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A IMPRENSA COMEMO A " REP LICA: memórias em luta no 15 de novembro de 1890 'V ma nova revolução operou-se ontem em todo o mundo fluminense, mas rêuolução ck entusiasmo" O Paiz, 16 de novembro de 1890 "( ... ) o glorioso aniversário da ditadura encontra a nação indiferente e apática. (. . .) A festa é, pois, essencial e exclusivamente oficial. " A Tribuna, 12 de novembro de 1890 imprensa carioca de 1890 nos dá dimensão da marca funda mental da primeira comemoração do 15 de novembro: a tentativa de se construir uma tradição de forte con t e ú d o simbólico (Ferreira Neto 1989:47). Segundo o que foi noticiado, i a pesar da chuva as tropas teriam re produzido a disposição que haviam to mado no ano anterior, durante a der rubada do governo constitucional. Carla Siqueira Houve desfile de tropas, e Deodoro as passou em revista. Figura central dos festejos, o "Generalíssimo" teve uma placa comemorativa inaugurada em sua casa, marcando sua atuação histó rica na Proclamação. O 15 de novembro organizado pelo governo provisório destacava a presen ça militar. O Exército aparecia como a instituição salvadora. O perdão às "praças de linha", que em dezembro de 1889 haviam cometido "atos de indis ciplina") oferecia uma prova da genero sidade do líder Deodoro. Aabertura do Congresso no dia máximo da pátria, por sua vez, era uma prova de sua afeição à legalidade, à ordem. Durante os três dias de comemora ção, bandas militares tocaram o hino nacional, em coretos enfeitados com as " da Re 'bli " M . armas pu ca . enlDAS em "trajes alegóricos da República" desflia ram em procissão cívica. Quartéis, ruas, edifícios públicos e particulares foram EatucJo.llia16ricoa, Riode Janeiro, vol. 7, n. 14, 199<t, p. 161-181. • 162 ESTUDOS HISTÓRICOS -)994/a especialmente iluminados. A ilumina ção era, aliás, um dos elementos mais fortes da cena celebmtiva. No Campo da Aclamação foi erguida uma coluna, em cl.\Ío topo encontrava-se uma ''Estátua da Liberdade". Na mão direita ela por tava um facho de luz, na esquerda o decreto da Proclamação da República. O 15 de novembro de 1890 tentava abafar as discussões sobre o 15 de no vembro de 1889. Um ano após a Pro clamação, o patrocinador da comemo ração quer afirmar seu poder político, num momento em que o pacto entre republicanos paulistas, militares e ou tros segmentos burocráticos e oligár quicos está sl.\Íeito a lutas internas pe la hegemonia, além de enfrentar a opo sição monarquista. Preocupados quanto à sobrevivência do novo regime, 05 republicanos chegam a uma unanimidade: a sacralidade da data. O 15 de novembro torna-se um marco indiscutível, 2 a partir do qual se havia iniciado a udemolição de três sé culos" anunciada por Deodoro na aber tura do Congresso. q,nforme nos diz Edgar Leite Fel'l"ira Neto (1989: 41- 43), o 15 de novembro transfol'I!Ia-se numa udecretação de eternidade", o anúncio de um novo testamento da or dem a vigorar nos séculos vindouros. Neste ambiente conflituoso, a come moração do 15 de novembro de 1890 evoca a reflexão sobre os acontecimen tos desde a Proclamação, e as páginas dos jornais expressam o embate entre republicanos e monarquistas. 3 Filia dos a um grup:> ou ao outro, os jorna listas tàm a certeza de estarem viven do um momento crucial para o país, e sentem-se testemunhas privilegiadas, na pretensão de serem historiadores do presente. Acirra-se, então, a batalha das versões, a luta pela afirmação de uma determinada inteligibilidade. Através do discurso comemorativo, nos diz Eric Walter (1983:14), a im- prensa ascende à mais alta função da memória: dar sentido ao devir, como fator de coesão e de organização do todo social. A rememoração histórica reali zada pela imprensa não oferece apenas uma visão do passado. Pelo que lembra e pelo que esquece, oferece, também, uma compreensão do presente, urna ordem que se quer preservar no futuro. A esta leitura dos eventos decorridos vem 6omar�se a construção - positiva no caso dos republicanos, negativa no caso dos monarquistas - da festa como acontecimento. Objetivamos, neste texto, com preender como o gesto comemorativo se inscreve no discurso da imprensa, identificando as estratêgias memoria listas, com suas regras e seus parado� xos. 1bmamos como pressu}X)sto a pos� sibilidade de olhar para o discurso jor nalístico como lugar de memória (No� ra, 1984) de um embate, mas também como uma cena textual (Walter, 1983), onde se distribui um material semân· tico e onde se efetua um certo número de operações retóricas, o que nos per· mite relativizar a diferença entre repu blicanos e monarquistas e fazer apare cer um jogo de fOl'mas e sentidos que faz a especificidade relativa deste dis curso da inIprensa. O provisório eterniza a República A 17 de novembro de 1890, em meio aos festejos do prinleiro aniversário da República, o editorial de O Paiz traça a linha do jornal, afirmando sua atua ção na propaganda republicana e tam bém sua tarefa na consolidação do novo • regIme: UMesmo por ter sido um dos princi. pais fatores da revolução política, cumpre-lhe a tarefa e a honra de • A IMPRENSA COMEMORA A REPUBUCA 163 ser um dos maiores auxiliares da reorganização social. Alssim firma do o Brasil no regime republicano, começou a suceder à refotlna das instituições a reconstrução dos COSA tumes. E neste momento em que de todas as intelectualidades e de to dos 05 corações a pátria espera o contingente do seu critério e do seu civismo para Ber deveras na demo cracia americana o núcleo de colos sal grandeza; ( ... ) fazer alguma coisa na esfera da propaganda, pelo melhoramento social, sob inspira çã� de conservadorismo racional e patriótico, parece-nos a mais larga, a mais fecunda de todas as fórmu las e de todas as exigências de po lítica." As palavras de O Paiz, jornal ligado a Quintino Bocaiúva 4 -figura central nos acontecimentos de 1889, ministro de Deodoro em 1890-revelam o enten dimento dos republicanos acerca do ne cessário esforço a ser empreendido. Decretada a República, esta era uma idéia pela qual ainda era preciso lutar. O trabalho de propaganda não estava findo, muito pelo contrário, tornava-se mais complexo. Agora, significava ga rantir a legitimidade da nova ordem e atender à expectativa de realização do que fora prometido. Cumprir a pro messa, isto é, encarnar a idéia de Re pública, significava a construção de um novo Estado e da sua articulação com a paUs e o demos, ou seja, a reor ganização do espaço público. Firmado o Brasil no regime republi cano, reform.adas as instituições - as sim diz o jornal - a principal tarefa política torna-se a "reorganização so cial". Na verdade, conforme nos mostra Renato Lessa (1987:43), o veto imposto ao regime monárquico não implicou a invenção positiva de uma nova ordem, caracterizando-se os primeiros anos da República majs pela ausência de meca nismos institucionais próprios do Im pério do que pela criação de novas for mas de organização política, Segundo o autor, o que se seguiu à Proclamação foi a desrotinização da política, o "mer gulho no caos", Estava assim em jogo a legitimidade do novo regime, bem co mo o poder daqueles que o haviam implantado. 05 primeiros momentos da vida re publicana foram então consumidos neste esforço de legitimação, através da insinuação de crenças e sistema" de valores. No trecho de O Pai� percebe mos o acerto da expressão de Pierre Nora (1984:IX): a história da Repúbli ca é a história de uma aculturação. "Para ser deveras na democracia ame ricana ° núcleo de colossal grandeza", é preciso promover a "reconstrução dos costumes", "sob inspiração de conservadorismo racional e patriótico", isto é, inscrever as práticas sociais na ordem republicana. Autores como Lúcia Lippi Oliveira (1989), José Murilo de Carvalho (1990) e Edgar Leite Ferreira Neto (1989) mostraram como se buscou recriar o imaginário coletivo dentro de um sen tido cívico republicano, numa ação pe dagógica que se traduziu na produção de novos símbolos, tais como a bandei ra, o hino, os monumentos e o calendá rio das festas oficiais. A essa tentativa de prover urna moldura para a vida social chamou Eric Hobsbawm (1984) de invenção das tradições. Proclamada a República, ela continua a ser uma meta a realizar. Este esforço de manu tenção da idéia de República insere-se na dinãmica dos conceitos de movimen to, tal como proposta por Reinhart Ko selleck (1985). Segundo o autor, a filosofia da histó ria fundada pelo iluminismo dá início à consciência da diferença qualitativa entre passado e futuro. A idéia de pro- 164 ESTUDOS mSTÓrucos -199(11. gresso é o marco da existência desta consciência histórica, que empreende a valoração da experiência. É neste pon to que, de conceitos tais como "repúbli ca" e "democracia" - que indicam um exemplo de experiência acontecida no pas!\8do que o futuro deveria repetir derivam 05 conceitos de movimento, como "republicanismo", que menos le metem ao passado do que a um objetivo no futuro. São conceitos que geram experiência, mais que a registram. Causam efeito de antecipação, no sen tido de que oferecem um princípio para o movimento histórico, um ditado mo ral para a ação política. Espaço ck experiência e horizonte ck expectatiua são as categoriAS construí das por Koselleck para pensar a "cons ciêncis temporal especificamente his tórica". A modernidade caracteriza ... e pela percepção da crescente incapaci dade da experiência passada de aten der às expectativas do presente em relação ao futuro, em face da multipli cação destas expectativas provocada pela aceleração do tempo histórico. Es paço de experiência e horizonte de ex pectativa cada vez menos cotlesponde riam um ao outro, sendo tarefa da ação política cobrir esta diferença. O traba lho de invenção de uma tradição repu blicana busca este equacionamento. A história da República torna ... e, assim, a história de uma aculturação, no sen tido de que um novo conteúdo s im bóli co pretende suprir o vazio deixado pelo veto ao passado monárquico, viabili zando a imposição de uma nova ordem. O trabalho do grupo dirigente é manter viva a idéia de República, .omo slogan organizador da sociedade. A c0- memoração do 15 de novembro, data máxima da República, contribui para este esforço: tenta enquadrar a coleti vidade neste sentido construtivo. As comemorações cívicas -seguindo o que escreve Mona Ozouf sobre a festa revo- lucionária (1984:20) - empreendem o batismo do indivíduo, transformando o em cidadão. Ainda que no caso brasi leiro náo caiba o adjetivo "revolucioná ria", pois a ordem republicana busca justamente equacionar renovação e conservação, a festa em questão pre tende ter o mesmo efeito. A memoração histórica realizada pela comemoração significará a "construção de um passa do republicano que irá conceder subs tância a lima especifica dimensão de povo brasileiro e às limitações do exer cício da cidadania" (Ferreira Neto, 1989:14). Em um regime que pressupõe a di nâmica do voto e do sistema repre sentativo clássico, a comemoração in .. tenta a fabricação de um consenso o mais abrangente possível, ou mesmo a unanimidade. Esta reunião cívica ins taura uma ordem onde a adesão das • • • ID883ru!1 conJuga�e com a preemInen ... cia da classe política. Pois a comemo ração é o apelo à participação popular, mas também o exercício de um ritual hierarquizado. A:!, massas são convida ... das por seus educadores republicanos a uma gzande festa da memória, mas fIxar o sentido desta celebração é tare fa dos dirigentes, daqueles que detêm o saber histórico e a soberania da pala vra (Walter, 1983:60). Dizer torna-se um fazer, e é essa a tarefa da cidade letrada - seguindo a fOl'mulação de Angel Rama (1985). A imprensa tem aí o seu lugar na reelabo ração do imaginário social. Enquanto instituição, a imprensa sempre foi mar cada por este espírito que, no geral, não difere muito do próprio caráter da edu cação, da Igreja, do rermamento intelec tual, ou seja, o de criar adeptos para bandeiras e princípios. Foi, como os ou tros. também. forma de interpretação e, como todas as forwAs de interpretação, necessariamente, 1Jma fOlllla prática, concleta, de luta pelo poder (Marcondes A IMPRENSA COMEMORA A REPÚBUCA 165 Filho. 1993:146). A origem de grande parte da imprensa do século XIX está mesmo n08 "ism05" Burgid08 neste tem PO. aqui entendidos como conceitos de movimento - na acepção de Koselleck, visões de mundo que justificavam e da vam sentido não só ao fazer jornalístico, como também às práticAs políticas, às maneiras de agir. Assim, no final do século XIX brasileiro. o aparecimento dos primeiros jorna i. de perf>.! mais em presarial. preço menor e circulação ma is abrangente (guardadas. nestes três itens. as proporções da época) - Gazeta de Notícias. Gazeta da Tarde. Diário de Notícias. Cidade do Rio. O paiz - esteve vinculado à politização urbana promovida em parte pelos mo vimentos abolicionista e republicano (Needell. 1993:221). A "República do pensamento" Uma unanimidade é patente entre os jornalistas de então: a importãncia da imprensa na vida nacional. "A im prensa é a vista da nação". diz Rui Barbosa (1990:37). Percorrendo os jor nais e revistas. percebemos o esforço cotidiano em BÍumar a si mesmos co mo lugar de independência. espírito científico e elevação de idéias - "a ver dadeira forma de República do pensa mento", como já havia escrito Machado de Assis (1959:955). A imprensa. se gundo suas próprias palavras. é intér prete dos sentimentos populares. for madora da opinião coletiva. analista dos negócios públicos. Ela é um braço da "ilustração brasileira", ou seja, o movimento que em fins do século XIX fOl'mou-se no Brasil. guardando. do ilu minismo europeu do século XVIII. uma crença radical no poder da razão e da ciência. e. portanto. no papel dos inte lectuais (Barros. 1959:22). O auto-re- trato construído pela imprensa é o de um instrumento direto e imediato de ação educativa. Em novembro de 1890. a imprensa nascida no bojo das campanhas aboli cionista e republicana celebra o suces so de sua atuação no advento do novo regime. A presença dos jornalistas Quintino Bocaiúva. Aristides Lobo e Rui Barbosa no governo surge como prova do reconhecimento desta parti cipação. O Paiz. a Gauta de Notícias e a Revista Illustrada são parte desta imprensa republicana carioca que, após anos ocupada em atear fogo ao trono. torna-se situação. Do outro lado. o monarquista Jornal do Commercio. que durante toda a sua existência pau tou-se por uma orientação conservado ra, tenta manter uma oposição mode rada. Sua "neutralidade" é criticada por outros monarquistas, como Carlos de Laet. Segundo este. ''s6 uma folha OUSQva fazer frente à tira rua triunfan te": A TribunaLiberal (Laet. 1899:85). Fechado ainda em 1889. o jornal res surge no ano seguinte como A Tribuna. reduzido em seu nome, mas não em sua combatividade. Na comemoração do primeiro ani versário da República. a imprensa si tuacionista luta pela hegemonia da função iluminadora dos destinos nacio nais. Já em outubro a Revista Il/ustrcv da desqualificava o Jornal do Com mercio, o "irmão mais velho da monar quia brasileira". Sua falta de "orienta ção científica e independente" teria si· do atestada pela não percepção. às vés peras da Proclamação.de que "o país estava essencialmente republicano". Na virada do século. a função ilumi nadora da imprensa vem respaldada pela crença na ciência. e a cientificida de jornalística. por sua vez. confunde se com civismo. Por ocasião do empas telamento de A Tribuna. no dia 29 de novembro de 1890. 5 O Paiz e a Revista 166 ESTUDOS IlISTÓruCOS -1994/1( IIlustrada juntam-se ao coro de indig nação contra o ato de violência, mas não sem antes assinalar a provável "culpa" do órgão oposicionista. O paiz faz ref�rência à "violência da lingua gem". 6 A Revista IIlustrada acusa a "oposição sistemática da Tribuna con tra o atual estado de coisas": "Sem plano de combate, sem arien· tação política e o civismo necessá rio para bem dirigir o espírito público através da crise que atra vessamos, elucidando as questões, combatendo-as quando preciso e apoiando-as quando se fizesse mis ter,limitava-se a dizer horrores até do próprio desconhecido. Fez seus uns conceitos alucinados que um tal Frederico de S., uma de nossas vergonhas na Europa, publicou so bre a transformação política do Brasil/' E mais adiante: "A liberdade de imprensa tem limi tes: a relatividade é uma lei natu ral-social. Desde que um jornal ou indivíduo torna-se elemento de de sordem, que lhe pese o vigor das leis. Ora, a Tribuna sempre foi um elemento mau, uma molécula afe tada em um organismo da nossa imprensa. ( ... ) Nós somos pela li berdade de opinião. E a imprensa que representa a opinião coletiva, que deve ser livre não 56 para sua dignidade da ação como também para a boa marcha dos negócios públicos.,,7 Sob o pseudônimo de Frederico de S., o monarquista Eduardo Prado denun ciava as práticas da ditadura militar republicana, que, segundo ele, se opu nham ao perfil liberal do Império (Oli veira, 1989). Para a Revista lllustrada, estes ataques não passavam de "concei tos alucinados" que fomentavam a "des cabelada crítica" da Tribuna. O jornalis mo deixa de ser uma atividade "científi ca" e "cívica" quando ameaça o sonho da ordem governista. A liberdade de im prensa subsiste. mas somente enquanto for exercida "sob inspiração de conser vadorismo racional e patriótico". A linguagem fin-de-siecle da im prensa revela a presença do positivis mo na sua dupla vertente: como a reli gião cívica elaborada por Comte e como o ideal científico - derivado também ele das teorias com tia nas (Lõwy, 1987:25) - reinante no século XIX. O princípio da liberdade de imprensa é submetido à máxima comtiana: "tudo é relativo e isso é a única coisa absolu· ta". Assim, não sendo a atividade jor nalística exercida dentro do sentido conservador, deveria Ber suprimida. Era conservador, na visão de Comte, aquele que conseguia conciliar o pro gresso trazido pela Revolução com a ordem necessária para apressar a transição para a sociedade normal, no caso, para a sociedade positivista ba seada na Religião da �umanidade (Carvalho, 1990:21). Segue uma lógica semelhante o texto da Revistalllustra da: num momento de crise, a 1hbuna portava·se como unl "elemento mau" no "organismo", pondo em risco a "boa marcha dos negócios públicos". A atitude da imprensa revela, tam bém, como o poder dos intelectuais não procede simplesmente de um trabalho de autoconsagração, mas de uma rela ção de troca com o poder político, que o reconhece e legitima. O empastela mento do órgão monarquista dá·se uma serna na após a revogação das leis repressivas de Deodoro, que vigora vam desde março daquele ano, cer ceando a liberdade de todos os jornais. A imprensa republicana empreende a separação entre a boa e a má imprensa, A IMPRENSA COMEMORA A REPÚBLICA 167 resguardando-se na afirmação do ci vismo (o alinhamento com o poder) e da . cientificidade (que pressupõe uma neutralidade) da sua atividade. Os tra ços desta cientificidade patriótica fi cam evidentes na participação da im prensa na comemoração do 15 de no vembro, em que 05 jornais, segundo O Pa;z, "adornaram luxuosamente os edificios de suas redações e oficinas, de modo a concorrer poderosamente para o brilhante aspecto que apresentava a rua do Ouvidor". 8 o burburinho da festa O governista O Paiz é o mais enga jado no espírito comemorativo. Desde os primeiros dias de novembro, publica elogios a Deodoro e aos demais mem bros do governo provisório, legitiman do a formação resultante do pacto que havia deposto a Monarquia. Em seus editoriais e colunas fixas (assinadas com pseudônimos sob os quais pode riam estar ocultas figuras do próprio governo), O Paiz sedimenta a versão republicana. Diz o editorial "Um ano depois", do dia 15: "A história não julga com mexeri cos, nem condena com depoimento de intrigantes, e nós procuramos fazer aqui uma memoração históri ca. Esperamos que nos cheguem as notas verdadeiras da verdade do que existe, para condenar os vicio sos e exaltar os homens honestos. A justiça popular não prescreve nunca. Seja o dia de hoje o início de novo e mais fecundo período para o BrasiL" Contra o artifício monarquista, que defende seu regime a partir de uma legitimidade assentada na tradição bis- tárica, O Paiz busca no passado raízes republicanas. Assim, a 4 de novembro, Máximo Job, em sua coluna "Ecos da Cidade", fala da "geração bestializada por quarenta anos de perfídias e menti ras", que "sacode o torpor monárquico que a engerelhou para ser o que foram em coragem cívica e em patriotismo as gerações de 1820 e 1831". Significativa mente, faz uso da expressão "quarenta anos de perfidias e mentiras", com a qual o deputado conservador Ferreira Vianna, autor do panfleto A Conferência dos DiuinDs, insistentemente atacava o reinado de dom Pedro lI. 9 No citado editorial do dia 15, o órgão republicano desdobra-se na elaboração do mito de origem: "Como se fez a revolução? Como se fazem todas as revoluções: pela go ta de água no vaso a transbordar das amarguras da nação. ( ... ) Tão morto estava o império, a tal apatia de cretino chegara a sociedade, que se dizia ser este o seu esteio, que o grito revolucionário partido dos quartéis ecoou por todos os cantos de sua imensa capital, repercutin. do por todo o Brasil, com as vibra ções e a sonoridade das grandes solidões. Nem mesmo as coletivida des e as classes interessadas nas instituições arriscaram um arra nhão nos augustos e digníssimos dedinhos de seus membros, para fingir um último serviço para apa rentar a extrema dedicação. ( ... ) A revolução não matou o império. O império estava morto e a república teve apenas o trabalho de remover lhe o cadáver apodrecido para que não infeccionasse o ambiente na cional." Sob a influência de Quintino Bo caiúva, o discurso de O Paiz deixa transparecer sua filiação ao republica- 168 ESTUDOS HISTÓRlCOS-191l4/1< nismo histórico, em sua vertente civil e liberal. A fragilidade do Partido Re publicano por ocasião da Proclamação implicou a necessária aliança com os militeres, defendida pelo próprio Quintino. Na elaboração do mito de origem republicano, a presença militar é inegável, mas aparece como expres são de um processo histórico inevitá vel. Tal recurso tenta amenizar a im .. possibilidade de se apresentar a ação dos militares como um mero instru mento dos desígnios dos republicanos • • ClVIS. No dia seguinte, O Paiz comente os festejos, ressaltendo, ao lado da impor táncia do elemento militeI', sua har mo nia com o resto da sociedade. O jornal dedica suas duas primeiras páginas à rePOTtagem das comemorações, no re late fuais extenso da imprensa carioca. Os subtítulos guiam o leitor. "O présti to militeI''' C'foram os soldados da Re pública delirantemente saudados") re forçaa idéia do apoio popular. Segue ... e "No quartel do Primeiro" C'Foi ali na quele edificio para o qual convergiram todas as atenções; ali onde o último ministério da monarquia recolheu-se sitiado pelo exército e armada: ali ve rificou-se ontem o grande banquete da do às forças de terra e mar pelo governo da república. "), que, ao evocar um dos acontecimentos mais caros ao mito de origem, capitaliza-c em torno do espa ço do quartel, tornando-o lugar <k me mória da vitória republicana. Além disso, a ocupação do quartel pela festa .. � • • 'A nao so evoca como propicia a experlen- cia da ocupação anterior (a tomada do poder), reafirlllando-a. Em "Aspectos da cidade", "Nos aua baldes", "Notas suburbanas" e "Festas da noite", o jornal constrói a imagem de uma cidade tomada pela festa. Se gundo O Paiz. a "afluência de pas$Bgei ros jamais vista antes" fez com que fossem duplicadas as viagens de trem. O jornal destaca a beleza dos enfeites e da iluminação, aftrlllando o caráter "imperdível" da festa. Apropriando-• nos dos termos cunhados por Kosel- leck, diríamos que na República re cém-instaurada, a comemoração é o artificio da ação política na tentativa de fazer confluírem espaço <k experiê� cia e horizonte <k expectativa. O jornal O Pa;z contribui neste sentido: segun do ele, as ruas foram tomadas pelas "alegrias santas do povo que via na imagem da pátria avigorada as gran dezas de seu futuro e as promessas de sua felicidade", O discurso comemora tivo do jornal tem como elementos for tes a presença do povo e a iluminação da cidade. Resultado do progresso, marca da civilização, a luz elétrica atesta a concretização da expectativa, permite que a festa se torne o próprio espaço de experiência da promessa. Nas palavras de O Paiz. Assim como Das dos demAis jornais situacionistas, O 15 de novembro surge como um mar co incontestável. Indica o início de um novo tempo, este sim verdadeiramente legítimo. As luzes da festa atestam o progresso, a abertura do Congresso no próprio dia 15 marca a ordem-valores máximos deste tempo presidido pela "idéia vencedora de República".lO Aco memoração do 15 de novembro em 1890 torna ... e a prova palpável da afir mação da República, "um resultado to tal, inegável, indiscutível", segundo a Gazeta <k Notfcias; 11 "uma verdade, um fato consumado", repete a Revista Illustrada.12 A Revista publica uma ilustração de página inteira em que, da sacada do palácio, Deodoro -tendo por trás seus companheiros de governo - ergue em seus braços uma menina. que traz consigo a marca republicana do barrete frígio. Sobre as comemorações, a Gazeta comenta, em 16 de novembro: A IMPRENSA COMEMORA A REPÚBUCA 169 "Extraordinária massa de povo in vadiu a8 ruas ontem, apenas raiou - o dia. ( ... ) As nove horas da manhã jã era difícil a passagem pela Praça da Aclamação, e impossível pela rua larga de São Joaquim, tão grande era a onda de povo que en chia literalmente estes dois pontos da cidade, onde as festas deviam ser I senão mais imponentes, pelo menos mais ruidosas." No dia seguinte, o fato de o Congres so Nacional ocupar o antigo palácio imperial da Quinta da Boa VISta serve como "gancho" para que O Paiz evoque 8ua versáo, que se quer memória na cional: "( ... ) Foi ali ainda que o terror ou amor dos patriotas, vencidos pelas intrigas e ambições políticas, ren deu-se à fatalidade, para converter uma criança inconsciente e des· preocupada em instrumento e solu ção de uma crise temerosa, que Q razão, o saber e a experiência da potente geração de 1840 não tinha podido co�urar! Desde então aque la coluna pareceu inacessível às co moções nacionais. ( ... ) Nunca mais o povo subiu aos paços do Sr. D. Pedro 11 ( ... ). O imperador não com preendeu nunca a necessidade de . dar ao princípio monárquico a maior extensão democrática. ( ... ) Estã, pois, instalada ( ... ) a segunda assembléia constituinte do Brasil. É a soberania da razão e do direito, substituindo, na frase da mensa gem presidencial, a soberania da convenção. Vai começar a definiti va organização da República." Novamente o jornal revela o movi mento de expansão do patrimônio re publicano pela apropriação de um ou tro espaço. Nas páginas do jornal, o antigo palácio torna-se lugar de memó ria, espayo da experiência de uma tra dição de luta republicana. Experiência vitoriosa, a ocupação do palácio pelo Congresso representa o encaminha mento na direção do horizonte de expec tativa, encarnado nos ideais de demo cracia e de soberania da razão e do direito. Substituir a soberania da con venção pela da razão e do direito é um dos temas caros à ilustração brasileira. Aproxima r o pais nominal do pais real é a tarefa definidora do esforço refor mador do liberalismo clássico e do cien tificismo, informadores da mentalida de do grupo (Barros, 1959:191). Marchas e contramarchas da -comemoraçao Em algumas edições de novembro, a Gazeta de Notlcias publica partes da História da fundação da República no Brasil, do deputado Anfrisio FialhoP A convivência numa mesma página e a coincidência de conteúdo entre o traba lho historiográfico e as opiniões do jor nal parecem emprestar cientificidade, e logo, credibilidade, a estas últimas. Assim, no dia 15 a Gazeta afirma a idéia de uma Proclamação feita pacifi camente, graças a Deodoro, e luta con tra a idéia de um povo indiferente: "Há um ano a população desta ci dade, ao despertar, soube que ha via grande movimento de tropas, e supôs que se tra tava de mais uma fase da questão militar ( ... ). Pouco depois, do povo que se aglomerava no campo, saíam a espalhar-se pela cidade notícias do que ia suceden do. ( ... ) E, durante o trajeto, o povo dava vivas à república, esses vivas pouco antes corlSiderados sedicio- 80S pela polícia. ( ... ) Na massa geral 170 ESTUDOS HISTÓRICOS - ,QIl4/'4 da população, ninguém sabia ao certo o que ia suceder. O que toda a gente via, é que não havia desor· , dem pelas ruas. ( ... ) A noite soube se de uma ordem severa dada pelo general Deodoro para garantir a tranqüilidade pública, e viu-se - com prazer - a cidade vigorosa· mente policiada." Na contramarcha da comemoração estão o sisudo Jornal do Commercio e o virulento A Tribuna. O Jornal do Commercio reporta os festejos do Rio de Janeiro e de outras cidades do país, a exemplo do que fazem os outros jor nais, porém em escala bem menor: náo mais que pequenas notas perdidas nas páginas do periódico. Preocupa-se mais em comentar a mensagem envia da por Deodoro ao Congresso - um "documento histórico", que publica na íntegra ''para ser alerido por quem te nha melhores padrões" que os seus. Não consegue, porém, deixar de cha mar a atenção dos leitores para alguns pontos. Entre outras coisas, põe em relevo - numa perspectiva crítica -os trechos em que Deodoro coloca ao Exército e a si próprio como udepositá rios" dos destinos do povo brasileiro. Também A Tribuna comenta as pa lavras de Deodoro, criticando especial mente a idéia -pela qual a Gazeta se esforçava -de que a República era algo já "encarnado" nos u14 milhões de al mas", por ocasião da Proclamação. Se guindo a praxe monarquista, A 'lhbu na fala da Proclamação como um le vante militar, alheio à vontade do povo, e' dá pouca importãncia à atuação dos políticos republicanos. H Provocativa, faz questão de referir-se ao "general Quintino Bocaiúva" e ao "general Rui Barbosa", aproveitando-se do ma.l--es tal' provocado entre os ministros quan to à febre de condecorações detonada por um decreto de Deodoro (Carone, 1974:17). A 17 de novembro, A Tribuna diz recear o perigo da indiferença do povo pelos negócios do país. Na coluna"Con versemos" deste dia, a ditadura militar imposta pelo governo provisório é cul pada por causar tal indiferença e desi lusão. Enquanto O Paiz tece a imagem de um tranqüilo processo para a lega lidade ( "A bravura e a iniciativa do generalíssimo e dos membros do gover no provisório flZeram a República; a energia e a coragem cívica do congres· 50 a or�nizará na liberdade e na 01' dem"), A 'll'ibuna nos dá a ler uma problemática abertura do Congresso. De fato, agravam-se as disputas inter nas na coalizão dirigente. Deodoro ha via falado em adiar a convocação de uma Constituinte. O Congresso, por sua ve� na inauguração, deixa claro o caráter temporário do cargo de Deodo ro e arroga-se o direito de examinar os atos de seu governo, no encaminha mento de sua tarefa primordial: firmar o regime na legalidade (Carone, 1974:29-31). Eis o que diz o jornal mo narquista, que parece adivinhar a fu tura crise entre Deodoro e o Congresso em novembro de 1B91: "Ainda não se pode dizer o ex-pro rJisórw. ( ... ) o provisório compare ceu diante da representação nacional e declarou entregar a nev ção à nação. ( ... ) Depois da entrega da nação e de muita . frase bonita, retirou-se o provisório levando con sigo precisamente aquilo que ele disse viera entregar. O congresso recebeu a nação, mas o provisório continua tal qual era, de modo que havemos todos de convir que a coi S8 não passou de vistosa mistifica ção ( ... ) Continuamos, portanto, sob o regime da ditadura, que em bre ves dias despedirá o congresso, e A IMPRENSA COMEMORA A REPÚnUCA 171 viverá desassombradamente, como tem vivido até hoje. Desiludamo nos - se é que nisto vai alguma desilusão," • As vésperas das comemorações do 15 de novembro, o mesmo colunista comentava a celebração, empreenden do 11m trabalho de desconstrução do esforço republicano: "Parece, pois, que o glorioso aniver� sário da ditadura encontra a nação indiferente e apática. O povo con cOM'erá aos festejos se o governo festejar, mas não concorre para os mesmos festejos e não os promove. A festa é, pois, essencial e exclusi� vamente oficial. Quando as cores dos papelões pintados e a cola co meçarem a escorrer, borrando a pintura, pela ação do sereno ou da chuva, os jOl'nais serviçais e pagos, em longos e bombásticos artigos, espalharão pelo mundo que o Bra sil em peso levantou-se jubiloso pa ra felicitar o paternal governo provisório pelo ano de ditadura que nos deu e pelo favor que nos fez, rasgando o direito e a lei, amorda çando todas as liberdades, e impe dindo todas as manifestações de desagrado, frutos lógicos dos seus atos, impensados e funestos. Nos nefandos tempos houve, não há ne gá-lo, festas populares. O povo muitas vezes cotizou-se para le vantar arcos triunfais, por debaixo dos quais passavam, comovidos, o velho e idolatrado monarca e a san ta e querida ex-imperatriz. Das so mas despendidas, a maior cabia às subscrições populares. Nas festas que vai haver, o povo, quando mui� to, entrará como mero espectador. Se, no momento em que os raios da luz elétrica clarearem as ruas, em� prestarem brilho falso e efeito de cenografia aos papelões, alguém pudesse descobrir o coração do po vo, com certeza só encontraria nele dor e tristeza." Além dos festejos oficiais e da sole nidade de abertura do Congresso, uma manifestação de apoio a Rui Barbosa (então ministro da Fazenda), promovi da pelas indústrias cariocas no meio de novembro, parece tentar contribuir pa ra o esforço comemorativo dos republi canos. O anúncio da manifestação apa rece nos grandes jornais, mas não na Tribuna, que no dia 13 de novembro publica o editorial "Capitólio de pape lão", atacando os "encomendados im provisos". Assinado por Athos, o texto 'Tiro ao alvo", do dia 15, satiriza o uso ''fin-de-si.ecle'' das manifestações no convencimento das massas, anuncian� do a criação da "Companhia Manifes tação Nacional". Diz o texto: "Se os operários continuassem a negar a paternidade da idéia mãe de uma manifestação sogra ao sr. general que ocupa a pasta de mi nistro da Fazenda, a festa seria capaz de gorar, como o ovo que per deu a quentura da galinha choca, coitadinha!. .. Mas, não. De entre os 30 mil, somente alguns deles terão a necessária coragem para dizer ao povo que não se assujeitaram à im posição dos promotores do pagode, nem com as ofertas de dinheiro ou melhor emprego, nem com as ameaças de serem postos no olho da rua. E, visto isso, quinta-feira teremos charangas, foguetes de lá grimas e assobio, bombas de dois ou mais tostões, etc., na grande passeata fin-de-siecle ( ... ) Aprovei tando a ocasião oportuníssima, ve nho participar aos meus amigos e aos inúmeros leitores da Tribuna que brevemente lançarei com as 172 ESTUDOS HISTÓRICOS -1904/14 mesmas boas intenções do Peixoto ao lançar-se às mulheres, uma campanha com o título pomposo, prometedor e também fin-de-siecle de Companhia Manifestação Na cional." o jornalista promete entáo "promo ver manifestações de agrado a n'im porte quoi: uma comédia engraçada ou um ato de patriotismo, por exemplo" mediante pagamento, podendo mesmo "mandar vir por contrabando alguns capoeiras e alguns ga tunos conhecidos, de Fernando de Noronha".lG o rumor da multidão Pensando o calendário republicano francês, Bronislaw Baczko (1984:40) destaca a representação da ruptura do tempo - a divisão em tempo antigo e tempo novo - como sendo um dos mo tores do imaginário revolucionário. Es ta representação é respaldada por todo um sistema de símbolos - tempo novo, JXlVO regenerado, cidade nova - que, agindo em cadeia, se reforçam e con vergem na promessa de um devir ou tro, promessa indefinida de uma vida nova, feliz e virtuosa, liberada de todos os males do passado. Na avaliação dos republicanos bra sileiros, o período decorrido entre no vembro de 1889 e novembro de 1890 é um tempo revolucionário, regenera dor. O leitor dos jornais republicanos deve experimentar a sensação de estar vivendo um momento histórico, no sen- • tido mais denso da palavra. E exemplo disto o editorial de O Paiz do dia 15: "Um ano é curtíssimo tempo na vida de um povo, e à história mui tas vezes bastam algumas linhas para consignar os feitos desse pe- rlodo. Na atividade revolucionária, porém, os doze meses de translada ção da Terra em torno do astro que a aquece e alumia, são períodos maiores do que a vulgar sucessão dos dias, das semanas que comple tam aquele movimento. Muitos fei tos se realizam então, maiores e mais decisivos impulsos se impri mem a uma nação. Assim, de 15 de novembro de 1889 a 15 de novem bro de 1890, vai um estágio que se nos aparece um longo decurso de tempo, pelas gl andes transforma ções nele operadas. Muitas dessas transfol"mações são radicais, ini ciais outras apenas, e todas elas capitais na evolução do povo brasi leiro. " Confolllle nos diz Roque Spencer Maciel de Barros (1959:25), há, entre a ilustração brasileira, a crença -apesar de reconhecerem-se as peculiaridades étnicas e culturais - na unidade da civilização: como se houvesse um pro cesso histórico único e as principais diferenças entre as nações fossem de fase e náo de natureza. Na esteira des te pensamento, o editorial da Gazeta de Notícias do dia 15 afu·ma ser a Repú blica a úruca forüm de governo compa tível com "o tempo que vivemos". O Império representa então um arcaís- • • • mo e sua peI'manencm marcarIa o ana- cronismo do país em relação ao "espí rito do tempo", suaexcltJsão da marcha civilizatória. Nestes termos, a Repúbli ca é fruto do rumo inevitável da histó ria, do progl esso da humanidade. Mais que isso, é o ponto onde a "vontade nacional"confunde-se com as tais "con quistas da civilização". A inadequação do Império é explo rada. por Erasmo, em sua "Crônica po lítica", na edição de O Paiz do dia 17 de novembro: , A IMPRENSA COMEMORA A REPÚBUCA 173 "O imperador era um general inex pugnável nessa praça, ou 11m poten tado da Idade Média, cujo castelo senhorial era vigilantementa guar dado pelos próprios servos oprimi dos e anulados. Col'leram 08 tem pos, e a política que concentrou nu ma 56 mão 08 destinos do Brasil, foi se tornando tanto mais incompati vel com as novas tendências do es pírito público, quanto mais odiosos se tornavam os contrastes das nos eM com as instituiçóee america Das." Sente ... e ecoar uma das principais linhas do Manifesto RepublicaJ'W de 1870: "Somos da América e queremos ser americanos". Também a Revista Il/ustrado. fala do "caráter puramente americano" da República. Participar do "concerto das nações" é entendido como a inserção do Brasil na "democra- . . " 17 el8 amerIcana . No entento, apesar da alegeção de que "o imperador não compreendeu nunca a necessidade de dar ao princi pio monárquico a maior dimensão de mocrática", na retórica republicana é mAis O progresso material, e não a ex· pansão do mundo político, que atesta a participação do Brasil na marcha civi lizatória. O primeiro ano do regime, para O Paiz, "promoveu a riqueza pela animação às indústrias e por novas aplicações da atividede e do trabalho hUlDano".18 Através da imprensa partidária do • novo regtme, vemos que o prog1 e580 republicano é lido segundo um tempo linear, cumulativo e ineversivel, refor çado pelo tempo cíclico que o calendá rio cívico instaura na vida da nação. Assim, a República, ponto culminante da linearidade histórica, deve ser fes tejada a cada ano como o tempo do progIessQ, da legalidede, da ordem, da liberdade e da democracia. Para as monarquista8, inversamen· te, a República reprElJenta um retlOC€O- 80. Nas considerações da ,]hbuna do dia 3 de setembro, "a Proclamação de 15 de novembro ou é fruto da precipitação com que foi elabomda, entre os f1lmos da fácil vitória, ou é a lábia astuciosa da hipocrisia que disfarçou intuitos pouco confessáveis". O Jornal do Commercio, por sua vez, acusa os republicanos de violarem a "tradição brasileira" - um passado que representaria a alma genuína da nação - dizendo que "o atual governo tem mudado leis sem necessidade al guma e promulgado outras que decerto ferem as melhores tradições do povo b iI · .. 19 ras 811"0. O discurso da imprensa monarq1lis ta desenvolve uma relação de insatia fação com o devir histórico, que consis te em profetizar a fatalidade de 1Ima catástrofe inscrita na desordem repu blicana. Traz a 7nbuna, no dia 12 de novem bro: "É que no coração da pátria, além do constrangimento, produzido pela mudança das instituições, sem sua ciência, há fundadas apreensões de que o futuro que lhe está reservado trará terríveis tempestades." Os republicanos estáo cientes do va lor da tradição como suporte da ordem social que se quer manter no presente . A 15 de novembro, O Paiz comenta: "Quanto aos costumes, que são o maia frrme alicerce da obra repu blicana, o primeiro governo da Re pública muito pouco podia fazer, e , muito pouco fez. E dificil apreciar a nova orientação que lhes deu, porque este trabalho de fisiologia 174 ESTUDOS IUSTÓRlCOS -1994j1{ Bocial não 58 opera nem se conclui em um ano." A República assinala a imposição jnstitucional de um novo, mas é es.sen cial, para a afirlilação de sua legitimi dade, f01jar as raízes dessa npvidade no pa88ado, inventando uma tradição repub/ieana para O país. O passado torna-se campo de batalha. De um la do, 08 monarquistas acentuam os se tenta anos de paz interna, unidade na cional, progresso, liberdade e prestígio internacional que o regime deposto ta ria garantido à nação. F'l-eqüentemen te referem-ee ao governo republicano apenas como "o provisório", ressaltan do a fragilidade da npva ordem. Do outro lado, os republicanos valorizam a lembrança de eventos que seriam precursores desta ordem, pondo em re levo a idéia de continuidade. A idéia de continuidade serve, ain da, para conter o "espírito revolucioná rio". Se o destaque da Pl\lClamação como marco iniciador da "renascença" brasileira é um dos motores do discur so republicano, também revela-ee ne cessário que este tenha um contrapon to: a ênfase na continuidade de um estado de ordem. Erasmo, em sua "Crônica política" do dia 3 de novembro em O Paiz, ch .. ma a atenção para a necessidade de procedimentos náo-re volucionári08, de um certo freio no "es pírito inovador". Caso contrário, escre ve ele, 88 "paixões populares" p0da riam ser acordadaa. A República, que havia mantido as hierarquias, 08 valores e as concepções de mundo da velha sociedade senhorial escraviata, tentava proteger estas per manênciAS, através do relevo da im portância da experiência pasSada. Também o mito de origem elaborado pelo grupo republicanp trabalhava contra o "espírito revolucionário". A idéia de que a República não havia matado o Império, pois este já estava morto, e a aftrmativa de uma Procla mação realizada na ordem, pacifIca mente, tentam assegurar ao mesmo tempo a mudança e seu limite. É neste sentido que a Gazeta publica, no dia do primeiro aniversário republicano: , "E preciso acompanhar o progresso, mas não atirar-se aos azares das inovações por isso que o dictame dos ato. do poder público deve inspirar se na s lições da experiência." Os limites do caráter "revolucioná rio" do tempo republicano revelam as fronteiras de seu caráter "democráti co", desvelam a (de)limitação do papel do indivíduo comum na nova ordem política, O projeto republicano é um projeto conservador, preocupa-se em reformular as relaçóes de poder, pre servando-as. Não prevê o cumprimen to da promessa dos republicanos radi cais de inclusão daa mass'lS populares no mundo político. O que diz A ,]ribuna. sobre as festas pode ser repetido sobre o dia-a-dja político da República: "o povo, quando muito, entrará como me ro espectador". O colunista Erasmo teme, já disse mos, que o "espírito inovador" acorde as "paixões populares". Na Gauta do dia 14 de novembro, a coluna "Meu jornal", A88inada por M. , refere-se ao período das comemorações como uma "estação cálida", em que têm lugar "es ses ajuntamentos populares, maçan tes e perigosos". Numa ordem política e social exclu dente, como se mostrou ser a República brasileira, os despoBBuídos raramente aP,Brecem - na retórica do grupo diri gente - como dignos de urna ação polí tica. Na maior parte das vezes são re tratados como incivilizados - a turba urbana, perigosa. in acionaI; ou como A IMPRENSA COMEMORA A REPÚBUCA 175 politiCAmente incapazes - bestiaJiza dos, apáticos, ignorantes. Durante as comemorações do pri meiro 15 de novembro, a imagem de uma população que assiste "bestiaJiza da" à Proclamação serve como artifício de ataque dos monarquistas e preocu pa aos republicanos. Estes argumen tem que tal apatia teria sido provocada pelo Império, e que a República, ao contrário, "chamou enfim este povo à vida política e à vida social, de que parecia ter saído de todo".20 Além dis so, a população teria apoiado a mudan ça, imediatamente após o ato da Pr0- clamação. "O povo dava vivas à Repú blica", �creve a Gazeta. Assim, no discurso da imprensa re· publicana, a alegeda presença popular nas festas oficiais torna-se um dos ele mentos fortes da cena descrita. A "p0- pulação densíssima", antes temida multidão, transforllla�e na �?cpressão da própria "alma da nação". 1 A "Crô nica da semana"da Gnuta de Notícias do dia 23 de novembro é exemplar: "Vem tarde o cronista para referir ee ao ceso; para dar sua impressão pessoal. Entretanto, por bem servir o oficio, e ainda que tão distanciado se ache, sempre dirá que viu duran te três dias o povo -o povo legítimo, puro, sem mistura, nem disfarce - transitar por essas ruas, procuran do distrações, regozijando-se, que rendo manifestar seu contentamen to, pronto a consagrar por sua pre sença o faustoso advento da nova era. Não há neger que os festejos de 15 de novembro recém-pas.ado. deixaram a perder de vista os anti gos dias de festa nacional ( ... ). Viu-se agora que mais alguma coisa tocava a alma popular; como que desperta ra a fibra do patriotismo, e durante três djAs, embora a inclemência do tempo, o povo - o Zé Povinho -veio à praça e à rua dizer claro que esta va alegre e contente. E não pareça que aqui se deixa expressa a opinião de que outrora impedia.ae a mAssa popular de vir a público manifestar se e festar, regozijando-se pelos seus grandes dias de festa, nacional... Não é isso; é que a República tem desses milaglbS, só ela produz esses resultados; e, liberdade por liberda de, sempre é melhor (assim com· preendeu o fluminense) festejá-la em regíme livre, a valer, do que fes tejá-Ia em regime livre ... para inglês ver. Isso, ou outro motivo, o fato inegável é que a capital federal mo veu.se durante aqueles dias; quepe la primeira vez os povos do mOITO do Nhéco e outros adjacentes desceram das suas alturas e vieram desfllar embasbacados por sob a brilhante abóbada dos globos de iluminação em que transforlllnam a rua larga de São Joaquim, aplaudir as luzes elétricas colocadas no campo da Pro clamação segundo uns, da Repúbli ca, segundo outros ( ... )." "As festas promovidas pela inten dência municipal são todas populares e públicas, não havendo convites espe ciais, nem distinção de classes para elas", avisa O Pai? Assim, espera-se que todos participem, "sem a preocu pação das condições que cada um re presenta ". 22 Na comemoração do 15 de novem bro, opera-se a suspensão temporária das diferenças entre as classes, e a população torna-se uma entidade legí timadora da República, e, logo, da hie rarquia tradicional que persistirá, uma vez teI'minados os festejos. Na oposição, A 'lhbuna caracteriza a ma nifestação pró-Rui Barbosa como uma oportunidade para que os operários en carem frente a frente seu "inimigo", O ministro da Fazenda. A Tribuna evi- 176 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1911111. deneia a cisão Bocial que o discurso governista tenta ocultar. A referência da Tribuna aos capoei ras e "gatunos" que poderiam "animar" as ma nifestações nos faz pen""� no modo como o grupo dirigente arbitra sobre a ocupação do espaço público: esvaziam as ruas da desordem. man· dando os indesejáveia para Fernando de Noronha, e enchem·naa novamente para celebrar a ordem. Há, diríamos, um reconhecimento da força popular força esta que o poder deseja adestrar, fazendo com que o público seja cada vez menos popular. A retórica republicana é marcada pela ambigüidade. Quanto à comemo ração, o povo é a desejada presença que se quer ver nas r'lJ8S, pois é ele o melhor juiz da causa republicana ("A justiça popular não prescreve nunca", aÍlrma O Pai?).23 Esta presença deve mesmo atestar que o novo regime é de fato na publica. No entanto, "Zé Povinho" de saparece das páginas dos jornais quan do o assunto é o mundo polltico. Os republicanos preocupam-se com o de sinteresse demonstrado por "Zé Pa gante" por ocasião da abertura do Con gresso - "deixou-se ficar no calor suave do seu at home ou foi para a praça ganhar dinheiro - ou perdê-Io, o que é mais provável"j24 mas têm reservas quanto à participaçlÍll política de "Zé Povinho". AÍlnal, trata-ee, este último, de um contingente despreparado, poli ticamente incapaz. ''Está na indole do povo a exploração de sua ingenuidade próNia", publica a Revista Illustrar da. Na mesma edição, a Revista cri tica lima greve dos cocheiros de bon des, tüburys e carroças. Os grevistas são descritos como "infelizes trabalha dores", cuja "boa fé" havia sido explo rada por "uns tantos tipos aproveitado res", "chefes do movimento", que 015 haviam utilizado como ':joguetes ar ruaceiros" . Já não são, certamente, OI!I "que baba\ham honradamente", cuja "demonstração" de "estima e conside ração" engnmdecia Rui Barbosa, por OCAsião da ma nifestação patrocinada pelas indústrias, Ainda naRevistafllustrada, e ainda sobre a greve, parece surgir um outro tom, na coluna "De lDaromba", 8S'3iD8e da por Blondin: '"lbdos contemplavam a fisionomia desses revoltosos de ontem e muito8 orgulhosos haviam de sentir quanto é importante na vida da sociedade esse elemento que paralisa pelo seu repouso 08 outros órgãos da vida social, Sente-ee como é grande essa massa do trabalho que pode alçar ombros quando abusam da sua edu cação e da sua ignorância para fazê la praticar O mal e quanto ela pede ao legislador uma contemplação de morada para a sua existência, que cada vez mais para o futuro há de tornar..ae dominante, e precisa po .... tanto 8er bem dirigida, como força notável que é." o "agudo choque da experiência", do qual nos fala E. P. Thompson (1978:164), transforma aos poucos a cultura política de um grupo, intJVdu zindo novos elementos. As greves e re voltas populares passadas proporcio nam a percepção da potencialidade das massas urbanas, em franco processo de expansão. A coluna "Meu jornal", escrita por M. na Gauta <k Notícias do dia 17 de novembro, atesta o aprendi zado da reivindicação como instru mento legítimo do cidadão, e Associa isso ao advento da República. Mas em bora a Revolta do Vmtém 26 pareça ser o precedente em questáo, o relato não chega a ser uma apologia das revoltas populares, nem chega a tocar no tema de uma efetiva ampliação do mundo político. Eis o que conta O colunista: • A IMPRENSA COMEMORA A REPUBUCA 177 "Anteontem, depois de percol'ler o Campo de Santana para ver o aspec to geral das festas comemorativas do 15 de novembro, fui andendo até a praça Onze de Junho, onde esperei um bonde do Rio Comprido, que me conduzisse até a minha residência. Ao entrar neste bonde fui surpreen dido com a gritaria revolucionária dos passageiros. Protestavam por que o condutor cobrava 200 réis por passageiro até o largo do Bispo, quando o estabelecido por contrato com a intendência é a cobrança de 100 réis apenas. Na minha qualide de de homem pobre, isto é, de ho mem que traz sempre toda a sua fortuna consigo, e ainde não conse guiu compreender a diferença entre um tostão ou dois tostões, surpreen deu-me a princípio que fizessem questão por tão pouco. A companhia pedia 200 réis, page"""m.lhe por conseguinte esses 200 réis, me pare cia a mim na minha lógica inocente de homem que não é capitalista, e que não distingue e não entende destes negócios de um tostão a mais no bolso do colete. Ma. os passagei ros continuavam a discutir o caso e, na estação do Mangue, foram enten der-ee com o chefe de mesma, a fim de protester contra um tal abuso. E eu então pus-me a refletir, e a achar que eles tinham razão e que essa era a mais bela apoteose feita ao 15 de novembro. Desapareceu do meu es pírito a idéia de um tostão apenas, e comecei tão somente a cogitar a idéia de direito. Lembrei-me então de lhering, que faz a apologis do povo alemão pela noção que ele tem do direito ( ... l. E reconheci que nós começávamos a ser um povo digno, a preparar o seu próprio bem_tar, desde que tinhamos assim gente que não fazia questão propriamente de 100 réis, mas que fazia questão de seus direitos ofendidos, desde que umaordem ilegal do gerente de companhia aproveitava a grande concorrência de uma festa populAr para dobrar os preços das passa gens, contra a letra expressa do con trato celebrado. Fazendo-me eco desses passageiros, e atendendo 08 pedidos dos mesmos, aqui deixo o meu protesto, não para fazer reivin dicação de um tostão, mas para pro testar contra o agravo de um direi to." Igualmente significativo, quanto à percepção que os contemporâneos têm de sua própria cultura polltica, é o que escreve Blondin, ainda no mês de co- -memoraçao: "( ... l temos necessidade de leis apoiadas pelo voto popular ou pelo menos feitas sob a invocação de sua vontade; porque, aqui entre nós, o povo é uma entidede a quem se liga muita importância eubjetivainente, mas de quem se faz muito pouco caso objetivamente. n A cidede real parece então tocar a cidede letrade. Os comentérios de M., na Gauta de 16 de novembro, eviden ciam a interseçáo entre o sonho de ordem e a experiência do real, viven ciade pelos intelectuais: "Festas! festas! festas! reduzidas a um glande ajuntamento popular, que dificulta o trânsito, que enche a rua do Ouvidor, que toma conta des confeitarias e toma conta do noticiário, para não deixar espaço para passear e para escrever. Noto . . -em mim mesmo umA lmpressao que é mais vulgar, entretanto, do que se pensa - um incômodo ex traordinério e um mal_ter geral, de se sentir no meio dos ajunta- 178 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1Q94Jl. mentos populares, uma má vonta de contra as multidões. Talvez haja aristocracismo neste modo de pen sar, talvez haja o sensibilismo doentio dessa gente fim de século, que vive a cultivar-se sensitiva· menta num sofrer doentio de epi dermes fáceis de arranhar. Seja o que for, eu odeio as multidões, não as posso suportar inconscientes e marulh06as como as vagas do ocea no a nos afogar, quando n6s outros bracejamos a natação perigosa de quem quer atravessar a rua do Ou vidor. E fico-me a cismar nesse m� do esquisito de sentir, que parece um não-senso para quem é bem democrata e vive a sonhar liberda des para todo o mundo, e alegrias e confortos para a humanidade intei ra." A retórica da imprensa revela a aventura interpretativa vivenciada por seus proÍlSSiona is. Movimentando se entre o tempo longo da história e o tempo curto do cotidiano, os jornalistas produzem uma leitura ambígua do seu próprio presente. Porque a escritura do presente é também escritura no pre sente, sofrendo, portanto, influências imprevistas. A desconfortável convivência entre o democratismo do jornalista e a ocu· pação popular da rua do Ouvidor, espa ço culto e chique do Rio de Janeiro fi,..tJe-si€cle, rua-patrimônio da inte lectualidade carioca, nos dá esta di- -mensao. A festa cívica mostra-ee um momen to rico para a observação não só da cultura politica presente na retórica da imprensa, como também da relação es pecífica da atividade jornalística com a leitura do devir histórico. O jornal é uma escrita do tempo (Neves, 1988), que, diferente da história, guarda uma relação profunda de proximidade com o tempo vivido. A percepção das mu danças pelas quais passa a sociedade d�manda uma instância especializada de leitura do cotidiano. A imprensa toma um duplo caráter: ao mesmo tem po em que tenta aplacar a angústia sentida em face da aceleração da his tória, deixa 8urgir em 8Uas páginas uma atualidade desconcertante. As eim, enfatiza e dilata uma percepção histórica do presente, que 8ubstitui "uma mem6ria redobrada 80bre a he rança de sua própria intimidade" (No ra, 1984:XVIl1). O 1180 reincidente da expressão "fi,.. tJe-si€cle" revela a tentativa de, através da conceitualização da experiência temporal, construir um entendimento acerca da atualidade. A comemoração surge como um momento voltado espe cialmente à construção de uma inteli gibilidade. Tecendo os eventos para totalizá-los num sentido, a retórica comemorativa intervém como recurso contra a impre visibilidade da história. A comemora ção inscreve o presente num passado balizado, exorciza o futuro e sllieita o inesperado às regras de uma mem6ria nacional (Walter, 1983:13). No entanto, observando o 15 de no vembro de 1890 na imprensa, notamos que a tarefa de dar sentido ao devir não consegue ser absoluta. Primeiro, por que o desejo totalizante do gesto come morativo enfrenta a oposição monar quista. E se esquecermos a evidente luta ideol6gica entre os dois grupos, se olharmos para além da batalha das versões e dos trabalhos contrários de construção e desconstrução da imagem da festa enquanto acontecimento, ve remos que há por detrás do embate uma certa homogeneidade. Republicanos e monarquistas dis putam sobre qual época seria verda deiramente a da ordem, do progresso e popular. Ambas as facções fazem uso A IMPRENSA COMEMORA A REPÚBUCA 179 da mesma estratégia: tentam impor urna leitura do tempo - passado, pre sente, futuro - tendo como um de seus elementos forte5 a conveniente polisse mia da palavra povo. Relativizar a ruptura entre os dois lados é revelar o voluntarismo do grupo intelectual, detentor do saber hist6rico e da soberania da palavra, cuja produ ção de discurso pretende domesticar a experiênoia. Tendo a produção de dis curso como profissão, a imprensa adota a afirmAção de sua cientificidade como estratégia legitimadora. Acompanhan do a pretensão objetivante dos historia dores do século XIX - que pressupõe a concepção de fato-verdade -os jorna1is tas se posicionam ao lado destes, na função de iluminadores da sociedade. Mas enquanto as facções republica na e monarquista da imprensa comba tem pela hegemonia da produção de sentido, o gesto comemorativo enfren ta outra oposição: a da própria expe riência, que resiste a esta produção. A observação do mês de novembro de 1890 desvela, então, os limites do es forço da cidade letrada em sua tarefa ordenadora. O "agudo choque da experiência" abre uma brecha no gesto comemora tivo. O sentido totalizante do projeto de ordem republicano é rompido pela per cepção de uma inadequação: a visão que os anfitriões têm de seUl! próprios convidados como uma multidão, como a imagem da desordem. Neste caso, atribui ... e à multidão as mesmas característicAs que llie daria Gustave La Bon tendo em mente a Comuna de Paris: de ser guiada pela paixão e não pela razão, de ser explosi va, inconstante, facilmente excitável por demagogo<!. Este contingente não 8e enquadra, portanto, no conceito de cidadão que a cidade letrada tinha em vista . O exem- • • pio da Comuna parece pertubá-la. E ele que leva O Pa;z a opor-se, logo no início da República, à curta experiên cia de autonomia do Conselho de In tendência, referindo-se a ela como um sinal do perigo de surgir no Rio de Janeiro urna pequena "comuna", 1Ima "convenção" municipal, despótica e ti .. rinica como a convenção francesa. Segundo José Murilo de Carvalho, a desproporção entre a dimensão real do fato e a que lhe pretendeu dar o jornal, cOl1Íurando fantasmas da Paris revolu cionária de 1789 e 1871, é um indicador precioso da preocupação dos republica nos com o perigo da mobilização popu lar na capital (Carvalho, 1987:34 e 72). Na leitura ambígua que os jornalis tas têm da festa transparece a tensão entre o projeto da ordem e a experiên cia real A festa, que deveria ser justa mente um momento de enquadramen to da experiência, torna.ae urna "esta ção cálida", em que têm lugar os "ajun tamentos populares, maçantes e peri gosos", O jornalista choca-se com seu pró prio "aristocratismo", "que parece um nã<HIeDSo para quem é bem democra ta". Na verdade, sua angústia é sinal da incapacidade deste princípiodemo crático em deixar de ser um slogan da ação política e passar a realidade, re vela a distância entre o espaço de expe riência e o horwmu de expectativa, que a festa pretendia conjurar. Notas 1. Gauta ckNotfci08, 15 e 16 de novem bro de 1890; Jornal do Commercw, 15 e 16 de novembro de 1890; O Paiz, 16 e 17 de novembro de 1890. 2. Sobre o Decreto 155-B, de 14 dejanei ro de 1890, que institui a comemoração 180 ESTUDOS mSTÓRICOS - lgIl4/1� oficial do 15 de novembro, cf. Oliveira, 1989. 3. Embora reconheçamos que as lutas pela memória também tiveram lugar no interior do grupo republicano, conforme descrito por José Murilo d. Carvalho (1990), entendemos que, na primeira co memoração do 15 de novembro, a preocu pação central é com a sobrevivência do regime, e logo, com a oposição monarquia ta. Trabalhamos aqui com: O Pai", Gazeta de NotkiCJ1J, Revista Illustrada, Jornal do Commercio e A 'lhbuna. O grupo não re presenta, por certo, a totalidade da im prensa carioca. Mas, por serem alguns dos 6rgãos de maior imporlância da época, ter nam-se significativos para o nosso prop6- sito: observar a função da imprensa como instrumento dos grupos que lutam pelo poder; embate este que, no momento come morativo, transparece como luta pela me mória. Sobre a imprensa carioca no perío do, cf. Sodré, 1983:189-90, 212·3, 224·5, 253-4; lperu>ma, 1967: 218, 237, 269; e Edmundo,1957. 4. Quintino Bocaiúva substitui Rui Bar· bOBa na direção de O Paiz .m 1885. Como ministro des Relações Extariores do gover· no provisório, passou a freqüentar menos B redação do periódico, mas manteve seu cargo até o oomeço do século, continuando a Ber o "mentor do jornal", como o desCI e v.u Luiz Edmundo (id.m:929). 6. A 7Hbuna Liberal (1888-9), dirigida por Carlos de Laet, é o primeiro jornal a Ber suspenso na República, em dezembro d. 1889. RessW1:" em julho do ano seguin· te, agora com o título encurtado pera A 7Hbuna e . sob a direção de Antônio de Medeiros. E .mpestelade .m 29 de novem bro de 1890, lima semana ap6s a revogação de. leis repressivas de Deodoro. A reação é imediata. Os representantes dosjornaia do Rio de Janeiro reúnem .... no Jornal do Commercw e redigem uma nota, que sai publicade .m todos OB peri6dicos da cide de, com o título "Liberdede de imprt'Dsa". No Congresso, os parlam.ntares elÚgem a apuração dos fatos e a punição do. culpe dos. O ministério, coletivamente, pede de missão, O que depois é reconsiderado. Cf. Fons.ca, 1941:378; Sodré, idem: 253-4; • Carone, 1974:27-8. 6. O Paiz, 30 de novembro de 1890. 7. Revi8ta Illu8trada, dezembro de 1890. 8. O Paiz, 16 de nov.mbro de 1890. 9. Segundo Magalhães J{mior, o panfle to A Qmferência dos Divinos, publicado pela primeira vez em 1867, anonimamen te, serviu de munição à campanha republi cana, tendo sido reproduzido em várioa jornais adeptos da CAusa. Cf. Magalhães Júnior, 1956. 10. O Paiz, 15 de novembro d. 1890. •• 11. Gazela de Not!cias, 15 de novembro de 1890. ' 12. Revista Illu8trada, 15 de novembro de 1890. 13. Anfrísio FiaJho foi 11m dos principais articula dores da campanha pela inderuza ção dos ex-proprietários de escravos. Foi também O 1 : sponsável pela edição comen tada do referido panfleto A Conferência dos Divinos em O Constitucional. O livro d. Anfrísio Fia1ho que a Gazela publica foi escrito em 1890. 14. Sobre a batalha das versões em toro no da proclamação entre republicanos e monarquistas, cf. Oliveira, 1989. 15. O Paiz, 16 d. nov.mbro de 1890. 16. A 'J}ibuna, 15 de novembro de 1890. 17. Reviata Illu8trada, 15 de novembro d. 1890. 18. O Paio. 15 de nov.mbro d. 1890. 19. Jornal do Commercio, 16de nov.m· bro de 1890. 20. O Paiz, 15 de novembro d. 1890. 21. O Paiz, 16 de novembro de 1890. 22. O Paiz, 15 • 16 d. novembro de 1890. 23. O Paiz, 15 de novembro d. 1890. 24. O Paiz, 16 de novembro de 1890. 25. Revista Illuatrada, d.zembro d. 1890. 26. Cf. Grabam, 1991, e Pamplona, 1990. 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