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Comentários sobre O mundo codificado O que é cultura

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Comentários sobre O mundo codificado, de Vilém Flusser
1
 
André Brayner de Farias 
 
Sobre o conceito de cultura 
 
“Um ‘objeto’ é algo que está no meio, lançado no meio do caminho (em latin, ob-iectum; em grego, 
problema). O mundo, na medida em que estorva, é objetivo, objetal, problemático. Um objeto de uso é 
um objeto de que se necessita e que se utiliza para afastar outros objetos do caminho. Há nessa definição 
uma contradição: um obstáculo que serve para remover obstáculos? Essa contradição consiste na chamada 
“dialética interna da cultura” (se por cultura entendermos a totalidade dos objetos de uso). Essa dialética 
pode ser resumida assim: eu topo com obstáculos em meu caminho (topo com o mundo objetivo, objetal, 
problemático), venço alguns desses obstáculos (transformo-os em objetos de uso, em cultura), com o 
objetivo de continuar seguindo, e esses objetos vencidos mostram-se eles mesmos como obstáculos. 
Quanto mais longe vou, mais sou impedido pelos objetos de uso (mais na forma de carros e de 
instrumentos administrativos do que na forma de granizo e tigres). E na verdade sou duplamente 
obstruído por eles: primeiro, porque necessito deles para prosseguir, e, segundo, porque estão sempre no 
meio do meu caminho. Em outras palavras: quanto mais prossigo, mais a cultura se torna objetiva, objetal 
e problemática” (p. 194) 
 
A cultura, como a totalidade dos objetos de uso, é o espaço de nossa liberdade e também o seu avesso 
(obstáculo). Desde que descobrimos o nosso poder de manipular as coisas da natureza, o poder de dar 
forma a algo, ou seja, de in-formar, estamos acumulando os bens que constituem materialmente a cultura. 
Por que percebemos que somos capazes de manipular as coisas, nos demos o rótulo de seres culturais. 
Como seres culturais descobrimos a nossa liberdade: nossa extraordinária capacidade de criar o mundo 
em que decidimos viver. Manipulamos as coisas e os objetos para que eles facilitem nossa vida, 
inteligentemente damos formas às coisas em vista de nossa necessidade de controle das forças 
ameaçadoras da natureza. E na exata medida em que, livres, produzimos esses objetos de uso, a cultura, 
na exata medida em que afirmamos a nossa condição de seres livres, criamos obstáculos para nossa vida 
livre (dialética interna da cultura). A cultura é, dessa forma, a nossa liberdade em ação e o nosso estorvo, 
nossa cadeia existencial. 
Uma vez que somos capazes de perceber e admitir essa dialética interna, essa paradoxal liberdade 
estorvada da cultura, somos chamados pela nossa responsabilidade. Seria impossível pensar a liberdade 
sem a responsabilidade, e vice-versa. A que somos chamados nessa responsabilidade, provocada pela 
dialética da liberdade estorvada? Exatamente a criar objetos de uso menos estorvantes, a criar um mundo 
cultural com menos obstáculos para o exercício de nossa liberdade. De outra maneira: nossa 
responsabilidade cultural deve nos levar a inventar objetos mais eficazes na sua função essencial que é 
permitir a mediação intersubjetiva e dialógica, permitir a comunicação, o encontro. 
Aqui se verificam duas tendências: a do entulhamento dessa mediação, quando os objetos são 
privilegiados aos sujeitos, e a da liberação, quando a mediação se torna mais eficaz para permitir o 
encontro, a comunicação, neste caso a intersubjetividade é mais importante que o mundo objetivo. 
Vilém Flusser afirma que essa tendência de entulhar a cultura se intensificou desde a renascença. Essa 
tendência é inevitável, uma vez que é da natureza humana (inteligência fabricadora no sentido de 
Bergson). Mas ela se intensifica no Renascimento, pois desde essa época, “os criadores (Gestalter) são 
aqueles que projetam formas sobre os objetos com a finalidade de produzir objetos de uso cada vez mais 
úteis” (p. 196). Aqui se define o caminho da ciência moderna e da tecnologia, expressão máxima da nossa 
cultura. O que acontece é que os objetos resistem aos projetos e essa resistência incita os projetistas 
(fabricadores dos objetos úteis) a se concentrarem nos objetos, até que eles cedam às fórmulas e formas 
dos projetistas
2
. O objeto é dominado graças a essa concentração da inteligência para a ordem do 
utilitário, o que leva ao problema do afastamento intersubjetivo (diálogo, comunicação) e da idolatria do 
objeto: quando a objetalidade da imagem tem mais valor que a intersubjetividade (tendência de retorno ao 
mito). 
“A resistência do objeto prende a atenção de seus projetistas (Gestalter) e os incita a penetrar mais e mais 
profundamente nos mundos objetivo, objetal e problemático, para que se tornem cada vez mais familiares 
 
1
 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Organizado por 
Rafael Cardoso, tradução de Raquel abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 
2
 Um exemplo que Flusser usa no livro é o de Galileu: “Galileu não descreveu a fórmula da queda livre, 
mas a inventou: foi experimentando uma fórmula atrás da outra até que o assunto da queda dos corpos 
graves se enquadrasse. Portanto, a geometria teórica (e a mecânica teórica) é um design ao qual 
submetemos os fenômenos para poder tê-los sob controle” (p. 190) 
com esse mundo e sejam capazes de manejá-lo. É isso que viabiliza o projeto técnico e científico, de tal 
modo atrativo, que os criadores, ocupados com ele, esquecem aquele outro progresso, isto é, o progresso 
em direção aos outros homens. O progresso científico e técnico é tão atrativo que qualquer ato criativo ou 
design concebido com responsabilidade é visto praticamente como retrocesso. A situação da cultura está 
como está justamente porque o design responsável é entendido como algo retrógrado” (p. 196-197). 
Um traço bastante característico de nossa cultura é o fetiche dos bens tecnocientíficos. A crítica do mundo 
imagético, sensível ao mundo da filosofia platônica e sensível ao mundo dos profetas do judaísmo, acusa 
a tendência idolátrica da imagem, que decorre da concentração do olhar sobre o objeto, o que leva ao 
isolamento da alteridade humana e a um certo empobrecimento da comunicação, que passa a ser função 
da imagem: no mundo idolátrico dos mitos, mundo mágico, a comunicação está submetida ao poder da 
imagem, e o encontro inter-humano fica comprometido porque o que mais interessa é a relação com a 
imagem. A idolatria prejudica a liberdade e a responsabilidade ao isolar o ser humano e subordinar a vida 
ao poder imagético. Essa tendência idolátrica ganha novo e vigoroso fôlego com os bens tecnocientíficos. 
Nossa cultura tem demonstrado exatamente isso quando fetichiza os utensílios tecnológicos. É a 
tendência do entulhamento que privilegia o objeto em detrimento da alteridade. Inútil lembrar que essa 
tendência se potencializa pela economia de consumo, cuja lógica consiste em produzir ao mesmo tempo o 
desejo e a frustração do desejo. A cultura tecnocientífica é idolatrizante, sua tendência é o entulhamento 
do mundo com os bens fetichizados e o consequente isolamento da alteridade. 
Mas Vilém Flusser enxerga nesse mundo da tecnoimagem indícios de uma outra tendência, que poderia 
resgatar o valor da intersubjetividade. Essa tendência, visível no mundo dos criadores da era digital, é 
provocada pela possibilidade de separar a ideia de objeto da ideia de matéria, na direção de uma cultura 
de bens imateriais. Não que a imaterialidade da cultura impeça a idolatria, pois sabemos o quanto 
programas e softwares são objetos de adoração, mas ela é transparente: “os objetos de uso imateriais são 
ídolos transparentes, e portanto permitem que os outros homens que estão por trás deles sejam percebidos. 
Sua face mediática, intersubjetiva, dialógica, é visível” (p. 197). 
Flusser também vê indíciosde uma mudança de tendência no caráter efêmero que tem caracterizado o 
mundo da criação na nossa cultura. Ele lembra a segunda lei da termodinâmica que diz que toda matéria 
tende a perder sua forma. Isto se verifica pela descartabilidade cada vez mais evidente dos objetos bem 
como de seus projetos. “Estamos começando a nos tornar cada vez mais conscientes do caráter efêmero 
de todas as formas (e, consequentemente, de toda criação). Pois os dejetos começam a obstruir o nosso 
caminho tanto quanto os utilitários. A questão da responsabilidade e da liberdade (inerente ao ato de criar) 
surge não apenas quando se projetam os objetos, mas também quando eles são jogados fora. Pode ser que 
essa tomada de consciência da efemeridade de toda criação (inclusive a criação de designs imateriais) 
contribua para que futuramente se crie de maneira mais responsável, o que resultaria numa cultura em que 
os objetos de uso significariam cada vez menos obstáculos e cada vez mais veículos de comunicação 
entre os homens. Uma cultura, em suma, com um pouco mais de liberdade” (p. 198).

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