Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1/77 Apropriação do Espaço Público e Comunidade Índice Apresentação 02 Contextualização 02 Relevância 02 Bibliografia 03 Avaliação 05 Aula 1 – Conceitos Preliminares: Público e privado 06 Aula 2 – Espaço Público: idéias, titularidade e gestão 15 Aula 3 - A gestão e a apropriação do Espaço Público: pública ou privada? 24 Aula 4 - Comunidade: idéias e conceitos 31 Aula 5 - Espaço Público e Comunidade 39 Aula 6 - Comunidade e Segurança Pública 46 Aula 7 – Sistema Brasileiro de Trânsito (parte I) 57 Aula 8 - Sistema Brasileiro de Trânsito (parte II) 69 Trabalho final 76 2/77 Apresentação: A disciplina “Apropriação do Espaço Público e Comunidade” se inicia com um chamado à reflexão, não só quanto ao seu conteúdo, mas também quanto ao aproveitamento desse na formação de cada um. A reflexão crítica proposta será muito útil à formação de cada profissional ou estudioso do tema. O curso, inicialmente, irá apresentar a reflexão crítica sobre os conceitos de público e privado, em uma perspectiva crítica da história, demonstrando as mutações que ocorreram em seu conceito. Em um segundo momento, será apresentada a concepção sobre Espaço Público em uma abordagem material (território) e imaterial (relações e instituições). Em seguida, serão debatidas as percepções comunidade, indicando diferentes conteúdos e visões quanto ao termo. Será também debatida e detalhada a relação entre espaço público e comunidade, usando como referência as unidades habitacionais urbanas de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro. Como conclusão, apresentará a interação entre comunidade, espaço público e Estado, focalizando as novas estruturas de democracia participativa, em especial os Conselhos Comunitários de Segurança. O curso foi planejado não só com objetivos informativos, mas principalmente com o objetivo formativo de estimular a reflexão crítica sobre a realidade, em especial frente a conceitos e idéias do senso-comum, problematizando-os segundo uma ótica científica. Isso foi feito por acreditar que esse é o caminho mais profícuo e de qualidade na formação de profissionais e pesquisadores que efetivamente possam trabalhar de forma avançada e produtiva em suas áreas de atuação. Contextualização: A disciplina “Apropriação do Espaço Público e Comunidade”, primeiramente, abordará os principais conceitos envolvidos na temática a ser desenvolvida. Em um segundo momento, será exposta e debatida a nova perspectiva de interação fundada na democracia participativa, em especial nos Conselhos Comunitários de Segurança. Relevância: A disciplina “Apropriação do Espaço Público e Comunidade” oferece o conhecimento necessário à reflexão sobre o fenômeno da interação entre comunidade e Estado no Espaço Público para profissionais e estudiosos da área de Segurança Pública, ao trazer para análise crítica as reais possibilidades e riscos desse novo processo. 3/77 Bibliografia: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. _________. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci e o Estado – Por uma teoria marxista da filosofia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado – Estudos de Antropologia Política. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ENGELS, Friedrich. As origens da família, da propriedade privada e do Estado. 5a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. HESPANHA, Antonio Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Lisboa: Europa América, 1997. HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. ICASURIAGA, Gabriela Lema, Perspectivas Teóricas Sobre A Cidade Capitalista, Dissertação de Mestrado, PPSS, defendida em 31 de outubro de 1997, ESS/UFRJ. _________. Fim de linha: transporte e segregação no Rio de Janeiro, Tese de doutorado, PPGSS, defendida em 23 de julho de 2005, ESS/UFRJ. LOJKINE, Jean. O Estado Capitalista e a Questão Urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1997. LYRA, Rubens Pinto (Org.). Participação, Democracia e Segurança Pública – a experiência brasileira. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Escritos Políticos. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. PAIVA, Maria Arair Pinto. Espaço Público e representação política. Niterói: EdUFF, 2000. RAUTA RAMOS, Maria Helena e BARBOSA, Maria José. “5. Gestão de políticas urbanas e mecanismos de democracia direta”. In. RAUTA RAMOS (org.). Metamorfoses sociais e políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. WEBER, Max. Comunidade e sociedade como estruturas de socialização. In: FERNANDES, Florestan. (org.). Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo:Editora Nacional e Editora da USP, 1973. P.140 -143 4/77 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm Acesso em 11nov09 às 0845H. _______. Lei n° 9.503, de 23 de setembro de 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9503.htm. Acesso em 20 de setembro de 2008. ESPÍRITO SANTO, José do. Trânsito e Cidadania. Brasília – DF: Polícia Militar de Minas Gerais, 2000. HONORATO, Cássio Mattos. Sanções do Código de Trânsito Brasileiro: análise das penalidades e das medidas administrativas cominadas na Lei n. 9.503/97. Campinas – SP: Millenium Editora, 2004. MEIRELES, Helly Lopes e outros. Direito administrativo da ordem pública. Rio de Janeiro – RJ: Forense, 2ª ed, 1987. LAZZARINI, Álvaro. Temas de direito administrativo. São Paulo – SP: Revista dos Tribunais, 2ª ed, 2003. TRUPPEL Fº, José Onildo. Recolhimento do Certificado de Licenciamento Anual para Regularização do Veículo: Uma Inovação ou Recurso do CTB ainda não aplicado na fiscalização de Trânsito? Trabalho de conclusão de curso – Pós-graduação em Direito e Gestão de Trânsito pela FAAG. São José – SC, 2008. RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao código de trânsito brasileiro. 7ª ed. São Paulo – SP: Revista dos Tribunais, 2008. SILVA, Ricardo Alves da e BOLDORI, Reinaldo. Tudo o que você precisa saber sobre as infrações de trânsito. 2ª ed. São Paulo – SP: Letras Jurídicas, 2009. 5/77 Avaliação Em todas as disciplinas da pós-graduação online existem: Avaliação formativa Não valem ponto, mas são importantes para o aprofundamento e fixação do conteúdo: Atividades de fixação: são atividades de passagem, presentes dentro das aulas; são testes contextualizados ao conteúdo explorado. Exercícios de autocorreção: questões para verificação da aprendizagem; são essenciais, pois marcam a sua presença em cada aula; Avaliação somativa Formam a sua nota final nesta disciplina: Temas para discussão em fórum: aprofundam e atualizam os temas estudados em aula, além de ser um espaço para tirar suas dúvidas. Sua participação vale ponto; Prova em data especificada no calendário acadêmico do curso, que será realizadano seu Pólo; Trabalho final da disciplina: O texto deve ser digitado em folha A4, letra arial ou times new 12, entre linhas 1,5. Desenvolver o tema em até 2 laudas. Ao utilizar as citações diretas dos autores, não esquecer de colocar a referência, ex (SOUZA, 2008, p. 67). De mesma forma ao fazer paráfrase do autor coloque seu nome seguido do ano. Ex: Segundo Souza (2008) a criminologia... Colocar ao final do trabalho as referências consultadas conforme o modelo de bibliografia que consta da bibliografia geral do curso. Com base no “Guia Prático para participantes dos Conselhos Comunitários de Segurança, publicação disponível no sítio do ISER-RJ, no endereço: (http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/GuiaPratico.pdf), elabore uma análise sobre a organização e operação dos Conselhos Comunitários de Segurança. O trabalho deverá ser desenvolvido em até 2 laudas. Orientações sobre a realização do trabalho podem ser obtidas com o professor on-line no Fórum de Discussão , no tópico Orientações do Trabalho. 6/77 Aula 1: Conceitos Preliminares: público e privado Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1) Conhecer o método de abordagem histórica; 2) Reconhecer a evolução histórica dos conceitos de público e privado; 3) Identificar os conceitos modernos de público e privado. Estudo dirigido da aula: 1. Leia o texto condutor da aula. 2. Participe do fórum de discussão desta aula. 3. Realize a atividade proposta. 4. Leia a síntese da sua aula. 5. Leia a chamada para a aula seguinte. 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo à primeira aula da disciplina Apropriação do Espaço Público e Comunidade. Nesta aula, você estudará um método de avaliação histórica, que será o guia da análise da evolução histórica dos conceitos de público e privado. Após a realização de tal análise, poder identificar e distinguir o conceito moderno dos termos, em uma perspectiva crítica, em especial quanto à realização ou não das propostas inerente ao conceito moderno dos termos. Boa aula! 7/77 Conceitos preliminares Vamos trabalhar com categorias históricas, portanto cabe um debate preliminar sobre o que significa uma apropriação histórica de categorias. A referência teórica que adotaremos é a do Prof. Antonio Manuel Hespanha1, que nos ensina o papel da história do Direito2. Segundo esse autor, não podemos pensar numa “evolução continua” do Direito, onde as formas jurídicas do passado seriam “esboços” das atuais formas jurídicas, sendo estas o aperfeiçoamento histórico daquelas. Ao revés, explica que as formas jurídicas são soluções históricas de sociedades particulares para problemas sociais que enfrentavam. Assim, ao estudar o passado, o que devemos buscar compreender é o método adotado por tais sociedades na solução de seus problemas, não a solução em si. Ao falarmos sobre espaço público, recorreremos a referências históricas, que devem ser estudadas em seu método e não em suas formas, posto que estas sejam pertinentes apenas ao contexto analisado. Desse modo devemos evitar avaliar as experiências históricas com paradigmas contemporâneos, como a buscar seus embriões no passado. O Público e o Privado Bastante intuitivo entre nós, os conceitos de público e privado não surgem de plano na história humana, são o resultado de diversos processos sociais, operados por diversas formações sociais ao longo da história, com conteúdos e formas diferenciados de abordagem. Para os autores Pierre Clastres3 e Friederich Engels4, mesmo partindo de referenciais teóricos distintos, nas organizações tribais tal separação não existia e, de um modo mais 1 HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Lisboa: Europa América, 1997. 2 Aos interessados no tema é recomendável a leitura do plano de aula e esquemas do Prof. António Manuel Hespanha - O Direito e Sua Evolução Através dos Tempos (Guiao + Esquemas), disponível em: http://www.scribd.com/doc/12717041/O-Direito-e-Sua-Evolucao-Atraves-dos-Tempos-Guiao-Esquemas 3 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado – Estudos de Antropologia Política. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 4 ENGELS, Friedrich. As origens da família, da propriedade privada e do Estado. 5a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 8/77 radical, Clastres afirma que, ao contrário, se organizavam de forma a evitar o surgimento de uma estrutura de tipo estatal. Na comuna primitiva5 apontada por Engels, as pessoas partilhavam a vida social e a base produtiva, de modo que a dicotomia entre público e privado não ocorria devido à inexistência de um espaço privado. A produção ou busca por alimentos, a defesa contra predadores, a criação dos filhos e demais atividades do grupo eram partilhada por todos os seus membros, em uma gestão coletiva e solidária da vida comunal. Não havia hierarquia ou privilégios, todos partilhavam as tarefas de produção social de riqueza e todos se beneficiavam de seus frutos de forma igualitária. Nessa perspectiva, o público e o privado estavam subsumidos na própria vida comunal, sem uma separação possível. Em seus estudos, Clastres demonstra como populações indígenas sul-americanas construíram uma estrutura social elaborada de modo a evitar o surgimento de uma estrutura de poder acima da sociedade. Tal estrutura contava com a separação dos papéis de liderança em três tarefas: A chefia de paz, a chefia de guerra e a chefia religiosa da tribo. Os chefes de paz e de guerra jamais exerciam a liderança simultaneamente, assumindo o segundo o comando exclusivamente durante (e enquanto durassem) situações de conflito com outras tribos, exercendo-a o primeiro exclusivamente em tempos sem conflitos violentos. A chefia religiosa era sempre exercida pelo mesmo indivíduo nas duas situações. Com essa divisão e outras medidas, analisa Clastres, evitavam uma concentração de poderes, mantendo a característica comunal da tribo. Como exemplo de outras medidas, podemos citar que o chefe de paz devia ser o indivíduo de melhor oratória na tribo e, já no papel de chefe, deveria falar regularmente para a tribo que, no entanto, ritualisticamente se colocava de costas para ele ao ouvi-lo. Outro aspecto é que o chefe de paz devia ter mais esposas somente porque essas deveriam confeccionar presentes para os demais membros da tribo. Finalmente. O chefe de paz era ouvido por dois membros da tribo em conflito, mas não possui poder 5 Uma indicação bastante interessante sobre esse período pode ser vista no filme: A Guerra do Fogo, onde é tratada a transição da comuna primitiva ao modo escravista. 9/77 decisório, apenas opina sobre a questão, podendo sua posição ser acatada ou não pelos conflitantes, em uma espécie de mediação e não de julgamento. Essas duas análises demonstram que não havia divisão entre público e privado nos primórdios da história, que essa foi uma construção social posterior, com base nos processos históricos sociais. Uma referência bastante utilizada para indicar a construção do público é a antiguidade clássica, em especial as culturas greco-romanas. Isso merece uma análise mais detalhada. Em primeiro lugar, tais sociedades fundavam-se no modo de produção escravista, no qual existiam homens livres (dominantes) e escravos (dominados). Com isso, preliminarmente,era retirada a condição humana da maioria da população, que eram desprovidos de vontade própria, reduzidos à condição de objetos. Se for possível falar em algo “público” em tal período, necessariamente teremos que aceitar a condição de objeto a que foram submetidos tais indivíduos, excluindo-os da sociedade. Em segundo lugar, tais sociedades possuíam uma base cultural na figura do “guerreiro”, cuja vontade não se curvava e cuja liberdade não era restrita (se o fosse, se tornaria um escravo). Um guerreiro não se submetia a outra vontade a menos que fosse subjugado (e com isso perdesse sua condição de guerreiro), não seguia outra orientação senão a de sua consciência e vontade. Como falar em algo “público” se a perspectiva de atuação dos agentes sociais era individualista? Mas temos provas da existência de reuniões (“paidéias”) realizadas em praças (“ágoras”) durante esse período e costumeiramente são apresentadas como a efetivação de um sentido público àquelas sociedades, como se naquela época houvesse surgido o embrião de nosso conceito de “público” atual, ainda que em uma fase embrionária e imperfeita. O próprio “Senado” romano em geral nos é apresentado também nessa perspectiva. Seguindo a orientação de Hespanha, devemos refletir um pouco mais sobre esse senso comum. Embora essas sociedades fossem individualistas, isso não quer dizer que não houvesse a necessidade de acordos e alianças com outros atores sociais para garantir os interesses individuais, que seja para a manutenção das posses, que seja para a ampliação destas. Esses acordos eram fundados em interesses individuais não conflitantes e permitiam o 10/77 reforço de cada posição individual defendida. Por essa mesma natureza, tais reuniões não eram vinculantes nem impositivas para seus participantes: firmava o acordo quem queria e se o desejasse, não estando nenhum deles submetidos à decisão da reunião nem obrigado a acatá-la na Grécia antiga. O arranjo romano, embora um pouco mais elaborado, com a criação de instituições mais formais, era fundado nos mesmo valores, tendo ao centro um soberano que se impunha sobre os demais devido a seu poder social, mas em última análise, prevalecia a vontade e a motivação individual, ainda que sustentada por alianças. Com o esgotamento desse modo de produção, simbolicamente indicado pela queda do Império Romano6, um novo arranjo produtivo foi criado, no qual a base de “bárbaros invasores” se transmuta em “nobreza” (classe dominante), não mais proprietária de pessoas, mas de terras às quais os servos (classe dominada) eram vinculados. Sinteticamente, aos servos cabia a produção de alimentos enquanto que aos nobres cabia a defesa da terra. A nova fórmula de opressão atingia outros setores da vida, como, por exemplo, o direito de “primas núpcias”, ou seja, o direito do nobre senhor feudal passar a primeira noite com a serva que se casava, tendo relações sexuais com ela antes de seu marido. Nessa estrutura social algumas classes intermediárias exerciam papéis importantes, tais como o clero (que provia bases religiosas para a dominação), os militares (que proviam a defesa do feudo) e, posteriormente, uma classe comerciante (que provia o fluxo da produção excedente de um feudo para o outro). Existia uma liderança central em cada região, o suserano, de cujo feudo de alguma forma os demais dependiam, mas ainda aqui a rigor não se pode falar de nada “público”, mas quando muito em algo “coletivo”, uma vez que ainda eram interesses individuais que motivavam a criação de tais coletivos. Uma importante diferença em relação à antiguidade era que além da hierarquia, o senhor feudal tinha certas obrigações para com o suserano em função de tradições criadas, mas ainda assim eram comuns traições e acordos que feriam essas obrigações, posto que o interesse individual dirigisse tais 6 Sobre o período ver o filme A queda do Império Romano, que aponta a decadência e a fragmentação do Império. 11/77 alianças e acordos. Mudando o interesse privado de um senhor feudal, mudava sua conduta na coletividade. Efetivamente somente com a revolução burguesa e seu Estado Moderno a humanidade conhece um sentido elaborado para o “público”. Do ponto de vista teórico, Maquiavel em seu “O Príncipe7” ainda escreve e descreve um poder político feudal com a fundamental mudança da laicização da política, que nele deixa de ser um “dom divino” e passa a ser uma combinação entre “virtú” (habilidade) e “fortuna” (oportunidade), o que foi um salto importante, mas ainda submetido a uma lógica individualista feudal. Com Thomas Hobbes e seu “Leviatã8” começa a haver uma nova proposição teórica, na qual se coloca o sacrifício de parte da liberdade individual em prol de uma coletividade, agregando um valor superior e vinculante ao individualismo feudal. Sendo o “homem o lobo do homem”, a esse caberia dispor de parte de sua liberdade (individualismo) em prol do Leviatã, que com essa autoridade recebida poderia ordenar a sociedade de forma mais eficiente e produtiva, marcando no campo teórico o início de uma nova proposta de ordem social. Em sintonia com o movimento Iluminista e com a emergente classe burguesa9, é Jean- Jacques Rousseau, com seu “Do Contrato Social10 que fundamenta as diretrizes de um novo arranjo social onde o “público” não é apenas o lócus de encontro de vontades individuais, mas ao revés, o lócus de defesa do “bem-comum”. Tal arranjo permite pela primeira vez na história humana a delimitação entre privado e público, situando-se no campo do primeiro a propriedade privada, o individualismo (agora como individualismo burguês e empreendedor) e os direitos do homem e do cidadão. Já no segundo estão o Estado Moderno, a defesa do bem-comum e da coisa pública, a direção e o ordenamento social com base na lei. 7 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Escritos Políticos. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 8 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 9 Para observar o período de transição recomendamos o filme Danton – O processo da Revolução. 10 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 12/77 Esse arranjo social buscou aliar o caráter individual com o caráter coletivo da humanidade, criando limites ao individualismo (com o interesse público) e ao despotismo do Estado (direitos e garantias individuais), de modo a buscar um equilíbrio social, sintetizado na fórmula do senso comum segundo a qual “o meu direito termina onde o do outro começa”. Independente da série de problemas sociais que decorrem do caráter de exploração do homem pelo homem como base econômica do sistema burguês, foi exatamente na delimitação mais precisa do privado que, pela primeira vez, se criou o conceito do que seria público, como uma categoria mais ampla e significativa, fundada na busca o bem- comum e de uma ordem social justa. Tal ordem, em tese, seria fundada na liberdade, igualdade e fraternidade, embora ao longo dos séculos tenha se mostrado incapaz de cumprir o projeto a que se propôs. De todo modo, somente no Estado Moderno a dicotomia público e privado foi delimitada e detalhada, permitindo com isso nossos atuais conceitos das duas categorias e isso significou um grande avanço social. Nesse sentido, o públicoé a categoria de defesa dos interesses da coletividade, do bem comum, da gestão e distribuição de recursos essenciais, da ordem social, regulando a vida social e estabelecendo com base nesses princípios, limites à iniciativa privada. Através de seu maior instrumento regulador, o Direito, estabelece normas de convívio social compulsórias, que determinam condutas inaceitáveis socialmente (Direito Penal), normas de relações patrimoniais (Direito Civil), normas de relações trabalhistas (Direito do Trabalho), de uso de recursos naturais (Direito Ambiental), além de diversas outras normas que buscam regular, dar previsibilidade e estabilidade para as relações sociais, de modo a defender o bem-comum frente a interesses individuais, proposta essa nem sempre cumprida a contento, mas sempre presente como meta. De todo modo, ao menos no âmbito do “dever ser”, partindo de necessidade de acúmulo (propriedade privada) da classe dominante, o Estado Moderno acabou por delimitar cada esfera - pública e privada - e essa delimitação foi efetuada na forma de lei, na maioria dos casos codificada, o que ao menos em tese, permite o seu conhecimento por parte de todos. Essa forma de ordenamento social, segundo leis, elaboradas por representantes do povo, que vinculam a todos, de forma previamente conhecida e segundo os limites do público e 13/77 do privado, além de todo, criou certa subordinação do privado em relação ao público: o segundo é quem delimita o campo de autonomia do primeiro. Um exemplo disso na Constituição Federal de 1988, é que mesmo reconhecendo o direito à propriedade privada (campo privado), a Carta Magna determina que a propriedade deva atender a seu fim social (campo público), o que subordina o direito privado11. Tendo abordado o público e o privado, na próxima aula estudaremos as idéias de Espaço Público, fundadas nesse conceito de público que construímos, buscando compreender as dimensões materiais e imateriais do termo. Acesse o Fórum de Discussão e opine: “No seu ponto de vista, qual a maior dificuldade para uma efetiva compreensão do que é público e do que é privado na atual sociedade brasileira? A corrupção é causa ou conseqüência disso?” Assista aos filmes indicados nesta aula: - A Guerra do Fogo - A Queda do Império Romano - Danton – O processo da revolução 11 No sentido de complementar o debate entre público e privado recomendamos: a) Gilberto Dupas - Tensões contemporâneas entre público e privado: http://www.scielo.br/pdf/cp/v35n124/a0335124.pdf b) Paulo de Arruda Penteado Filho - O Público e o Privado nas Políticas Sociais: http://www.ufba.br/~paulopen/PublicoPrivado.rtf c) João Pissarra Esteves – publico e privado: http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/publico_privado.pdf 14/77 Nesta aula, você: - Compreendeu a metodologia de análise histórica adotada; - Avaliou a evolução histórica dos conceitos de público e privado; - Identificou os conceitos modernos dos termos e efetuou uma análise crítica de sua efetiva implementação. Após termos estudado as questões relacionadas ao público e privado, na próxima aula você estudará o Espaço Público, em uma abordagem material e imaterial, relacionando esse conceito com os estudados anteriormente 15/77 Aula 2: Espaço Público: idéias, titularidade e gestão Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1) Reconhecer sentidos dados ao Espaço Público; 2) Identificar a amplitude dada ao Espaço Público; 3) Aprofundar a idéia e o conceito de Espaço Público urbano; 4) Identificar as relações entre o sistema econômico e o modo de apropriação do Espaço Público e os problemas inerentes a isso. Estudo dirigido da aula: 1. Leia o texto condutor da aula. 2. Participe do fórum de discussão desta aula. 3. Realize a atividade proposta. 4. Leia a síntese da sua aula. 5. Leia a chamada para a aula seguinte. 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo à aula Espaço Público: idéias, titularidade e gestão. Nesta aula, você estudará abordagens sobre o Espaço Público, focalizando na questão do Espaço Público urbano, que possui uma problemática particular e complexa, interligada a diversas outras variáveis e tensões. Identificará também algumas das pressões mais significativas na gestão desse espaço. Bom estudo! Uma vez que trabalhamos o conceito de público e privado, nos é possível trabalhar o conceito de Espaço Público, segundo duas principais abordagens: a) Espaço Público num sentido imaterial: Essa nomenclatura foi adotada visando destacar o sentido de relações humanas focado nessa abordagem, sendo apenas uma divisão metodológica afinal as relações humanas necessitam de uma base física, 16/77 embora autores contemporâneos já estudem os espaços virtuais como espaços públicos, em um debate que ainda precisa ser aprofundado. Trata-se de uma conceituação de ordem política, filosófica e cultural, delimitando um lócus de debates políticos e sociais, visando a circulação de idéias (comunicação), a construção de normas, a direção da sociedade, o fluxo cultural, dentre outras características. Nesse sentido estaria compreendida no Espaço Público quaisquer estruturas associativas, representativas ou políticas, uma vez que sua principal característica nessa abordagem é a cognição, o enfrentamento e a proposição de soluções para problemas coletivos e sociais. b) Espaço Público num sentido material: Essa nomenclatura foi adotada para destacar o aspecto físico (ou de territorialidade) como base para o Espaço Público, novamente em uma divisão metodológica, visto que seria impensável um Espaço Público no sentido material sem considerar as interações humanas que nele ocorrem. Compreende os espaços físicos de uso coletivo, tais como ruas, praças, parques, e demais espaços físicos de uso social. Compreende áreas de uso comum necessárias à vida em coletividade, mantidas e geridas pelo poder público, garantindo o acesso e uso de toda sociedade. Em um sentido mais amplo, compreende também determinados serviços, como transportes públicos e também a gestão do território comum, como nos planos diretores municipais, que ordenam o uso do espaço e orientam o crescimento dos municípios. Do ponto de vista teórico, temos algumas referências importantes do primeiro sentido, a saber: 1. Maria Arair Pinto Paiva12: “Assim, definimos como o lugar onde as relações e ações comunitárias se passam, se abrigam e têm curso; espaço onde se exteriorizam as demandas, as reivindicações da comunidade; espaço acolhedor de diversas instituições estatais e não-estatais, do agir publicamente, das 12 PAIVA, Maria Arair Pinto. Espaço Público e representação política. Niterói: EdUFF, 2000. 17/77 reuniões; espaço, por excelência, do debate e do agir livre e coletivo.” (PAIVA, 2000:28). 2. Jurgen Habermas13: “A esfera pública com atuação política passa a ter status normativo de um órgão de automediação da sociedade burguesa com um poder estatal que corresponda a suas necessidades.” (HABERMAS, 1984:93). 3. Celso Lafer14: “Este espaço é fundamental porque existem no mundo muitos e decisivos assuntos, que requerem uma escolha que não pode encontraro seu fundamento no campo da certeza. O debate político existe, afirma Hannah Arendt, para lidar com aquelas coisas de interesse coletivo que não são susceptíveis de serem regidas pelos rigores da cognição e que não se subordinam, por isso mesmo, ao despotismo de uma só verdade.” (LAFER, 1987). Esse primeiro sentido merece uma análise mais aprofundada, que ocorrerá, por opção metodológica, em determinados momentos desse estudo. Por hora iremos nos focar no segundo sentido, abordando aspectos do primeiro em outros momentos. Pensar no Espaço Público num sentido material nos coloca a tarefa de abordar a questão da gestão de territorialidade15, que nos apresenta diferenças significativas entre o Espaço Público urbano e o rural. É impossível compreender a totalidade da questão sem articular essas duas manifestações (por exemplo, é impossível pensar no substancial aumento da população urbana sem considerar o gigantesco êxodo rural das últimas décadas e esse está associado à gestão do Espaço Público e Privado no campo 16e questões como a da reforma agrária), foi feita a optamos por nos concentrar em uma análise sobre o Espaço 13 PAIVA apud HABERMAS, 2000:35. 14 PAIVA apud LAFER, 2000:32. 15 Esse é um dos aspectos que demonstra a íntima relação entre Espaço Público imaterial e material, pois durante o processo de gestão ocorre uma relação dialética entre ambos, mediada por governantes e governados acerca do uso do território. Como já dissemos, a divisão proposta é meramente metodológica. 16 O tema escapa os objetivos de nossa análise nesse estudo, mas diversas informações e dados podem ser encontrados no sítio do Movimento dos Sem Terra: http://mst.org.br , em especial nas teses de seus congressos. 18/77 Público urbano, que metodologicamente fornecerá mais subsídios ao estudo que pretendemos desenvolver. De todo modo, destacamos que tal divisão é apenas metodológica e que um estudo aprofundado do tema deve articular esses dois aspectos. O Espaço Público urbano possui um papel importante na construção do sistema capitalista no qual vivemos, derivando de seu caráter urbano, de viver em “burgos”, a nomenclatura de sua classe dominante, a burguesia. De fato, tendo o espaço urbano como lócus privilegiado para a comercialização e mesmo para a produção de bens, a ordem econômica vigente sempre deu uma atenção privilegiada à gestão de tal espaço. Como primeira característica a ser implementada no Espaço Público estava a garantia de circulação de produtos e pessoas, formalizada no chamado “direito de ir e vir”, de modo a permitir o trabalho, a gestão de propriedades e, principalmente, a circulação de mercadorias, elementos essenciais à ordem econômica. Ao pensarmos essa característica, percebemos que ela indica outra categoria, a ser estudada mais tarde na aula 6, a de segurança pública, que deve garantir que tal fluxo seja seguro. Ainda do ponto de vista material, permitir esses fluxos significa que a ordem pública deve efetuar a gestão do Espaço Público, provendo meios materiais para que tal fluxo possa se concretizar, tais como ruas, avenidas, transportes coletivos e individuais, normas de trânsito, etc. Tal gestão deve permitir a chegada de insumos, o fluxo dos trabalhadores ao trabalho e, finalmente, o escoamento da produção. Como uma característica derivada da primeira, temos a questão do planejamento urbano, que deve permitir que o crescimento das cidades não implique na redução em sua capacidade de fluxo de insumos, pessoas e mercadorias. Além disso, incorporando os avanços científicos, tal planejamento deve buscar garantir uma condição de vida à população que a permita reproduzir sua força de trabalho diariamente (por exemplo, nesse sentido, temos a chamada “lei do silêncio”, que visa garantir a tranqüilidade do sono durante o tempo necessário para repor a energia laboral dos indivíduos). E dessa segunda necessidade deriva outra, no sentido do saneamento urbano, que visa garantir condições sanitárias de vida, de modo a buscar reduzir a incidência de doenças e epidemias, o que provoca a redução na capacidade produtiva da população, tendo inclusive causado graves perdas produtivas no passado devido a epidemias, que 19/77 chegaram a devastar cidades inteiras. Garantir condições higiênicas de vida é, antes de tudo, preservar as forças produtivas humanas, fundamentais à produção capitalista. Nessa mesma linha, chegamos a uma questão central no âmbito do Espaço Público urbano, a questão da moradia, que está submetida a duas fortes pressões: por um lado, a necessidade do sistema de que o trabalhador reproduza sua força produtiva, o que certamente será mais bem realizado em uma habitação digna; por outro, a perspectiva mercantilista do próprio Espaço Público urbano, no formato de especulação imobiliária, que valoriza o produto “moradia” em determinadas áreas urbanas, elevando ser valor mercantil e tornando inviável o acesso de amplas camadas urbanas aos imóveis nessas áreas. A conformação concreta desse arranjo espacial depende em muito das características geográficas das cidades, mas de modo geral, observamos a tendência de ocupação de espaços urbanos centrais pela população de melhor renda, enquanto a população de baixa renda ocupa espaços periféricos, gerando dificuldades em seu deslocamento aos locais de trabalho e laser, normalmente existentes em sua maioria nas áreas centrais. A associação apresentada é apenas uma das possíveis17, uma vez que diversas questões e aspectos compõem a organização da territorialidade no Espaço Público urbano, permitindo com isso inúmeras cadeias associativas. Essa amplitude e interação entre objetos a serem ordenados determinam a complexidade de tal gestão. No entanto, uma característica é marcante em tais gestões, a de segregação sócio-espacial de grupos de menor poder aquisitivo como nos ensinam Rauta Ramos e Barbosa18: “Os grupos sociais mais empobrecidos (...) residem em diversos espaços urbanos, tendo em comum a segregação socio-espacial a que estão submetidos em maior ou menor grau, a partir de sua diferenciação relativa no conjunto das 17 Como se tratam de questões interdependentes, é possível fazer diversos encadeamentos lógicos. O que foi apresentado buscou apenas estabelecer uma relação entre o direito de ir e vir e o direito à moradia, mediada pela gestão da territorialidade urbana, em especial em seu aspecto de saneamento público. Isso foi feito em uma associação rápida, sem considerar questões implícitas importantes, tais como política de desenvolvimento contida no Plano Diretor da Cidade, prioridades de investimento público e demais questões associadas a um modelo de desenvolvimento urbano específico. 18 RAUTA RAMOS, Maria Helena e BARBOSA, Maria José. “5. Gestão de políticas urbanas e mecanismos de democracia direta”. In. RAUTA RAMOS (org.). Metamorfoses sociais e políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, 20/77 classes trabalhadoras. Um dos móveis de luta, no espaço urbano, são as condições gerais de sua reprodução social: as infra-estruturas e serviços urbanos, ou seja, os equipamentos e serviços coletivos. A presença maior ou menor desses serviços e infra-estruturas e a sua qualidade caracterizam o grau de segregação sócio-espacial das populações que residem em morros, alagados e periferias da cidade”. (RAUTA RAMOS e BARBOSA, 2003:113). Essa característica acaba por conformar o Espaço Público urbano, tendoem vista os equipamentos e serviços coletivos, em uma área fracionada, possuindo regiões com diversos recursos dessa ordem e outras com nenhum ou quase nenhum deles, o que produz certo tensionamento permanente, motivado pela potencial insatisfação e revolta que tal dicotomia pode provocar na população. Na mesma direção e esclarecendo a motivação de fundo desse arranjo, Gabriela Icasuriaga19 nos demonstra que: “A burguesia e os grupos sociais mais diretamente vinculados aos interesses dessa classe buscam, incessantemente, condições sociais que lhes permitam aumentar a acumulação de capital; e para tal se apropriam do desenvolvimento das forças produtivas e dos meios de produção, para elevar a produtividade do trabalho e economizar tempo e despesas no processo de rotação do capital. O tempo e o dinheiro despendidos fora do processo de produção, seja na reprodução da classe trabalhadora, seja no processo da circulação das mercadorias, correspondem a atividades sócio-econômicas que o capital quer se desresponsabilizar, porque, não produzem mais valia, embora sejam essenciais para a realização da mesma e, fundamentalmente, para acelerar o processo de sua acumulação. Grande parte dessas 19 ICASURIAGA, Gabriela Lema. Fim de linha: transporte e segregação no Rio de Janeiro, Tese de doutorado, PPGSS, defendida em 23 de julho de 2005, ESS/UFRJ. 21/77 funções não são arcadas por nenhum capital particular, mas pelo Estado, que as assume, repassando o ônus para o conjunto da sociedade e cumprindo, dessa forma, o papel de socializador das forças produtivas e das condições de reprodução.” (ICASURIAGA, 200?:XX) Outro autor, Lojkine20, diferencia planificação urbana e política urbana, onde na primeira se sobressaem aspectos ideológicos, enquanto na segunda ocorrem processos mais objetivos (tais como as práticas concretas e suas conseqüências no solo urbano e na vida dos habitantes). Indica como aspectos setoriais de políticas urbanas: a) A localização das atividades econômicas; b) O controle da localização dos diferentes tipos de habitação e; c) A localização dos equipamentos e serviços urbanos essenciais. Como aspectos funcionais da execução de tais políticas, Lojkine identifica duas funções: a) De organização do uso do solo urbano em suas diversas áreas (por exemplo, em residenciais, comerciais, destinadas a equipamentos e serviços públicos, zonas industriais, etc.) e; b) De organização da produção e da circulação dos produtos fundiários e imobiliários, com o Estado agindo como financiador ou fornecedor de subsídios (isso, evidentemente, diante de atividades consideradas não rentáveis para o capital). Para esses autores a lógica de gestão do Espaço Público urbano está subordinada às necessidades do capital21, em suas áreas produtiva, mercantil e financeira, o que acaba por gerar potenciais problemas de organização, posto que tais necessidades nem sempre 20 LOJKINE, Jean. O Estado Capitalista e a Questão Urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 21 É preciso entender tal realidade não como fruto de desvios ou corrupção de administradores municipais, mas como uma imposição do sistema econômico. Uma cidade que não provê as condições para o funcionamento de empresas certamente não atrairá novos empreendimentos ou mesmo perderá alguns dos existentes. Com isso, além da perda direta da arrecadação de impostos dessas empresas, perderá também postos de trabalho, o que implica em nova redução na arrecadação e aumento da tensão social, problemas graves para um administrador público. Encontrar o equilíbrio justo entre atender as necessidades empresariais e as sociais é o grande desafio para quem se propõe a ser um bom administrador. Essas também são as razões que explicam as “guerras fiscais” travadas por municípios, materializada na isenção ou redução de impostos por determinado período, com o objetivo de atrair grandes investimentos empresariais para o município e para o Estado, disputa essa que coloca esses empresários numa posição de barganhar grandes vantagens com essas disputas. 22/77 são compatíveis com as necessidades das pessoas que ocupam o mesmo espaço, quer no sentido direto da própria organização urbana, quer no sentido da alocação de recursos públicos. Lojkine assim sintetiza: “Se a política urbana capitalista não é uma planificação – no sentido de um domínio real da urbanização – nem por isso deixa de responder a uma lógica: à da segregação social” (LOJKINE, 1997: 217). Como resultado objetivo dessa intervenção estatal surge - além das já apontadas diferenças entre áreas urbanas - um problema real de gestão, posto que (de modo geral e em especial na cidade do Rio de Janeiro) as áreas de moradia das populações de baixa renda sofreram uma segregação tão acentuada que, na sua maioria, era como se não fizessem do Espaço Público urbano. Com isso não era reconhecida nem ordenada a ocupação de tais áreas, nem ocorrendo investimentos em equipamentos e aparelhos de uso coletivo nesses locais. E com isso a segregação atingiu seu mais elevado grau, constituindo uma política pública de exclusão que só recentemente começou a ser modificada, com a alocação de recursos públicos para intervir nesses espaços. Essa lacuna gerou novos problemas sociais, como veremos. Acesse o Fórum de Discussão e opine: “Em seu ponto de vista, qual a maior dificuldade para a efetiva gestão de territorialidade que contemple ao mesmo tempo interesses econômicos (das empresas) e sociais (dos indivíduos)? É apenas uma opção política ou existem dificuldades concretas para esse equilíbrio?” Como leituras complementares sobre o tema recomendamos: a) João Carlos Correia - A fragmentação do espaço público: novos desafios ético-políticos disponível no sítio: http://www.bocc.ubi.pt/pag/correia-joao-carlos-fragmentacao-do-espaco-publico.pdf 23/77 b) Roberto Kant de Lima - Administração de conflitos, espaço público e cidadania - Uma perspectiva comparada, disponível no sítio: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/73/72 c) Miguel Midões - Crise no Espaço Público, Agenda-Setting e Formação da Opinião Pública disponível no sítio: http://www.bocc.ubi.pt/pag/midoes-miguel-crise-no-espaco-publico-agenda-setting.pdf d) Lideli Crepaldi - Espaço público e privado: O Pelourinho no imaginário baiano, disponível no sítio: http://www2.metodista.br/unesco/PCLA/revista10/observatorio%2010-1.htm Nesta aula, você: - Compreendeu a categorização de Espaço Público proposta; - Identificou os aspectos gerais do Espaço Público urbano; - Avaliou aspectos da gestão do Espaço Público urbano e compreendeu, em uma perspectiva crítica, dificuldades e problemas na gestão desse espaço. Após termos estudado as questões relacionadas ao Espaço Público, na próxima aula você aprofundará o estudo da gestão do Espaço Público urbano, na perspectiva de gestão pública ou privada, relacionando esse debate com a experiência da cidade do Rio de Janeiro. 24/77 Aula 3: A gestão e a apropriação do Espaço Público: pública ou privada? Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1) Conhecer as distinções entre Espaço Público urbano legal e ilegal; 2) Reconhecer as formas de gestão do Espaço Público urbano ilegal; 3) Identificar como ocorre a colonização do público peloprivado; 4) Avaliar, em uma perspectiva crítica, as linhas gerais do processo na cidade do Rio de Janeiro. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula. 2. Participe do fórum de discussão desta aula. 3. Realize a atividade proposta. 4. Leia a síntese da sua aula. 5. Leia a chamada para a aula seguinte. 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo à aula A gestão e a apropriação do Espaço Público: pública ou privada? Nesta aula, você estudará abordagens sobre Espaço Público urbano legal e ilegal, focalizando na questão do Espaço Público urbano ilegal, o qual sofre gestões do poder público que provoca tensões sociais. Identificará também como se manifesta a colonização do público pelo privado nesse campo, com base na experiência da cidade do Rio de Janeiro. Bom estudo! As lacunas de intervenção e gestão estatal em determinadas áreas do Espaço Público urbano acabaram por criar uma situação dicotômica, uma vez que a ocupação de tais áreas se deu de forma privada, sem o devido controle público. Com efeito, as ocupações populares de terra em geral devolutas ou sem valor econômico (no caso do Rio de Janeiro principalmente as encostas dos morros e em São Paulo em áreas de periferia) foram pautadas pela gestão privada (e geralmente individual) desses 25/77 espaços. Não havia planejamento na ocupação e muito menos existiram equipamentos essenciais (luz, água e esgoto), acabando por produzir uma ocupação espacial caótica e pouco eficiente, que trás inúmeras dificuldades, não só para a vida da população como também para um trabalho de readequação do espaço segundo o planejamento urbano. Como em todo grupamento humano, tais espaços se organizaram de forma sui generis, dissociada da organização oficial do Espaço Público Urbano. Lideranças locais22 acabavam por assumir o papel de regulador e ordenador das ocupações segundo critérios pessoais, ocupando o papel do poder público. Com isso a cisão material e objetiva entre as áreas “reconhecidas” como urbanas e essas áreas “não reconhecidas” alcançou um novo patamar: o da cisão político-representativa e organizacional. A gestão de tais áreas não era pública mais privada. Uma espécie de “poder local” foi criado a partir das relações concretas entre as pessoas dessas áreas, apartado e à revelia do poder público estabelecido, tanto por causa da omissão deste, quanto pelas necessidades daquelas áreas. É importante destacar, no caso do Rio de Janeiro, que essa gestão privada do Espaço Público urbano se deu nos dois extremos da pirâmide social: também os agrupamentos de classe média ou alta, notadamente na Barra da Tijuca, tiveram certa autonomia frente ao poder público: as ruas, a rede de água e esgoto, os aparelhos de laser e mesmo escolas existem no interior de tais condomínios produzidos por iniciativa privada e, em muito casos, em desrespeito à normas públicas de ocupação. O exemplo mais notório disso são os esgotos clandestinos, que deságuam em lagoas in natura que hoje se constituem numa grave fonte de poluição no local. Os construtores alegam que assim o fizeram à falta de uma rede pública de esgotos, que deveria ter sido provida pelo poder público e não o foi à época, somente sendo iniciada sua implantação a posteriori. Durante muitos anos outras práticas “privatistas” foram toleradas, admitidas ou mesmo legalizadas na cidade do Rio de Janeiro, tais como a chamada “mais-valia de obras”, 22 O papel de tais lideranças é fundamental para a comunidade, normalmente começam a se consolidar na própria fase de ocupação do espaço, desde logo estabelecendo regras mínimas de seu uso. Em comunidades mais organizadas, assumem um papel menos personalizado e mais político, normalmente ocupando por eleição o cargo de presidente da associação local. Sua interferência real na comunidade vem sendo mediada pelas ações dos grupos criminosos, aos quais não interessa uma organização autônoma da comunidade. 26/77 segundo a qual construções ilegais, aumentos de área construída fora dos padrões máximos admitidos por legislação foram tolerados e legalizados desde que as obras estivessem concluídas: bastava ocultar a ilegalidade durante a construção que, ao término desta, seria possível legalizar a ilegalidade. Evidentemente que essa prática não era operada nas áreas de baixa renda da cidade (uma vez que eram todas ilegais), mas exatamente nas áreas de classe média e alta, o que de todo modo contribuiu para ampliar a gestão privada do Espaço Público urbano no Rio de Janeiro23. Pudemos identificar essa superposição do privado frente ao público no Espaço Público material, entretanto o sociólogo Zygmunt Bauman24 em seu livro “Modernidade Líquida” nos alerta para a existência de um processo semelhante no âmbito do Espaço Público imaterial: a colonização do público pelo privado. Partindo de uma análise da sociedade contemporânea e suas possibilidades de emancipação, de construção de identidade, de associar individualidade com individualismo e de busca por soluções imediatistas e imediatas, Bauman conclui que a política clássica (a qual chama de “política com pê maiúsculo”) que buscava a construção de soluções coletivas visando o bem comum, está sendo substituída por um novo modo de fazer política (ao qual denomina “política-vida”), fundado num pragmatismo individualista, que busca transformar o público em uma mera ressonância do privado, em um vetor para a efetivação do privado. A esse processo denomina de “colonização do público pelo privado”25. Essa constatação é muito importante uma vez que, ao haver tal colonização, diversos princípio democráticos e republicanos são solapados e deturpados. Em termos éticos, dispor da coisa pública em benefício próprio ou de outrem não é uma atitude compatível com a ordem do Estado Moderno. Ao revés, essa conduta é tipificada como crime, 23 É impossível não associar tais práticas com a especulação imobiliária e os interesses de lucro rápido dos que nela investem. Esperar por obras de saneamento básico, que podem durar anos, se antagoniza com tal busca e as construtoras dispõe de poder político e econômico capazes de inverter a ordem racional do processo, impondo o interesse privado frente ao público. 24 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 25 Essa é uma construção bastante feliz do sociólogo, uma vez que remete a conceitos anteriores de Espaço Público, que seria apenas o lócus de encontro de vontade individuais, cada um barganhando e lutando por seus próprios interesses, em antagonismo à construção moderna como o lócus de construção do bem-comum. Essa colonização se dá de várias formas e em várias áreas, naturalizando um ideário individualista da coisa pública e construindo uma prática política de trocas de favores. Evidentemente que essa naturalização está associada com o que chamamos de corrupção pública, uma vez que a própria colonização já é uma forma de corrupção do Espaço Público, ao menos no nível de princípios. O texto de Bauman tece uma boa analise do fenômeno, ainda que o aborde apenas sua forma, sendo indicado aos que querem aprofundar o tema. 27/77 passível de punições severas, nas situações clássicas de favorecimentos indevidos. No cenário analisado por Bauman, uma vez que o sentido público do bem comum é obliterado pelo sentido privado do interesse individual, há de fato a equivocada subsunção inversa de um pelo outro, do todo pela parte,o que dificulta o entendimento do processo real que ocorre, produzindo um tipo de corrupção diferente dos classicamente observados. Nesse caso não é objetivamente o interesse patrimonial que dirige a conduta (se assim o fosse seria a corrupção clássica), mas a hipervalorização de idéias, propostas, projetos e/ou soluções individuais, tendo-as como a expressão da vontade coletiva ou do bem- comum. O indivíduo sinceramente crê que, por exemplo, sua rua merece receber imediatamente um calçamento para que pare de pisar na lama e que isso é mais importante do que o saneamento da rua ao lado. Podemos classificar como um tipo de corrupção uma vez que o individualismo leva à obtenção de vantagens, mas essas não são necessariamente patrimoniais, podendo ser meros favorecimentos e confortos. Desdobrando o pensamento de Bauman, podemos dizer que, enquanto na política clássica, com pê maiúsculo, o que motiva seus atores é a busca pelo bem-comum em um processo coletivo no qual os interesses individuais devem ser mediados e compostos, na política-vida a motivação parece ser a defesa dos próprios interesses: “Se eu não defender meus interesses, ninguém o fará!”, legitimando com isso a conduta corrompida e, no fluxo da repetição, naturalizando-a. O grave problema dessa política-vida é que - ao tomar a parte pelo todo, ao tomar o privado como público - acaba operando como um fator de desordem social, deixando de verdadeiramente enfrentar e resolver os problemas coletivos na construção do bem- comum. Tal efeito se manifesta nos dois campos do Espaço Público: quer seja no da direção política, quer seja no da intervenção territorial. Planejar a intervenção do poder público com base em referências privadas não só se revela ineficiente como uma fonte potencial de desordem social. No Rio de Janeiro atual 28/77 as políticas públicas de “tolerância zero” e de “choque de ordem”26, devido ao caráter seletivo e localizado de suas aplicações, tolerando transgressões em determinadas áreas urbanas e em certos grupos sociais e, ao mesmo tempo, sendo implacável em outras áreas e com outros grupos, tende a acirrar as tensões sociais, principalmente contra tal poder público que, ao agir, se revela privado e não vinculado ao bem-comum. Tentar resolver problemas complexos e conexos de forma privada acaba, acima de tudo, por desqualificar o poder público frente à população, em um círculo vicioso de aumento de problemas e tensões sociais. Bauman ainda nos alerta quanto à necessidade de resgatar a política com pê maiúsculo, mas isso só se efetivará com o resgate de estruturas políticas e intervenções concretas que permitam a reafirmação de valores coletivos, em um círculo virtuoso que acabe por suplantar o processo vicioso em curso. Nesse sentido posteriormente realizaremos a análise de algumas estruturas atuais de interação política entre Estado e Sociedade ou, no léxico de Antonio Gramsci27, entre Sociedade Política e Sociedade Civil, que carregam conflitos e dualidades frente a essa questão e nas quais uma intervenção conseqüente e bem direcionada se faz urgente28. De todo modo, resta a necessidade de compreender criticamente o processo em curso e combater sua naturalização, entendendo-o como um espaço em disputa e não como uma realidade imutável, tão comum aos discursos niilistas sobre a política. 26 É o caso típico de tentar resolver um problema social com medidas repressivas, na tentativa de intimidar a sociedade. No entanto, como dificilmente esse tipo de política consegue recair igualmente sobre toda a sociedade, acaba por apenas criar novos canais de influências para afastar a incidência das políticas. Isso, além de se revelar inócuo pois nenhum poder sustenta um alto nível de repressão por muito tempo, desacredita a intervenção pública por sua seletividade: “reprimir os pobres é covardia, porque não reprimem os ricos também? Porque nesse caso ficam com medo...”. O senso comum desacreditando socialmente essas intervenções. Em verdade esse tipo de política visa criar apenas uma “sensação de ordem” sem efetivamente ordenar. 27 Pensador marxista italiano que durante seus anos de prisão escreveu diversos cadernos, depois reunidos sob o título de “Cadernos do Cárcere”, nos quais tratava de diversos temas. Em um estudo de 1975, Christinne Buci-Glucksmann encontrou nesses cadernos as bases teóricas de uma nova concepção de Estado, a qual ela chamou de “Estado ampliado” na qual Gramsci teoriza que “Sociedade Política” (aquilo que nos costumamos chamar de “Estado”) e “Sociedade Civil” (as organizações sociais não estatais) compõem o Estado, rompendo com o antagonismo clássico, presente inclusive em Hegel e Marx, no qual o Estado se antagoniza com a Sociedade Civil. Essa percepção de Gramsci dará origem ao conceito de hegemonia, fundamental em sua obra. O livro indicado é a fonte primária dessa abordagem e de leitura recomendada. Ver BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci e o Estado – Por uma teoria marxista da filosofia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 28 Os diversos níveis de governo do Estado brasileiro têm buscado novas formas de enfrentamento à questão, desenvolvendo políticas públicas de assentamento e reurbanização, dos quais o PAC é o mais divulgado. 29/77 Acesse o Fórum de Discussão e opine: “Como deve atuar o poder público em Espaços Urbanos ilegais? É apenas uma questão policial ou existem outras (e quais) abordagens?” Leituras complementares sobre gestão do Espaço Público urbano: Marlene Duarte Francisco – Espaço Público Urbano: Oportunidade de Identidade Urbana participada. Disponível em: http://www.apgeo.pt/files/docs/CD_X_Coloquio_Iberico_Geografia/pdfs/053.pdf Maria da Graça Agostinho Faccio – Plano Diretor participativo e a construção do espaço público nas cidades brasileiras a partir do Estatuto da Cidade: possibilidades e limites. Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~dich/TextoCaderno82.pdf Véronique Dupont e Marie-Caroline Saglio-Yatzimirsky - Programas de erradicação, reassentamento e urbanização das favelas: Delhi e Mumbai, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v23n66/a20v2366.pdf Helena Menna Barreto Silva - Programas de urbanização e desenvolvimento do mercado em favelas brasileiras. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/silva_hmb_favelas.pdf 30/77 Nesta aula, você: - Compreendeu a categorização de Espaço Público urbano legal e ilegal; identificou os aspectos gerais da gestão do poder público no Espaço Público urbano ilegal; avaliou conseqüências dessa gestão na colonização do público pelo privado e compreendeu, em uma perspectiva crítica, em linhas gerais como esse processo ocorreu na cidade do Rio de Janeiro. Após termos estudado as questões relacionadas à gestão do Espaço Público, na próxima aula você iniciará o estudo sobre comunidade, conhecendo e analisando diversos conceitos e idéias sobre o tema. 31/77 Aula 4: Comunidade: idéias e conceitos Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1) Reconhecer as diferentes visões sobre comunidade; 2) Identificar as diferentes referências teóricas sobre o termo; 3) Identificar vários conceitos acerca de comunidade; 4) Compreender as características gerais dos conceitos; 5) Compreender as características do conceito a ser adotado. Estudo dirigido da aula 1. Leia o textocondutor da aula. 2. Participe do fórum de discussão desta aula. 3. Realize a atividade proposta. 4. Leia a síntese da sua aula. 5. Leia a chamada para a aula seguinte. 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo à aula Comunidade: idéias e conceitos. Nesta aula, você estudará as idéias e conceitos sobre comunidade, partindo de noções gerais e de senso comum, realizando a análise de conceitos científicos em uma perspectiva crítica. Identificará também conceitos emergentes sobre o termo e analisará o conceito adotado e sua pertinência ao estudo a ser realizado. Apesar de ser um termo bastante intuitivo, sua conceituação científica não é simples. Bom estudo! 32/77 Trabalhar com o conceito de comunidade revela-se aparentemente simples, dada sensação intuitiva provida pelo senso comum e de alguma forma abordada por Zygmunt Bauman em sua obra “Comunidade29”. Como o próprio autor destaca, essa sensação de conhecimento e conforto no contato com o tema por vezes pode embotar uma análise mais crítica. Desse modo, o conceito pode assumir diversas formas, algumas contraditórias entre si, o que dificulta a sua compreensão precisa. Nos dias atuais, ao menos na cidade do Rio de Janeiro, o vocábulo “comunidade” se tornou praticamente o sinônimo de moradia da população urbana de baixa renda30 em substituição à anterior terminologia de “favela”. Se consultarmos nossos dois mais renomados dicionários encontraremos outros sentidos: a) Houaiss31: COMUNIDADE Datação: 1272 � substantivo feminino 1 estado ou qualidade das coisas materiais ou das noções abstratas comuns a diversos indivíduos; comunhão 2 concordância, concerto, harmonia Exs.: c. de aspirações c. de pontos de vista 3 conjunto de habitantes de um mesmo Estado ou qualquer grupo social cujos elementos vivam numa dada área, sob um governo comum e irmanados por um mesmo legado cultural e histórico 4 população que vive num dado lugar ou região, ger. ligada por interesses comuns 5 Derivação: por metonímia. essa região ou esse lugar Ex.: a c. do ABC paulista 6 Derivação: por extensão de sentido. qualquer agrupamento populacional 6.1 Derivação: por extensão de sentido. grupo monástico ou outro qualquer grupo de religiosos, com hábitos de vida e ideais comuns, codificados numa regra; ordem, congregação Ex.: a c. dos beneditinos 7 qualquer grupo de indivíduos unidos pela mesma profissão ou que exerça uma mesma atividade 29 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 30 Esse tipo de uso do senso comum dificulta uma apropriação mais científica do termo, ao mesmo tempo que dá a falsa impressão de compreensão de seu significado. 31 Dicionário Houaiss Eletrônico – Versão 3.0 – Junho de 2009. 33/77 Exs.: a c. dos médicos a c. dos lexicógrafos 8 conjunto de indivíduos com determinada característica comum, inserido em grupo ou sociedade maior que não partilha suas características fundamentais Ex.: a c. japonesa de São Paulo 8.1 Derivação: por extensão de sentido. grupo de indivíduos que partilha uma crença econômica ou social particular e vive em conjunto Ex.: uma c. hippie 8.2 Derivação: por metonímia. conjunto de indivíduos, inclusive de nações diferentes, ligado por determinada consciência histórica ou por interesses sociais, culturais, econômicos ou políticos comuns Exs.: a c. europeia do carvão e do aço a c. latino-americana 9 Rubrica: biologia, ecologia. conjunto de populações que habitam uma mesma área ao mesmo tempo; biocenose b) Aurélio32: COMUNIDADE [Do lat. communitate.] S. f. 1. Qualidade ou estado do que é comum; comunhão. 2. Concordância, conformidade, identidade. 3. Posse, obrigação ou direito em comum. 4. O corpo social; a sociedade. 5. Qualquer grupo social cujos membros habitam uma região determinada, têm um mesmo governo e estão irmanados por uma mesma herança cultural e histórica. 6. Qualquer conjunto populacional considerado como um todo, em virtude de aspectos geográficos, econômicos e/ou culturais comuns. 7. Grupo de pessoas considerado, dentro de uma formação social complexa, em suas características específicas e individualizantes. 8. Grupo de pessoas que comungam uma mesma crença ou ideal. 9. Grupo de pessoas que vivem submetidas a uma mesma regra religiosa. 10. P. ext. Local por elas habitado. 11. Ecol. Conjunto de populações animais e vegetais em uma mesma área, formando um todo integrado e uniforme; biocenose. 32 Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI – Versão 3.0 – Novembro de 1999. 34/77 12. Sociol. Agrupamento que se caracteriza por forte coesão baseada no consenso espontâneo dos indivíduos. Comunidade de fala. 1. E. Ling. Comunidade lingüística. Comunidade lingüística. 1. E. Ling. Grupo de falantes que partilham um conjunto de regras e normas que regulam a conduta lingüística em diferentes situações; comunidade de fala. Ainda apresentando possíveis conceitos, no campo científico selecionamos alguns autores que trabalharam o conceito: a) Emile Durkheim33: Em uma leitura mais ampla de sua teoria, podemos associar a categoria “comunidade” à solidariedade mecânica, que estava presentes à uma estrutura social menos especializada quanto à divisão social do trabalho, enquanto a categoria “sociedade” pode ser associada na teoria de Durkheim à solidariedade orgânica. Admitindo tais associações, podemos deduzir que em Durkheim comunidade e sociedade são arranjos distintos das relações sociais, que podem ocorrer no mesmo espaço, mas em tempos distintos. b) Max Weber34: Para Weber comunidade é “uma relação social quando a atitude na ação social – no caso particular, em termo médio ou no tipo puro – inspira-se no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) dos partícipes da constituição de um todo” (WEBER, 1973:140). Afirma que a “maioria das relações sociais participa em parte da comunidade e em parte da sociedade” (WEBER, 1973:141). Mas principalmente destaca que ”Comunidade só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento a ação está reciprocamente referida – não bastando a ação de todos e de cada um deles frente à mesma circunstância – e na medida em que esta referência traduz o sentimento de formar um todo” (WEBER, 1973, 142). Podemos considerar que o conceito de comunidade indica frações sociais, não só em um aspecto quantitativo (proporções, quantidade de membros, etc.) como em aspectos 33 DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 34 WEBER, Max. Comunidade e sociedade como estruturas de socialização. In: FERNANDES, Florestan. (org.). Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1973. p. 140-143.. 35/77 qualitativos (reprodutibilidade, cultura, etc.). Desse modo, comunidade e sociedade coexistem em um mesmo espaço e tempo, estando a primeira contida na segunda. c) Robert Park35: “No seu artigo Ecologia Humana, de 1936, fez uma pormenorizada explicação da conformação do habitat humano, designando-o de “comunidade”, baseado na teoria darwinista e spenceriana e no conceitode “processo de cooperação competitiva”. Uma “comunidade” assim entendida teria duas características essenciais: a existência de uma população organizada territorialmente, arraigada ao solo que ocupa, e uma relação de mútua interdependência. Em sua concepção, a “comunidade” possuía características de um organismo, advindas dos “mecanismos de competição”, o que a permitiria manter o equilíbrio biótico.” (ICASURIAGA, 1997) d) Zygmunt Bauman36: Considera que o termo “comunidade” implica em uma “obrigação fraterna de partilhar as vantagens entre seus membros, independente do talento ou importância deles”, evocando com isso um paraíso idealizado que nos traz uma sensação de conforto e segurança. Com base no individualismo contemporâneo, indivíduos que percebem o mundo pela ótica do mérito, não teriam nada a “ganhar com a bem-tecida rede de obrigações comunitárias, e muito que perder se forem capturados por ela” (BAUMAN, 2003, p.59), e com isso indica a aparente dicotomia entre segurança e liberdade na comunidade, que a percepção atual parece indicar. Apenas nessa breve coletânea, podemos perceber que o conceito de comunidade suscita diversas abordagens e entendimentos e nem elencamos outros autores para os quais existe hoje uma “comunidade em rede”37 (virtual), que prescindiria de espaço material e que ampliaria a idéia clássica de comunidade. Tal exclusão é devida a um simples fundamento: ela se aporta no uso de senso comum do termo “comunidades virtuais” para designar o que em termos sociológicos são meros grupos sociais em torno de interesses comuns pontuais e, além disso, confundem o meio de comunicação (virtual) com o 35 ICASURIAGA, Gabriela Lema, Perspectivas Teóricas Sobre A Cidade Capitalista, Dissertação de Mestrado, PPSS, defendida em 31 de outubro de 1997, ESS/UFRJ. 36 Op. cit, 2003. 37 http://ambienteaprendiz.bvs.br/processos/GA_-_Comunidade_Virtual/Ciclo_Comunidade_Virtual_200508.jpg 36/77 conteúdo das relações. De um modo simples: toda comunidade necessita de comunicação, mas nem toda (forma) de comunicação funda comunidades. Existem vários outros conceitos que associam comunidade e identidade, desde a forma associativa (a identidade fundando a comunidade) até a forma alternativa (a identidade sendo empregada como alternativa à comunidade, percepção de Bauman sobre a atualidade da relação). Evitamos trabalhar com tais conceitos uma vez que apenas deslocam o problema de conceituação de comunidade para o problema de conceituação de identidade, igualmente complexo, admitindo acepções igualmente amplas. Dizer que a comunidade é composta pelo que com ela ou nela se identificam implica em ter que conceituar o que seria e como se daria propriamente essa identificação, apenas deslocando a questão. A comunidade pode ser mais bem compreendida como um devir, como um lócus de interação entre os indivíduos e o Espaço Público (material e imaterial, compreendendo a comunicação e a cultura), mediado pelo compartilhar de um espaço físico (território); pela existência de relações sociais comuns e pela interação entre seus membros. Acesse o Fórum de Discussão e opine: “As chamadas “comunidades virtuais” podem ser assim chamadas do ponto de vista científico? A base territorial e o contato físico de seus membros são fundamentais ou não para uma comunidade? Para entender mais sobre comunidade em rede, leia: Cicilia M. Krohling Peruzzo1 e Marcelo de Oliveira Volpato. Conceitos de comunidade, local e região: inter-relações e diferenças. Disponível em: http://www.espm.br/ConhecaAESPM/Mestrado/Documents/COLOQUIO%20BXM/S1/cecili a%20krohling%20e%20marcelo%20volpato.pdf 37/77 Eduardo Yuji Yamamoto. O vínculo comunitário. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2009/resumos/R14-0947-1.pdf Para entender mais sobre comunidade e identidade, leia: Fabio Costa Peixoto. Identidade local do bairro de Santa Teresa: uma análise de uma comunidade na metrópole carioca. Disponível no sítio: http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1215570297_ARQUIVO_ Artigo_ANPUH_Rio_2008_tamanhoideal.pdf Cristine Gorski Severo. A Questão aa Identidade e o lócus da variação/mudança em diferentes abordagens sociolingüísticas http://www.letramagna.com/variacaomudan%E7asocio.pdf Nesta aula, você: Compreendeu a idéia e noções gerais de senso comum sobre comunidade; identificou alguns conceitos científicos sobre o termo; avaliou novas tendências científicas de 38/77 conceituação e compreendeu, em uma perspectiva crítica, critérios de escolha de conceitos em função da abordagem do estudo a ser desenvolvido. Após termos estudado as questões relacionadas à Comunidade, na próxima aula você iniciará o estudo sobre a relação entre comunidade e Espaço Público, em especial o urbano e tendo como referência a experiência da cidade do Rio de Janeiro. 39/77 Aula 5: Espaço Público e Comunidade Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1) Reconhecer as relações de ilegalidade e legalidade de comunidades em um Espaço Público; 2) Identificar principais problemas decorrentes da condição de ilegal; 3) Identificar as políticas públicas por atuação ou por não atuação; 4) Compreender os resultados da ausência do poder público; 5) Compreender as causas do crescente poder criminoso. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula. 2. Participe do fórum de discussão desta aula. 3. Realize a atividade proposta. 4. Leia a síntese da sua aula. 5. Leia a chamada para a aula seguinte. 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo à aula Espaço Público e Comunidade. Nesta aula, você estudará as noções de interações territoriais, políticas e culturais no Espaço Público, realizando a análise da condição de legalidade e ilegalidade de comunidades em uma perspectiva crítica. Identificará também problemas inerentes à condição de ilegalidade e analisará as alternativas desenvolvidas devido à ausência do poder público. Verificará condições de crescimento do poder de criminosos. Bom estudo! Sendo a comunidade um devir e podendo existir mais de uma comunidade em um Espaço Público, é importante pensar em como nele pode ocorrer a interação comunitária, pensada aqui em duas dimensões, a interna e a externa e, a partir desse momento trataremos por comunidade especificamente as comunidades que ocupam o Espaço Público urbano, no sentido de constituí-lo seu local de moradia. 40/77 Em seu aspecto interno, a relação entre comunidade e Espaço Público ocorre tanto no aspecto material como imaterial, compreendendo a gestão de territorialidade e a gestão política, filosófica e cultural. No que diz respeito à territorialidade, a primeira questão que se apresenta é quanto se é pública ou privada, estando no primeiro caso em obediência às normas públicas de ocupação, contando com equipamentos e serviços públicos e está inserida na ordem pública. Ainda nesse primeiro caso, a relação com o poder público se dá de uma forma legal, contando com o pagamento de impostos por parte da comunidade. O poder público por sua vez cumpre sua função social, fiscalizando e ordenando o espaço territorial da comunidade.
Compartilhar