos descentralizados. 
Atingir as fobias em torno dos gêneros e das sexualidades é propositadamente uma 
aposta que agencia os espaços do fora, de ocupar pela distinção de espaços entre o 
interior e o exterior, afetando o fora pela desordem, do fora de moda ordinário, de ex-
postos sujeitos arrochados por serem diferentes e diferenciáveis ao sistema padrão de 
existir. 
Para isso Deleuze e Guattari é significativamente presente numa leitura em que 
os excrementícios são baseados na instituição e instaurando uma “diferença entre 
personagens conceituais e figuras estéticas que consiste de início no seguinte: uns são 
potências de conceitos, os outros, potências de afectos e perceptos”. Também, 
complementam que “o plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia 
podem deslizar um no outro” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 87-88 e 89). Pelo 
campo de atuação dos pensamento abjeto, o exemplo do dandismo, como abordado por 
Baudelaire, é uma amostra que culmina na relevância de fórum cultural da 
masculinidade, que aquele já se encontra em pé de guerra com as estruturas bipolares, 
no tempo em que os passantes, os prostitutos, os garotos de programa aparecem na 
cidade vertiginosa dos tempos modernos exibindo-se, mostrando-se desejosos diante do 
prazer que oferecem e que são movidos pela escrita dos poetas em que todos eles 
passam a serem filtrados pelo olhar do alheio e se suplementam no deslize da potência 
de perceptos, traduzindo a perseverança crítica ao social. 
“Objeto de queda e de dejeto, de resto do advento subjetivo” como dar a ver 
Thürler, (THÜRLER , 2013, p. 48), o enunciado mostra o quanto o outro vira merda já 
pensado por Butler ao tratar dos atos corporais subversivos, o que estabelece o plano de 
ação que desfalca as fronteiras d’O diário de Genet baseadas nos deslizes dos sujeitos 
desta montagem dramática. Creio que a leitura se constrói num plano do ethos cujo 
espaço cênico enreda as subjetivações constantemente deslocadas para locais em que 
sempre as personagens recaem num devir desejo, porque resistem e reforçam a 
revolução do corpo, tendo em mente os constructos sexuais visualizados como 
incomuns, não assimilados na cultura patriarcal e, portanto, abjetos. As linguagens 
acusam a práticas de sujeitos que se repetem e rompem, apresentam e resistem 
determinadamente à maquinaria do Estado, deslizando pelas linhas de fuga 
comunicativas. Butler reconhece que a questão não é como atingir um estado ou a forma 
final para a organização política da sociedade. Trata-se de um efeito desorganizador que 
toma o poder, exercita o poder sob condições nas quais a violência legal e estatal estão 
profundamente conectadas (BUTLER, 2003). A teórica dialoga com o que Althusser 
pensa sobre “um mal sujeito” ou um anarquista provisório, a fim de desvincular a lei do 
processo de subjetivação. Ver assim que os artistas que fundam estilos e temperamentos 
diferenciáveis têm procurado formas para romper dialogicamente a rede da 
comunicação espetacular, massificada e consumista com a sociedade heteronormativa. 
A leitura dos diários, ao associar os percalços da cultura falocêntrica, na encenação das 
performances, intervém na moral sexual e identitária sob projeções de leituras anfíbias. 
Aí a dilatação do eu atrai o “bom” jogo com as outras novas versões da história, 
dando respaldo para a reatualização de denominadores comuns que se arriscam nas falas 
que cospem para fora a expulsão de elementos estranhos. Se as respostas intrigam o 
contratempo da raiz cultural masculinizada, os sobressaltos ao poder dizer do sujeito 
reatualizam a si mesmo, como o próprio Genet cria os sentidos que escapam não para 
ser o anônimo, mas das performances de corpos sobressaídos num lirismo 
personificado. Assim a dramaticidade do diário de Genet mescla, hibridiza, cola textos, 
suplementa palavras, dialoga com o impensável, dando eco às abjetas cenas que 
violentam o dia-a-dia. Uma maneira de serem repensadas é sentir como o mal-estar da 
cultura ressoa e mobiliza a desestabilização de nós mesmos. Sendo assim, o corpo 
abjeto é uma forma de corromper a existência das coisas como nos apresentam.É a história que venho contar a vocês... 
B: É meu amor e minha maldição! 
A: “Dou o nome de violência a uma audácia em repouso apaixonada 
pelo perigo. Pode ser percebida num olhar, num andar, num sorriso, e 
é dentro de nós que ela produz redemoinhos. Ela nos desmonta. Essa 
violência é uma calma que nos agita.” (THÜRLER, 2013, p. 49) 
 
A Espanha e a minha vida de mendigo me fizeram conhecer os faustos 
da abjeção2, pois era preciso muito orgulho para embelezar os 
personagens imundos e desprezados que encontrei, mas se me é 
impossível descrevê-los todos, pelos menos posso dizer que 
lentamente me obriguei a considerar essa vida miserável com uma 
necessidade procurada. Nunca tentei fazer dela nada além do que era, 
não tentei enfeitá-la, mascará-la; ao contrário. Eu quis afirmá-la em 
sua mais exata sordidez, e os sinais mais sórdidos tornaram para mim, 
sinais de grandeza. (GENET, 2005, p. 99) 
 
 
A confissão de Genet que se desloca para o texto da dramaturgia do diário é um 
complexo de forças atuantes, agenciando o sentido de abjeto desbaratando o corpo em 
estado mais sórdido, como aquele que subjetiva identidades marginais, gays, negros, 
travestis, sem a carga da pura proibição. Ao incorporar do texto dramático a 
possibilidade de romper com as dicotomias, desestrutura a base regulatória da vida, 
cristaliza as “fronteiras variáveis”, como “campos de possibilidades interpretativas” 
(BUTLER, 2003). O fenômeno do ‘segredo aberto’ não produz, como se poderia 
pensar, o colapso desses binarismos e de seus efeitos ideológicos, mas, ao contrário, 
atesta sua recuperação fantasmática”, de acordo com Sedgwick (2007, p. 21). Assim 
também o destaque de si sob as rupturas do social bem como a crítica às relações 
tradicionais hierárquicas dão margem ao texto mais politizado e remexendo com “o 
local de afetos e memórias” (LOPES, 2002, p. 28), descrevendo os ruídos sob ruínas. É 
quando Foucault dialoga com o campo do habitus da amizade e, uma vez a ferida 
surgindo, quando homens ousam amar homens, emerge as afrontas em que este habitus 
é visualizado. 
Diante do sentido que o abjeto aflora na leitura do diário enquanto “atos 
corporais subversivos” (BUTLER, 2003), ele é tomado por uma visão “impensável” e 
“indizível” nos termos cultural existente. Para Butler, o que permanece no estágio do 
não pensável e não dizível não é “necessariamente o que é excluído da matriz da 
inteligibilidade presente no interior dessa forma; ao contrário, o marginalizado, e não o 
excluído, é que é a possibilidade cultural causadora de medo ou, no mínimo, da perda de 
sanções (BUTLER, 2003, p. 116-117). Dada a analítica da diferença sexual, via o da 
“desintegração” de corpos culturalmente instituídos, tipicamente resultantes da 
formação do sistema social conservador e heterocêntrico, como também afirma 
Monique Wittig (2010), a fronteira que interliga a união fraternal também serve para 
 
2 Grifo nosso. 
romper os dogmas constituídos, rompendo com as categorias de corpo, sexo, gênero e 
sexualidade, “ocasionando sua re-significação subversiva e sua proliferação além da 
estrutura binária” (BUTLER, 2003, p. 11). Afrontar o reconhecimento social da 
heterossexualidade é como perder a identidade possível em troca de uma que é 
radicalmente menos sancionada. “O ‘impensável’ está assim plenamente dentro da 
cultura, mas é plenamente excluído da cultura dominante3.” (BUTLER, 2003, p.117) 
 
Vocês sabem o que é isso? Alguém sabe o que é isso? Não tenham 
vergonha! Um lubrificante, um objeto carregado de signo. E se for 
uma vaselina usada ainda mais carregado. Mas não de qualquer signo, 
eu falo do que maldiz, do que humilha, do que consterna e foi “uma 
consternação quando revistando-me depois de uma batida policial, um 
dos alibans admirado tirou do meu bolso, entre outras coisas, esse 
tubo de vaselina. 
Sobre ele ousaram fazer piadas já que era vaselina perfumada: 
- Quer dizer então que a negrada te enraba pelo nariz, não é? 
- Vê se não resfria, tá? O teu macho pode pegar coqueluche, viado 
nojento! 
Viado nojento, foi a primeira vez que alguém disse essa palavra na 
minha direção. E quando entendi que o ‘viado’ era eu, o mundo 
brutalmente se revelou, com essa simples palavra que brotava como 
uma explosão fora da frase, algo que eu não deveria ter feito, algo que 
eu não deveria ter sido. O ‘Viado’ vindo da boca daquele não-viado 
me fez saber que sou alguém que não é como os outros, que não está 
na norma. E tratava-se apenas de um tubo de vaselina com uma das 
extremidades já bem enrolada. Isso mostrava o quanto já tinha sido 
útil. Em meio aos objetos elegantes tirados do bolso dos homens 
apanhados naquela batida, a vaselina era o sinal da própria abjeção e 
me traria uma sentença quase definitiva, uma condenação perpétua e 
com a qual vai ser preciso viver. (THÜRLER, 20013, p. 52) 
 
 
A subversão considerada pelo gesto fútil é comparável ao sentido do abjeto. Visto 
como nojento, o viado mostra-se diante do contato flagrado pela batida policial e 
revisitado depara com a insignificação do tubo de vaselina julgada para a pessoa que o 
marginaliza, apontando-o como ininteligível frente à cultura diante da sexualidade gay. 
Mas a acusação de um não-viado pode expressar o ato revolucionário, porque faz 
guerrear contra a virilidade pública e dominadora, colocando em destaque termos 
importados e que são portados por discursos que veem os viados como frágeis, 
desamparados, efeminados, inúteis, desamparados, não produtíveis e nada comunicáveis 
dentro da ordem do sistema operante. Sobre o ponto de vista da indecidibilidade, como 
argumenta Derrida (2014), as forças políticas entram em ação direta a favor de perfis de 
 
3 Grifo da autora. 
identidades que operam como resistentes ao domínio e controle dos indivíduos à 
margem do sistema logocêntrico. Portanto, Ser-abjeto absolutamente corrompe o modo 
de ser heterossexual ao deflagrar uma forma de vida que excede e parte da apropriação 
do corpo sem pânico moral, sem medo, sem dor. 
A leitura atua na variação de mundos possíveis e intercambiáveis, ultrapassando 
as fronteiras em que o objeto do desejo, a vaselina carregada de signos, não somente 
sinaliza a abjeção, como projeta enunciar a verdade. O signo se reveste do não 
sancionado, do impensável, da identificação que acontece por um repúdio. “Trata-se de 
um repúdio que cria a valência da ‘abjeção’ – e seu status para o sujeito – como um 
espectro ameaçador.” (BUTLER, 2000, p. 156). A representação do objeto vista como 
princípio do excesso e do extremo faz aflorar o instante em que a palavra é dita e se 
equivale a colocar “o indivíduo não apenas numa singularidade, mas também numa 
solidão que é irremediável.” (FOUCAULT, 2016 p. 157). Ou seja, bebendo da fonte de 
Foucault, o discurso efetivamente não apaga a existência de uma realidade palpável pelo 
excesso, pelo anormatizado, pelo ilegal. A partir daí é que o significado para o abjeto 
ganha estatuto para descontruir o plano que pretende apontar a verdade para a 
sexualidade. Creio que a sujeira que comunica, o expelir e o ato de cuspir para os 
sujeitos de orientação homossexual, revela o ser nojento concentrado simplesmente para 
“desregular prática identificatória” para sujeitos de práticas abjetas. Contudo, a abjeção 
negada “ameaçará denunciar as presunções auto-fundantes do sujeito sexuado, fundado 
como está aquele sujeito num repúdio cujas consequências não pode plenamente 
controlar.” (BUTLER, 2000, p. 156). Dizer que o signo do tubo de vaselina gera os seus 
sinais antissépticos é um modo de rever osdesejos capazes de negar, capazes de repelir 
o princípio da realidade, do lícito e do ilícito e torná-los sem contestação o exterior 
possível que se permite. Contudo, para Butler, a ameaça e a perturbação não devem ser 
apontadas como permanentes confrontos para as normas sociais, condenado ao pathos 
do fracasso perpétuo, ao contrário disso, “como um recurso crítico na luta para 
rearticular os próprios termos da legitimidade e da inteligibilidade simbólicas” 
(BUTLER, 2000, p. 156). 
A enunciação ao “viado nojento” recorre a descrições de práticas do enojar-se. O 
signo que indicia a abjeção ao “outro” está duplamente amparado pela palavra viado e a 
adjetivação nojento como gesto de depreciação, fundando assim, as margens para os 
sujeitos de-negados. A expressão denegar que Freud utiliza faculta o sentido de 
recalcado, “no código elementar do Ego-Prazer que consiste na diferenciação binária 
entre ‘introduzir em mim’ e eliminar de si” (In: SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 36). 
Freud trata disso na língua das pulsões orais mais antigas: “eu quero comer isso ou 
quero cuspir, e traduzindo de modo aberto: eu quero introduzir isto em mim e retirar 
aquilo de mim”, ou seja, para ele, o Ego-Prazer originário quer “introjetar tudo o que é 
bom, e expulsar tudo o que é ruim” (In: SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 36). O prazer 
como herança arcaica vista no campo do excremento evidencia não só o recalcado e o 
perverso, como o seio cultural que dá voz ao limite do enojado e a fixidez que aponta 
para as perversões. O incentivo à limpeza impulsiona a livrar-se das impurezas, das 
excreções e ao desagradável das relações interindividuais. A cena que abjeta o sujeito 
captura os disparos que ronda a higienização das subjetividades gays, contudo, ironiza o 
meio em que se reproduz. Eis o porquê também se atentar para a crítica constante para a 
legitimação dos conceitos operados pelo sistema e que reproduz performatividade 
heterossexual para os gays tornando-os homonormativos. 
Não por acaso a cena enuncia o canal civilizatório com a pedra de toque que 
refunda os meios do discurso a partir da negatividade e por ela não alcançar subjetivar 
pelos significados de injúria e sim a desconstrução que desperta o saber manifestando 
outras descobertas: “O ‘Viado’ vindo da boca daquele não-viado me fez saber que sou 
alguém que não é como os outros, que não está na norma. E tratava-se apenas de um 
tubo de vaselina com uma das extremidades já bem enrolada. Isso mostrava o quanto já 
tinha sido útil”. (THÜRLER, 2013, p. 52). 
A personagem toma a palavra como ser abjeto para reivindica a si, cuspindo na 
cara de um não-viado. Assim visto, a exposição do objeto compartilha de uma 
linguagem que cria em nós a vergonha de um seio civilizatório em que, entre as 
rupturas, tornamo-nos e, nos círculos da inteligibilidade, resta guerrear com os corpos 
normatizados ou daqueles que performatizam-nos. A tarefa é desestabilizar a ordem 
moderna que focaliza o peso do corpo, com destaque para as cenas pós-modernas em 
que o híbrido das identidades sexuais possibilita, com escala operada nos desmontes de 
valores neocoloniais e o que nos restam desconstruir. 
 
3. Revelar-se abjeto. Contestações finais 
Cena 3 – Atuar nos provocantes gozos 
 
O argumento para a abjeção na leitura dramática de O diário de Genet produz o 
que proponho ser uma política de discursos que se reportam para subjetividades 
repugnantes que se mostram no agenciamento das identidades sexuais. Kristeva aborda 
a característica do abjeto nutrido pelo que se difere do aceitável, mas a abjeção não se 
nutre somente pelo que se rejeita e sim a sua exercitação ou excitação de potências de 
sentidos que, de certo modo, são prazerosos. Isso equivale a, paradoxalmente, constituir 
força corrente de atração e de repulsão por entrarem no circuito de práticas eróticas e 
com as quais o corpo imprime a fluidez de desejos. A subjetividade que põe para fora 
ser o rejeitado, o descartado, a disciplina que a sufoca, aponta assim para a ideia de 
como a abjeção se constrói no intervalo, na intermitente onda de falas que ora atraem, 
ora desfazem os paradigmas que conduzem atos de proibições e liberações para o 
sujeito. Se, para Kristeva não é, “portanto, falta de assepsia ou saúde que causa a 
abjeção, mas sim aquilo que perturba a identidade, o sistema, a ordem”, a abjeção “[...] 
é imoral, sinistra, calculista e sombria: o terror que dissimula, o ódio que sorri, a paixão 
que usa o corpo para troca, ao invés de inflamá-lo, um devedor que te vende, um amigo 
que te apunhala. (KRISTEVA, 1980, p. 4.) 
 
Em todos os instantes da representação de O diário de Genet o gozo é pensado no 
gesto da desestabilização. O gozo no sentido dado por Barthes (2004), aquele 
provocador, pensante, que contradiz a evidência e o vínculo operacional do discurso, o 
que visa à desconstrução efetiva do enunciado. O gozo como efeito de um assistir/ler o 
inadmissível, que movimenta o informe e com o qual formaliza os descentramentos dos 
sujeitos. Assim o palco se abre para além dos signos experimentados, naturalizados, de 
fluxos contínuos. A leitura dramática pauta as cenas teatrais com as quais a 
desconformidade forma parâmetros reflexivos. Leitor e espectador atém-se aos fascínios 
abjetos da obra de Genet como rastros de vozes da cultura atual e anal que atravessam o 
jogo dramático para especular o que nos regula e torna o sujeito ali exposto uma obra de 
arte. 
 
 
Referências 
 
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A LITERATURA E AS CONSTELAÇÕES FAMILIARES: COMO 
INSTAURAR OUTROS “MELHORES MUNDOS POSSÍVEIS”. 
Renata Pimentel 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1. Reconhecendo o terreno 
 
Tão logo um indivíduo trava contato com uma obra de arte, mundos se põem em 
relação: por vezes de estranhamento; de reconhecimento ou até de confronto. Mas o que 
faz um leitor, quando põe a máquina literária a funcionar? Torna-se, ele próprio, um dos 
construtores dos mundos “possíveis” e imaginados que lhe são apresentados. Nem 
sempre, porém, recebe pacificamente ou identifica-se com os ingredientes deste 
universo. Como diz Renato Cordeiro Gomes (1994: 15): “É arrastado, enquanto leitor, 
pelo movimento permutacional no mundo vicário dos signos. O jogo da circulação da 
linguagem se descentra e possibilita novas leituras”. É instaurada uma espécie de jogo, 
no qual o leitor se converte em peça fundamental dos sentidos, como uma espécie de 
espião, flâneur, voyeur ou penetra. Ainda nas palavras de Renato Gomes, referindo-se a 
si próprio em sua experiência: “... constituo-me tal qual um eu à deriva, que, embora 
não solto no espaço e no tempo, inscreve-se no movimento da dança, entre o deslocar e 
o estatelar.” (1994: 15). 
Mas é preciso estar atento: deslocamentos exigem escolhas e implicam 
surpresas. Por mais planejamento que se faça, o inesperado surge; e, mais ainda, se 
estamos situados neste particular terreno que é a arte, cujas relações são muito estreitas, 
diversas e imbricadas quanto aos mais variados planos da vida humana: espiritual, ética, 
moral, mundana, social, política, econômica... Para além de ser testemunho e legado 
cultural do ser humano, a obra de arte traz em si as idiossincrasias e contradições dos 
tempos e contextos em que foi criada e, por sua potência transtemporal, presentifica-se a 
cada nova recepção e passa a revelar também aspectos deste particular momento em que 
é “posta em funcionamento” pelo seu leitor/público. 
Algumas manifestações artísticas, ainda, em seu caráter transtemporal e 
multifacetado como discurso/ representação, valem como terreno de luta política e 
humana por direitos. As relações entre a produção literária e a ordem de valores (como 
já apontado) são inúmeras e multifacetadas: desde servindo a projetos de dominância 
quanto os questionando e propondo novos paradigmas. Mas certo conjunto de obras 
nesta linguagem artística, muitas vezes se vê reduzido ou diminuído em sua relevância, 
ao dissociar-se de concepções hegemônicas interessadas na manutenção da “moral 
dominante” - do status quo -, ou mesmo ao contrapor-se a estes valores. Precisamente 
neste último conjunto estão as obras que nos interessarão e ocuparão nossas reflexões. 
Nosso enfoque recai sobre obras que recebem constantemente ‘adjetivações 
reducionistas’ a estigmatizá-las (“literatura gay/ homossexual/ lésbica”). Esses rótulos 
parecem ser usados para depreciar e disfarçar a importância objetiva de uma produção 
artística que reflete sobre os interditos sociais, sobre olhares que revelam as “normas” e 
suas arbitrariedades. Se aqui vamos pensar a literatura e o modo como as configurações 
familiares (particularmente as homoparentais) nela aparecem, precisamos ter atentos os 
sentidos da “peça-leitor” que somos para fazer funcionar a engrenagem e perceber os 
tantos questionamentos gerados a partir desse universo ficcional. 
Podemos e devemos lembrar que em épocas distintas as relações estabelecidas 
entre os artistas e o financiamento/ status e a recepção de suas atividades se 
configuraram em bases diferentes, modificadas ao longo das transformações sociais e 
econômicas em cada tempo, lugar, povo, cultura. Tomemos um breve recorte a partir 
dos séculos XVII e XVIII, quando imperava o mecenato a eleger e sustentar os pintores, 
compositores, poetas... É relativamente fácil supor que boa parte desses criadores 
buscava agradar quem lhes financiava, mesmo quando enxergava mazelas e injustiças. 
Mesmo assim, havia artistas que se contrapunham ao código moral estabelecido e 
impunham reflexões incômodas. Mas tratava-se de outra ordem, o acesso às artes era 
restrito demais à corte. Com a Revolução Francesa e a tomada de poder pelos 
burgueses, começa o avanço avassalador do poder do capital, o império do mercado 
(iniciado já no sistema mercantil convertido em capitalismo) transforma a vida do artista 
que passa a precisar se estabelecer no mercado e comercializar sua obra de arte. 
A literatura romântica produzida pelos burgueses no século XIX (tanto no 
contexto europeu, quanto no da colônia ultramarina, convenientemente “alçada a Reino 
Unido” ou, em seguida, transformada em império “independente”) revela, então, o 
projeto político-econômico moralista da família, do casamento como um negócio que 
envolvia educar as mulheres para se manterem reprodutoras e guardiãs do lar, fiéis aos 
seus senhores/ maridos, pois a prole precisaria ser legítima, para garantir a condição de 
herdar os bens familiares.4 
 
4 Embora haja a dominante literatura folhetinesca e os romances para educar o público-leitor feminino 
aos valores da fidelidade (como na obra de José de Alencar); há as irônicas exceções. Um exemplo 
interessante é a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicada em 1881. 
Apesar de inserir-se na sociedade (ter sido amigo de Alencar e fundador da ABL), Machado era um 
“pária” para aquela burguesia (mulato, gago, epilético, criado pela madrasta lavadeira). Cria em Cubas o 
personagem que ironiza o casamento burguês em todos os aspectos: tem uma amante prostituta 
Em sua História da sexualidade (volume 1 - A Vontade de saber), Michel 
Foucault principia pela retomada de parte do mesmo percurso aqui evocado, indicando-
nos como herdeiros e ainda suscetíveis de submissão à era vitoriana5: 
 
A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de 
casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade 
da função de reproduzir. (...) O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-
se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade (...) No espaço social, 
como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade 
reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só 
resta encobrir-se (...). E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira 
anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. (1997: 9-10) 
 
O discurso sobre o sexo vai ganhando contornos e regras: há lugares em que ele 
é silenciado, mas em outros “o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o sexo no 
próprio campo do exercício do poder” (Foucault, 1997: 22). Logo, por razões políticas, 
econômicas e até técnicas, o sexo entra na ordem do dia, literalmente, pois ele precisa 
ser vigiado, prescrito no funcionamento interessante à lógica das sociedades. A polícia, 
a medicina, a igreja e as leis vão gerir a vida e o sexo, para regular o estabelecido por 
estas instâncias de poder como sendo o “bem comum”: taxa de natalidade e 
mortalidade; expectativa de vida; nascimentos legítimos e ilegítimos e diversos outros 
aspectos que vão se desdobrar (ao longo dos séculosXX e XXI) em índices de 
produtividade, IDH, qualidade de vida, potencial de consumo... Assim resume Foucault: 
 
Toda esta atenção loquaz com que nos alvoroçamos em torno da sexualidade, 
há dois ou três séculos, não estaria ordenada em função de uma preocupação 
elementar: assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho, 
reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma 
sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora? (1997: 37-
38) 
 
 
Neste cenário, a relação matrimonial e o modelo de família burguesa 
heterossexual, formada pelo “casal legítimo, monogâmico, fértil”, se converte em norma 
 
(Marcela), vive uma inteira trajetória de fracassos, sua relação mais duradoura é um adultério e morre 
sem deixar descendentes. 
5 A Era Vitoriana foi o período no qual a Rainha Vitória reinou sobre a Inglaterra, no século XIX, de junho 
de 1837 a janeiro de 1901. 
rígida. As instâncias reguladoras de poder se empenham em questionar, perseguir e 
condenar os “desvios”: as sexualidades, os comportamentos ou desejos e as relações não 
férteis; não convencionais; consideradas ‘loucas, patológicas, pecadoras ou criminosas’. 
Introduzimos nesta discussão a voz do sociólogo francês Pierre Bourdieu. 
Destacamos sua afirmação sobre o homoerotismo como uma forma de sexualidade que 
se opõe às estruturas do poder, dos jogos de relação de dominação e, sobretudo, da 
diferença binária do sexo, porque é uma relação de livre troca igualitária, sem 
sobreposição de um ao outro: 
 
No caso em que, como se dá nas relações homossexuais, a reciprocidade é 
possível, os laços entre a sexualidade e o poder se desvelam de maneira 
particularmente clara, e as posições e os papéis assumidos nas relações 
sexuais, ativos ou passivos principalmente, mostram-se indissociáveis das 
relações entre as condições sociais que determinam, ao mesmo tempo, sua 
possibilidade e sua significação. (1999: 31) 
 
A homossexualidade parece esvaziar a relação de dominação a que ficou presa a 
oposição masculino/ feminino, pois ela é um lugar de desvelamento/ revelação de 
antagonismos institucionalizados, de relações de poder predeterminadas. É uma 
sexualidade de fronteiras ou sem fronteiras, que se desvincula da tradição (mesmo com 
ela diretamente se relacionando, claro), para instaurar outro modo de se relacionar na 
vida, diverso das estruturas orgânicas quando percebidas como puramente naturalizadas. 
Estas ideias de Bourdieu ecoam a noção de Deleuze quanto à “posição marginal” 
da homossexualidade como aquela que instaura “o espaço para desconstrução” da 
identidade de sujeito e do encarceramento das relações de poder e dominância de 
gênero: 
 
É do fundo de um novo estilo que a homossexualidade produz hoje 
enunciados que não versam, e não devem versar sobre a própria 
homossexualidade. Caso se tratasse de dizer “todos os homens são bichas”, 
isso não é de interesse algum, é proposição nula que só diverte os débeis. 
Todavia, a posição marginal do homossexual torna possível e necessário que 
exista algo a ser dito sobre o que não é homossexualidade: “com os 
movimentos homossexuais, o conjunto dos problemas sexuais dos homens 
apareceu”. (Deleuze, 2005: 353) 
 
Portanto, o ‘personagem’ - que segundo Foucault foi ‘inventado’ no século XIX 
- ‘homossexual’ começa a produzir e agenciar desejos e enunciados que pulverizam as 
fixações identitárias. Pode ser aqui lembrada e invocada a metáfora deleuziana do 
espaço liso, de onde surgem as subjetividades transgressoras. A nomeada 
homossexualidade se imiscui em espaços lisos e porosos e se afirma como uma 
alternativa possível de relacionamento(s) na contramão do estabelecido. Mas como se 
trata de transgressão, insurge nos espaços marginais: “... o afastamento geográfico, a 
procura de lugares diferentes, a inscrição em outros espaços é a condição de uma 
reconstrução de si.” (ERIBON, 2008: 303) 
2. Minando de dentro: ou quando se evidencia o gênero como uma 
proliferação de epifanias. 
 
 
Se retomarmos as ideias de Foucault, mais uma vez, quanto à biopolítica, como 
uma estratégia de controle dos corpos (sexo, gênero, desejo, práticas), fica claro o 
quanto é fundamental a este exercício de poder a fixação identitária como mecanismo 
de classificação e gerência sociopolítica e econômica, que se verte em todas as formas, 
inclusive tentando criar “valores culturais” que são meras traduções da moral que se 
quer manter vigente. A filósofa e professora espanhola Beatriz Preciado, cujo 
pensamento convidamos agora para esta discussão e acompanharemos mais 
detalhadamente em seus desdobramentos, avança a partir de sua leitura da biopolítica 
foucaultiana, ao pensar assim o sexo (o qual pode ser também substituído na sentença a 
seguir por ‘gênero’): 
 
O sexo é uma tecnologia de dominação heterossexual que reduz o corpo a 
zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os 
gêneros (feminino/ masculino) (...). 
A natureza humana é um efeito da tecnologia sexual que reproduz nos 
corpos, nos espaços e nos discursos a equação natureza = heterossexualidade. 
O sistema heterossexual é um dispositivo social de produção de feminilidade 
e masculinidade que opera por divisão e fragmentação do corpo: recorta 
órgãos e gera zonas de alta intensidade sensitiva e motriz (visual, tátil, 
olfativa...) que depois identifica como centros naturais e anatômicos da 
diferença sexual. (2014: 25) 
 
 A identidade sexual, após se constatarem as armadilhas desta tecnologia 
biopolítica, pode ser claramente compreendida não como uma expressão ‘instintiva’ e 
‘natural’ desta verdade ‘pré-discursiva’ que se tenta atribuir à carne (aos genitais), mas 
sim como uma série de efeitos de inserção e reinserção das práticas (e das 
performances) do gênero no corpo6. Por isso, aqui, escolhemos permitir que a própria 
literatura - objeto no qual adentraremos mais para pensar como ele problematiza os 
enlaces (homo)parentais – nos fornece uma nova imagem e expressão para melhor 
matizarmos o fluido universo das identidades (ou identificações) de gênero e sexo: a 
‘epifania’. 
Etimologicamente, trata-se de uma palavra de origem grega epiphainein e 
significa manifestação ou aparição. A raiz da palavra (phainein) pode ser traduzida 
como mostrar, fazer ou aparecer. É um vocábulo muito usado em sentido religioso, 
como sinônimo de uma manifestação divina. No caso da literatura brasileira, em 
particular, é impossível desassociar o termo epifania da escritura de Clarice Lispector, 
que fez deste um verdadeiro momento-chave desencadeador de seu universo diegético. 
Assim, propomos pensar o gênero e o sexo como verdadeiras epifanias do humano: 
momentos de revelação, de manifestação e revelação que engendram grande carga 
significativa, mas não cristalizam e podem se suceder ao longo da vida. 
Oprimeiro fragmento literário destacado por nós foi extraído justamente da irmã 
de Clarice. No romance No Exílio, no qual ficcionaliza a experiência de sua família na 
fuga ao nazismo (na diáspora judaica), atravessando países até fixar-se no Brasil, Elisa 
Lispector é autora e matriz com a qual não podemos deixar de identificar (usando das 
ferramentas legítimas da crítica biográfica) a personagem da filha mais velha, Lizza. É 
entre esta e o pai (Pinkhas) que se estabelece o seguinte diálogo: 
 
- Lizza, não se pode viver só a vida inteira. Você não é mais criança, é uma 
moça culta. Ouça-me. Ainda hesitou um pouco, depois prosseguiu. – Sei de 
um jovem que se interessa

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