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LEVI STRAUSS, Claude. "Rosseau Fundador das Ciencias do Homem." In: Antropologia Estrutural II (Ed. Tempo Brasileiro)

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ANTROPOLOGIA
ESTRUTURAL
D O I S
TEMPO BRASILEIRO
Rio de janeiro, 1993
CAPÍTULo I
CAPÍTULO II
• CAPÍTULOIlI.
CAPÍTULo IV
CAPÍTULOVI
CAPÍTULOVII
CAPÍTULOVIII
CAPÍTULOIX
CAPÍTULO X
CAPÍTULOXII
CAPÍTULOXIII
o CAMPO DA ANTROPOLOGIA ..•........... 11
JEAN-JACQUES ROUSSEAU, FUNDADOR DAS
CI:tNCIAS DO HOMEM 41
O QUE A ETNOLOGIA DEVE A DURKHEIM 52
A OBRA DO BUREAU OF AMERICAN ETHNO-
LOGY E SUAS LIÇõES 57
RELIGIõES COMPARADAS DOS POVOS SEM
ESCRITA ..............................•••..... 6)
SENTIDO E USO DA NOÇÃO DE MODELO 79
REFLEXõES SOBRE O ATOMO DE PAREN-
TESCO ...........................•..•.•.••.•••• 9a
A GESTA DE ASDIWAL 152
QUATRO MITOS WINNEBAGO ......•........ 206
O SEXO DOS ASTROS ..................•••••. 219
OS COGUMELOS NA CULTURA 229
RELAÇÕES DE SIMETRIA ENTRE RITOS E
MITOS DE POVOS VIZINHOS 244
COMO MORREM OS MITOS ................•• 261
RESPOSTAS E PESQUISAS JORNALíSTICAS 277
1 - Os três humanismos o ••••••••••••••••••••• 277
2 - Estruturalismo e crítica literária.
3 - A propósito de mna retrospectiva.
5 - Civilização urbana e saúde mental o....... 290
6 - Testemunhas de nosso tempo 293
CRITÉRIOS CIENTíFICOS NAS DISCIPLINAS
SOCIAIS E HUMANAS o ••••••••••••••••••••••• 294
AS DESCONTINUIDADES CULTURAIS E O
DESENVOLVIMENTO ECONôMICO o •••••••••• 317
1 - O problema das descontinuidades cultu~als
diante da Etnografia e da História o....... 317
2 - As três fontes da resistência ao desenvolvi-
mento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 322
1 - Raça e cultura 328
2 - Diversidade das culturas 330
3 - O etnocentrismo o......................... 333
4 - Culturas arcaicas e culturas primitivas o ••• 337
5 - A idéia de progresso o..................... 341
6 - História estacionária e história cmnulativa 344
7 - Lugar da civilização ocidental o........... 349
8 - Acaso e civilização o....................... 352
9 - A colaboração das culturas 358
10 - O duplo sentido do progresso 363
mentes que me encarregastes de transmistir a outros; em breve, infe-
lizmente, destinados à extinção, pelo choque das doenças e dos modos
de vida - para eles, mais horriveis ainda - que lhes trazemos; e pe-
rante os quais contrai uma divida da qual não estaria liberado, mesmo
se, no lugar em q!le me colocastes, pudesse justificar o carinho que eles
me iILspiram e o reconhecimento que lhes dedico, ao continuar a mos-
trar-me tal como fui entre eles, e tal como, entre vós, não quero deixar
de ser: seu aluno, e sua testemunha.
JEAN-JACQUES ROUSSEAU,
FUNDADOR DAS CIltNCIAS no HOMEM:I<
o convite a um etnólogo para esta comemoração, não lhe faz so-
mente honra insigne, razão que o torna pesscalmente reconhecido: per-
mite também a urna jovem ciência render homenagem ao gênio de um
homem do qual se teria podido ac:cdita,' que urna legoião copiesa, por
já incluir a literatura, a poesia, a filosofia, a história, a moral, a ciên-
cia política, a pedagogia, a lingüistica, a música, a botânica - e eu
iria além -, bastasse para glorificá-Ia em todos os aspectos. É que
Rousseau não foi somente um obse:vador penetrante da vida campestre,
um leitor ap!'Jxonado dos livros de viagem, um analista atento dos cos-
tumes e das crenças exóticas: sem receio de ser desmentido, pode-se
afirmar que ele havia concebido, querido e anunciado a etnologia um
século inteiro antes que ela fizesse a sua aparição, colocando-a, de pron-
to, entre as ciência.s naturais e humanas já constituidas. Ele teria mes-
mo adivinhado de que forma prática - graças ao mecenato individual
ou coletivo - ser-lhe-ia permitido dar os primeiros passos.
E<5taprofecia, que é, ao mesmo tempo, urna defesa e um programa,
ocupa uma longa nota do Dtscours sur l'origine de l'inégaltté 1, de que
• Discurso pronunciado em Genebra a 28 de junho de 1962 por oca.'iião
das cerimônias pelo 2509 aniversário do nascimento de Jean-Jacques
Rousseau. O texto apareceu primeiro em: Jean-Jllcques lLousseau, pu-
blicado pela Universidade operária e a Faculdade tie Letras da Univer-
sidade de Genebra, Neuchátel. La Baconniére, 1962
1 Discurso sobre a origem da desigualdcuie. (N. T,).
passarei a citar alguns trechos, apenas para justificar a presença. de
minha disciplina à cerimônia de hoje:
Tenho dificuldade de conceber, escrevia Rousseau, como num
século onde as pessoas se vangloriam de conhecimentos gran-
diosos, não existem dois homens, um que sacrifique vinte mil
escudos de seus bens, outro, dez anos de sua vida para uma
célebre viagem de volta ao mundo, com a finalidade de estudar
não só pedras e plantas, mas pelo menos uma vez, os homens
e os costumes ...
;f-. Toda a terra está coberta de nações, mas só lhes conhecemos
os nomes, e nos atrevemos a julgar o gênero humano! Supo-
nhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um Con-
dillac, ou homens dessa têmpera, viajando I:al"a instruir seus
compatriotas, observando e descrevendo, como eles o sabem,
a Turquia, o Egito, os Bérberes, o Império de Marrocos, a GUl-
!lé, o país dos Cafres, o interior da Africa e suas costas orien-
tais, os Malabares, os Mongóis, as margens do Ganges, os
reinos àe Sião, de Pegu e da Birmãnia, a China, a Tartáüa,
e sobretudo o Japão; depois, no outro hemisfé.io, o México,
o Peru, o Chile, as terras de Magalhães. sem esquecer os Pa-
tagônios verdadeiros ou falsos, o Tucumã,o Paraguai, se pos-
srvel o Brasil, enfim as Caralbas. a }o'lórlda e tonas as regiões
selvagens. Seria a viagem mais importante de todas, e a fa-
zer-se com o máximo ne cuidado. Suponhamos que estes novos
Hércules, de retorno dessas viagens memoráveis, escrevessem,
sem pressa, a história natural, moral e política do que viram:
um mundo novo surgiria, então, de sua pena, e assim apren-
deríamos li. conhecer o nosso... (Discours sur l'origine de
Z'inégalité, nota 10).
Não será a etnologia contemporânea, seu programa e seus métodos,
que acabamos de traçar aqui? Não são os nomes ilustres citados por
Rousseau os mesmos que os etnógrafos de hoje tomam para modelo'>,
sem pretender igualá-los, mas convencidos de que somente seguindo-lhes
o exemplo poderão conferir à sua ciência um respeito que lhe foi, du-
rante muito tempo, regateado?
Rousseau não se limitou a prever a etnologia: ele a fundou. Inicial-
mente de modo prático, escrevendo este Discours sur l'orig.ine et Zes
fondements de l'inégalité parmt les hommes2. Nele se pode ver o pri-
meiro tratado de etnologia geral, onde se coloca o problema das relações
entre a natureza e a cultura. No plano teórico, distinguindo, com uma.
2 Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. (N.T.).
clareza e uma conClSao admiráveis, o objeto próprio do etnólogo doa
ojetoa do moralista. e do historiador:
Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar perto de
si; mas para estudar o homem, é preciso aprender a dirigir
para longe o olhar; para descobrir as propriedades, é preciso
primeiro observar as diferenças. (Essai sur l'origine des langues3•
capo VIII).
Esta regra metódica que Rousseau fixa para a etnologia e que lhe
marca o advento, permite também superar o que à primeira vista, pare-
ceria um duplo paradoxo: em primeiro lugar, que Rousseau tenha po.-
dido, simultaneamente, preconizar o estudo dos homen(l mais dij;tante!"
mas que se tenha dedicado sobretudo ao deste homem particular que
parece o mais próximo, isto é, ele mesmo; em segundo lugar, que, em
toda a sua obra, a vontade sistemática de identificação com o outro
caminhe lado a lado como uma recusa obstinada da identificação consigo
mesmo .. Porque toda carreira de etnólogo deve, em um momento ou
outro, superar estas duas contradições aparentes, que se resolvem numa
única implicação recíproca. A dívida do etnólogo aumenta porque Rous-
seau não só situoucom precisão extrema, no quadro dos conhecimentos
humanos, uma ciência ainda por nascer, mas com sua obra, pelo tem-
peramento e caráter nela expressos, e por cada particularidade, por sua
pessoa e por seu ser, preparou também para o etnólogo o conforto fra-
ternal de uma imagem na qual este se reconhece. Uma imagem que o
ajuda a compreender-se melhor, não como pura inteligência contempla-
tiva, mas como agente involuntário de uma transformação operada atra-
vés dele. l1: esta transformação que toda a humanidade aprende a sen-
tir em Jean-Jacques Rousseau.
Cada vez que está em seu campo de ação, o etnólogo vê-se abando-
nado a um mundo onde tudo lhe é estrangeiro, freqüentemente hostil.
Não tem senão este eu, do qual dispõe ainda, para permitir-lhe sobre·
viver e fazer sua pesquisa; mas um eu fisica e moralmente abatido pela
fadiga, a fome, o desconforto, o choque com os hábitos adquiridos, o
6urgimento de preconceitos dos quais nem sequer suspeitava; e que se
descobre a si mesmo, nesta conjuntura estranha, paralitico e estropiado
por todas as dificuldades de uma história pessoal responsável. de saída.
por Sua vocação, mas que, além do mais, afetará seu curso, dai para
diante. Na experiência etnográfica, por conseguinte, o observador colo-
ea-se como seu próprio instrumento de observação. Evidentemente, pre-
cisa aprender a conhecer-se, a obter de um si-mesm~, que se revela
como outro ao eu que o utiliza, uma avaliação que se tornará parte in~
tegrante da observação de outras individualidades. Cada carreira etno-
gráfica tem seu fundamento nas "confissões", escritas ou inconfess.adas.
Mas, se podemos compreender melhor esta experiência através da-
quela de Rousseau, isto não se deve ao fato de que seu temperamento,
sua história particular, as circunstâncias, colocaram-no espontaneamente
em uma situação cujo caráter etnográfico aparece claramente? Situação
da qual ele tira logo conclusões pessoais: "Ei-Ios, portanto", diz de seus
contemporâneos, "estrangeiros, desconhecidos, nulos, afinal, para mim,
pois eles o quiseram I Mas eu, destacado deles e de tudo, que sou eu?
Eis o que me resta descobrir" (Primeira promenade 4). E o etnógrafo po-
deria, parafraseando Rousseau. exclamar, observando pela primeira vez
os selvagens que escolheu para sua pesquisa: "Ei-Ios, portanto, estran-
geiros, desconhecidos, nulos, afinal, para mim, pois eu o quis I E eu
destacado deles e de tudo, que sou eu? Eis o que me é necessário desco-
bri1 primeiro".
Porque para conseguir aceitar-se nos outros, objetivo que o etnólogo
consigna ao conhecimento do homem, é necessário, primeiro, recusar-se
em si mesmo.
l!: a Rousseau que se deve a descoberta deste princípio, o único sobre
o qual podem fundar-se as ciências humanas, mas que deveria permane-
cer inacessível e incompreensível enquanto reinasse uma filosofia que,
tendo seu. ponto de partida no Cogito, era prisioneira das pretendidas
evidências do eu, e só podia aspirar a fundar uma fisica, renunciando
a fundar uma sociologia e mesmo uma biologia: Descartes acredita pas-
sar diretamente da interioridade de um homem à exterioridade do mun-
do, sem ver que entre esses dois extremos se colocam sociedades, civili-
zações, isto é, mundos de homens. Rousseau que, tão eloqüentemente
fala de si mesmo em terceira pessoa, (às vezes, chilgando mesmo a des-
dobrá-Ia como nos Dialogues), antecipando assim a fórmula famosa:
"eu é um outro" (que a experiência etnográfica deve averiguar, ante'!
de proceder à demonstração que lhe compete de qu.a o outro é um eu).
afirma-se o grande inventor desta objetivação radical, ao definir sua fi-
nalidade que é, indica ele na primeira promenade, "de dar-me conta das
• Preferimos manter a palavra francesa por tratar-::e de referência ao
conhecido texto rousseauniano das Promenades Oit~ralm'nte. passeios).
(N.T.).
modl!lcações de minha alma e de suas sucessões". E prossegue: "Fa~i
sobre mim, de algum modo, as operações que fazem os físicos com o ar
para, conhecer-lhe o estado diário". O que Rousseau exprime, por con-
seguinte, é - verdade surpreendente, se bem que a psicologia e a etno-
logia tenham-na tornado mais familiar para nós - que existe um "ele"
que se pensa em mim, e que me faz primeiro duvidar de que sou eu
quem pensa. Ao "que sei?" de Montaigne (que deu origem a tudo), Des-
cartes acreditava poder responder: sei que sou porque penso; ao que
Rousseau replica com um "que sou?" de solução incerta, pois esta questão
supõe que uma outra, mais essencial, se tenha resolvido: "sou?"; quando
a experiência intima fornece apenas este "ele", que Rousseau descobriu
e cuja exploração lucidamente empreendeu.
Não nos enganemos: nem mesmo a intenção conciliante do Vigário
saboiano consegue dissimular que, para Rousseau, a noção de ideIl.~~ade
pessoal é adquirida por inferência e permanece marcada pela ambigill-
dade:
Existo ... eis a primeira verdaàe que me atinge e à qLal s~u
forçado a aquiescer (sublinhado por nós~ ... ~enho um Sf'ntr-
mento próprio de minha existênci!l" ou nao a srnt~ ~enão atra-
vés de minhas sensações? Eis mmha primeira duvrda, que é,
quanto ao presente, impossível de resolver.
Mas é no ensinamento propriamente antropológico de Rousseau - o
do Discours SUl' l'origine de l'inégalité - que se deSCObre o fundamento
desta dúvida, que reside numa concepção do homem que coloca o outro
antes do eu, e uma concepção da humanidade que, antes dos homens,
afirma a vida.
Só é possível acreditar que, com a aparição da sociedade, se produ-
/
I ziu uma tríplice passagem - da natureza à cultura, do sentimento ao
conhecimento, da animalidade à humanidade: demonstração que cons-
titui o objeto do Discours -, atribuindo-se ao homem, desde a sua con-
dição maís primitiva, uma faculdade essencial que o impele a ven:::er
esses três obstáculos. Em conseqüência, uma faculdade que possui, ori-
ginal e imediatamente, atributos contraditórios, aliás precisamente nela:
que seja, ao mesmo tempo, natural e cultural, afetiva e racional, anima~
I e humana; e que, somente sob a condição de tomar-se consciente, possa
mudar de um para outro plano.
Esta faculdade, Rousseau não cessou de repeti-Io, é a piedade. pro-
veniente da identtftcação com um outro que não é, s6, um parente, um
próximo, um compatriota, mas um homem qualquer, a partir do fato
mesmo de que é~; mais ainda: um ser vivo qualquer •. a partir
d~f~~o mesmo de que está vivo. O homem começa portanto a ~xperi-':-
mentar-se idêntico a todos os seus semelhantes; ele não esquecerá jamais
esta experiência primitiva, nem mesmo quando a expansão demográfica
(que desempenha, no pensamento antropológico de Rousseau, o papel de
acontecimento contingente, que teria podido não se produzir, mas que
devemos admitir que se produziu, pois a sociedade é õ) o tiver forçado
8: diversificar seus gêneros de vida para adaptar-se aos meios diferentes,
onde seu número aumentado o obrigue a espalhar-se e a saber distin-
guir-se a si mesmo, mas, somente à medida que uma penosa aprendiza-
gem_ o instrua a distinguir os outros: os animais segundo a espécie, a
humanidade da animalldade, meu eu dos outros eu. A identificação, que
consiste na al'Teensão global dos homens e dos animais Como seres sen-
síveis, precede a consciência das oposições: primeiro entre as proprie-
dades comuns; e em seguida, apenas entre humano e não humano.
~ exatamente o fim do Cogito que Rousseau proclama, assim, ante-
cipando esta solução audaciosa. Porque até então, tratava-se sobretudo
de colocar o homem fora de questão, isto é, de assegurar-se, com o hu-
manismo, uma "transcendance de repli" 6. Ro~seau pode permanecer
teista, pois esta era a menor exigência de sua educação e de seu tempo:
mas ele arrulna definitivamente a tentativa, recolocando o homem em
questão.
• Se esta interpretação é exata, se, através daantrol'ologia., Rousseau
revoluciona tão ladicalmente quanto acreditamos a tradição filosófica,
pJdemos compreender melhor a unidade profunda de uma obra de for-
mas múltiplas, e o lugar verdadeiramente essencial de preocupações, para
ele tão imperiosas, se bem que fossem, à primeira vista, estranhas ao
trabalho do filósofo e do escritor: quero dizer a lingüística, a mósica, e
a botânica.
Tal como Rousseau a descreve no Essai sur Z'origine des Zangues, a
marcha da linguagem reproduz, à sua maneira e no seu plano, a da
humanidade. O primeiro estágio é o da identificação, aqui entre o sen-
li O grifo é meu. (N. T.) .
e "Transcendêr:zcia de refúgio", literalmente. A expressão "de repli" de-
s~g~ana aqUI uma m~~obra do espírito comparável a um recuo estra-
tegrco para un:a pOSlçao mais segura; no caso, o questionamento do
homem se abngaria no pressuposto de uma transcendêncla não dis-
cutida. (N. C.).
tido próprio e o sentido figurado; o verdadeiro nome se desliga pro-
gressivamente da metáfora, que confunde cada ser com outros seres.
Quanto à música, nenhuma forma de expressão, parece, está mais
apta a recusar a dupla oposição cartesiana entre material e espiritual,
alma e corpo. A música é um sistema abstrato de oposições e de rela-
ções, alterações dos modos da duração, cuja execução ocasiona duas con-
seqüências: primeiramente a inversão da relação entre o eu e o outro,
pois quando eu ouço a mállica, escuto-me através dela; em segundo lu-
gar, por uma inversão da relação entre alma e corpo, a música vive em
mim. "Cadeia de relações e de combinações" (Con!essions 7, livro doze).
mas que a natureza nos ap,resenta encarnadas nos "objetos senslveis"
(Rtveries 8, sétima promenade), é enfim, nestes termos que Rousseau
define a botânica, confirmando que, por este meio indireto, ele aspira
também a reencontrar a união do sensivel e do inteligivel, porque ela
constitui para o homem um estado primário, acompanhando o desper-
tar da consciência; e que não deveria sobreviver-lhe, salvo em raras e
precio~as ocl!tSiões.
O pensamento de Rousseau desabrocha,-I2Ql'tanto,apartir_d~ llm
duplo princípio: o da identificação com o outro, e mesmo com o mais
"outro" de todos os outros, ou seja, um animal; e o da recusa da identifi-
caçíic:>consigo mesmo, isto é, a recusa de tudo o que pode tornar o eu
"aceitável". Estas duas atitudes se completam, e a segunda chega mesmo a
fundar a primeira: na verdade, eu não sou "eu", mas o mais fraco, o
mais humilde dos "outros". Esta é a descoberta das Confessions ...
Quê escreve o etnólogo, senão confissões? Pri-neiramente em seu
nome, como o demonstrei, pois é o móvel de sua vocação e de sua obra;
e nesta própria obra, em nome da sociedade que, através do oficio do
etnólogo - seu emissário -, procura outras sociedades, outras civiliza-
ções, e precisamente dentre as que lhe parecem mais fracas e mais hu-
mildes; mas procura-as para verificar até que ponto é, ela própria, "ina-
ceitável": não forma privilegiada, mas uma somente destas sociedades
"outras" que se sucederam no curso de milênios, ou cuja precária diver-
sidade atesta ainda que, também no seu ser coletivo, o homem deve
conhecer-se como um "ele" antes de ousar pretender que é um "eu".
A revolução rousseauniana, preformando e inidando a revolução
etnológica consiste em recusar as identificações forçadas, quer seja a de
7 Confissões. (N. TJ.
l! Sonhos. (N. T.) •
uma cultura a outra cultura, ou a de um individt'.o, membro de uma
cultura, a um personagem ou a uma função social que esta mesma cul-
tura procura impor-lhe. Nos dois casos, a cultura ou o indivíduo reivindi-
cam o direito a uma identificação livre, que só se pode realizar além
do homem: com tudo o que vive e, portanto, sofre; c também aquém da
função ou do personagem: com um ser ainda não formado, mas dado.
Então, o eu e o outro, libertos de um antagonismo que só a filosofia pro-
curava estimular, recuperam sua unidade. Uma aliança original, enfim
renovada, permite-lhes fundar juntos o nós contra o ele, isto é, contra
uma sociedade inimiga do homem, e a que o homem se sente mais pre-
parado para recusar na medida em que Rousseau, com seu exemplo, en-
sina-lhe como evitar as insuportáveis contradições da vida civilizada.
Porque se é verdade que a natureza expulsou o homem e que a socie-
dade persiste em oprimi-lo, o homem pode ao menos inverter a seu fa-
vor os pólos do dilemfl., e buscar a sociedade da natureza para meditar,
nela, sobre a natureza da sociedade. Eis, parece-me, a indissolúvel men-
sagem do Contrat social 9, das Lettres sur la Botanique 10, e das Rêveries.
Sobretudo que não se veja nisto o resultado de \lma vontade timida,
alegando uma busca da sabedoria como pretexto para sua demissão. Os
contemporâneos de Rousseau não se enganaram a este respeito, e menos
ainda seus sucessores: uns, percebendo que este pensamento altivo, estu
existência solitária e sofrida, irradiavam uma tal força subversiva que
nenhuma sociedade lhe teria ainda experimentado o poder; outros, fa-
zendo deste pensamento, e do exemplo desta vida, as alavancas que per-
mitiriam abalar a moral, o direito, a sociedade.
Mas é hoje, para nós que sentimos - como Rousseau o predizia a seu
leitor - "o pavor dequeles que terão a infelicidade de viver depois de ti"
(Discours), que seu pensamento toma uma suprema amplitude e que
ele adquire toda a sua grandeza. Neste mundo mais cruel para o homem,
talvez, do que jamais foi: onde proliferam todos os procedimentos de
exterminação, os massacres e a tortura, jamais nega'ios sem dúvida, mas
dos quais nós nos comprazíamos em acreditar que já não tinham impor-
tância, simplesmente porque se os reservava a populações distantes que
os suportavam em nosso proveito, segundo se pretendia, e em todo o
caso, em nosso nome; agora que - próxima pelo ,:feito de uma popu-
lação mais densa que encurta o universo e não dei:r.a nenhuma porção
de humanidade ao abrigo de uma abjeta violência - pesa sobre cada um
de nós a angústia de viver em sociedade; é agora, digo, que expondo as
taras de um humanismo decididamente incapaz de fundar no homem
o exercício da virtude, o pensamento de Rousseau pode ajudar-nos \I,
rejeitar uma ilusão da qual, infelizmente somos capazes de observar em
nós e sobre nós mesmos os funestos efeitos. Pois, não foi o mito da dig-
nidade exclusiva da natureza humana, que infligiu à própria natureza
uma primeira mutilação, a partir da qual deveriam, inevitavelmente, se-
guir-se outras?
• Começou-se por separar o homem da natureza, e por fazer com que
ele constituísse um reino soberann; acreditou-se assim encobrir seu ca-
ráter maIS irrecusável, a saber, que ele é, pnmeno, um ser vivo. SJ?er-
manecedo-se cego para esta propriedade comum, deu-se total liberda-
de a todos os abusos. Nunca melhor que ao termo dos quatro últimos
séculos de sua história, o homem ocidental pôde compreender senão
arrogando-se o direito de separar radicalmente a humanidade da anima11-
dade. Concedendo a uma tudo o que retirava da outra, ele abria um
ciclo maldito, cuja própria fronteira, constantemente recuada, serviria
pala desviar os homens dos outros homens, e para reivindicar, em pro-
veito de minorias sempre mais restritas, o privilégio de um humanismo,
CQ1:rompidologo ao n~cer, por ter buscado no amor-próprio seu princi-
pio e sua noção.
Somente Rousseau soube insurgir-se contra este egoismo: ele que,
na nota ao Discours já citada, preferia admitir que os grandes macacos
da Africa e da Asia, mal descritos pelos viajantes, fossem homens de
uma raça desconhecida, antes de correr o risco de contestar a natureza
humana em seres que poderiam possui-Ia. E o primeiro erro teria sido
menos grave, de fato, pois o respei:o pelo outro conhpce apenas um fun-
damento natural, ao abrigo da reflexão e de seus sofismas, porqu8 é an-terior a ela. Fundamento este, que Rousseau percebe, no homem, como
Uuma repugnância inata por ver sofrer um semelhante" Wiscours); mas
cuja descoberta obriga a ver um semelhante em todo ser exposto ao so-
frimento e possuidor, por isso, de um direito impre~eritivel à comisera-
ção. P_CJ.~que,para cada um de nós, a única esperanç3. de não ser tratado
como besta ", por seus semelhantes, é de que todos os seus semelhantes,
e ele o primeiro, se sintam imediatamente como seres que sofrem e cul-
tivem, em seu foro íntimo, esta aptidão para a piedade que, no estado
• Contrato social. (N. T') .
10 Carta:! sobre Botanica. (N. 'Li.
natural, ocapa o lugar de "leis, costumes e de virtude", e sem o exercic~o
da_.llu~l começamos a compreender que, no estado de sociedade, não
pode haver nem lei, nem costumes, nem virtude.
Longe de oferecer-se ao homem como refúgio nostálgico, a identifi-
cação com todas as formas de vida, começando pelas mais humildes,
propõe, pOltanto, à humanidade de hoje, pela voz de Rousseau, o prin-
cípio de toda sabedoria e de toda ação coletivas; o único que, num mundc
em que a superpopulação torna mais difícil, porém muito mais necessário
o respeito recíproco, poderá permitir que os hOl?ens vivam juntos e
construam um porvir harmonioso. Talvez este ensinamento já esteja
contido nas grandes relígiões do Extremo-Oriente. Mas frent~ a uma
tradição ocidental que acreditou, desde a antigüidade, que se poderia
jogar em dois campos ao mesmo tempo, e escamotear a evídência de
que o homem é um ser vivo e sofredor, semelhante a todos os outros
seres antes de distinguir-se deles por critérios subordinados, quem nos
ensinou isto, senão Rousseau? "Tenho uma violenta aversão", escreve
ele na quarta carta ao Sr. de Malesherbes, "por estados que dominam
outros. Odeio os Grandes, odeio seu estado", ~ta declaração não se apli-
ca pIÍmeiro ao homem, que pretendeu dominar os outros seres e gozar
de um estado à parte, deixando assim o caÍn]1o livre aos menos dignos
dos homens, para se prevalecerem do mesmo privílég'o contra outros ho-
mens e torcerem, em proveito próprio, um raciocínío tão exorb1tante nes-
ta forma particular quanto o era, já, em sua forma geral? Numa socie-
dade civilizada não poderia haver desculpa para o único crime verdadei-
ramente inexpiável do homem, e que consiste em acreditar-se perma-
nentemente ou temporariamente superior e em tratar homens como obje-
tos: seja em nome da raça, da cultura, da conquista, da missão, ou do
simples uso de um expediente.
Tem-se conhecimento na vida de Rousseau, de um minuto - um se-
gundo, talvez - cuja significação, a despeito de sua hrevidade, comanda,
aos seus olhos, todo o resto, Talvez por Isso, no crepúsculo de sua exis-
tência, esteja por ele profundamente obsedado; e se alongue na sua des-
crição em sua última obra e ao acaso de seus passeios, retome a ele cons-
tantemente. E que é esse minuto, portanto, senão uma banal volta a si
depois de. uma queda e um desmaio? Mas o sentimento de existir é "pre-
cioso" entre todos os demais por ser sem dúvida tão raro e tão ccn-
testável:
calma extasiante, à. qual, cada vez que a recordo, ntlo encon-
tro nada comparável em qualquer dos prazeres conhecidos.
E~,t('célebre texto da segunda promenade encontra eco numa passagem da
6étilna que, ao mesmo tempo, explica sua razão de ser: "Sinto êxtases,
a.'iOubos inexprimíveLs ao fundír-me, por assim dizer, no sistema dOI!6e-
res, ao identificar-me com a natureza inteira",
Esta id~ntíftcação primitiva, cuja possibilidade é negada ao homem
pelo estado de sociedade, e que,esquecido de sua virtude essencial, o ho-
mem já não chega a sentir, senão de maneira fortuita e por obra de cir-
cunstâncias irrisórias, leva-nos ao coração mesmo da obra de ~ousseau.
E se lhe concedemos um lugar à parte entre as grande3 produções do gênIo
humano, é porque seu autor não só descobriu, com a identificação, o ver-
dadeiro princípio das ciências humanas e o único fundame]lto poss1vel da
móral: com sua obra, ele nos restituiu também o ardor há dois séculos e
para sempre fervente neste cadinho onde se unem seres que o amor-pró-
prio dos político; e dos filósofos se empenha, por todà a parte, em tor-
nar incompatíveis: o eu e o outro, minha sociedade e as outras sociedades,
a ~ature1.a e a cultura, o 8el1.~1vele o racional, a humanidade e a vida.
Parecia-me que preenchia com minha tênue existência todos
os objetos que percebia." não tinha nenhuma noção precisa
de minha pessoa individuaL" sentia em todo o meu se.- uma

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