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indagar ou comparar. Outro detalhe metodológico consiste na variação da “dosagem” de interesse que corresponde às obras de diferentes épocas. Por exemplo: nos co- mentaristas da Constituição imperial, é importante olhar o conjunto e farejar as idéias expendidas em toda a obra; nos da republicana, que já são mais numero- sos e mais especializados, pode-se ressaltar o aspecto político, deixando outros aspectos para a historiografia jurídica, ou mesmo juntar em bloco a apreciação a fim de situá-los em seu tempo. Gostaria de ter podido tentar uma divisão por gerações. Mas o material histórico e as interpretações disponíveis ainda não estão maduros para isso. Somente em certas seqüências é que as diferenças de geração se fazem visíveis e podem ser situadas como perfil cultural. Em todo caso, a alusão a gerações se complementaria – e se complementa aqui, na medida do possível –, com a alusão a temas, que caracteristicamente se sucedem ou se transmudam de geração para geração. Resgate-se em todo caso o fato de que, quando se fala em “valores” estimados por alguma geração passada, isso não deve fazer pensar que ela tenha tido sempre a idéia expressa de “valor”, ou que tenha tido a consciência de ser geração. * * * Outro ponto para esta já prolongada reflexão proemial: o da rela- ção entre teoria e prática em nossa experiência política nacional. Cabe situar para logo o sentido disso que Macunaíma teria chamado “a máquina teorias”. A velha tendência de dar a ação como conseqüência da con- templação, fundada no pensamento grego e expressa no famoso motto itali- ano segundo o qual “la teoria é il capitano, la pratica sono il soldati”, vem sendo ultimamente posta em crise, por força de certas posições, em que a práxis é dada como base mesma da teoria ou posta em nível idêntico. Real- mente esses dois “momentos” da realidade humana são complementares, e toda atribuição de seqüência e procedência na relação entre ambos é difícil de universalizar; se bem que, diante do intelectualismo helênico, a tendên- cia supramencionada seja perfeitamente compreensível: aquilo que ficou expresso pelos filósofos mais representativos e mais “clássicos” denota uma concepção da sabedoria como tranqüila e nobre compreensão das coisas, História das Idéias Políticas no Brasil 35 superior e prévia ao obrar e ao “negócio” que nega o ócio. O que porém precisa ser reestruturado, a partir, inclusive, das posições contemporâneas sobre a relação entre “consciência” e “existência”. Seria um tema para a teoria da cultura brasileira, situar ante a vida nacional este velho binômio. Para o nosso caso presente, isto é, para o levantamento das idéias políticas, a questão da relação destas com a ação não é bem um problema de precedência ou valor, mas, antes, de adequação ou coerência: uma das tarefas do historiador, nesta faixa, deverá consistir em averiguar se as idéias e os comportamentos estiveram concordes, até que ponto nossas teorias orientaram a realização de uma prática, e até que ponto ou em que modo elas estiveram enganchadas a “situações”. De modo que, para a “apreciação” do pensamento social brasileiro, o caso às vezes não será tanto o de compará-lo ao europeu – alguns o vêem, diante deste, como estando sempre arrieré – mas sim (ou, ao menos, “também”) o de estimar sua conexão com os fluxos e os meandros da realidade a que corresponde. Uma realidade, a brasileira, que aliás sempre foi complicada, não talvez no sentido de possuir muitas “contradições internas”, mas por apresentar-se todo o tem- po cheia de nuances, paradoxos, pluralidade de componentes e de aspectos. Na medida em que os estudiosos nacionais se habituarem a esse aspecto da coisa, é possível que se atenue a inclinação a querer achar explicações muito genéricas para as nossas realidades. Inclinação que, de resto, muitas vezes se utiliza da aplicação, aos casos daqui, de esquemas interpretativos importados sem maior crítica. Não é tão importante, a meu ver (e sim às vezes muito artificial), certa distinção, sempre feita entre o approach acadêmico e o não-acadêmico, ou entre o convencional e o anticonvencional, nos estudos sociais. O que há a distinguir são os graus da lucidez crítica ou os do compromisso ideológi- co. Cada grande tema brasileiro deve ser revisto sob o prisma da diferença entre o modo europeu de ver e formular, ligado à secular experiência euro- péia, e o modo brasileiro (ou o latino-americano, e mais amplamente o dos povos em desenvolvimento), emergindo para a autoconsciência mas fatal- mente misturado às matrizes européias. Penso que a vigilância crítica do crítico brasileiro não deve consistir propriamente em “assentar” sobre essa ou aquela posição, recebida da cultura dita ocidental: ela deve lançar sobre quaisquer posições a relativização proeminente de compreender que todas 36 Nelson Nogueira Saldanha devem seu significado a conjunturas histórico-culturais concretas. Para ser claro, e já que a posição marxista é sempre em questão, penso (mas sem que o desconto dado me iniba de a acompanhar em alguma coisa) que, se hoje já não se entende a “história de idéias” como uma enfiada de sistemas ou concei- tos tomados por si mesmos e como articulando-se no ar, também não se pode reduzir o seu sentido ao de mero resultado das condições materiais. De qualquer sorte, é importante que os leitores brasileiros este- jam bastante conscientes de quanto interessa, para um país como o nosso, a perspectiva histórica. E nessa perspectiva o pensamento político aparece como pretensão e como documento. É verdade que havia algum fundamento na advertência de Nietzsche sobre o perigo que o estudo histórico traz, que é o de absorver o espírito, prendê-lo ao passado e inibir a vida para o presente e a criatividade; e Hans Kohn, recentemente, em páginas autobiográficas, registrou a quase saturação de história e de saber histórico em que andam os povos (mor- mente os europeus) hoje. Mas os países como o Brasil, que se debatem para superar um estágio ainda colonial, têm tal situação que o seu modo de ter futuro depende em parte de uma lucidez histórica; estão forçados a saber a história dos outros, que envolve a sua, e a compreender a sua sobre o mode- lo da dos outros. Daí a grande importância das numerosas publicações que nestes últimos anos vêm surgindo no Brasil sobre problemas de subdesen- volvimento e de imperialismo: elas são um chamado à revisão histórica. E é preciso deliberadamente relacionar certos problemas com a situação geral da América Latina, ou com certos lances da história de seus países. Uma história aliás muito mal conhecida no mundo, pois só se divul- gam as “epopéias nacionais” dos países ditos importantes: é assim por exem- plo que um Bolívar, que fez muito mais do que um Washington, tem entretanto muito menos relevo no plano mundial. Et pour cause. É preciso também ajudar os jovens, que facilmente se empol- gam por algum autor ou escola e adotam opiniões políticas sem ter estuda- do devidamente as coisas, a saber situar as correntes em que se movem as idéias. O que não me impede de dizer, entretanto a frase banal embora meio zaratustriana, que isto é um livro para poucos e para todos. Mesmo porque, em relação à História, todos somos o futuro. História das Idéias Políticas no Brasil 37 Gostaria que este ensaio pudesse ter sido mais interpretativo. Ocorre porém que faltam exposições de conjunto sobre seu tema (uma síntese rápida, mas tão discutível quão sugestiva, deu-a recentemente Alceu Amoroso Lima nas páginas sobre a “Evolução da Democracia no Brasil” incluídas no livro Pelo Humanismo Ameaçado); e ele visa mes- mo, em parte, obviar esta lacuna. Além do mais, o material documentário é vastíssimo _ aliás há muitos textos políticos pedindo reedições críti- cas, tarefa na qual as universidades brasileiras poderiam ajudar. Por isso o trabalho teve de ser, antes de tudo, levantamento e registro,