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370 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Um limite para a intervenção judicial na atuação do Poder Executi vo: a racionalidade decisória1 Tomás T. S. Bugarin Pós-graduado e Bacharel em Direito; Advogado; Pesquisador do Economics and Politi cs Research Group (EPRG), CNPq/UnB. Fernando B. Meneguin Mestre e Doutor em Economia; Advogado; Consultor Legislati vo e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal; Pesquisador do Economics and Politi cs Research Group (EPRG) Os autores agradecem os valiosos comentários do Dr. João Trindade, Dr. Pedro Felipe de Oliveira Santos e Dra. Thaís Costa Silveira 1 Introdução. 2 Controle judicial da discricionariedade do Poder Executi vo. 3 Wednesbury Unreaso- nableness – Associated Provincial Picture Houses Ltd. v Wednesbury Corporati on (1948). 4 Rati onal Decision Making – Council of Civil Service Unions v Minister for the Civil Service – GCHQ case (1984). 5 Argumentos contrários à apreciação judicial da racionalidade da decisão do Poder Executi vo. 6 O panorama atual. 7 Conclusão. Referências. 1 INTRODUÇÃO1 A ponderação entre a postura ati vista e a auto- contenção judicial é tema que tem ocupado espaço central no debate jurídico-consti tucional contem- porâneo. A função do Juiz, na qualidade de agente políti co desprovido de legiti midade democráti ca, tem suscitado intensas discussões, principalmente quando se observam decisões judiciais com acerbada carga políti co-ideológica. Vivemos tempos de relati va estabilidade insti - tucional, em que há respeito, ao menos formal, à independência entre os Poderes da República. As insti tuições brasileiras, embora em processo de ama- durecimento, parecem ter internalizado o ideal do Estado Democráti co de Direito. Neste sistema, como bem obtempera Luís Roberto Barroso: Democracia signifi ca soberania popular, governo do povo, vontade da maioria. Consti tucionalismo, por sua vez, traduz a ideia de poder limitado e respeito aos direitos fundamentais, abrigados, como regra geral, em uma Consti tuição escrita. Na concepção tradicio- 1. O presente estudo consti tui-se em revisão do trabalho publicado ori- ginalmente como Texto para Discussão nº 169 da Consultoria Legislati va do Senado (Bugarin e Meneguin, 2015). O arti go foi originariamente publicado sob o tí tulo “Rati onal Decision Making – Parâmetro para o controle judicial das deliberações do Poder Executi vo” na RIL – Revista de Informação Legislati va, Brasília, ano 52, n. 206, p. 7-31, abr./jun. 2015. nal, a soberania popular é encarnada pelos agentes públicos eleitos, vale dizer: o Presidente da República e os membros do Poder Legislati vo. Por outro lado, a proteção da Consti tuição – isto é, do Estado de direito e dos direitos fundamentais – é atribuída ao Poder Judiciário [...] (2014, p. 446). Não obstante, a complexidade imanente aos tem- pos atuais tem favorecido entrechoques dos referidos Poderes republicanos, e nem poderia ser diferente. Por exemplo, o Legislati vo, consti tuído por um corpo políti co integralmente eleito, tende naturalmente a tomar decisões consonantes com a “vontade da maioria”, enquanto o Judiciário tem como função, poder e dever resguardar os direitos das minorias e preservar o núcleo essencial da Consti tuição, inclusi- ve contra maiorias ocasionais. Disso deriva o caráter contramajoritário de decisões jurisdicionais verifi cado em diversifi cadas ocasiões (e.g. declaração de incons- ti tucionalidade de determinada lei). Neste arti go trataremos de uma específi ca hi- pótese de tensão entre os Poderes Executi vo e Judi- ciário: o controle judicial da racionalidade do Poder Executi vo no desempenho de sua função administra- ti va (notadamente ao exercitar a discricionariedade corporifi cada por atos administrati vos), bem como no desempenho de sua função governamental (edi- tando políti cas públicas a serem implementadas). 371 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Desse modo, refl eti remos sobre possível ajuste, se- gundo o modelo consti tucional brasileiro, que deve haver quando da intromissão judicial na apreciação de estudos, fatos e provas acolhidos pelo Executi vo e determinantes no processo de tomada da decisão. De parti da, cumpre delimitar o que se entende por racionalidade do processo decisório (ou rati onal decision making). Nos dizeres dos docentes Carol Harlow e Richard Rawlings: Decisão racional consiste no processo de “seleção de alternati vas que conduzem à realização de objeti vos previamente selecionados” ou “a seleção da alternati - va que irá maximizar os valores daquele que decide”, sendo feita a seleção seguida de uma ampla análise das alternati vas e suas consequências. Racionalidade não dita um objeti vo, mas atua como um caminho até o objeti vo: “a razão pode apenas auxiliar a realizar objeti vos estabelecidos de comum acordo, na forma mais efi ciente” (2010, p. 105, tradução livre).2 O breve relato de um caso emblemáti co julgado pela Suprema Corte estadunidense auxiliará a escla- recer o objeto do presente estudo; trata-se do fami- gerado Motor Vehicle Manufacturers’ Associati on v. State Farm Mutual Automobile Insurance Co.:3 Em 1981, órgão do governo responsável pela segurança no trânsito (Nati onal HighwayTraffi c Safety Administrati on (NHTSA)) revogou o ato Standard 208, segundo o qual todos os veículos automotores pro- duzidos a parti r de setembro de 1982 deveriam ser equipados com cintos de segurança automáti cos ou airbags. Segundo a NHTSA, estudos revelavam a ini- doneidade da medida para reduzir, signifi cati vamente, as mortes decorrentes de colisões de carros (inclusive porque haveriam evidências de que o uso do cinto não aumentaria, embora automati zado). Por outro lado, a exigência imporia um custo desnecessário aos fabricantes. Argumentou-se que, além de se tratar de uma medida desarrazoada e pouco práti ca, o aumento de custo aos consumidores os induziria a concluir pela inefi ciência da regulação. Por essas razões, entendeu 2. “Rati onal choice is the process of ‘selecti ng alternati ves which are con- ducti ve to the achievement of previously selected goals’ or ‘the selecti on of the alternati ve which will maximize the decision-makers values’, the selecti on being made following a comprehensive analysis of alternati - ves and their consequences. Rati onality does not dictate goals but acts as a pathway to a goal: all reason can do is help us reach agreed-ongoals more effi ciently.” 3. Acerca do caso, disponível em: <htt p://caselaw.lp.fi ndlaw.com/scripts/ getcase.pl?court=US&vol=463&invol=29>. conveniente e oportuno revogar o Standard 208. Con- tra essa decisão administrati va, empresas de seguro pleitearam ao Judiciário a revisão, a fi m de determi- nar a restauração do referido Standard. Em 1983, a Suprema Corte Norte-Americana apreciou a questão e decidiu que a conclusão da Administração Pública não havia sido racional, pois as justi fi cati vas apontadas não justi fi cariam a revogação do ato administrati vo. Segundo aquele Tribunal, em sua análise das provas e estudos apresentados, era de se esperar um au- mento do uso de cintos de segurança (após serem automati zados), assim como uma queda de mortes com a implementação de airbags. Assim, os benefí cios justi fi cariam os custos adicionais. É dizer, no entender dos Magistrados, apesar da incerteza (substanti al uncertainty) relati vamente à efi ciência e conveniência da regulação apresentada pela Administração naquele caso, não havia moti vos sufi cientes para fundamentar a revogação do Standard 208. Note-se que, no caso acima, o Judiciário analisou em profundidade as provas coligidas, os estudos rea lizados e os fatos apurados no bojo do processo administrativo. Foi além, incursionando no debate acerca da racionalidade da decisão discricionária tomada pela Administração Pública. Portanto, o con- trole jurisdicional não se ateve a questi onamentos de legalidade, expandindo-se à apreciação da coerência lógica da decisão administrati va e de seus fundamen- tos técnicos. No panorama brasileiro, variados casos hipotéti - cos podem ser apresentados, ilustrando bem os dile- mas que envolvem o controle judicial da racionalidade do Poder Executi vo. Apontemos alguns: i) O Governo Federal, durante o primeiro mandato da Presidente Dilma (2010-2014), ado- tou políti cas econômicas que foram duramente criticadas. Dentre elas estava a desoneração segmentada e isolada de determinados bens, sob o fundamento de esti mular o consumo (e.g. redu- ção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre veículos nacionais e eletrodomésti cos da “linha branca”; desoneração da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) in- cidente sobre combustí veis; etc.). Entendeu-se, à época, ser essa a melhor forma de impulsionar o crescimento econômico. Caso instado para tanto, poderia o Poder Judiciário avaliar a racionalidade dessa políti ca econômica e, eventualmente, en- 372 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES tender pela irracionalidade da decisão, pautada em estudos pouco convincentes, havendo ou- tros, mais robustos, a indicarem a inapti dão da medida para produzir os resultados esperados e desejados pelo Governo? Se não fi zesse tal aná- lise expressamente, poderia o Judiciário exercer o mesmo controle, mas sob o fundamento da aplicação do princípio da efi ciência, balizador da atuação administrati va (art. 37, caput, da CF)? ii) Suponhamos que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), após vários estudos, entenda que determinada substância não induz torpor sufi ciente para fi gurar na lista de entorpe- centes ilícitos (e que, portanto, podem ser objeto material dos crimes de tráfi co ilícito de entorpe- centes [art. 33 da Lei nº 11.343/2006] ou posse de entorpecente para consumo próprio [art. 28 da Lei nº 11.343/2006], por exemplo). Poderia o Judiciário alterar tal decisão, apoiando-se em estudos considerados mais qualifi cados ou críveis pelos Magistrados, ou suscitando a inidoneidade da dúvida substancial quanto ao efeito entorpe- cente da droga? iii) Atualmente, o tempo de espera máximo para ser atendido pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) de empresas é, em regra, de um minuto. Tal determinação foi estabeleci- da pelo Poder Executi vo, por meio do Dec. nº 6.523/2008, regulamentado pela Portaria nº 2.014/2008 do Ministério da Justi ça. Caso a Ad- ministração Pública entendesse demasiadamente exíguo esse prazo, que impõe custos conside- ráveis às empresas, e decidisse aumentá-lo, tal decisão estaria sujeita ao controle judicial, sob a perspecti va de sua racionalidade, isto é, poderia um Magistrado analisar se há estudos sufi cientes a demonstrar não compensarem os custos de tal medida, à vista dos benefí cios? A conclusão se alteraria caso tal análise fosse feita invocando-se o princípio da proteção do consumidor (arts. 5º, inc. XXXII, e 170, inc. V, ambos da CF)? Todas essas hipóteses estão relacionadas a uma questão ainda pouco desenvolvida na academia bra- sileira: qual é o limite da sindicância judicial quanto à racionalidade administrati va e governamental? Dessa maneira, o presente texto discuti rá as balizas da intervenção do Judiciário na avaliação dos fatos, provas e estudos acolhidos pelo Executi vo para pautar sua decisão, bem assim o controle que aquele Poder pode exercer sobre a racionalidade desenvol- vida nesse processo. Para tanto, iniciaremos investi gando o sistema tradicional de controle judicial de atos administrati - vos discricionários, segundo regras já estabelecidas e pacifi camente aceitas pela doutrina e jurisprudência. Passaremos à análise de dois casos paradig- máti cos que, na tradição do common law inglês, alargaram os parâmetros da revisão judicial (judicial review) da atuação executi va, a saber: Associated Provincial Picture Houses Ltd. v Wednesbury Corpo- rati on e Council of Civil Service Unions v Minister for the Civil Service. Em conti nuação, questi onaremos a adequação dos limites do controle judicial de atos administrati - vos discricionários estabelecidos pelas Cortes Norte- -Americanas e Inglesas ao Direito pátrio, assim como os entraves e possíveis inconvenientes da aceitação da racionalidade como critério de controle judicial do Poder Executi vo. Seguidamente, desenvolveremos o debate por meio de exemplos corriqueiros no coti diano do Poder Judiciário, a fi m de ressaltar a importância da refl exão acerca do rati onal decision making no Direito brasileiro. Finalmente, apresentaremos conclusões acerca do tema, abrindo questões a serem futuramente desenvolvidas. 2 CONTROLE JUDICIAL DA DISCRICIONARIEDADE DO PODER EXECUTIVO Consoante se afi rmou na introdução, o presente arti go tratará do controle judicial da racionalidade do Poder Executi vo no exercício da função governamental e administrati va. Quanto à primeira modalidade de intervenção, respeitante à função governamental, a literatura e jurisprudência nacional ainda não fi rmaram regras claras. Entrementes, quanto à sindicância da função administrati va, já há desenvolvidos estudos e abun- dante jurisprudência. Por essa razão, abordaremos inicialmente o controle judicial da discricionariedade administrati va no desempenho da função adminis- trati va, cabendo destacar que as conclusões serão, mutati s mutandis, aplicáveis à intromissão judicial na ati vidade governamental. 373 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES De longa data se pacifi cou, na doutrina brasileira e na estrangeira, o entendimento segundo o qual a discricionariedade administrati va estaria sujeita ao controle jurisdicional. Interessa-nos, neste momento, investigar tal controle relativamente aos fatos apontados pela Administração como rati o decidendi (fundamentos defi niti vos para a tomada de decisão), nos casos em que remanesce discricionariedade na atuação do Po- der Executi vo, porquanto serão esses “pressupostos fáti cos” os elementos formatadores da racionalidade decisória. Discricionariedade, como bem asseverou Lord Diplock, “envolve um direito de escolher entre mais de uma via possível, havendo espaço para que uma pessoa razoável tenha opinião divergente daquela que será escolhida”4 (tradução nossa).5 Desse modo, a lei poderá conferir ao administra- dor certa esfera de liberdade para, em casos legalmen- te delineados in abstracto, avaliar qual é a medida que oti mize a realização do interesse público in concreto, preferindo uma solução legíti ma, em detrimento de outra(s) em tese possível(is). Não obstante, como bem assinala Celso Antônio Bandeira de Mello, ao desvelar a níti da disti nção entre discricionariedade e arbitrariedade: Qualquer regulação normati va é, por defi nição, o lineamento de uma esfera legíti ma de expressão e ao mesmo tempo uma fronteira que não pode ser ultrapassada, pena de violação do Direito [...], não há comportamento administrati vo tolerável perante a ordem jurídica se lhe faltar afi namento com as im- posições normati vas, compreendidas sobretudo no espírito, no alcance fi nalísti co que as anima, e, sobre isto, a últi ma palavra só pode ser do Judiciário6 (BAN- DEIRA DE MELLO, 2010, p. 961 e 975). Em complemento, ressalta o mestre administra- ti vista que o Poder Judiciário, uma vez instado para 4. Voto do Lord Diplock no caso Secretary of State for Educati on and Science v Tameside Metropolitan Borough Council, julgado em 1977 pelaCorte Inglesa. 5. “[...] involves a right to choose between more than one possible course of acti on upon which there is room for reasonable people to hold diff ering opinions as to which is to be preferred.” 6. A lição do publicista de que é consti tucionalmente cometi do ao Judi- ciário, em geral, e ao Supremo Tribunal Federal, em especial, enunciar o conteúdo normati vo das leis (em senti do amplo) e proceder, com defi ni- ti vidade, à dicção de sua exegese, perfi lha abalizado escólio do Min. Alio- mar Baleeiro, ecoado pela doutrina: “O Supremo Tribunal Federal pode tanto, poderá investi gar os moti vos, a fi nalidade e a causa do ato, para fi ns de garanti a do princípio da legalidade. Esses três parâmetros envolvem a análise de fatos, senão vejamos. Em relação ao primeiro aspecto – exame dos moti vos –, fi rmou-se que, acaso inexistente o moti vo, ou se as consequências dele extraídas forem incom- patí veis com a margem conferida por lei, poderá o ato ser nulifi cado, por violação ao princípio da legalidade e aplicação direta da teoria dos moti vos determinantes. A propósito: A análise dos pressupostos de fato que embasa- ram a atuação administrati va é recurso impostergável para aferição do direito e o juiz, neste caso, mantém- -se estritamente em sua função quando procede ao cotejo entre o enunciado legal e a situação concreta (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 979). Quanto ao segundo parâmetro – exame da fi nali- dade –, tem-se admiti do a apreciação judicial dos fi ns objeti vados pelo administrador, com vistas a garanti r a legiti midade da atuação administrati va. Tal exame pretende assegurar, igualmente, a prevalência do prin- cípio da legalidade e da impessoalidade, afastando eventuais desvios de poder. Por fi m, o exame da causa do ato consiste na perquirição judicial da congruência, de uma compatibilidade lógica, isto é, de uma relação de perti nência entre o elemento empírico, que serviu de suporte para a práti ca do ato, e o seu conteúdo, tendo em vista a fi nalidade do ato (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 983). De igual forma, o exame judicial não deve redun- dar na eliminação da discricionariedade do adminis- trador, mas se pautar numa análise lógico-objeti va. Destarte, inexiste dúvida acerca da sindicabilidade judicial da discricionariedade administrati va. Afi nal, “evidentemente, a autoridade administrati va, cuja existência e poderes derivam da lei, não poderá atuar validamente fora dos limites legalmente impostos” (THOMPSON; GORDON, 2014, p. 551, tradução nossa).7 No entanto, o controle externo deve restringir-se à verifi cação da legalidade, ao menos em regra. dizer a últi ma palavra sobre a Consti tuição. Ele é infalível, porque é defi - niti vo, desde que não há mais recurso. Quando o Supremo diz, e mesmo quando ele erra, está certo” (Recurso Extraordinário [RE] nº 69.486/SP – Rel. Min. Thompson Flores – j. em 18.11.1970). 7. “It is axiomati c that a public authority which derives its existence and its powers from statute cannot validly act outside those powers.” 374 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Noutros termos, caberá ao Juiz incursionar na avaliação de fatos, não para substi tuir a discriciona- riedade do administrador por sua própria, mas para assegurar a obediência aos estreitos ditames da lei no proceder da autoridade administrati va. Nesse senti do é o escólio impecável de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: Com relação aos atos discricionários, o controle judicial é possível[,] mas terá que respeitar a discricio- nariedade administrati va nos limites em que ela é as- segurada à Administração Pública pela lei. Isto ocorre precisamente pelo fato de ser a discricionariedade um poder delimitado previamente pelo legislador; este, ao defi nir determinado ato, intencionalmente deixa um espaço para livre decisão da Administração Pública, legiti mando previamente sua opção; qualquer delas será legal. Daí por que não pode o Poder Judiciário invadir esse espaço reservado, pela lei, ao administra- dor, pois, caso contrário, estaria substi tuindo, por seus próprios critérios de escolha, a opção legíti ma feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto” (DI PIETRO, 2012, p. 224). Embora, em teoria, a solução possa parecer sim- ples, no plano dos fatos situam-se diversas hipóteses que se inserem numa zona cinzenta. Nessa área de dúvida encontram-se aqueles casos nos quais não há clara e frontal violação à lei (como haveria, por exemplo,diante de manifesto abuso de discricionarie- dade, a qualifi car como arbitrária a atuação adminis- trati va). Ao contrário, há, nesse espaço de incerteza, uma potencial infração oblíqua, ou uma decisão que desafi e a lógica, a racionalidade humana, trazendo possíveis prejuízos à realização do interesse público no maior grau possível. Dentre esses casos cita-se, com frequência, a violação da proporcionalidade ou razoabilidade. Há, de fato, uma linha tênue, porquanto o Magistrado, ao concluir que a decisão administrati va é despro- porcional ou desarrazoada, declarando-a ilegal (e, portanto, nulifi cando o ato administrati vo), acaba por incursionar na própria racionalidade administrati va. Todavia, ainda nessa hipótese entrevê-se o acau- telamento da legalidade, sob o prisma do abuso da discricionariedade. Isso porque, nos dizeres do Admi- nistrati ve Procedural Act norte-americano, as ações, inferências e conclusões da agência [admi- nistração pública] serão ilegais se forem ti das como inconsistentes, arbitrárias ou tomadas com abuso de discricionariedade (tradução nossa).8 Se o ato é desproporcional, por desatender ao critério de adequação, necessidade ou proporcio- nalidade em senti do estrito (trinômio que compõe o princípio da proporcionalidade), não há dúvida de que ele será ilegal e, portanto, passível de censura jurisdicional. A propósito, em recente julgamento do Recurso Extraordinário (RE ) nº 658.312/SC pelo Supremo Tri- bunal Federal (STF), o Min. Gilmar Mendes ponderou que “a Corte só poderia invalidar a discriminação feita pelo legislador se ela fosse arbitrária” (STF, Informati vo nº 769). Embora a questão envolvesse o exercício da função normati va pelo Congresso Na- cional, a terminologia adotada pelo Ministro indica a proximidade entre o raciocínio por ele desenvolvido e os estudos doutrinários e a legislação estrangeiros, notadamente o já citado Administrati ve Procedural Act norte-americano. No entanto, sobreleva notar a maior amplitude do controle da racionalidade da decisão, o qual englo- ba, em certas ocasiões, os supracitados parâmetros (e.g. se um ato for manifestamente desproporcional, a decisão poderá ser irracional; da mesma forma, se os moti vos não justi fi carem a decisão, poderá haver irracionalidade), podendo, todavia, ir além. A análise da racionalidade, não se cinge à perquirição da legali- dade; o critério abrange todo o espectro analíti co dos caminhos possíveis para ati ngir metas predetermina- das, inclusive opções que não violentem abertamente qualquer regramento legal. Respeita, portanto, à própria formação da con- vicção do administrador (extensível ao governante no desempenho da função política), que deve guiar seu processo decisório à luz da realização do interesse público, meta últi ma a ser colimada pelo Estado. Daí que, enquanto a perquirição da propor- cionalidade, da fi nalidade, das causas e moti vos se relacionam ao ato administrati vo perfeito e acabado, a racionalidade está ligada ao mérito propriamente dito, ao nexo existente entre a decisão, seu emba- samento e o objeti vo visado, de modo a recair o exame, inclusive, sobre elementos que antecederam aelaboração do ato. 8. “[...] the agency’s acti ons, fi ndings and conclusions would be unlawful, if it were found to be capricious, arbitrary or an abuse of discreti on.” 375 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES É verdade que os parâmetros de controle não são facilmente disti nguíveis, mormente quando a análise revolve a razoabilidade do ato. Pensamos, todavia, que mesmo neste caso os critérios não se confundem. A racionalidade pode ser aferida com maior objeti - vidade e tecnicidade, enquanto a razoabilidade tem ínsito elevado grau de subjeti vidade. Aliás, essa diferenciação foi o móvel determinan- te de Lord Lester e Sir Jowell propugnarem pela subs- ti tuição do critério de reasonableness (razoabilidade) por rati onality (racionalidade). Assim: Jowell e Lester atacaram a amplitude semânti ca do Wednesbury unreasonableness, pois entenderam que se conferia subjeti vidade ou ‘forte’ discriciona- riedade ao judiciário, argumentando que “razões de honesti dade intelectual exigem mais profunda expli- cação do moti vo pelo qual o ato é irrazoável”. [...] No caso GCHQ, ocasião em que se substi tuiu razoabilidade por racionalidade, era especialmente importante que a revisão judicial ostentasse caráter cientí fi co, objeti vo e apolíti co” (HARLOW; RAWLINGS, 2010, p. 107, tradução nossa).9 Para avançar e melhor fi ncar as diferenças, revela- -se conveniente abordar o precedente que estabele- ceu, no Direito inglês, o wednesbury unreasonable- ness como paradigma de controle judicial do Poder Executi vo. Após essa discussão, a seção 4 apresenta o estudo do caso GCHQ, no qual houve a mudança da nomenclatura – e do conteúdo – conferida ao con- trole, passando de razoabilidade para racionalidade. 3 WEDNESBURY UNREASONABLENESS ͵ ASSOͳ CIATED PROVINCIAL PICTURE HOUSES LTD. V WEDNESBURY CORPORATION Έ1948Ή Nesta seção, analisa-se caso precursor sobre o controle judicial tendo por premissa a irrazoabilidade, ou seja, a alteração ou invalidação realizada pelo Judi- ciário em razão do absurdo do mérito de norma ou ato administrati vo. Cuida-se do caso Associated Provincial Picture Houses v. Wednesbury Corporati on, mais conhecido como Wednesbury Unreasonableness, julgado em 1948 pela Corte de Apelação britânica. 9. “Jowell and Lester att acked the loose texture of Wednesbury unreaso- nableness for conferring subjecti ve or ‘strong’ discreti on on the judiciary, arguing that ‘intellectual honesty requires a further and bett er explana- ti on as to why the act is unreasonable’. [...] In the highly charged GCHQ case where the change [from reasonableness to rati onality] was made, it was especially important for judicial review to appear scienti fi c, objec- ti ve and apoliti cal.” Em termos fáti cos, o caso se resume à apre- ciação de uma licença concedida pela Wednesbury Corporati on para operar um cinema com a condição de que nenhuma criança ou adolescente com menos de quinze anos pudesse entrar no estabelecimento aos domingos. No decorrer do julgamento, assentou-se a pos- sibilidade da intervenção do Judiciário para alterar uma decisão administrati va ao fundamento de ser ela irrazoável, desde que cumpridas as três condições seguintes (que fi caram conhecidas como o teste de Wednesbury): i) Na decisão, foram considerados elementos estranhos ao caso; ii) Na escolha feita pela autoridade pública, não foram considerados todos os elementos relevantes; e iii) A decisão é tão irrazoável que nenhuma outra autoridade pública consideraria tal solução. O termo Wednesbury Unreasonableness é usado para descrever a terceira condição: nenhuma outra autoridade pública razoável poderia decidir daquela maneira (irrazoabilidade da escolha feita). Ao julgar o caso, os Juízes da Court of Appeal of England and Wales estabeleceram que não bastaria a mera alegação de irrazoabilidade “subjeti va”. Seria imprescindível passar-se pelas condicionantes acima citadas, subsumindo-se a alegada violação a uma das categorias supra para invalidar a decisão administra- ti va desarrazoada. Desse modo, fi rmou-se um padrão úti l para testar as situações de aparente unreasona- bleness. Naquele caso específi co, entendeu-se que a limitação (proibição de menores de 15 anos frequen- tarem o cinema aos domingos) não violaria qualquer das condicionantes, moti vo pelo qual o Judiciário não poderia invalidá-la. 4 RATIONAL DECISION MAKING ͵ COUNCIL OF CIVIL SERVICE UNIONS V MINISTER FOR THE CIVIL SERVICE ͵ GCHQ CASE Έ1984Ή A análise do caso GCHQ se revela fundamental, pois nele foram estabelecidos critérios de revisão judicial das deliberações discricionárias do Poder Executi vo. Iniciemos com um escorço fáti co. Em 25.1.1984 o Secretário de Assuntos Exteriores e do Reino Unido (Secretary of State for Foreign and 376 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Commonwealth Aff airs) anunciou à Câmara dos Co- muns (House of Commons) a decisão governamental de implementar restrições ao direito de associação sindical dos servidores da Sede de Comunicações do Governo (Government Communicati ons Headquarters (GCHQ)). A parti r daquela data, não mais seria assegurado aos servidores públicos da GCHQ o direito à sindica- lização. Poderiam apenas se fi liar a uma associação de servidores do departamento aprovado pelo dire- tor do referido órgão. Até então, permiti a-se a livre associação sindical desses servidores e havia seis confederações sindicais (nati onal trade unions) ali representadas. Segundo foi demonstrado, entre fevereiro de 1979 e abril de 1981 foram arti culadas sete greves dos servidores públicos, com o apoio dos entes de classe. A mais relevante se deu em 9.3.1981, quando 25% dos funcionários promoveram uma parada de um dia. Argumentou o Secretário que a paralisação do trabalho foi extremamente nociva à Administração Pú- blica e à segurança nacional. O GCHQ desempenhava diversas ati vidades relacionadas à segurança do Reino Unido, tais como assegurar a comunicação militar e ofi cial e desenvolver ações de coleta de inteligência para o governo, de modo que greves poderiam acar- retar graves implicações. Em face das manifestações apoiadas pelas con- federações sindicais, o Secretário entendeu por bem vedar a associação sindical, decisão tomada sem consultar quaisquer das pessoas afetadas. Segundo alegou, a prévia consulta daria margem a novas gre- ves, em prejuízo do interesse público. Contra essa medida, o Conselho dos Sindicatos de Servidores Públicos Civis (Council of Civil Service Unions (CCSU)) e os servidores prejudicados plei- tearam a revisão judicial, chegando o caso à Câmara dos Lords (incumbido, à época, do desempenho de função jurisdicional). Dentre os temas analisados, perquiriu-se acerca da possibilidade da revisão judicial de decisões governamentais e, caso positi vo, sobre quais bases. Lord Diplock, em seu voto, admiti u a revisão judi- cial da atuação administrati va (mesmo os atos oriun- dos da Coroa) e assinalou três balizas: (i) ilegalidade; (ii) irracionalidade; e (iii) irregularidade procedimental (acrescentou como possível quarto critério, ainda a ser edifi cado, a proporcionalidade). Em razão de sua importância, concentremo-nos no segundo critério. Nos dizeres do referido jurista: Por “irracionalidade”, refi ro-me ao que pode ser sucintamente nominado como Wednesbury unreason- bleness [...]. Aplica-se a uma decisão tão ultrajante à lógica ou a um padrão moral aceitável que nenhuma pessoa sensata que refl eti sse sobre a questão a ser decidida a ela chegaria. Se uma decisão se encaixa nessa categoria é uma questão que juízes, por seu treinamento e experiência, deveriam estar aptos a responder, caso contrário, haveria algo seriamenteerrado com o nosso sistema judicial (tradução nossa).10 Releva notar a expressa proposta de substi tuição do termo “irrazoabilidade” (unreasonableness) por “irracionalidade” (irrati onality). De qualquer modo, em virtude da inspiração do raciocínio no wednesbury unreasonbleness, o judicial review estaria restrito àqueles casos aberrantes, nos quais o desvio do Exe- cuti vo esti vesse patente. Em seguida, asseverou que, embora não houves- se moti vo para excluir aprioristi camente a irraciona- lidade como critério de controle judicial de decisões administrati vas tomadas no exercício de prerrogati vas próprias do Poder Executi vo, seria tarefa árdua vislum- brar uma hipótese apta a justi fi car a sindicância, jus- tamente porque as deliberações ministeriais normal- mente envolvem questões de políti ca governamental. Assim, a análise deveria ser casuísti ca.11 Lord Fraser, por sua vez, citando Lord Brightman, salientou que a questão a ser julgada não é se o mérito da instrução ministerial é conveniente, justo ou justi fi cável. Essas 10. “By ‘irrati onality’ I mean what can by now be succinctly referred to as ‘Wednesbury unreasonableness’ (see Associated Provincial Picture Houses Ltd v Wednesbury Corp [1947] 2 All ER 680, [1948] 1 KB 223). It applies to a decision which is so outrageous in its defi ance of logic or of accepted moral standards that no sensible person who had applied his mind to the questi on to be decided could have arrived at it. Whether a decision falls within this category is a questi on that judges by their training and expe- rience should be well equipped to answer, or else there would be some- thing badly wrong with our judicial system”. 11. “While I see no a priori reason to rule out ‘irrati onality’ as a ground for judicial review of a ministerial decision taken in the exercise of ‘prerogati ve’ powers, I fi nd it diffi cult to envisage in any of the various fi elds in which the prerogati ve remains the only source of the relevant decision-making power a decision of a kind that would be open to att ack through the judicial pro- cess on this ground. Such decisions will generally involve the applicati on of government policy. The reasons for the decision-maker taking one course rather than another do not normally involve questi ons to which, if disputed, the judicial process is adapted to provide the right answer, by which I mean 377 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES matérias não devem ser decididas por Cortes. [...] a revisão judicial se preocupa não com a decisão em si, mas com o processo decisório (tradução nossa).12 Ao fi nal, a Câmara alta rejeitou o apelo do CCSU e dos servidores sindicalizados, mantendo a decisão administrati va. Um dos pontos comuns aos votos – e principal fundamento do desprovimento –, está em que se tratava de questão afeta à segurança nacional. Assim, o governo (Poder Executi vo) seria o mais apto a avaliar e tomar as providências imprescindíveis a garanti r esse fundamental valor social. Da sucinta análise dos dois casos acima, podemos extrair importantes conclusões: i) Trilha-se, de longa data, um movimento visando a estabelecer critérios objeti vos para a revisão judicial do mérito das deliberações dis- cricionárias do Poder Executi vo. ii) A irracionalidade foi admiti da como cri- tério de controle judicial da discricionariedade administrati va, embora em casos excepcionais de desvios fl agrantes; iii) Já então se reconhecia a necessidade de avaliar qual Poder ti nha condições de tomar a melhor decisão, devendo os demais Poderes ser deferentes à deliberação. Destaque-se, entretanto, a pretensão de se fi rmar um delineamento mais claro entre racionalidade e razoabilidade. O primeiro, segundo entendemos, consiste na avaliação da razão na escolha de caminhos e decisões que realizem metas predeterminadas, es- tabelecendo um nexo lógico-pragmáti co entre o meio preferido (em detrimento de outras opções legíti mas) e o fi m colimado. Trata-se, portanto, de uma análise objeti va da relação entre pressuposto, decisão e ob- jeti vo. O segundo, por sua vez, seria a investi gação da sensatez, conveniência, justeza da decisão, cuja análise pode ser mais ou menos rigorosa, a depender do grau de deferência que se pretende que os Poderes Republicanos mantenham entre si. that the kind of evidence that is admissible under judicial procedures and the way in which it has to be adduced tend to exclude from the att enti on of the court competi ng policy considerati ons which, if the executi ve dis- creti on is to be wisely exercised, need to be weighed against one another, a balancing exercise which judges by their upbringing and experience are ill-qualifi ed to perform. So I leave this as an open questi on to be dealt with on a case to case basis if, indeed, the case should ever arise.” 12. “The issue here is not whether the minister’s instructi on was proper or fair or justi fi able on its merits. These matt ers are not for the courts to determine. […] As Lord Brightman said […] ‘Judicial review is concerned, not with the decision, but with the decision-making process.’” 5 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À APRECIAÇÃO JUDICIAL DA RACIONALIDADE DA DECISÃO DO PODER EXECUTIVO Há, essencialmente, três argumentos relevantes e sufi cientes (ao menos em teoria) a obstaculizar o con- trole jurisdicional da racionalidade do Poder Executi vo ou, quando menos, evidenciariam ser ele prejudicial. O primeiro e mais conhecido argumento é o da separação de Poderes. De fato, quando o Poder Judiciário exerce ingerência sobre a racionalidade de determinada decisão administrati va, acaba por haver o risco da sobreposição da discrionariedade própria do Magistrado. Inexisti ndo ilegalidade a ser afastada, mas simples discordância do senso do Executi vo, qualquer controle realizado pelo Judiciário acabaria furtando àquele Poder o direito de adotar a sua opção legíti ma. Sendo assim, a avaliação jurisdicional do rati onal decision making acabaria por macular a independência e coe- xistência harmônica preconizada, com justo moti vo, na Lei Maior (art. 2º). O argumento da triparti ção dos Poderes é espe- cialmente relevante quando se trata do controle da função governamental, máxime por não serem os ma- gistrados eleitos, de modo a não estarem investi dos de legiti midade democráti ca direta. Há, todavia, outros dois argumentos, de igual importância. Como já sinalizado, o Poder Executi vo possui uma máquina administrati va altamente especializada, com servidores qualifi cados e acesso a robustas bases de dados. O Judiciário, por sua vez, não conta com igual estrutura. Há vários exemplos de excessos cometi dos pelos membros do Poder Judiciário que, justamente por não deterem especialização em todos os setores, podem ser ti dos como prejudiciais. Para ilustrar, pode-se citar uma decisão relati vamente recente da primeira instância da Justi ça Federal da 1ª Região. Apesar de existi r em funcionamento um mercado de transporte aéreo com preços oscilando conforme as regras de oferta e demanda e de haver uma agência reguladora controlando o setor, uma Magistrada condenou a em- presa TAM Linhas Aéreas13 a: a) ofertar aos usuários, 13. Processo nº 0009029-10.2013.4.01.3701 – TRF1ªR. 378 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES nos voos com desti no para e/ou origem em Impera- triz/MA, no mínimo, 50% dos assentos com a tarifa denominada “básica”; b) nos meses de alta demanda, em especial dezembro/2013 e janeiro/2014, cobrar do usuário-consumidor o valor máximo de até 50% da tarifa máxima do plano “básico”. A argumentação básica é que houve elevação exagerada das tarifas na alta temporada. Com noções de economia e conhecimento dosetor aéreo, pode-se inferir que se o trecho Brasília- -Imperatriz fosse extremamente lucrativo, outras empresas teriam interesse em oferecer voos entre essas cidades. Se não o fazem, é possível concluir pela inexistência de rentabilidade elevada. Além disso, se os preços prati cados fossem razoáveis numa perspec- ti va de equilíbrio ao longo do ano, com o tabelamento a empresa talvez não tenha mais interesse em manter essa linha ati va, uma vez que ela não é obrigada a trabalhar de forma defi citária. Outra possível conse- quência perversa da decisão é o aumento das tarifas dessa linha em períodos não tabelados. Como as elevadas tarifas de dezembro e janeiro provavelmen- te subsidiavam os meses de baixa demanda, após a intervenção judicial, quem viajar no restante do ano possivelmente terá de pagar mais caro. (MENEGUIN; BUGARIN, 2014). Nota-se como uma decisão judicial tem o poder de alterar completamente o equilíbrio do mercado e prejudicar um número muito maior de consumidores do que os supostamente benefi ciados. Não sem moti vo, há quem entreveja na separa- ção dos Poderes a fi nalidade de especializar funções estatais, justamente para viabilizar maior efi ciência no seu desempenho. Nesse senti do, preleciona José Afonso da Silva: A divisão de poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, signifi - cando que cada órgão é especializado no exercício de uma função; assim, às assembleias (Congresso, Câ- maras, Parlamento) se atribui a função legislati va; ao Executi vo, a função executi va; ao Judiciário, a função jurisdicional; (b) independência orgânica, signifi cando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efeti vamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordi- nação (SILVA, 2014, p. 111). Com semelhante raciocínio, apontam os pro- fessores da Massachusett s Insti tute of Technology, Nicholas Ashford e Charles Caldart: Alguns estudiosos defendem que magistrados não são qualifi cados para entender e interpretar dados altamente técnicos. Por isso, segundo argumentam, tribunais deveriam ser deferentes à qualifi cada exper- ti se da agência nessas matérias, exceto nos casos em que houvesse equívocos evidentes na racionalidade (1996, p. 79, tradução nossa).14 Deveras, em muitos casos o Magistrado não possui as melhores condições de avaliar a raciona- lidade que sustenta a decisão administrativa. Mor- mente em casos complexos que envolvem diversas variáveis e ponderam grande volume de dados, o corpo técnico dotado pelo Poder Executivo, pelo menos em linha de princípio, seria mais indicado a avaliar as opções e decidir por aquela que melhor realiza o objetivo, desenvolvendo, portanto, a ra- cionalidade decisória. Este segundo argumento – especialização própria do corpo técnico do Poder Executi vo – deve ser parti - cularmente considerado quando se trata de decisões oriundas das agências reguladoras, indicando ser prejudicial a intervenção judicial no tocante à racio- nalidade no desempenho da função administrati va, por carecer de experti se. Por fi m, há uma terceira ponderação, de in- discutí vel consistência, que infi rma a prudência do controle jurisdicional tanto da função administrati va, quanto da governamental: o processo judicial não foi estruturado para avaliar a racionalidade de decisões complexas do Poder Executi vo, não sendo o meio adequado para enfrentar tal questão. Isso porque as ferramentas processuais não propiciam o debate necessário para elucidar a dimensão do problema a ser equacionado. Cabe a um Juiz forçar a internação de um paciente em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de hospital público já lotado? Cabe a um Magistrado alterar a políti ca pública de saúde desviando recursos orçamen- tários para a compra de um medicamento caro, mas necessário para o tratamento de um único paciente? Qual o refl exo disso no bem-estar social? Tais questões são complexas e imensamente debati das. As respostas certamente não são singelas, fato que desaconselha atribuir-se a uma única pessoa, desconhecedora de 14. “Some commentators argue that lay judges are simply not qualifi ed to understand and interpret such [highly technical] data. Thus, their ar- gument runs, courts should defer to an agency’s specialized experti se in these matt ers except in cases of obvious errors in reasoning.” 379 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES todas as variáveis que circundam o problema, modi- fi car monocrati camente a políti ca pública planejada pelo Poder Executi vo. Convém destacar a previsão legal, no Direito brasileiro, da oiti va de peritos, admissão do amicus curiae e realização de audiência pública,15 na qual especialistas podem oferecer esclarecimentos ao Ma- gistrado. Ainda assim, tais instrumentos processuais são de aplicabilidade limitada e se revelam débeis quando comparados ao sobranceiro aparato técnico que possui o Poder Executi vo. Este ponto foi percucientemente enfrentado por Lord Diplock, que formulou um argumento de reforço: os magistrados, à luz de sua formação, não são, a priori, qualifi cados para avaliar a racionalidade da decisão administrati va. Comentando o voto do jurista e políti co inglês, ponderam Carol Harlow e Richard Rawlings: Limites também são estabelecidos por Lord Diplo- ck na referência a decisões que geralmente envolvem a aplicação de políti cas governamentais. Nesse ponto, ele sugere que o processo judicial não está adaptado para fornecer a resposta correta, porque a decisão envolve “fundamentos de políti cas confl itantes que, caso bem exercida a discrição executi va, precisam ser sopesados: um exercício de sopesamento que os juízes, pela sua própria educação e experiência, estão pouco capacitados a realizar” (2010, p. 107, tradução nossa).16 6 O PANORAMA ATUAL Como bem acentuam Ashford e Caldart, É importante reiterar que, independentemente das cautelas adotadas por um tribunal revisor no escrutí - nio dos detalhes da racionalidade da agência [admi- nistração pública], o judiciário não está autorizado a reformar uma decisão administrati va simplesmente porque discorda da políti ca formulada pelo Executi vo. (1996, p. 79, tradução nossa).17 15. Aliás, são frequentes as críti cas ao Judiciário, notadamente ao STF, por não dar o devido peso às opiniões e exposições dos especialistas que se pronunciam nas audiências públicas. Isto revela que, não raro, tais instru- mentos processuais não realizam seu desiderato. 16. “Boundaries are also set by Lord Diplock’s reference to ‘decisions of a kind that generally involve the applicati on of governmental policy’. Here, he suggests, judicial process is not adapted to provide the right answer, because the decision involve ‘competi ng policy considerati ons which, if the executi ve discreti on is to be wisely exercised, need to be weighed against one another: a balancing exercise which judges by their upbringing and experience are ill-qualifi ed to perform.’” 17. “It is important to reiterate that, no matt er how carefully a reviewing court scruti nizes the details of the agency’s reasoning, the court is not empowered to overturn an administrati ve decision merely because it di- sagrees with the agency’s policy determinati ons.” Se é para muitos intuiti vo que o Poder Judiciário deve ser deferente à discricionariedade do Executi vo, salvo se houver ilicitude a ser combati da ou evidente desvio a ser corrigido (e.g. desvio de fi nalidade, abuso de poder, atuação fl agrantemente desproporcional), a nosso senti r, o prejuízo advindo da ausência de de- bate doutrinário acerca do controle da racionalidade da decisão administrati va, enquanto paradigma de sindicância jurisdicional, já é experimentado no âm-bito nacional. De fato, sob fundamentos diversos, há variadas situações nas quais Magistrados avaliam a racionalida- de decisória do Poder Executi vo, embora não o façam expressamente. Podemos destacar quatro casos, três dos quais iterati vos no coti diano jurisdicional e um emblemáti co, para exemplifi car. Caso 1. Controle jurisdicional da racionalidade no desempenho de função governamental: o benefí cio assistencial e o critério da miserabilidade econômica A Consti tuição Federal de 1988, cumprindo sua índole cidadã, assegurou ao idoso e ao portador de defi ciência que comprovarem não possuir meios de prover a própria subsistência, ou de tê-la provida por sua família, o direito à percepção de um salário mínimo mensal, a tí tulo de benefí cio assistencial (art. 203, inc. V). Ao regulamentar o mencionado preceptivo consti tucional, a Lei nº 8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)), com a atual redação dada pela Lei nº 12.435/2011, estabeleceu que se conside- ra “incapaz de prover a manutenção da pessoa com defi ciência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário- -mínimo” (art. 20, § 3º). Desta forma, segundo a LOAS, há dois requisi- tos a serem sati sfeitos em condições de cumulati va ocorrência para que o cidadão faça jus ao benefí cio assistencial: (i) ser idoso ou portador de defi ciência; e (ii) encontrar-se em situação de miserabilidade eco- nômica, ocorrente quando a renda familiar per capita for inferior a 1/4 do salário mínimo nacional. Analisemos o segundo requisito – renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário mínimo –, o qual foi objeto de acirrada discussão doutrinária e juris- prudencial. Inicialmente, cumpre enfati zar o estabelecimento desse padrão objeti vo de aferição de miserabilidade 380 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES em lei. Supõe-se, consectariamente, ter sido objeto de aprofundada refl exão. Na esfera legislati va, o tema passou pelo crivo da Comissão de Seguridade Social e Família, Comissão de Finanças e Tributação e Comissão de Consti tuição e Justi ça, todas da Câmara, e pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Parti cipati va, Comissão de As- suntos Econômicos e Comissão de Assuntos Sociais, do Senado, bem assim pelo Plenário de ambas as Casas Legislati vas. Ademais, a Presidência da República, com o as- sessoramento altamente qualifi cado, entendeu pela solvabilidade dos cofres públicos para arcar com os custos gerados pelo benefí cio assistencial, aprovando o critério objeti vo (1/4 de salário mínimo per capita). Esta intelecção foi simbolizada por meio da sanção presidencial da Lei nº 12.435/2011, que manteve o valor como paradigma. Portanto, após ampla análise, entendeu-se que a concessão do benefí cio àqueles que comprovassem renda familiar inferior a 1/4 do salário mínimo não oneraria demasiadamente o Erário, e que a insti tui- ção dessa políti ca pública, tal como preconizado pelo consti tuinte, seria salutar, nos moldes desenhados pela Lei nº 8.742/1993. Seguindo os ditames legais, a Administração Públi- ca passou a negar a concessão do benefí cio assistencial ao idoso ou defi ciente integrante de família com renda per capita superior ao limite máximo legalmente esta- belecido. Muitas dessas pessoas recorreram ao Poder Judiciário, pleiteando o estabelecimento do benefí cio, a despeito do não atendimento a um dos requisitos. A orientação predominante nos Tribunais Regionais Federais fi rmou-se pela possibilidade da concessão do benefí cio assistencial, a despeito do fato de a renda familiar per capita superar 1/4 do salário mínimo, desde que houvesse outros elementos a indi- ciar a situação de miserabilidade econômica (e.g. ne- cessidade de comprar remédios caros não fornecidos pelo SUS, custear tratamento médico especializado, contratar enfermeira). Nesse toar, consolidou-se no âmbito do STJ: [...] A limitação do valor da renda per capita fa- miliar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objeti vo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absoluta- mente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo [...].18 Em 1998, o STF, divergindo do entendimento ju- risprudencial amplamente prevalecente, reconheceu a consti tucionalidade do critério legal matemáti co estabelecido na LOAS, ao julgar improcedente a Ação Direta de Inconsti tucionalidade (ADIn.) nº 1.232/DF. Naquela oportunidade, consignou o Min. Nelson Jo- bin, em oportuna lição, ainda hoje atual: [...] compete à lei dispor sobre a forma de compro- vação. Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do benefí cio depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma [1/4 do salário mínimo per capita]. Portanto, não há interpretação conforme possível, porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da defi nição.19 Assim, naquela ocasião, o STF foi deferente à racionalidade e decisão dos Poderes Legislati vo e Executi vo. Todavia, em 2013, a própria Corte Suprema reviu seu posicionamento quando do julgamento do Recur- so Extraordinário (RE) nº 567.985/MT. Os Ministros reconheceram incidenter tantum a inconsti tucionali- dade parcial, sem redução de texto, do art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/1993, passando a admiti r a uti lização de outros critérios para fi ns de aferição da miserabilidade econômica dos postulantes ao benefí cio assistencial. Eis, em síntese, os fundamentos da reversão ju- risprudencial (overruling): i) o parâmetro objeti vo legalmente estabe- lecido poderia acarretar a exclusão do direito assistencial a pessoas miseráveis, realmente precisadas de auxílio estatal; e ii) com o passar dos anos foram editadas leis com critérios mais elásti cos para a concessão de outros benefí cios assistenciais, a saber: a Lei nº 10.836/2004, que criou o Bolsa-Família; a Lei nº 10.689/2003, que insti tuiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei nº 10.219/2001, 18. REsp. (Recurso Especial) nº 1.112.557/MG – Rel. Min. Napoleão Nu- nes Maia Filho – STJ – 3ª Seção – DJe de 20.11.2009. 19. ADIn. (Ação Direta de Inconsti tucionalidade) nº 1.232-1/DF – Rel. Min. Ilmar Galvão – STF – Pleno – j. em 27.8.1998. 381 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES que criou o Bolsa-Escola; a Lei nº 9.533/1997, que autoriza o Poder Executi vo a conceder apoio fi - nanceiro a Municípios que insti tuírem programas de garanti a de renda mínima associados a ações socioeducati vas. No que perti ne ao primeiro argumento, é assente, em doutrina e jurisprudência, a natureza programáti ca do art. 203, inc. V, da CF, a consti tuir norma de efi cácia limitada, dependendo de regulamentação infracons- ti tucional. Vale dizer que o consti tuinte, outorgou ao legislador ordinário o poder-dever de dar concreção ao precepti vo consti tucional, densifi cando o conceito jurídico indeterminado de “miserabilidade”. Melhor dizendo, competia ao legislador infraconstitucional estabelecer o que se entendia por “não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”, na literalidade do dispositi vo consti tucional. Ao desconsiderar a escolha políti ca (1/4 do salário mínimo), a Suprema Corte acabou exercendo, obli- quamente, controle do decision making process dos órgãos políti cos (Presidência da República e Casas do Congresso Nacional). Oportuno pontuar que, relati vamente ao segundo argumento,se evidencia com maior força o controle jurisdicional da racionalidade uti lizada para embasar a decisão políti ca (do Legislati vo e do Executi vo), principalmente ao ponderá-la com outras legislações aprovadas para assegurar direitos assistenciais. Ao assim proceder, o STF, embora indiretamente, fi rmou a aplicabilidade da racionalidade desenvolvida em outras decisões políti cas para o benefí cio assistencial. Desde essa decisão paradigmáti ca, os Tribunais, de forma amplamente majoritária, se não unânime, têm aceitado outras provas de miserabilidade, reco- nhecendo o direito à percepção de um salário mínimo legal mesmo para aqueles que auferem renda familiar per capita superior a 1/4 do salário mínimo.20 O resultado, que contou com a colaboração ju- dicial, foi a implantação do programa social gerador de maior dispêndio aos cofres públicos, superando inclusive os custos do Bolsa-Família. Esti ma-se que em 2015 o gasto será de quase R$ 42 bilhões e, como bem destacou Pedro Fernando Nery: 20. Nesse sentido, ver TRF-1, AC nº 180146120134019199, DJe de 16.10.2013; TRF-2, AC/RE nº 201402010065423, DJe de 9.10.2014; TRF-3, AC nº 003371737 20124039999, DJe de 13.9.2013; TRF-4 AG nº 200104010887366; e TRF-5, REO nº 00034470620104058201. Em relação à pobreza, o Benefí cio de Prestação Conti nuada (BPC) não é considerado o instrumento mais efeti vo para reduzi-la. Desde a sua implantação e até recentemente, o BPC, junto com as transferên- cias do INSS, ajudou a reti rar da pobreza milhões de idosos e defi cientes pobres, mas gastos adicionais com o benefí cio não trazem mais resultados signifi cati vos nessa direção (2014). Sem questi onar os méritos do benefí cio assisten- cial, o fato é que o STF, ao julgar o RE nº 567.985/MT, alargou o espectro de potenciais benefi ciários, sem elaborar qualquer estudo técnico quanto ao impacto de sua decisão. Indo além, desconsiderou o critério objeti vo traçado pelos Poderes Executi vo e Legislati vo. Para agravar a situação, consagrou-se realida- de de notável insegurança jurídica a sobrecarga do próprio Judiciário. Isso porque a Administração deve sempre pautar sua atuação em lei. Portanto, está (em tese) impedida de apreciar se, no caso, apesar de a renda familiar superar 1/4 do salário mínimo, o pos- tulante se encontra em situação de miserabilidade (a lei não lhe confere tal discricionariedade).21 Logo, só resta ao pretenso benefi ciário recorrer ao Judiciário e, em realidade, nem mesmo ele sabe se faz jus ao benefí cio, porquanto a aferição da miserabilidade passou a ser bastante fl exível e subjeti va. Possivelmente, nesse caso, o controle do rati onal decision making tenha contribuído para criar ainda mais inefi ciências em nosso sistema jurídico, econô- mico e social. De qualquer modo, o mesmo raciocínio está sendo estendido ao auxílio-reclusão, tendo decidido o STJ que É possível a concessão de auxílio-reclusão aos dependentes do segurado que recebia salário de contribuição pouco superior ao limite estabelecido como critério de baixa renda pela legislação da época de seu encarceramento [...] quando o caso concreto 21. É bem verdade que, atualmente, se pugna pela vinculação da Admi- nistração Pública não só à legalidade, mas também à legiti midade e juri- dicidade. Assim, em tese, a autoridade administrati va poderia adotar o posicionamento do STF e conceder o benefí cio assistencial àqueles cuja renda familiar se situa em patamar pouco acima do limite de ¼ do salário mínimo per capita. Não obstante, como se trata de aplicação direta da Consti tuição (e de norma de efi cácia limitada de lege ferenda),e por en- volver princípios de baixa densidade normati va (mormente a dignidade da pessoa humana), a práti ca revela que, na enorme maioria dos casos de renda familiar per capita superior ao limite legal, o benefí cio assistencial é denegado. Sobremais, a limitação probatória na via administrati va (não há elaboração de estudos familiares e sociais, como ocorre na via judicial) igualmente difi culta a concessão do referido benefí cio nessas situações limítrofes, forçando o postulante a recorrer ao Judiciário. 382 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES revelar a necessidade de proteção social, permiti ndo ao julgador a fl exibilização do critério econômico para deferimento do benefí cio pleiteado, ainda que o salário de contribuição do segurado supere o valor legalmente fi xado como critério de baixa renda no momento de sua reclusão (Recurso Especial – REsp. nº 1.479.564 – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – STJ – 1ª Turma – j. em 6.11.2014). Aguardemos o desfecho para avaliar as con- sequências da consolidação desta nova intelecção pretoriana. Caso 2. Controle jurisdicional da racionalidade no desempenho de função administrati va: decisões em processos administrati vos disciplinares Como é sabido, todos os servidores públicos civis da União se submetem à disciplina da Lei nº 8.112/1990. Segundo este regime jurídico, a pena de demissão deverá ser aplicada, dentre outros casos, quando comprovada a práti ca de ato ti pifi cado como crime contra a Administração Pública (art. 132, inc. I, do referido diploma normati vo). Doutro lado, não há dúvida quanto à indepen- dência entre a via administrati va e a esfera judicial e administrati va, como regra geral. Afi nal, a condenação criminal exige prova cabal acerca da materialidade e autoria deliti va. Tal exigên- cia decorre diretamente da possibilidade de ser apli- cada pena privati va de liberdade, extraível igualmente do princípio de presunção de inocência. No mais, o Juiz é livre para valorar e sopesar as provas, devendo apenas moti var o seu convencimento. A via administrati va é menos rígida quanto à exi- gência de prova exausti va (inclusive porque a sanção mais grave a ser aplicada é a demissão), sendo certo que a Administração Pública, ao decidir um processo administrati vo disciplinar, possui margem de liberda- de para avaliar o panorama fáti co-probatório, deven- do igualmente moti var sua convicção. Posto isso, é absolutamente uníssona a jurispru- dência em afi rmar a não vinculação da Administração Pública nos casos de absolvição criminal, salvo se o decreto absolutório se fundamentar em negati va de autoria ou inexistência do fato.22 Há, ainda, posição 22. Lei nº 8.112/1990, Art. 126. A responsabilidade administrati va do ser- vidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria. doutrinária e jurisprudencial a pugnar pela repercus- são administrati va da absolvição decorrente da prova da existência de causa excludente de ilicitude (STJ – REsp. nº 1.090.425).23 Afora essas hipóteses (respecti vamente, art. 386, incs. I, IV e VI, do CPP), a Administração Pública é livre para deliberar acerca da ocorrência, ou não, de falta funcional prati cada pelo servidor público pertencente aos seus quadros funcionais. Embora essa seja a tradicional posição jurispru- dencial24 em verdade, o Judiciário muitas vezes se imiscui na discricionariedade administrati va, nota- damente na valoração das provas e formação da convicção (decision making process), mesmo quando inexiste ilegalidade a ser afastada. Veja-se, por exem- plo, o aresto abaixo colacionado: Mandado de segurança. Processo administra- ti vo disciplinar. Demissão. Agente da Polícia Fede- ral. Formação insufi ciente do conjunto probatório. Desproporcionalidade da pena de demissão. Ordem concedida. 1. Consoante orientação traçada pela eg. 3ª Seção do STJ, a infração funcional consistente em recebi- mento de vantagem econômica indevida, e de resto todas as infrações que possam levar à penalidade de demissão, deve ser respaldada em prova convincente, sob pena de comprometi mentoda razoabilidade e proporcionalidade. Precedentes. 2. No caso, o acervo probatório não se mostra sufi ciente para comprovar, de maneira ampla e indubi- tável, a atuação da agente da Polícia Federal em cobrar propina do estrangeiro que se encontrava com visto de turista expirado no território nacional, evidenciando a desproporcionalidade da pena aplicada. 3. Não obstante a independência das esferas pe- nal e administrati va, mister ressaltar que a impetrante foi absolvida do crime de corrupção passiva, por falta de provas, na Ação Penal Pública que tramitou perante 1ª Vara Federal do Rio de Janeiro. 4. Segurança concedida para anular a Portaria nº 47, de 18.1.2008, que demiti u o impetrante do cargo 23. “A sentença penal absolutória que reconhece a ocorrência de causa excludente de ilicitude (estado de necessidade) faz coisa julgada no âm- bito administrati vo, sendo incabível a manutenção de pena de demissão baseada exclusivamente em fato que se reconheceu, em decisão transi- tada em julgado, como lícito.” 24. Nesse senti do, ver STJ, Mandado de Segurança (MS) nº 16.554/DF, DJe de 16.10.2014; Agravo Regimental (AgRg) no Agravo em Recurso Especial (AREsp.) nº 221.072/SP, DJe de 20.8.2014; e AgRg no Recurso em Manda- do de Segurança (RMS) nº 43.078/SP, DJe de 24.6.2014. 383 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES de agente da Polícia Federal, determinando-se sua reintegração ao cargo, assegurando-lhe os efeitos da segurança à data da publicação do ato de demissão. (MS nº 13.581/DF – Rel. Desa. Convoc. Jane Silva – STJ – 3ª Seção – DJe de 4.2.2009) (grifo nosso). Cabe destacar, por oportuno, que os Ministros não concluíram estar provado que o servidor pú- blico não praticou fato tipificado como crime, ou que não havia provas para manter a condenação administrativa. Apenas afirmou-se a insuficiência das provas. Para fundamentar a anulação do ato administrati - vo de aplicação da pena de demissão, o STJ pautou-se pela suposta desproporcionalidade. Contudo, não parece ser esse o caso, senão vejamos. Concluindo-se pela efeti va práti ca de corrupção (deliberação esta de competência da Administração Pública), é adequada a aplicação da pena de demis- são, inteligência extraída da literalidade do art. 132, inc. I, da Lei nº 8.112/1990. Igualmente, a medida revela-se necessária para sancionar sufi cientemente o infrator, não havendo sanção substi tuti va que cumpra este desiderato a contento. Por fi m, atendido está o requisito da proporcionalidade em senti do estrito, pois, sopesando-se os valores envolvidos, constata- -se, com hialina clareza, a sufi ciente gravidade da conduta prati cada pelo servidor público para fi ns de aplicação da pena de demissão (no caso, a práti ca de corrupção passiva). Haveria desproporcionalidade a ser afastada pelo Judiciário caso o servidor público ti vesse sido demiti do por haver se apropriado de pequena quanti dade de grampos, algumas poucas canetas ou resmas de papel (fato formalmente ti pifi cado no art. 312 do Código Penal (CP)). Outrossim, seria combatí vel o ato administrati vo que demiti sse o funcionário à míngua de lastro pro- batório mínimo idôneo a comprovar a grave falta fun- cional, não em virtude da desproporcionalidade, mas em razão de outro vício (no caso, poderia haver abuso de discricionariedade ou abuso de poder, desvio de fi nalidade, vício do ato administrati vo na moti vação [teoria dos moti vos determinantes], a depender do caso), ou, até mesmo, ao fundamento do Wednes- bury unreasonableness, conquanto nenhuma pessoa racional chegaria à mesma conclusão a que chegou a autoridade administrati va (irrazoabilidade). A bem ver, no caso apresentado o ato administra- ti vo em si nem sequer era discricionário. A discriciona- riedade residia na margem conferida à Administração para avaliar o acervo probatório do processo adminis- trati vo disciplinar como, de resto, sói ocorrer com os atos administrati vos cognominados discricionários.25 Concluindo-se pela ocorrência de corrupção, a pena de demissão se impunha. Com o devido respeito, não havia desproporcio- nalidade a ser repelida pelo Judiciário, a despeito da fundamentação do acórdão. Deveras, o que ocorreu foi a avaliação, pela Corte Superior, dos fatos e pro- vas admiti dos como adequados e sufi cientes para a tomada da decisão administrati va, isto é, o escrutí nio da racionalidade do processo decisório. Em últi mo plano, o STJ acabou por substi tuir a ra- cionalidade da Administração Pública por sua própria, indevidamente incursionando na discricionariedade administrati va sob o (incorreto) fundamento da pre- valência do princípio da proporcionalidade. Caso 3. Controle jurisdicional em face da interação confl ituosa entre legalidade e efi ciência O controle judicial da racionalidade do Executi vo surge muitas vezes em decorrência do dilema entre privilegiar a legalidade ou a efi ciência, ambos prin- cípios consti tucionais a orientarem a Administração Pública. Percebem-se corriqueiramente situações em que o gestor público, ao perseguir o cumprimento estrito de todas as regras legais, imputa ao Estado uma ine- fi ciência no aproveitamento dos recursos e na presta- ção dos serviços públicos. Nesse ponto, evidenciam-se hipóteses em que a escolha legislati va, sob a óti ca do caso concreto, não apresenta a efi ciência necessária para o êxito da atuação administrati va. Em face desses casos, qual escolha deve realizar o administrador? Qual a margem de interferência conferida ao Poder Judiciário, no âmbito de seu controle jurisdicional, em casos de confl ito entre esses princípios? 25. Sobre o tema, obtempera Celso Antônio: “[…] não é o ato que é vin- culado ou discricionário; tanto que se costuma afi rmar que tais ou quais ‘elementos’ dele são sempre vinculados. Donde, por imperati vo lógico, o ato, em si mesmo, nunca o seria, como bem observou Víctor Nunes Leal. Em verdade, discricionária é a apreciação a ser feita pela autoridade quanto aos aspectos tais ou quais e vinculada é sua situação em relação a tudo aquilo que se possa considerar já resoluto na lei, e, pois, excluden- te de interferência de critérios da Administração” (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 984 – grifo do autor). 384 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Esse tema é discuti do em Santos e Meneguin (2014), que trazem o seguinte caso ilustrati vo: Nos autos da Apelação nº 157-90.2000.01.3400, julgada em 3.5.2013, o TRF1ªR afastou a aplicação da Instrução Normati va nº 13/1999, da Secretaria de Defesa Agropecuária (Ministério de Agricultura e do Abastecimento), que previa prazo de 60 dias para li- cenciamento de importação de alho. Entendeu-se que o estabelecimento de prazo elásti co violara o princípio da efi ciência, especialmente considerando o caráter perecível do produto importado, bem como os riscos de perda do produto, caso cumprida a legislação, em seu rigor. Nesse senti do, o Estado-Juiz determinou que a União afastasse a regra impugnada, para processar o pedido de licenciamento em prazo exíguo. Na ocasião, ponderou o TRF1ªR: A Administração Pública deve pautar seus atos dentro dos princípios consti tucionais, notadamente o da efi ciência, que se concreti za pela condução racional e célere dos procedimentos que lhe cabem. A função administrati va deve ser desempenhada, não apenas com a observância ao princípio da legalidade, mas exi- gindo, outrossim, resultados positi vos para o serviço público e sati sfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros. Novamente o que se percebe é uma atuação no senti do de reavaliar a racionalidade da Administração Pública, dessa vez sob o fundamento da efi ciência. Caso 4. Concurso público e direito subjetivo público à nomeação do candidato aprovado fora do número de vagas previsto no edital – Recurso Extraordinário (RE) nº 837.311 O Recurso Extraordinário nº 837.311, julgado aos 14.10.2015, trata de um concurso público aberto para o provimento de 30 cargos de defensor público do Estado do Piauí.26 Finalizado o concurso, diversos candidatos aprovados fora do número de vagas impe- traram, em liti sconsórcio ati vo, mandado de seguran- ça pleiteando a nomeação e a posse, ao argumento de que haveriam cargos vagos surgidos no decorrer do prazo de validade do certame. Ademais, o Defensor Público-Geral do Estado teria manifestado a necessidade de novos defenso- 26. Por ser recente o julgado, até a fi nalização do presente arti go não ha- viam sido publicados os votos dos Ministros. Dessa forma, as referências são aos votos orais formulados pelos Ministros do STF. res públicos, além de ter-se aberto novo concurso durante a vigência do primeiro, no qual aprovados os impetrantes. O impetrante pior classifi cado ocupava a 150º posição, e aquele melhor colocado teria logrado apro- vação em 119º lugar. A Administração Pública, todavia, decidiu convocar apenas os 118 melhor avaliados, após o qual entendeu por bem expedir novo edital inaugurador de outro concurso público. O Tribunal de Justi ça do Estado teria concedido a segurança, determinando a nomeação dos impetran- tes, por entender haver necessidade de defensores públicos, reconhecida pela própria Administração Pública. A contenda chegou ao STF por meio de agravo de instrumento converti do em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida. No julgamento do mérito discuti u-se a liberdade discricionária de o administrador nomear os candida- tos aprovados fora do número de vagas, porquanto a Suprema Corte já teria fi rmado a tese da inexistência, na hipótese, de direito subjeti vo dos concorrentes à nomeação. Embora não se tenha feito menção ao controle da racionalidade administrati va, de fato a Corte pro- cedeu a isto. O Min. Luís Roberto Barroso, inclusive, apresentou os argumentos alhures formulados con- trários à referida sindicância, para chancelar a decisão administrati va de não convocar outros aprovados fora do número de vagas e abrir novo concurso público: O Tribunal de Justi ça do Estado do Piauí con- siderou que havia necessidade de contratação de defensores públicos pela Administração. Este foi o fundamento da decisão do Tribunal de Justi ça do Piauí: há necessidade dessa contratação [...]. Eu entendo, Presidente, com todas as vênias, que há aqui uma violação ao princípio da separação de Poderes, em que o Poder Judiciário é que entendeu que havia a necessidade de contratação [...] Não é uma questão de o Poder Judiciário rever a legalidade de um ato do Poder Público; é uma questão de o Poder Judiciário se sobrepor ao juízo de conveniên cia e oportunidade da Administração Pú- blica para fazer ou não uma determinada nomeação. Uma coisa é se anular uma nomeação, por pre- terição, e nomear o candidato melhor classifi cado. Esta situação é completamente diferente da situação 385 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES de a Administração decidir que há necessidade e, portanto, nomear um lote de pessoas, não no lugar de alguém indevidamente designado, mas porque o Judiciário achou que estava precisando de mais defensor público. Portanto, eu entendo que há clara violação do princípio da separação de Poderes, porque o Judiciário tomou uma decisão administrati va de conveniência e oportunidade de se nomearem servidores para um determinado cargo. [...] o administrador, o Governador, tem que ter a competência mínima de saber se há orçamento, se há condições [para realizar-se a nomeação], porque nós estamos vivendo uma crise fi scal. Se o Governa- dor percebe que não tem condições de fazer aquelas nomeações [...], o juízo é dele [...]. Não tem senti do o Judiciário se sobrepor nessa valoração. Se a Administração se comportar de maneira arbitrária, caprichosa, aí é diferente. Mas, aqui, não aconteceu isso [...]; foram abertas 30 vagas no edital e, depois, a Administração nomeou 118. E, depois, achou que estava de bom tamanho [...] e que era melhor fazer um novo concurso [...]. Eu preciso dizer que eu também acho. Quando se chega [...] no 118º [candidato aprovado em concurso aberto para 30 vagas], provavelmente se [realizado] um novo concurso poderá se recrutar gente que esteja mais preparada. Eu não consigo imaginar considerar que seja ilegíti ma para a Administração querer contra- tar gente mais preparada. O Min. Luiz Fux posicionou-se em senti do con- trário, entendendo haver, na espécie, obrigação de a Administração empossar os candidatos. Chegou a sugerir a existência de um direito fundamental do candidato, em vista da esperança e do tempo de- dicado à realização do concurso, a ser preservado, inclusive, em face do interesse público primário de buscar os melhores servidores para ocupar os cargos públicos. A Min. Rosa Weber, por sua vez, embora tenha acompanhado a tese fi rmada pelo Min. Barroso, en- tendeu existi r, no caso concreto, direito subjeti vo à no- meação, em razão da convocação de 118 candidatos: Peço todas as vênias [...] para fi car com a diver- gência aberta pelo Min. Luís Roberto. [... contudo ....] no caso concreto [...] porque foram até o 118? [...] Como pode o administrador defi nir o momento em que ele para de chamar? Em outro evidente controle da racionalidade do processo decisório administrati vo, o Min. Dias Toff oli asseverou: Nesse caso concreto fi ca claro [...] que houve preterição, porque houve discricionariedade na es- colha de até onde se chamaria no concurso “a”, para abrir um concurso “b”, enquanto ainda se poderia ter chamado aprovados do concurso anterior. Prevaleceu, enfi m, a manutenção do acórdão do Tribunal de Justi ça, obrigando o Estado do Piauí a nomear os candidatos aprovados fora do número de vagas. À evidência, foi desconsiderada a deliberação administrati va procedendo, os Magistrados, à análise acerca da conveniência e oportunidade do exercício da competência discricionária administrati va de optar-se entre a convocação dos candidatos aprovados fora do número inicial de vagas ou a abertura de novo con- curso público, preferindo-se a primeira. Resta saber, apenas, se competi a ao Judiciário decidir por uma ou outra e se a Magistratura detém condições de tomar a decisão óti ma, mormente em vista do desconhecimento das capacidades fi nanceiras do Estado do Piauí e das reais necessidades da Defen- soria Pública daquele ente federati vo. 7 CONCLUSÃO O presente arti go buscou introduzir o tema do rati onal decision making como parâmetro de controle judicial da discricionariedade do Poder Executi vo, a fi m de viabilizar uma investi gação doutrinária mais profunda. Deveras, já se percebe, na atualidade, a realização de um controle judicial da racionalidade da decisão do Poder Executi vo. É bem verdade que isto não é feito às escâncaras, mas implicitamente. Mais importante do que rechaçar a possibilidade da sindicância do rati onal decision making process, é reconhecer a sua existência e traçar, com clareza, suas balizas. Desta forma se atenuará a tensão entre Poderes da República, evitando-se a cognominada guerrilha insti tucional. Para tanto, incumbe à doutrina fornecer subsídios aos Magistrados. Contudo, o tema reclama maior aprofundamento e análise acadêmica no Brasil. 386 ABR/16 DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADESDOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES Os Juízes, por sua vez, têm evitado enfrentar a questão, porquanto é mais simples suscitar um prin- cípio consti tucional e a sua prevalência normati va, do que refl eti r sobre os
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