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1 Laplantine, François. “A pré-história da Antropologia: a descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela época até nossos dias”. In: Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1994. - Introdução. - Só no final do século XVII surge um saber científico sobre o homem. O homem, e não mais a natureza, como objeto de conhecimento. Projeto era o de aplicar aos homens os métodos então utilizados na física ou na biologia (p. 13). - Esse projeto surge na Europa. E é só na segunda metade do século XIX que esse saber começa a atingir legitimidade científica (p. 14). Antropologia passa a ter um “objeto”: sociedades “primitivas” – ou seja, exteriores às áreas de civilização européias e norte-americanas (p. 14). - Contexto positivista – separação entre observador e objeto como condição básica. Essa separação era obtida na Antropologia pelo distanciamento geográfico. “As sociedades estudadas pelos primeiros antropólogos são sociedades longínquas às quais são atribuídas as seguintes características: sociedades de dimensões restritas; que tiveram poucos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia é pouco desenvolvida em relação à nossa; e nas quais há uma menor especialização das atividades e funções sociais” (p. 14). - São também qualificadas de “sociedades simples”, que irão permitir a compreensão da organização complexa de nossas próprias sociedades [contexto do evolucionismo social; história unilinear] (p. 14-15). - Foram necessárias algumas décadas para a elaboração de ferramentas de investigação que permitissem a coleta direta das informações e as observações de campo (p. 15). - No início do século XX, a percepção era de que o objeto empírico da Antropologia estava desaparecendo. Os “selvagens” não eram alheios à evolução social. Há uma crise de identidade na disciplina (p. 15). - Há 3 alternativas a essa crise: 1) O antropólogo aceita sua “morte” e se volta para outras ciências humanas. Reencontro com a sociologia, e notadamente com a “sociologia comparada”; 2) Ele sai em busca de outra área de investigação. O “camponês” passa a ser visto como um “selvagem de dentro”. 3) O terceiro caminho – o antropólogo afirma a especificidade de sua prática, não mais através de um objeto empírico constituído (o selvagem, o camponês), mas através de uma abordagem epistemológica constituinte. O objeto teórico da Antropologia deixa de estar ligado a um espaço geográfico, cultural ou histórico. A Antropologia passa a ser vista como um certo olhar, um enfoque, que consiste a) no estudo do homem inteiro; b) no estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas (p. 16). - O estudo do homem inteiro. - Uma abordagem antropológica é aquela que leva em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. A Antropologia tenta relacionar campos de investigação frequentemente separados. [Então, ele vai falar de cinco áreas da Antropologia, na França]. - 1) Antropologia biológica. Também chamada Antropologia física. Busca por entender os fatores culturais que influenciam o crescimento e a maturação do 2 indivíduo. Interesse pela genética das populações. Ligação entre ciências da vida e ciências humanas (p. 16-17). - 2) Antropologia pré-histórica. Ligada à arqueologia. Estudo das sociedades desaparecidas. Trabalho de campo sistemático, recolha de materiais vestigiais e documentos (p. 17-18). - 3) Antropologia lingüística. Linguagem como patrimônio cultural. Meio de expressar valores, preocupações e pensamentos. Busca as categorias. E sua expressão. E sua interpretação. Esse ramo da Antropologia teve como expoente Edward Sapir. Propôs um estudo antropológico da língua – a língua como objeto de pesquisa, inscrevendo-se na cultura – que conduzia a um estudo lingüístico da cultura - a língua como modelo de conhecimento da cultura (p. 18). Interesse também por modernas técnicas de comunicação (mass media e cultura audiovisual). - 4) Antropologia psicológica. Estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. Estudo dos comportamentos conscientes e inconscientes dos seres humanos. Dimensão psicológica (p. 19). [Preocupação dele é em afirmar a Antropologia como o estudo do “todo”]. - 5) Antropologia Social e Cultural (ou Etnologia) [distinção colocada por Lévi- Strauss]. Este livro trata especialmente desta área.Toda vez que alguém se refere ao termo Antropologia, se está no geral referindo-se a esta área. Diz respeito a tudo que constitui uma sociedade: modos de produção econômica, técnicas, organização política e jurídica, sistemas de parentesco, sistemas de conhecimento, crenças religiosas, língua, psicologia, criações artísticas [poderíamos acrescentar: sistemas e relações de gênero, relações étnico-raciais, classificações etárias ou geracionais, organização da sexualidade etc.] (p. 19). - Preocupação não é em levantar sistematicamente esses aspectos, mas em mostrar maneiras particulares como se relacionam e através das quais aparecem as especificidades de uma sociedade. É nessa preocupação, aliada ao fato de voltar ao olhar para aspectos que geralmente “não se fixam em pedra ou em papel” (Lévi-Strauss), que reside a especificidade da Antropologia. Estudo de gestos, trocas simbólicas, ínfimos detalhes dos comportamentos (p. 19-20). - O estudo do homem em sua diversidade. - A Antropologia é, além do estudo de tudo que compõe uma sociedade, o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive) (p. 20). Estudo das diversidades. - Se a especificidade da Antropologia não pode ser confundida com a natureza das primeiras sociedades estudadas pelos antropólogos (as sociedades extra- européias), tal especificidade está ligada ao modo de conhecimento que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a saber, a observação direta, “por impregnação lenta e contínua de grupos humanos minúsculos com os quais mantemos uma relação pessoal” (p. 21). - Construção da distância em relação a nossa própria sociedade – “aquilo que tomávamos por natural em nós mesmos é, de fato, cultural; aquilo que era evidente é infinitamente problemático” (p. 21). - Daí decorre a necessidade do estranhamento – perplexidade provocada pelo encontro com culturas distantes, cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo (p. 21). 3 - “Presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa” (p. 21). - A experiência da alteridade é a elaboração dessa experiência. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos, gestos, não tem nada de realmente “natural” (p. 21). - “O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única” (p. 21). - O que caracteriza a unidade do homem é essa aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente diversos. - A Antropologia busca mostrar como aquelas formas de comportamento e vida em sociedade tomadas como inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar eventos etc.) são o produto de escolhas culturais (p. 22). [Idéia de brasilidade como algo natural – “brasileiro sabe sambar”, tem um dom “natural” para o futebol, “está no sangue” etc.]. - O projeto antropológico consiste no (re)conhecimento e compreensão de uma humanidade plural (p. 22). - Revolução do olhar. Descentramento radical, ruptura com a idéia de que exista um “centro do mundo” (p. 22). - “A descoberta da alteridade é a de uma relação que nos permite deixar de identificar nossa pequena província de humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejeitaro presumido “selvagem” fora de nós mesmos. Confrontados à multiplicidade, a priori enigmática, das culturas, somos aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a naturalização do social (como se nossos comportamentos estivessem inscritos em nós desde o nascimento, e não fossem adquiridos no contato com a cultura na qual nascemos)” (p. 23). - Dificuldades. - Antropologia é uma ciência recente. Começou a ser ensinada nas universidades na Grã-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na França a partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan) (p. 24-25). - Etnologia ou Antropologia? No primeiro caso, França – insistência numa pluralidade irredutível das etnias, isto é, das culturas. No segundo (países anglo- saxônicos), insiste-se sobre a unidade do gênero humano. “E optando-se por antropologia, deve-se falar (com os autores britânicos) em antropologia social – cujo objeto privilegiado é o estudo das instituições – ou (com os autores americanos) de antropologia cultural – que consiste mais no estudo dos comportamentos” (p. 25). - Outra dificuldade: grau de cientificidade. Radcliffe-Brown – sociedades são “sistemas naturais”, que devem ser estudados segundo os métodos comprovados das ciências da natureza; Evans-Pritchard – sociedades não são sistemas orgânicos, mas “sistemas simbólicos”. Antropologia é uma “arte” (p. 26). - Outra dificuldade – relação ambígua com a História (p. 26). - Outra ainda: a tensão com a Antropologia “aplicada”. Idéia de que o conhecimento deve “servir” a algum propósito, sobretudo emancipatório (p. 27). [Sobre Antropologia aplicada, ver Roger Bastide]. Desde seu início, esse problema 4 já se coloca – muitas pesquisas clássicas foram realizadas em contextos coloniais, e a pedido mesmo das administrações coloniais (p. 28). Ex.: Os Nuer – encomenda do governo britânico. Lévi-Strauss é categoricamente contra a idéia de se pensar a Antropologia como ciência aplicada. - “Desde o século XVI, de fato, começa a se implantar aquilo o que alguns chamariam de “arquétipos” do discurso etnológico, que podem ser ilustrados pelas posições respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun. Jean de Lery foi um huguenote [protestante] francês que permaneceu algum tempo no Brasil entre os Tupinambás. Longe de procurar convencer seus hóspedes da superioridade da cultura européia e da religião reformada, ele os interroga e, sobretudo, se interroga” (p. 28). Já Sahagun foi um franciscano espanhol que conviveu com os astecas, no México, e que queria converter a população que estudou (p. 28-29). Questão é: o antropólogo deve ou não contribuir para a transformação das sociedades que estuda? - Posição dele. “Nossa abordagem, que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos é mais familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos) e em tornar mais familiar aquilo que nos é estranho (os comportamentos, as crenças, os costumes das sociedades que não são as nossas, mas nas quais poderíamos ter nascido), está diretamente confrontada hoje a um movimento de homogeneização, ao meu ver, sem precedente na História: o desenvolvimento de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento que é a do racionalismo social” (p. 29). [Para ele, enquanto antropólogo, o antropólogo não deve trabalhar para a transformação das sociedades que estuda. “Auxiliar uma determinada cultura na explicitação para ela mesma de sua própria diferença é uma coisa; organizar política, econômica e socialmente a evolução dessa diferença é uma outra coisa. Ou seja, a participação do antropólogo naquilo que é hoje a vanguarda do anticolonialismo e da luta para os direitos humanos e das minorias étnicas é, a meu ver, uma conseqüência de nossa profissão, mas não é a nossa profissão propriamente dita” (p. 30). - Mas há urgências, questões bastante atuais. - 1) Urgência de preservação dos patrimônios locais ameaçados. Inventário e restituição aos habitantes das regiões nas quais trabalhamos, de seu próprio saber e saber-fazer (p. 30). - 2) Urgência da análise das mutações culturais impostas pelo desenvolvimento rápido de todas as sociedades contemporâneas. Desenvolvimento tecnológico, mudanças nas relações sociais, movimentos de migração interna, processo de urbanização acelerado (p. 31). - Uma quinta dificuldade. Campo de pesquisa imenso, cujo desenvolvimento recente é extremamente especializado. Assim, uma obra como esse livro fica dificultada (p. 31). - Ex.: No século XIX, Boas podia fazer pesquisas em Antropologia social, cultural, lingüística, pré-histórica... hoje em dia, não (p. 31). - Antropologia pertence a todo mundo, é a ciência do homem por excelência e diz respeito a todos nós (p. 33). ................................................ - Primeira Parte – Marcos para uma história do pensamento antropológico. 5 - 1. A pré-história da Antropologia – a descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela época até nossos dias. - “A gênese da reflexão antropológica é contemporânea à descoberta do Novo Mundo. O Renascimento explora espaços até então desconhecidos e começa a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espaços (p. 37). - Grande questão: aqueles que foram descobertos pertenciam à humanidade? (p. 37). - Qual era o critério naquela época? O religioso. O selvagem tem uma alma? O pecado original lhe dizia respeito? Os missionários queriam saber: É possível convertê-los? (p. 37-38). - Nessa época, já começam a se esboçar duas ideologias concorrentes – 1) a recusa do estranho (apreendido pela falta – o que leva à boa consciência de si e de sua sociedade, da sociedade do eu); a fascinação pelo estranho – o corolário aqui seria a má consciência sobre si e sua própria sociedade. Esses termos estão colocados desde a metade do século XVI e aparecem no debate entre Las Casas e o jurista Sepulvera. - O autor está aqui então falando de dois discursos antagônicos acerca dos selvagens, mas ambos carregados de estereótipos. - A figura do mau selvagem e do bom civilizado. - “A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos homens como um fato, e sim como uma aberração exigindo uma justificação. A Antiguidade grega designava sob o nome de bárbaro tudo o que não participava da helenidade (em referência à inarticulação do canto dos pássaros oposto à significação da linguagem humana), o Renascimento, os séculos XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto é, seres da floresta), opondo assim a animalidade à humanidade. O termo primitivos é que triunfará no século XIX, enquanto optamos preferencialmente na época atual pelo de subdesenvolvidos” (p. 40). - Critérios utilizados pelos europeus na época dos descobrimentos para conferir ou não aos índios um estatuto humano: - Critério religioso – “não tem religião nenhuma” era a constatação; vistos como “diabos”; - Aparência física – andam nus ou “vestidos de peles de animais”; - Comportamentos alimentares – “eles comem carne crua” – e aqui se dá toda a elaboração do imaginário do canibalismo. Hans Staden. - Inteligência, a partir da linguagem – “eles falam uma língua ininteligível” (p. 41). - Discurso sobre a alteridade que recorre a uma metáfora zoológica – nativos vistos como “animais”. O leque utilizado para dar-lhe inteligibilidade é pelas ausências: “sem moral, sem religião, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem arte, sem passado, sem futuro” (p. 41). [Importância de termos visto acerca do etnocentrismo – utilização de uma série de atributos da cultura européia para auferir a humanidade nativa leva necessariamente a uma visão deles como falta, ausência – “atraso”]. - Também era comum a idéia é a de que os materiais retirados dosindígenas teriam sido “pagos” por lhes terem levado “civilização”, fé (p. 42). Ex.: a citação de Oviedo, nas páginas 41 e 42 6 - Há vários exemplos de discursos similares que passaram até nossa época. Ex.: No século XIX, Stanley compara os africanos a “macacos”. Há um livro de Franz Fanon, de 1968, que conta sobre o discurso colonial dos franceses na Argélia. [Lembrar da aula sobre etnocentrismo – como um discurso ideológico sobre o Outro, no caso, que o diminui, o animaliza, busca justificar uma política colonialista]. - Está dando exemplos de discursos que pensam o “selvagem” como oposto, ou como o inverso do “civilizado” (p. 42). - Um exemplo são as pesquisas de Cornelius de Pauw, de 1774. Século XVIII, portanto. - Reflete sobre os índios na América do Norte. Sua convicção: a influência da natureza lhes é total. Raça inferior que não tem História e está condenada a permanecer fora dela, por seu estado “degenerado” (raça inferior). Busca a explicação para essa degenerescência no clima úmido. Seu “temperamento é úmido”, assim como a terra e o ar onde vegetam. Para ele, isso explica que eles não tenham nenhum desejo sexual. “Parecem mais animais do que vegetais”, ele diz. Pauw chega a falar de sua “degradação moral”. Vegetam mais do que vivem – os californianos “não têm uma alma”. Essa é sua constatação (p. 43). Utiliza uma separação geográfica do mundo, latitudinal (separação entre Norte e Sul do Equador) para colocar, de um lado, a humanidade, de outro, a estupidez e estado vegetativo. Os indígenas americanos vivem, para ele, em um estado de “embrutecimento” geral. Não há entre eles nada que se assemelhe a uma cultura, ou a uma história. - Essas idéias eram compartilhadas por muitos. Por exemplo, por Hegel. - Em 1830, Hegel, em sua Introdução à Filosofia da História, vai expor um horror ao chamado “estado de natureza”, de povos que jamais, para ele, ascenderiam à História. Nessa obra, a América do Sul aparece ainda mais estúpida que a do Norte. A Ásia também é mal vista. Mas a África seria a pior região do mundo. África é tida como falta absoluta. Selvagens, em estado bruto, são os negros africanos, para ele. Não têm moral, instituições sociais, religião, ou Estado. São canibais – alimentam-se de carne humana. Nem mesmo a colonização os poderia tirar desse estado de selvageria. - tanto a “indianidade”, a identidade indígena, em Pauw; quanto a “africanidade” em Hegel constituem duas visões etnocêntricas a respeito do Outro. O índio, para Pauw, é um vegetal. O negro, para Hegel, nem vegetal é – é um objeto, uma “coisa” (p. 46). - A figura do bom selvagem e do mau civilizado. - Opõe-se a essa visão do “mau selvagem” a de uma natureza “boa”, de plenitude. Os termos da atribuição – “selvagens” = estado de natureza – permanecem os mesmos. Mas se avalia essa natureza de maneira inversa. - As sociedades primitivas, não-ocidentais, continuam a ser pensadas pela falta, a partir de uma perspectiva que toma as características da sociedade do eu como medidor: são sem escrita, tecnologia, economia, religião organizada, clero, sem sacerdotes, polícia, leis, Estado. Mas isso deixa de ser visto como uma desvantagem (p. 46). 7 - Essa figura do “bom selvagem” concorria com a do “mau selvagem”, lhe era contemporânea, mas encontrará uma formulação mais sistemática no século XVIII, com Rousseau [que vamos ler aqui], e no Romantismo (p. 46). - Mas essa visão do “bom selvagem” não deixava de estar presente mesmo entre os primeiros viajantes do Novo Mundo. - Américo Vespúcio. - Também Cristóvão Colombo. - No texto complementar à aula, A Conquista da América, de Todorov, o autor traz uma bela introdução. Um texto que quem puder deve ler, porque é muito bonito. Ele vai descrever Colombo como um homem corajoso, que engrentou uma série de imagens assustadoras a respeito do que se pensava que era o Mundo para além do conhecido (ex.: a idéia de que no oceano jaz o fim do mundo, um penhasco). Lendas, histórias fantasmagóricas. Ele enfrenta. Mas o que o motiva? Cobiça? Riqueza? O Novo Mundo era visto como que a partir de um pêndulo, se assimpodemos dizer – ou era o Paraíso Terreal, a Terra Santa, a Terra Prometida, Jerusalém... ou era o inferno na Terra, o purgatório. É Entre o Diabo e a Terra de Santa Cruz que o Brasil, por exemplo, vai ser lido pelos portugueses, não? Voltando a Colombo. Todorov o pinta como um homem de mentalidade medieval, motivado pelas Cruzadas da cristandade, espalhar a fé Cristã pelo mundo, em um mundo que naquele momento deixava de ser medieval – entrava-se na era Moderna. Foi curiosamente um homem profundamente imbuído do sentimento medieval quem inaugurou, de certo modo, a era Moderna, a era das Grandes Navegações. Todorov vai escrever quase num tom detetivesco mas bastante poético acerca de quais seriam as reais motivações de Colombo acerca do Novo Mundo. Parte dos relatos de viagem dele e mostra como ele era uma figura exemplar dessa dualidade, misto de fascínio e estranhamento, que marca a visão sobre os nativos do Novo Mundo no século XVI. Ele buscava ouro? Queria apenas enriquecer? Ao que parece, seus relatos nesse sentido provinham mais da percepção dele de que a busca por ouro é que manteria os financiamentos de suas viagens. Suas intenções, antes disso, eram missionárias. Ele era um homem profudamente religioso, católico, e acreditava na conversão dos índios. A expansão do Cristianismo lhe era mais importante do que o ouro. A necessidade do dinheiro e o desejo de impor a verdade de Deus não se excluem no seu projeto. Para realizar o segundo, era preciso ter o primeiro. Um é o meio, o outro, o fim. - Jean de Léry e Montaigne, pensadores franceses que, ainda no século XVI, vão começar a relativizar a superioridade européia a partir de suas visões dos nativos americanos. São “selvagens”, vivem no estado de natureza, para Léry. São irracionais, incapazes da faculdade da razão, para Montaigne. Mas será que nós, europeus, somos menos bárbaros que eles?, se perguntavam então. O contexto europeu marcado por desigualdades e guerras provocava horror e distanciamento também. Eles se questionam acerca dessa superioridade européia. De todo modo, 8 a imagem do “bom selvagem” é uma visão idealizada do Outro, assim como a do mau selvagem. Não deixa de ser, por isso, etnocêntrica (p. 47). - Selvagens passam, por exemplo, a ser trazidos para Paris, onde se tornam espécies de atrações. Todos querem ver esses representantes do estado de natureza e pureza, de infância da humanidade [Lembrar da idéia de evolucionismo]. Essas manifestações transformam-se em verdadeiras acusações contra a civilização, no século XVIII. No final do século, a natureza exuberante e bela do Novo Mundo passa a vigorar até como convenção literária (p. 49). - Todos esses discursos que exaltam a doçura das sociedades “selvagens” e criticam tudo que pertence ao Ocidente, são ainda atuais. Ex.: desapontamento que temos com a noção de progresso nos faz buscar num outro idealizado, que vive num paraíso sobre a Terra, formas de vida que nos fariam escapar aos males da civilização – individualismo exacerbado, solidão, anonimato, cobiça, ganância etc. (p. 50). Não é raro vermos essa representação de um mundo melhor entre nativos de outras partes do globo que não aquela onde habitamos. Mesmo no cinema [Avatar, por exemplo. O filme é uma crítica à época dos descobrimentos, há várias passagens que mostram exercícios de relativismo cultural e de critica à noção de civilização e de progresso. Mas também não deixa de ser uma visão idealizada, romantizada, sobre os nativos. Muito embora os nativos em questão sejam ficcionais, dá para fazermos esse exercício]. - Sociedades primitivas, a partir da idéia do bom selvagem, foram e são tomadas como “autênticas”, em contraposiçãoàs sociedades “alienadas”, industriais, ocidentais. - O surgimento da Antropologia como ciência está ligado, em certo sentido, a esse contexto de busca por outras formas de vida que ajudem a relativizar o modo de ser ocidental. Mas este é um exercício que deve ser feito sempre problematizando, sempre se questionando, sempre colocando em xeque nossos pressupostos, nossas idéias naturalizadas, nossas convenções, nossa escrita, nosso olhar, nossas formas de representar a alteridade. - Conclusão. - A imagem do ocidental da alteridade oscilou nos últimos séculos entre esses dois pólos. O tal “selvagem” pôde ser visto como: - Um monstro, animal com figura humana, a meio caminho entre a animalidade e a humanidade; mas também monstros poderiam ser nós, o selvagem poderia ter lições de humanidade a nos dar, para alguns; - Vivia uma existência infeliz, miserável, ou ao contrário uma existência de beatitude, relação pacífica com a natureza, contrapondo-se ao Ocidente industrial, que destrói a natureza; 9 - Era trabalhador e corajoso, ou preguiçoso [lembrar a questão da imagem do índio brasileiro nos livros didáticos]; - sem alma ou religião, ou profundamente religioso; - apavorado quanto ao sobrenatural, ou em paz com ele; - Um anarquista sem Estado, ou um comunista, que compartilha tudo; - bonito... ou feio; - Impulsivo e digno de temor; ou uma criança inocente, digna de proteção [Catequese]; - Embrutecido sexual, com vida orgiástica e devassa; ou um ser preso a seus tabus e proibições grupais; - atrasado, estúpido e simples; ou profundamente virtuoso e complexo; - Um animal, um vegetal (de Pauw), uma “coisa”, um “objeto sem valor” (Hegel) ou um participante da humanidade, e de uma humanidade em seu estado mais “puro”, de “natureza”, de ausência de desigualdades (p. 52). - De todo modo, se constrói uma alteridade, uma visão sobre o Outro e consequentemente sobre si mesmo, irreal. O Outro é tomado apenas como pretexto para legitimar práticas de exploração econômica, militares, políticas, de conversão religiosa ou até mesmo de emoção estética. Em qualquer caso, esse Outro não é considerado para si próprio, em si mesmo, a partir de si mesmo. Não se olha para ele. “Olha-se a si mesmo nele” (p. 52). [Etnocentrismo]. Olha-se para o Outro ou para se sentir superior, ou para se auto-criticar. Um interesse pelo Outro que não o leva em conta. - Esses relatos de viajantes dos séculos XVI e XVII ainda não eram Antropologia, mas já colocavam questões importantes que depois serão tratadas cientificamente. Por isso o autor chama esse momento como de constituição de um saber pré-antropológico (p. 53). - O que fica para nós: que a curiosidade sobre o Outro, sobre a diversidade cultural humana, pode partir de uma série de lugares e com uma série de propósitos. Pode-se olhar para o Outro com um olhar que o desumaniza, para se poder se colocar como avatar do Humano; pode-se olhar para o Outro reconhecendo que ele também é humano, mas com uma humanidade pela metade, inferior, menor; Pode-se olhar para o Outro para justificar uma série de ações sobre eles, julgando intervenções em seu cotidiano como necessárias ao seu bem-estar, desconsiderando que ele possa ter concepções diferentes da nossa a respeito do que é bem-estar (colonialismo, catequese, conversões 10 religiosas, conversões culturais); Mas pode-se olhar para o Outro a fim de compreender quais os sentidos que ele próprio constrói sobre si. Pode-se olhar para o Outro a fim de desexotizá-lo, a partir de um exercício de interpretação e de compreensão mais alargado; Pode-se olhar para as diferenças culturais pela importância que elas trazem na constatação de que uma mesma espécie possa construir sobre o mundo interpretações as mais diversas e igualmente válidas. Pode-se aproveitar esse conhecimento acerca do Outro para colocar em xeque, ou se questionar, a respeito de nossas próprias verdades, daquilo que consideramos como dado, como natural, como “sempre foi assim”. Esses exercícios outros sobre o Outro é que dão base à Antropologia e constituem sua força motriz principal.
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