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volume 7 nº 3 julho 2010 Adolescência & Saúde 47 ARTIGO ORIGINAL A construção do conceito de adolescência no Ocidente The construct of the concept of adolescence in the West Eloisa Grossman1 “Ah, esse vazio! Esse vazio terrível que sinto em meu peito! Quantas vezes penso: ‘Se pudesses uma vez, uma vez apenas, apertá-la contra esse coração, o vazio todo seria preenchido’.” 1. Talvez alguém re- conheça as palavras desse adolescente solitário, sonhador e romântico. É Werther, personagem de um romance de Goethe, escrito em 1774. Segundo Philippe Ariés2, historiador fran- cês, a ideia do que hoje chamamos adolescência é apenas pressentida a partir do século XVIII. Na Idade Média, a consciência das particularidades da infância não existia; não havia distinção entre crianças e adultos. A ideia de infância relaciona- va-se exclusivamente com a noção de depen- dência; quando a criança adquiria a condição RESUMO Este artigo, dedicado ao tema da constituição do conceito de adolescência, tem como objetivo enfatizar o caráter histórico dessa construção. Na Idade Média não existia a consciência da especifi cidade das crianças; o crescimento era interpretado como aumento quantitativo dos aspectos físicos e mentais. No século XIX, a adolescência era demarcada como um período particular, e ao longo do século evidenciada como fase de potenciais riscos. O século XX consolidou a ideia da adolescência como uma etapa da vida dotada de características próprias, retentora de um estatuto legal e social. A contemporaneidade tem como marcas a dissolução de certezas e um estado de desamparo coletivo, que implicam uma experiência complexa e plural de adolescer. PALAVRAS-CHAVE Adolescência, história, contracultura na década de 60 ABSTRACT This article, whose theme is the construct of the concept of adolescence, aims at emphasizing the historic aspect of such construct. In Medieval Times there was no awareness of the singularity of childhood; growth was seen merely as a quantitative increase in physical and mental traits. In the 1800s, adolescence was labeled as a specifi c life period and, throughout the century, tagged as a potentially risky time. The twentieth century consolidated the notion of teenage as a time with its own features, retaining a legal and social status of its own. Our age is marked by the dissolution of certainties and a feeling of helplessness that result in a complex and plural experience of being a teenager. KEY-WORDS Adolescence, history, counterculture of the 1960s de viver sem o desvelo constante da mãe ou da ama, ingressava plenamente no mundo adulto, participando de todas as atividades sociais. A visão de mundo na sociedade medieval tinha como base a teologia cristã e os dogmas religiosos, mas também sofria a infl uência da fi - losofi a grega, especialmente de Platão. A com- preensão da natureza divina de forma racional favoreceu o desenvolvimento do conceito de homúnculo, cuja infl uência determinou a inter- pretação do crescimento como um aumento 1Professora Adjunta de Medicina de Adolescentes da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM/UERJ); Doutora em Ciências pelo Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/FIOCRUZ). adoles & saude 3 - 2010 FINAL.indd 47 13/9/2010 11:56:17 Adolescência & Saúde 48 volume 7 nº 3 julho 2010 quantitativo dos aspectos físicos e mentais do homem3. A infância era entendida como um período de passagem logo ultrapassado e cuja lembrança era rapidamente esquecida. As pin- turas medievais traduzem essas crenças e sen- timentos; as crianças são representadas como adultos em miniatura, sem nenhuma diferença de traços ou expressões. Na transição da Idade Média à Modernida- de, três fatores tiveram grande infl uência na con- cepção que o homem tinha de si e da sua relação com os outros. O primeiro aspecto foi o novo papel do Estado, que passou a interferir e exer- cer controle do espaço social e da ordem pública, legando à comunidade um tempo maior para a dedicação às atividades particulares. O segundo fato foi o desenvolvimento da alfabetização e dos livros, incentivando o gosto pelo privado e pela solidão. O terceiro acontecimento foi o estabele- cimento de novas religiões ao longo dos séculos XVI e XVII, que exigiam dos fi éis uma devoção mais íntima4. Esse conjunto de mudanças deter- minou a passagem de uma experiência anterior- mente coletiva, quando a comunidade enqua- drava e limitava o indivíduo em uma valorização do espaço privado. A família, além de unidade econômica, passou a ser encarada como espaço de afetividade entre o casal e os fi lhos. Surgiu, nesse momento, um novo senti- mento dos pais em relação aos fi lhos, criticado por moralistas que denunciavam o excesso de complacência e o exagero de mimos, que em sua visão seriam nefastos à criança e à socieda- de5. Para combater essa atitude, o Estado e a Igreja retomaram a responsabilidade do sistema educativo, através da criação de colégios, desti- nados a indivíduos entre 10 e 25 anos, sem dis- tinção. Não havia uma preocupação em separar os alunos em diferentes classes, divididas por um critério etário. O século XVIII foi marcado pelo movimen- to de ideias denominado Iluminismo, que deu suporte a uma renovação pedagógica na qual, ao lado da defi nição de novas práticas, afi rmava- se a ideia da onipotência da educação na mode- lagem do indivíduo6. O século XIX se caracterizou pelo fortaleci- mento dos Estados Nacionais, pela redefi nição dos papéis sociais das mulheres e das crianças, pelo avanço acelerado da industrialização e da técnica e pela organização de trabalhadores. Um duplo movimento afl uiu nas relações entre pais e fi lhos; a infância passou a ser encarada como um momento privilegiado da vida, e aos fi lhos dedicava-se amor e investimento no futu- ro. Nesse momento, a fi gura do adolescente foi balizada com nitidez. A adolescência masculina foi defi nida como o período entre a primeira co- munhão e o bacharelado ou serviço militar, e a feminina entre a primeira comunhão e o casa- mento. Ao longo do século, a adolescência pas- sou a ser reconhecida como um momento críti- co da vida, temida como uma fase de potenciais riscos para o indivíduo e para a sociedade, uma real “zona de turbulência e contestação”7. A adolescência passou então a ser objeto de interesse de médicos e de educadores. A pri- meira referência à organização do atendimento clínico a adolescentes foi o acompanhamento de alunos em internatos na Inglaterra. Em 1884 foi constituída a Associação de Médicos de Escolas que, no ano seguinte, publicou um Código de regras com o explícito objetivo de evitar a disse- minação de doenças infecciosas8. Em relação às publicações especializadas sobre a temática, o primeiro livro referido no Index Medicus abordando o tema adolescência data de 1904, a obra de G. Stanley Hall, inti- tulada Adolescência: sua psicologia e relação com fi siologia, antropologia, sociologia, sexo, crime, religião e educação9. O autor propunha que o ser humano em desenvolvimento passaria por estágios correspondentes aos que ocorreram na evolução da espécie humana, desde o primitivis- mo animal até a vida civilizada, que caracteriza- ria a maturidade. As etapas de desenvolvimento descritas em sua teoria obedeceriam a um pa- drão universal, inevitável e imutável, de forma independente do ambiente, controladas exclu- sivamente pela hereditariedade. Apresentava a adolescência como um período de sturm und drang (tempestade e tensão), de turbulência e A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ADOLESCÊNCIA NO OCIDENTE Grossman adoles & saude 3 - 2010 FINAL.indd 48 13/9/2010 11:56:17 volume 7 nº 3 julho 2010 Adolescência & Saúde 49A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ADOLESCÊNCIANO OCIDENTE Grossman transição ao status adulto fi nal, em que os indi- víduos oscilavam entre vigor e letargia. Assumiu que essa fase perigosa e trabalhosa demanda- va proteção. A peça O despertar da Primavera, escrita em 1891 por Frank Wedeking, e por ele descrita como “tragédia infantil”, descortina o universo de um grupo de adolescentes e seus dramas. Os jovens aguçam sua curiosidade à me- dida que ocorrem as transformações puberais e os desejos sexuais e percebem a distância que os separa da moral social do mundo dos adultos. Nas palavras do estudante Moritz há uma crítica à escola e a seus preceitos: “De que adianta uma enciclopédia que não responde à questão mais im- portante da vida?” A Senhora Bergmann, também persona- gem deste drama, não consegue explicar à fi lha de 14 anos como as crianças são geradas e nas- cem, apesar das súplicas da moça: “Mas não vai dar, fi lha! Não posso carregar essa responsabilida- de!” A adolescente engravida e morre, vítima de um aborto engendrado pela mãe10. Em outras publicações, a criminalidade na adolescência foi estudada. Em Criminalidade na adolescência. Causas e remédios de um mal social atual, de 1909, os adolescentes são identifi cados como “vagabundos naturais”, profundamente instáveis e com absoluto desprezo por quaisquer obstáculos e perigos7. Ao longo desse período, de forma paralela à organização de um campo de saberes sobre a adolescência, foram criadas instituições para o seu amparo e vigilância, tais como as escolas seriadas e secundárias, e as instituições jurídicas e correcionais. Essas instituições, vinculadas ao ideário do Iluminismo, buscavam o aperfeiçoa- mento do ser humano, a ser atingido através da educação, da higiene e da ampliação dos direi- tos sociais. Surgiu, ainda, um novo modelo de família, a família burguesa, centrada na educa- ção dos fi lhos11. Tinha como características ser nuclear, heterossexual, monógama e patriarcal. O domínio absoluto era do pai, chefe, gerente e responsável pela honra da família, cujos interes- ses prevaleciam. Mulher e fi lhos lhes eram su- bordinados; normas rígidas eram aplicadas. Em Música ao Longe, de Érico Veríssimo, a adoles- cente Clarissa, de 16 anos, diz que necessita um diário porque não tem com quem conversar, “... vivo aqui solta, como um gato sem estimação”12. Os processos disciplinares e normalizado- res tinham o corpo como seu alvo. Segundo Foucault, esse princípio agia através do adestra- mento, da ampliação das aptidões, na extorsão das forças, no crescimento da utilidade e doci- lidade e na sua integração a sistemas efi cazes e econômicos. Além da ação nos corpos indivi- dualizados, o autor desenvolveu o conceito de biopoder, também fundamentalmente centrado no corpo, porém exercido como política estatal, gerenciando a vida e o corpo social, aplicando- lhe normas higienistas e eugênicas11. Nessa atmosfera surgiu uma nova preocu- pação: o cuidado com o corpo. O medo da do- ença impregnou a sociedade. A saúde passou a ser uma preocupação constante, ocupando se- ções diárias nos jornais. A biologia e a física ele- varam-se ao topo da hierarquia científi ca13. Nas décadas de 1920 e 1930 foram desenvolvidas pesquisas colaborativas em universidades com enfoque no desenvolvimento e na nutrição de crianças e adolescentes. Foi também reconhe- cida a infl uência dos hormônios no crescimen- to e desenvolvimento e as variações individuais nos ganhos de altura, peso e maturação sexual. Estudos sobre os caracteres sexuais secundá- rios foram organizados na publicação Estudos somáticos e endocrinológicos do varão púbere, de Greulich e colaboradores14. O século XX foi marcado por guerras, horrores e sofrimentos que marcaram profun- damente a vida de crianças e de adolescentes. Privados dos valores paternos, sentiam-se teme- rosos para se arriscar a novas incursões pela vida. Amihai, no conto As mortes de meu pai, ponde- rou sobre isso nas palavras do protagonista: “Era terrível para mim, ver que meu pai não podia mais defender a casa e protegê-la contra a invasão dos inimigos. Foi este o fi m da minha infância.”15 Ao longo do século XX foi consolidada a ideia da adolescência como uma etapa da vida dotada de características próprias, retentora de adoles & saude 3 - 2010 FINAL.indd 49 13/9/2010 11:56:18 Adolescência & Saúde 50 volume 7 nº 3 julho 2010 A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ADOLESCÊNCIA NO OCIDENTE Grossman um estatuto legal e social. Cada vez mais os pes- quisadores encaravam-na como um problema. Alguns especialistas passaram a observá-la com foco nas repercussões do mundo do pós-guerra, interpretado como um tempo de caos dos valo- res. Segundo alguns, o processo que conduziu à codifi cação da adolescência como fase em si atingiu a maturação plena logo após a Segunda Guerra Mundial. Em 1945, Elliot E. Cohen publi- cou um artigo no New York Times utilizando a expressão teenager16. O fi lme A última sessão de cinema, de Peter Bodganovich, enfoca o que era ser jovem nos EUA do pós-guerra, mais especifi - camente em uma pequena cidade do Texas, em 1951. Frequentar o bar, o salão de sinuca e as sessões de cinema eram os únicos divertimen- tos dos jovens. Bebiam, jogavam e namoravam, náufragos em um mundo de hipocrisia e me- diocridade, em meio a casamentos fracassados, traições e vida de aparências. A constatação do fracasso da civilização criada pelas gerações anteriores, de guerras, injustiças sociais, violência e opressão, e a con- templação da massa amorfa de casos, dossiês e números em que foi transformada a humanida- de pela sociedade de consumo explodiram na consciência dos adolescentes e jovens da década de 1960, inaugurando um novo estilo de mobi- lização e contestação social, bastante distinto da prática política da esquerda tradicional17,18. Deu-se o nome de contracultura a esse movimento de contestação radical. De um lado surgiu o movimento hippie, com a fi losofi a do drop out, expressão que signifi ca literalmente “cair fora”, que compreendia três grandes eixos de movimentação: da cidade para o campo, da família para a vida em comunidade e do racio- nalismo cientifi cista para os mistérios do misti- cismo e o psicodelismo das drogas. Do outro lado, a politização invadiu a maioria das uni- versidades; os estudantes insurgiram-se contra tudo aquilo que se relacionasse com a “ciência burguesa”. Em 1968, agitações e passeatas su- cediam-se em todos os continentes, jovens lu- tavam em todas as frentes para destruir o velho e impor o novo19. No Brasil, a mobilização estudantil atingiu seu auge a partir da morte do estudante se- cundarista Edson Luís de Lima Souto, durante confronto entre estudantes e policiais no centro do Rio de Janeiro. Os estudantes inquietavam o regime muito mais do que os antigos movi- mentos de esquerda, representando o núcleo da contestação. Esse movimento invadiria também a vida artística brasileira, constituindo uma “cultura de oposição”, evidente no teatro, na música, no ci- nema, na literatura e nas artes plásticas. Nos cha- mados anos de chumbo, que se seguiram ao de- creto do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968, os direitos individuais e coletivos foram feridos, in- clusive a liberdade de expressão20. As produções artísticas desse período eram disfarçadas com metáforas e linguagem fi gurada, na tentativa de burlar a Censura. Diversos artistas foram exilados e torturados. A música de Geraldo Vandré, Pra não dizer que não falei das fl ores, foi promovida a hino de protesto na luta contra a ditadura. Zuenir Ventura21 afi rmou que poucas gera- ções lutaram tão radicalmente por seu projeto, por sua utopia, experimentando todos os hori- zontes: político, sexual, comportamental e exis- tencial, sonhando em aproximá-los. Século XXI,tempo de atrativos tecnológi- cos e de busca desenfreada de bens de consu- mo. A oferta é constante, mas nada é sufi ciente. Calligaris22 afi rma que crianças e adolescentes aprendem que há duas qualidades subjetivas para ser reconhecido e valorizado na socieda- de atual: é necessário ser desejável e invejável. Birman23 considera que existe na atualidade um alongamento da adolescência, que hoje come- ça mais cedo do que outrora e que se prolonga pelo período anteriormente denominado idade adulta. A contemporaneidade tem como marcas a dissolução de certezas e um estado de desam- paro coletivo, que implicam uma experiência complexa e plural de adolescer. Enredar-se na discussão da subjetividade da adolescência na contemporaneidade é uma tarefa inevitável para os profi ssionais que te- nham o propósito de participar de seu cuidado. adoles & saude 3 - 2010 FINAL.indd 50 13/9/2010 11:56:19 volume 7 nº 3 julho 2010 Adolescência & Saúde 51A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE ADOLESCÊNCIA NO OCIDENTE Grossman A ambição desse artigo foi a de tornar perceptí- veis as mudanças do signifi cado dessa etapa da vida ao longo dos tempos, no Ocidente. Como afi rma Cardoso24, trabalhar com a disciplina da história é também trabalhar com nossa própria dimensão, compreendendo nossa presença nela e formulando ideias que deem sentido à nossa articulação com os outros. REFERÊNCIAS 1. Goethe JW. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 2. Áries P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981. 3. Muuss RE. Theories of adolescence. USA: McGraw-Hill, 1988. 4. Áries P. Por uma história da vida privada. 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