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LEGADO DA OBRA TOLKENIANA PARA A MITOLOGIA INGLESA1 Danielle Cristina da Cunha2 Bruno Henrique Coelho3 Adelma Francisca Marques4 RESUMO Este trabalho é um estudo sobre o complexo mundo criado por J.R.R.Tolkien, e tem como objetivo averiguar a proposta do escritor inglês de sua obra ser uma tentativa de elaborar uma mitologia para seu país, que segundo o próprio, sofria de uma defasagem nessa questão. Recorrendo à crítica genética e à pesquisa bibliográfica, pretende-se fazer uma análise do desenvolvimento de sua obra – notadamente o surgimento do elo que uniu O Hobbit ao Senhor dos Anéis, e traz referências de O Silmarillion - e comparar aspectos de suas criações com mitos greco-romanos e nórdicos e com a cosmovisão cristã, a fim de demonstrar se Tolkien cumpriu satisfatoriamente seu intento. PALAVRAS-CHAVE: 1. J.R.R.Tolkien. 2. Mitologia. 3.Crítica Genética 4.Cosmovisão cristã ________________________ INTRODUÇÃO O presente trabalho apresenta um estudo sobre o escritor John Ronald Reul Tolkien e suas obras mais conhecidas, O Hobbit (2012) e O Senhor dos Anéis (2002), e tem como finalidade debruçar-se no aspecto mitológico intencionado por Tolkien em seu mundo imaginário da Terra-média, continente palco das tramas dos livros mencionados e de O Silmarillion e Contos Inacabados, estes últimos organizados e publicados postumamente por seu filho Christopher, e que fornecem profundidade e coerência histórica aos seus livros de maior sucesso supracitados. 1 Artigo científico elaborado para a disciplina de Prática de Redação Científica, no Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio – CEUNSP/Itu, 2016. 2 Aluna do Curso de Letras, 7º Semestre, do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio – CEUNSP/Itu, 2016. E-mail: elle-6@hotmail.com 3 Orientador Temático, Professor Especialista da disciplina de Tópicos Avançados, do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio – CEUNSP/Itu, 2016. E-mail: bhcoelho@terra.com.br 4 Orientador Metodológico – Professora Especialista da disciplina de Prática de Redação Científica do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio – CEUNSP/Itu, 2016. E-mail: adelma.marques@ceunsp.edu.br 2 Tendo em vista que a produção literária de Tolkien foi um projeto de vida, tomando-lhe cerca de 50 anos de dedicação, este estudo se inicia com sua biografia, dando especial ênfase aos episódios fundamentais de sua vida que contribuíram para a formulação de seu legendário. Em um segundo momento, por meio da crítica genética, tendo como aparato teórico Salles (2008), foi feita a seleção de cartas e rascunhos do autor para compreender o desenvolvimento de seu projeto mitológico. Por fim, baseando-se no procedimento de pesquisa bibliográfica, utilizando-se especialmente Kyrmse (2003), Martins Filho (2006) e Shippey (2002), este trabalho procura comprovar as influências e o legado da criação tolkeniana para a mitologia inglesa. 1 VIDA E OBRA “Em uma toca no chão vivia um hobbit.” Assim se inicia o primeiro livro aparentemente sem grandes pretensões, juntamente da carreira literária do professor inglês John Ronald Reuel Tolkien. O Hobbit, publicado originalmente em 1937 pela editora George Allen & Unwin, segundo o próprio autor, partiu de uma manifestação do seu subconsciente quando, entediado, corrigia uma pilha de exames para o Certificado Escolar e, inesperadamente, deparou-se com uma página em branco: “Tudo que me lembro sobre o início de O Hobbit é de sentar para corrigir provas para o Certificado Escolar no cansaço interminável daquela tarefa anual imposta sobre acadêmicos sem dinheiro e com filhos. Em uma folha em branco rabisquei: ‘Numa toca no chão vivia um hobbit.’ Não sabia e não sei por quê.” (TOLKIEN, 2006, p. 207) Embora essa frase tenha se revelado como o lampejo de inspiração que o levou a escrever futuramente não só O Hobbit, mas também O Senhor dos Anéis, muito antes de sentir tal insight, Tolkien já cultivava uma vasta coleção de notas esparsas e rascunhos de um projeto alimentado por ele e amigos desde a juventude. E para desvelar esse projeto que lhe tomou cerca de cinquenta anos, é antes necessário ter conhecimento, mesmo que breve e limitado, de sua vida e das circunstâncias nas quais sua obra foi produzida. 3 Apesar de proclamar-se inglês (“Em termos ingleses, sou de fato um habitante das West-Midlands que se sente em casa apenas nos condados ao longo das Fronteiras Galesas” TOLKIEN, 2006, p. 210) Tolkien nasceu em Bloemfontein, África do Sul em 3 de janeiro de 1892. Sua família era deveras inglesa, mas seu pai, Arthur Tolkien, em ocasião de uma oportunidade de emprego no Banco da África, foi transferido e fixou-se em Bloemfonteim, de modo que sua noiva, Mabel Suffield, juntou-se a ele em 1891, lá se casando e dando à luz a John Ronald no ano seguinte e a Hilary, em 1894. Contudo, o clima árido da região mostrou-se prejudicial à frágil saúde do bebê John, e Mabel teve de retornar para a Inglaterra em 1895. Seu marido deveria segui-los, mas infelizmente veio a falecer em 1896 devido à febre reumática, deixando a família em situação financeiramente complicada. A agora jovem viúva Mabel passou por vários apuros para sustentar e educar seus filhos, sobretudo após converter-se para o catolicismo, fato que a levou a ser hostilizada por ambos os lados da família e causou a cessação de qualquer auxílio financeiro, que apesar de mirrado, vinha recebendo. O forte apego espiritual da mãe ao catolicismo marcou profundamente o pequeno Ronald e teve repercussão futuramente na base mitológica de seu legendário. Devido à sempre atribulada situação com as finanças, a família teve de mudar de casa com grande frequência, e especialmente dois locais em que viveram foram de extrema relevância para estimular a imaginação de Tolkien. Em 1896, Mabel e os filhos mudaram-se para o vilarejo de Sarehole, uma vasta região rural, na qual os meninos, que tinham um grande laço afetivo, faziam longas caminhadas aventureiras, fantasiando os habitantes como magos e ogros. Foi um momento de felicidade e aguçamento criativo, sobretudo após Mabel introduzir Ronald ao mundo das letras. Contudo, em 1900, os Tolkien foram movidos por duas razões para mudarem- se novamente: o ingresso de Ronald na King’s Edward School, em Birmingham, a mais de treze quilômetros de distância do chalé onde moravam, e o fato de Mabel estar passando pelo processo de conversão religiosa e a igreja católica mais próxima ficar no centro dessa cidade. O contraste entre a harmonia e a beleza campestre de Sarehole, com a industrialização, o caos e a poluição de Birmingham materializaram-se futuramente na obra de Tolkien nas imagens do Condado - a vila dos hobbits - e do avanço desenfreado e ambicioso por poder e tecnologia de 4 Saruman - em O Senhor dos Anéis. Também foi nessa época que Tolkien travou seu primeiro contato com a língua galesa – por meio de escritos em vagões de carvão que passavam pela ferrovia atrás de sua casa -, cujas características “acabaram mais tarde moldando a fonologia e a gramática do sindarin, o élfico cinzento” (KYRMSE, 2003, p.6), um dos idiomas de sua mitologia. Encontrando auxílio e paz espiritual no Oratório de Birmingham, Mabel conheceu Padre Francis Xavier Morgan, com o qual construiu uma forte e decisiva amizade: em 1904 Mabel foi diagnosticada com diabetes e teve sua saúde rapidamente deteriorada, e foi padre Morgan quem forneceu ajuda e posteriormente ficou com a tutela dos meninos após, tragicamente, ficarem órfãos. Responsável, assim, pela guarda dos garotos,que o amavam como um pai substituto, padre Morgan assegurou-lhes um lar, pagando-lhes um alojamento, e estimulou seus estudos. Em 1908, em um dos alojamentos resididos pelos irmãos, Ronald conheceu Edith Bratt, com quem compartilhava uma história semelhante de orfandade, e pela qual se apaixonou rapidamente. Ao saber do romance, padre Morgan proibiu o pupilo de se encontrar com Edith, pois temia que Ronald se distraísse do objetivo de passar nos exames de admissão de Oxford, os quais exigiam grande afinco nos estudos, dando-lhe permissão para retomar o namoro quando atingisse a maioridade, dali a três anos. Não restando outra opção, Ronald debruçou-se com dedicação aos exames e, com um grupo de amigos íntimos, fundou o clube T.C.,B.S. – Tea Club, Barrovian Society – o qual se reunia na biblioteca de King Edward para tomar chá, discutir e recitar sagas mitológicas antigas, uma paixão entre os garotos. Em 1910 Ronald obteve uma bolsa de estudos e, antes de se mudar para Oxford, fez uma viagem para Suíça, cujas paisagens “forneceram as impressões que mais tarde usaria na narrativa do Hobbit, e depois no Senhor dos Anéis.” (KYRMSE, 2003, p. 7). Uma vez na universidade, Tolkien iniciou sua vida acadêmica no campo da filologia, intensificando seu amor pela língua galesa e descobrindo também o finlandês, cuja fonologia e gramática forneceram a base para o idioma mais sofisticado do universo tolkeniano: quenya, também chamado de alto-élfico. Em 1913, logo completando 21 anos Ronald enviou uma carta para Edith Bratt, por quem permaneceu fiel desde o momento que se apaixonaram. Alguns contratempos afligiram ao casal, que formalizou o noivado em 1914, ano de 5 graduação de Tolkien e de eclosão da Grande Guerra, catástrofe que o levou a se alistar no Corpo de Fuzileiros de Lancashire. A guerra deixou fortes marcas na vida de Tolkien, que participou de uma série de combates nos quais presenciou em primeira mão o horror da morte, além de ter enfrentado a perda de dois grandes amigos de juventude, ambos membros do T.C.,B.S. Em uma carta escrita poucos dias antes de morrer, Rob Gilson, um desses amigos, dizia que aqueles do T.C.,B.S. que sobrevivessem deveriam representar a voz do grupo e produzir algo que os honrassem. Tal carta gerou um profundo abalo em Ronald, que em pouco tempo começou a formular os primeiros elementos de sua mitologia, escrevendo em um caderno o qual intitulou de “The Book of Lost Tales (O Livro dos Contos Perdidos); esse foi o germe do que mais tarde se transformaria no Silmarillion” (KYRMSE, 2003, p.9). Após o término da 1ª Guerra Mundial, a família, agora acrescida do bebê John, fixou-se em Oxford e Tolkien pôde dedicar-se a sua carreira acadêmica. Trabalhou como linguista para o projeto New English Dictionary, pesquisando a etimologia de alguns vocábulos e em 1924 tornou-se catedrático de Língua Inglesa em Leeds. Simultaneamente ao crescimento acadêmico de Tolkien, sua produção mitológica prosseguia e encontrou um terreno extremamente fértil quando Ronald conquistou uma vaga de professor na Universidade de Oxford e lá conheceu Clive Staples Lewis (C.S.Lewis, que viria a se tornar popular após escrever As Crônicas de Nárnia), com quem descobriu partilhar a apreciação por idiomas e mitos antigos. Tolkien e Lewis, juntamente de outros acadêmicos mais próximos, formaram o grupo Inklings, que, à semelhança do T.C.,B.S., reunia amigos interessados em literatura, poesia, mitologia – especialmente a nórdica – e dessa vez, substituindo o chá por cerveja. Os Inklings –“o nome lembra ink, ‘tinta’, sugerindo pessoas que viviam de escrever, e também inkling, ‘vaga noção’, dando a entender que tinham idéias (sic) mal cozidas” (KYRMSE, 2003, p.11) – além de se tornar famoso na história da literatura inglesa, foi também fundamental para o desenvolvimento criativo de Tolkien, que recebia intenso apoio para apresentar suas ideias de contos e poemas. Ao lado dos Inklings, os filhos de Tolkien – após John vieram Michael, Chistopher e Priscilla – foram outro profundo incentivo para criar e contar histórias. Do desejo de entreter as crianças surgiu A aventuras de Tom Bombadil, Roverandom, Sr. Bliss, Mestre Gil de Ham e As cartas do Papai Noel, romances e contos divertidos e de teor infantil, que trilhavam um caminho paralelo aos escritos 6 épicos. Contudo, de acordo com Kyrmse (2003, p. 12) essas duas vertentes se encontraram no momento de concepção d’O Hobbit, cuja ideia, como já foi dito anteriormente, surgiu num momento de correção de provas. O Hobbit congregava em si o estilo espirituoso de Ronald ao mesmo tempo em que apresentava um complexo pano de fundo histórico, tornando-se mais denso no decorrer da trama. Contra as expectativas do próprio escritor, O Hobbit foi aprovado pela editora Allen & Unwin e desde sua publicação, em 21 de setembro de 1937, se tornou um sucesso de vendas. Tal fato levou os editores a pedirem uma sequência, de modo que Tolkien ofereceu-lhes – sem êxito – O Silmarillion. Magoado com essa rejeição, Ronald empreendeu-se então a escrever um “novo Hobbit”, que, à medida que foi sendo desenvolvido, foi ganhando tons mais sombrios. Visando coerência entre esta nova história – que viria a se tornar O Senhor dos Anéis – Tolkien precisou revisar e modificar alguns capítulos d’O Hobbit para adequá-lo às novas ideias que vinham surgindo. A redação de O Senhor dos Anéis abarcou longos anos da vida de Tolkien, devido não somente a sua rotina atribulada de professor e pai, como também ao início da Segunda Guerra Mundial – na qual ingressaram seus filhos Michael e Christopher – e, principalmente, ao seu perfeccionismo, que ao mesmo tempo era uma virtude, garantindo coerência histórica e linguística a seus escritos, e quase foi sua ruína. Em 1949, doze anos depois do início da empreitada, Tolkien terminou de datilografar a última versão de O Senhor dos Anéis, sendo C.S. Lewis o primeiro a lê-la, parabenizando-o com efusivos elogios. Um grande problema seria convencer os editores a publicá-lo num único volume – como o preço do papel era extremamente alto naquele período do pós-guerra, a editora Allen & Unwin sugeriu a subdivisão da obra em três volumes, sugestão veementemente negada por Tolkien, que procurou negociar com outra editora, a Collins. Esta, interessada precipuamente em comprar os direitos do rentável O Hobbit, recusou a publicação, mesmo que em três partes, de O Senhor dos Anéis, de modo que seu autor não encontrou outra solução senão ceder à proposta da Allen & Unwin. Não sem percalços e atrasos consideráveis, o primeiro volume, intitulado A Sociedade do Anel foi publicada em agosto de 1954, As Duas Torres em novembro desse mesmo ano e O Retorno do Rei em outubro de 1955. 7 Os livros tornaram-se um sucesso de vendas a exemplo de seu antecessor e conquistaram, desde então, críticas em sua grande maioria favoráveis, como a do jornal Truth, sob voz de A.E. Cherryman: “É um trabalho espantoso. Ele [Tolkien] acrescentou algo, não apenas ao mundo da literatura, mas à história também.” (CHERRYMAN, 1954 apud WHITE, 2013, p.184). Quando outros países requereram os direitos de publicação dos livros em seus idiomas e territórios, Tolkien, como estudioso de linguística e filologia, escreveu um guia de instruções detalhadas sobre as traduções dos nomes próprios em sua obra. Acostumado à vida regrada de professor em Oxford, Tolkien surpreendeu-se com o assédio que passou a enfrentar de fãs e jornalistas e, logo após aposentar-se, em 1959, mudou-se junto com a esposa para Bournemouth, uma região mais tranquila e afastada na costa inglesa, lá se ocupando em respondercartas de leitores, dar prosseguimento a revisão de O Silmarillion e aproveitar com Edith pela primeira vez uma vida de fartura, propiciada pelas vendas de O Senhor dos Anéis. Em 1971, Edith veio a falecer em consequência de uma inflamação na vesícula e, sob pedido de Ronald, foi gravado em sua lápide: Edith Mary Tolkien/ Lúthien/ 1899-1971. Lúthien era uma linda princesa élfica, a primeira imortal a conquistar um humano e com ele se casar, abdicando da vida eterna, uma das mais belas lendas de O Silmarillion e a favorita de Tolkien, que se inspirou na esposa para escrevê-la. Dois anos depois, devido a uma crise de úlcera com hemorragia aguda, Ronald veio a falecer em 2 de setembro de 1973, e em sua lápide está a inscrição: John Ronald Reul Tolkien/ Beren/ 1892-1973, sendo Beren o mortal arrebatado pela beleza de Lúthien. Assumindo o papel de testamenteiro literário, Christopher Tolkien tomou a árdua tarefa de compilar os rascunhos e histórias não terminadas do pai e garantir- lhes um aspecto publicável. O Silmarillion saiu às vendas em 1977, Os Contos Inacabados em 1980, e vários outros livros foram publicados até os dias de hoje, restando ainda muito material inédito chegar ao Brasil. 2 PROCESSO DE CRIAÇÃO TOLKENIANA 8 Tolkien, como já foi dito, era muito exigente consigo mesmo e procurava sempre “alcançar não somente a máxima consistência, mas também a visão mais perfeita possível do mundo e do mito que estava criando” (KYRMSE, 2003, p.145), e para ele, um fator de assaz relevância era o linguístico, que, aliás, não era somente um fascínio (“[...] a paixão dominante de Tolkien era a filologia”, SHIPPEY, 2002, p.xi, tradução minha), mas também a sua área profissional, “[...] sou amaldiçoado com uma aguda sensibilidade em tais assuntos.” (TOLKIEN, 2006, p.140). Somando-se a esses fatores está a revelação do autor, logo no início do prefácio de O Senhor dos Anéis, que a história teve o papel secundário de fornecer pano de fundo para a inspiração de ordem primordialmente linguística. Há muitos documentos nos quais Tolkien deixa registrado suas motivações e evolução de enredo e aí reside o objetivo deste capítulo: analisar concisamente – dado a limitação de espaço – o processo de criação artística do escritor, levando em conta o que considera a crítica genética. Para Calvino (1990, p.91 apud SALLES, 2008, p.18) “[...] arte não é só o produto considerado ‘acabado’ [...] a obra consiste na cadeia infinita de agregação de idéias [sic], ou seja, na série infinita de aproximações para atingi-la”, e o que apregoa a crítica genética, segundo Salles (2008), é o acompanhamento teórico- crítico do processo de gênese de uma obra de arte, sendo necessário recorrer a manuscritos e outros documentos de processo deixados pelo escritor que registrem os diversos momentos de criação. Tolkien legou um material muito vasto de rascunhos e cartas: os próprios O Silmarillion e Contos Inacabados são resultado da compilação de manuscritos feita criteriosamente por seu filho Christopher, sendo inevitável, segundo este, não haver nestes livros “algumas diferenças de tom e de descrição, alguns pontos obscuros e, aqui e ali, alguma falta de coesão” (TOLKIEN, 2011, p.ix). Neste capítulo será feito um recorte específico: em qual momento e porque Tolkien considerou necessário e propício tornar o anel de Gollum, apresentado n’O Hobbit apenas como um mero objeto mágico que conferia invisibilidade, numa das peças-chave da trilogia O Senhor dos Anéis. Antes de iniciar a análise, é preciso fazer um resumo em linhas gerais da trama d’O Hobbit, com destaque ao ponto de maior interesse para este trabalho: Bilbo Bolseiro é um hobbit habitante do Condado, cujo povo pertence a um ramo da raça humana e tem por principais características a baixa estatura, o intenso contato 9 com a natureza e a pouca inclinação a novidades. Bilbo é, contudo, perturbado quando Gandalf, o mago, e uma companhia de treze anões, liderados por Thorin Escudo-de-carvalho, batem à sua porta e levam-no para uma expedição que tem como objetivo resgatar o tesouro saqueado pelo dragão Smaug no tempo de Thrór, avô de Thorin. Até alcançarem a Montanha Solitária, onde a fera estava abrigada, a comitiva enfrenta várias dificuldades: num dado momento, Gandalf precisa separar- se do grupo e partir com urgência para averiguar o surgimento de uma sombra na Floresta Verde, relacionada à obscura figura que vinha sendo chamada de Necromante. Em outra situação, durante uma fuga de orcs numa passagem nas Montanhas Sombrias, Bilbo é deixado desacordado para trás. Quando desperta, vê- se num ambiente extremamente escuro, e ao engatinhar encontra um anel e guarda- o no bolso, sem saber que este tinha poderes de invisibilidade e pertencia à criatura Gollum, que morava nos arredores da gruta onde estava perdido. Ambos travam contato e Gollum propõe ao hobbit um jogo de adivinhas, no qual se o segundo vencesse, poderia ir embora e teria ajuda do primeiro para isso, mas caso este ganhasse, iria devorar o Sr. Bolseiro. A narrativa prossegue com o protagonista ileso, mas não se conclui com a retomada das riquezas pelos anões, mas sim após uma guerra deflagrada entre estes, homens e elfos, da qual Bilbo sobrevive rico em experiência e sabedoria, além de possuidor do anel. Sabe-se que assim que lançado, O Hobbit teve uma ótima aceitação e atingiu um grande número de vendas, sendo compreensível que os editores incentivassem Tolkien a escrever uma sequência, um “novo Hobbit”. Em 4 de fevereiro de 1938, Tolkien enviou para C.A. Furth, da Allen & Unwin uma cópia anexada do primeiro capítulo – “Uma festa muito inesperada” - de uma possível continuação que estava elaborando. Segundo ele, numa carta enviada treze dias depois para o mesmo destinatário, Dizem que o primeiro passo é o mais difícil. Não considero difícil. Tenho certeza de que poderei escrever ilimitados ‘primeiros capítulos’. Escrevi muitos, de fato. A continuação de O Hobbit continua onde estava, e tenho apenas as noções mais vagas de como prosseguir. Sem jamais pretender uma continuação, temo que eu tenha gasto todos os meus ‘motivos’ e personagens favoritos no ‘Hobbit’ original. (TOLKIEN, 2006, p. 33) Tolkien realmente escreveu e reformulou muitas vezes o começo do novo livro, mas não podia estar mais enganado quando supôs ter esgotado personagens 10 e ideias. Pelo contrário, o enredo evoluía à medida que era escrito, acabando por assumir proporções épicas que nem mesmo ele conjecturava. Assim, o que era para ser uma simples continuação de um livro infantil, “tomou uma direção não premeditada” (TOLKIEN, 2006, p.38). Tolkien dizia sentir dificuldade em estabelecer uma relação entre o livro anterior e o novo, e que sua mente estava preocupada com as mitologias do Silmarillion, “para o qual até mesmo o Sr. Bolseiro acabou sendo arrastado contra minha vontade original, e não creio que serei capaz de movimentar-me em demasia fora dele [...]” (TOLKIEN, 2006, p.42). Nesta carta de 24 de julho de 1938, Tolkien deixa clara a inevitável fusão pelas quais suas obras estavam passando, e em outra, do mês seguinte revela o nome da nova história: Hobbit – “O Senhor dos Anéis”. Em The Return of the Shadow (O Retorno da Sombra), sexto volume de um total de doze organizados por Christopher na coleção History of Middle-earth, a qual contém rascunhos e versões provisórias ou incompletas d’O Senhor dos Anéis, é possível acompanhar os pensamentos de Tolkien, na página 22, acerca do anel de Bilbo: “O Anel: qual sua origem. Necromante? Não muito perigoso, quando usado com boas intenções. Mas ele exige uma punição. Você deve perdê-loou perder a si mesmo. (tradução minha)”. Mais adiante Christopher, que inclusive colaborou bastante no processo de elaboração da trama, comenta que “já nesse estágio, quando meu pai estava ainda trabalhando no capítulo de abertura, muito sobre a natureza do Anel já estava presente no embrião” (TOLKIEN, 2004, p.22, tradução minha), e que a “direção não premeditada” dita por Tolkien numa das cartas para seus editores, seria sem dúvida o surgimento dos Cavaleiros Negros, cuja relação com o anel se desenvolveu conforme ele escrevia. Sobre a primeira aparição desses Cavaleiros Negros é possível comparar o seguinte trecho de uns dos rascunhos do autor, com a versão finalizada: Pela curva vinha um cavalo branco e montado sobre ele um pacote – ou era o que parecia: um homem pequeno totalmente envolto em uma grande capa e capuz, de modo que somente seus olhos eram visíveis, e suas botas nos estribos abaixo. O cavalo parou quando se aproximou de Bingo. A figura descobriu o nariz e farejou; e então silenciou-se como se estivesse ouvindo algo. De repente uma risada veio de dentro do capuz. ‘Bingo, meu garoto!’ disse Gandalf, jogando de lado seu manto. (TOLKIEN, 2004, p. 26, tradução minha). Pela curva vinha um cavalo negro, não um pônei de hobbit, mas um cavalo grande; montado por um homem grande, que parecia abaixado na sela, 11 envolto numa grande capa e num capuz preto, de modo que só se viam as botas nos estribos altos. O rosto, coberto por uma sombra, era invisível. Quando chegou à árvore onde estava Frodo, o cavalo parou. A figura do cavaleiro permanecia imóvel com a cabeça abaixada, como que tentando escutar algo. De dentro do capuz veio um ruído, como se alguém tentasse farejar um cheiro indefinível; a cabeça se virava para os dois lados da estrada. (TOLKIEN, 2002, p.102). O que seria a princípio o mago Gandalf (“cavalo branco”, “homem pequeno”, “somente seus olhos eram visíveis”, “uma risada veio de dento do capuz”), acabou convertendo-se em um Cavaleiro Negro (“cavalo negro”, “homem grande”, “grande capa e capuz preto”, “rosto [...] era invisível”, “de dentro do capuz veio um ruído”), além da alteração do nome da personagem Bingo, para Frodo – sobrinho de Bilbo. O Necromante – mais tarde desvendado como Sauron, o Senhor do Escuro e a quem o anel verdadeiramente pertencia e por quem fora confeccionado -, e esses Cavaleiros – também conhecidos como Espectros e posteriormente revelados como homens que foram gratificados por Sauron com outros anéis, mas terminaram por sucumbir ao poder e a servi-lo como mestre -, seriam a ligação que Tolkien estava procurando estabelecer entre as histórias: O anel mágico era a única coisa óbvia em O Hobbit que poderia ser relacionada com minha mitologia. Para ser o fardo de uma história grande, teria de ser de suprema importância. Liguei-o então à referência (originalmente) deveras casual ao Necromante [...] (TOLKIEN, 2006, p.329). Uma vez decido que o elo necessário seria o anel, Tolkien desenvolveu seu passado, como ele chegou às mãos da criatura Gollum. Entre a versão rascunhada e a finalizada há sensíveis alterações na lenda da criação do Anel, mas ambas mantém-se similares quanto a ele ter sido forjado pelo Senhor do Escuro como uma maneira de dominar os povos da Terra-média, aos quais foram oferecidos outros anéis, inferiores em poder e todos subjugados ao Um Anel, que devido a uma sequência de batalhas, foi perdido num rio, sendo daí encontrado por um ser semelhante a um hobbit. Esta criatura, chamada Sméagol (Digol no manuscrito), seduzida pela beleza e pelo poder emanado do anel, tomou-o para si e foi lentamente sendo corrompida, física, moral e psicologicamente, até transformar-se na figura esquálida e sombria do Gollum com quem Bilbo deparou-se na gruta. Com a questão da origem já formulada, restava a Tolkien corrigir o que considerou uma falha substancial: em O Hobbit, no capítulo “Adivinhas no Escuro”, Gollum não só propõe a Bilbo que, caso este vencesse, o ajudaria a sair da gruta, 12 como também inclui dentro da aposta o Anel, o qual entrega de bom grado após ser derrotado. A falta de coerência a ser retificada seria que Gollum jamais seria capaz de tamanha atitude de desprendimento, pois o Um Anel desperta no indivíduo que o detém o sentimento de cobiça que o leva a atos extremos para não perdê-lo, haja vista Sauron tenha depositado parte de sua própria essência e poder maligno quando o concebeu. Sobre essa força do Anel Tolkien escreveu: Ele era mais poderoso do que todos os outros anéis [...] apesar de seu poder depender do usuário – e seu perigo [também depender]: quanto mais simples o usuário, e o menor tempo que o tenha utilizado. Para Gollum, ele apenas o ajudou a caçar (mas tornou-o infame). Para Bilbo ele foi útil, mas o deixou perdido novamente. Para Bingo também foi dessa maneira. Gandalf poderia ter triplicado seu poder, mas ele não se atreveu a usá-lo (não depois que descobriu tudo a seu respeito). Um elfo poderia tornar-se quase tão poderoso como o Senhor, mas sucumbiria às trevas. (TOLKIEN, 2004, p. 158, tradução minha). Tão logo reparado esse detalhe elementar, uma nova edição do livro foi lançada, e como justificativa para a primeira versão que não condizia à veracidade interna da história, Tolkien agiu com grande perspicácia: nas capas d’O Senhor dos Anéis, ilustradas pelo próprio, há uma inscrição em runas que [...] vertidas para o português, [...] assumiriam a seguinte forma: O Senhor dos Anéis traduzido do Livro Vermelho do Marco Ocidental por John Ronald Reuel Tolkien. Aqui está contada a história da Guerra do Anel e do Retorno do Rei conforme vista pelos hobbits. (TOLKIEN, 2002, pp.v-vi) Segundo Lopes (2002), O procedimento, conhecido como pseudotradução, é no mínimo tão velho quanto ‘Dom Quixote’ --Cervantes também o emprega no começo do século 17--, mas nenhum autor supera Tolkien ao usá-lo para simular uma boneca russa literária, com camadas e mais camadas de transmissão cultural. Dessa forma, ao assumir-se de maneira fictícia não como o criador, mas como o tradutor dos livros, que derivariam, portanto, de uma fonte historiográfica da terceira era da Terra-média, Tolkien atribui estrategicamente a inconsistência da primeira versão do encontro entre Gollum e Bilbo a este mesmo, já que foi o Sr. Bolseiro quem produziu parte do registro: Esse relato Bilbo colocou em suas memórias e parece nunca tê-lo alterado [...] Evidentemente isso ainda constava no Livro Vermelho original, da mesma forma que em várias cópias e resumos. Mas muitas cópias contêm a história verdadeira (como uma alternativa), derivada sem dúvida 13 das notas de Frodo ou Samwise; ambos souberam a verdade, embora não parecessem dispostos a apagar qualquer coisa já escrita pelo velho hobbit. Gandalf, entretanto, desacreditou da primeira história de Bilbo assim que a escutou, e continuou muito curioso a respeito do anel. Finalmente conseguiu saber da verdadeira história pelo próprio Bilbo [...] (TOLKIEN, 2002, pp. 17-18) Tal artifício também serviu de acréscimo assertivo para um propósito que Tolkien tinha em mente e que será tratado a seguir. 3 UMA MITOLOGIA PARA A INGLATERRA Dentre as centenas de cartas escritas por Tolkien e organizadas por Humphrey Carpenter, um dos maiores biógrafos do autor, a carta de número 131 é a que mais recebe atenção de todo estudioso que se dedica a compreender a obra do filólogo inglês: escrita provavelmente no final de 1951 e endereçada para Milton Waldman, da editora Collins, quando do período de negociação da publicação d’O Senhor dos Anéis, ela contêm a intenção de Tolkien dedemonstrar a interdependência de seus livros e a impossibilidade de fracioná-los. Para tanto, ele resume cronologicamente o conteúdo de seu mundo imaginário e relata o motivo por trás de sua criação: Não ria! Mas certa vez (minha crista foi há muito baixada), eu tinha em mente criar um corpo de lendas mais ou menos associadas, que abrangesse desde o amplo e cosmogônico até o nível do conto de fadas romântico – o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor sorvendo o esplendor do vasto pano de fundo -, que eu poderia dedicar simplesmente à Inglaterra, ao meu país. [...] Desenvolveria alguns dos grandes contos na sua plenitude e deixaria muitos apenas no projeto e esboçados. (TOLKIEN, 2006, p. 141) Segundo ele, a Inglaterra era deficitária no aspecto mitológico, [...] não possuía histórias próprias (relacionadas à sua língua e solo), não da qualidade que eu buscava e encontrei (como um ingrediente) nas lendas de outras terras. Havia gregas, celtas e românicas, germânicas, escandinavas e finlandesas (que muito me influenciou), mas não inglesas, salvo materiais de livros de contos populares empobrecidos. (TOLKIEN, 2006, p. 141) Essa suposta lacuna na cultura inglesa suscitada pelo filólogo já fora sugerida por outros, como o também romancista inglês Edward Morgan Foster: Por que a Inglaterra não possui uma grande mitologia? Nosso folclore jamais avança além da delicadeza encantadora e as maiores melodias sobre nosso mundo rural foram todas sopradas pelas flautas da 14 Grécia. Por mais profunda e autêntica que possa ser a imaginação local, parece ter falhado nisso. Parou nas bruxas e nas fadas (FOSTER, 2005, p. 306 apud WHITE, 2013, p. 83). Além de Foster, Shippey (2002), professor de Oxford que leciona atualmente a mesma disciplina de Tolkien, observa que antes deste, diferentes estudiosos de outros países já haviam se engajado num intento semelhante de recolher ou elaborar um complexo mitológico vernáculo, tais como o finlandês Elias Lönnrot, responsável por reconstruir o épico Kalevala, os alemães Jacob e Wilhelm Grimm, cujo projeto era compilar, de uma só vez, uma gramática, um dicionário, uma mitologia, um ciclo de lendas heroicas e um corpo de contos de fadas para a Alemanha, e o dinamarquês Nikolai Grundtvig, que tomou para si a reconstrução da cultura nacional atentando-se para as sagas e literaturas épicas antigas. Ao dizer que planejava criar uma mitologia para a Inglaterra, Tolkien, portanto, “não estava dizendo algo completamente sem precedentes” (SHIPPEY, 2002, p. xvi, tradução minha). Uma vez compreendido o estímulo por detrás da obra, cabe analisar o perfil não somente profissional de Tolkien, mas também suas crenças e religiosidade. Com a infância marcada pela conversão da mãe e a juventude sob guarda de um padre, Tolkien inevitavelmente tornou-se um católico devoto e fiel ao livro sagrado. Mas para ele, a interferência direta da religião cristã nos mitos e contos de fadas configurava-se como algo fatal, já que estes representam os antigos dias pagãos, e “[...] devem refletir e conter em solução elementos de verdade (ou erro) moral e religiosa, mas não explícitos, não na forma conhecida no mundo ‘real’ primário” (TOLKIEN, 2006, p. 141). Esse posicionamento, por mais racional que fosse, talvez gerasse alguma crise de consciência em Tolkien, até o momento que ele creu ter descoberto uma forma de conciliação. Essa descoberta foi o poema religioso mítico em inglês antigo (anglo-saxão) Crist of Cynewulf, especialmente os seguintes versos: “Éalá Éarendel, engla beorhtast, / ofer middangeard monnum sended (‘Salve, Éarendel, mais brilhante dos anjos/ Sobre a Terra-média enviado aos homens’) (KYRMSE, 2003, p. 8). O que impressionou Tolkien, então estudante de filologia comparada, foi o inusitado termo Éarendel, o qual constatou não pertencer ao inglês antigo, mas sim remeter a um período muito mais remoto. Para Tolkien, tal nome “era o mito por trás de um fragmento obscuro de um conto de fadas sobrevivente da Islândia: uma história 15 sobre o marinheiro heroico Orentil, que na mitologia nórdica era identificado como a estrela matutina” (DAY, 2004, p.8). “Estrela matutina”, explana Day (2004) mais adiante, também era associada a João Batista, santo cristão precursor do Messias. Um ano após travar contato com o poema, Tolkien imbuiu-se da reconstrução do que considerou ser o verdadeiro mito de Earendel, cujo resultado foi “A balada de Eärendil”, marinheiro élfico responsável por levar a mensagem de seu povo e dos homens pedindo misericórdia aos Valar (espíritos angélicos) no Oeste (nas terras imortais), pois vinham padecendo nas mãos de Morgoth, Senhor das Trevas, na Terra-média. A causa do sofrimento provinha de atitudes erradas tomadas tanto por elfos quanto por homens, e os Valar, compadecendo-se de suas dores, partiram com suas hostes para restaurar a paz numa guerra de dimensões inimagináveis. Retratando o momento histórico do final da 1ª era de seu legendário, esta versão é apresentada em prosa n’O Silmarillion, existindo também uma versão em poema narrativo. Uma particularidade interessante da mitologia idealizada por Tolkien a partir da mola propulsora do místico termo Earendel, é que, diferentemente do politeísmo greco-romano e nórdico, por exemplo, ele optou por desenvolvê-la em um viés monoteísta, dando-lhe uma roupagem indiretamente cristã: O Senhor dos Anéis obviamente é uma obra fundamentalmente religiosa e católica; inconscientemente no início, mas conscientemente na revisão. É por isso que não introduzi, ou suprimi, praticamente todas as referências a qualquer coisa como ‘religião’, a cultos ou práticas no mundo imaginário. Pois o elemento religioso é absorvido na história e no simbolismo. (TOLKIEN, 2006, p.167) Martins Filho realizou um interessante estudo em forma de livro-guia visando contribuir para uma maior compreensão do mundo imaginário de Tolkien, e nele apresenta, entre outras coisas, sinopses dos livros mais conhecidos, tabelas e breves análises comparando alguns aspectos de diferentes mitologias. Observa que a “greco-romana era marcada pelo politeísmo antropomórfico, em que cada um dos deuses corresponde a uma força ou elemento da Natureza humanizado” (MARTINS FILHO, 2006, p.16), por exemplo, Zeus/Júpiter é o pai dos deuses e Senhor do trovão e Poseidon/Netuno, o deus do mar e dos rios. Na mitologia nórdica destacam- se Odin (Rei dos deuses) e Thor (deus do vento, da chuva e da agricultura). Conforme explana o autor, o que Tolkien fez foi aproveitar traços característicos da cultura celta e anglo-saxã, que formaram a Inglaterra, e pinçar 16 elementos da mitologia greco-romana, integrando-os por fim na visão cristã de base criacionista, no qual o mundo é fruto do ato-criador de um Deus Único: “Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele criou primeiro os Ainur, os Sagrados, gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o mais fosse criado.” (TOLKIEN, 2011, p.3). Muitos paralelismos podem ser traçados entre a obra mítica tolkeniana e as mitologias greco-romana e nórdica e a cosmovisão cristã, tais como a montanha de Valinor, Taniquetil, onde se assenta Manwë (um valar, espírito angélico ligeiramente compatível a um deus) que é uma imagem do monte Olimpo, na região da Tessália; o paraíso viking e morada dos deuses, Walhalla, encontra semelhança na Terra de Aman e Valinor, onde habitavam os Valar e os Maiar (seres de natureza angélica, porém inferiores ao Valar em hierarquia, assim como os semideuses o são em relação aos deuses) e a queda de Lúcifer encontra eco na perdição de Melkor(também chamado de Morgoth), cuja inveja e desejo de construir seu próprio mundo o fez declinar da condição de Valar para Senhor das Trevas. Esses são apenas alguns pontos passíveis de serem analisados, havendo muitos outros dentro da vastidão do mundo coerentemente construído por Tolkien. E como constata Martins Filho (2006), todas as estórias fantásticas mitológicas foram em algum momento criadas por pessoas concretas, cujos nomes se perderam, tendo sido assimiladas pelas culturas de seus povos como algo consolidado na tradição, logo, é possível conjecturar que daqui a aproximadamente cem anos, a mitologia inglesa de Tolkien terá se arraigado na cultura popular, com a diferença de seu nome ser conhecido, e da questão da antiguidade, condição que valoriza a tradição, ser inferior. Um fator que já demonstra o nível de aceitação popular de Tolkien, sem precisar aguardar que tamanha predição se cumpra, mas que por outro lado, a sustenta, é a classificação do filólogo como melhor autor e melhor livro do século XX (O Senhor dos Anéis), de acordo com as pesquisas das livrarias Waterstones, do Daily Telegraph e da editora Folio Society, realizadas em 1997, na Grã-Bretanha. A aceitação de Tolkien também é visível na adaptação da trilogia cinematográfica sob direção de Peter Jackson, a qual arrebatou a estarrecedora quantia de 17 estatuetas do prêmio Oscar entregues pela Academia de Artes de Hollywood, demonstrando o quanto a Terra-média é apreciada e valorizada pelo grande público. 17 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho visou analisar o mundo criado pelo escritor J.R.R.Tolkien levando-se em consideração os eventos de sua vida responsáveis por moldarem seus gostos e crenças, os quais se refletem em sua obra. Seguindo carreira literária como professor de língua inglesa e anglo-saxã e estudioso do campo da filologia, Tolkien sentia-se insatisfeito com o complexo mitológico de seu país, o que levou a audaciosa decisão de criar si mesmo um material que fizesse jus à grandiosa cultura inglesa. A pesquisa genética permitiu uma melhor visualização do processo de elaboração de sua mitologia, sendo possível compreender a mente criativa de Tolkien ao se observar em seus rascunhos como suas ideias foram ganhando novos traços conforme a trama era tecida, com os mitos do Silmarillion, há muito tempo criados, interferindo e por fim mesclando-se às novas histórias até formar um todo complexo e bem urdido. O referencial teórico de Martins Filho e Shippey forneceu material para compreender a fundo a proposta de Tolkien de criar uma mitologia, comprovando não ser uma ideia completamente original, mas que ganhou com ele praticamente uma nova proporção, haja vista Tolkien tenha iniciado a elaboração hercúlea de seu legendário sozinho e partindo somente da sugestão de um nome mítico – Earendel – desenvolvendo a partir daí uma mitologia pormenorizada, com especial atenção ao aspecto linguístico, que lhe era tão caro. O sucesso e alcance da obra tolkieniana são facilmente observáveis e quantificáveis, seja partindo-se do número de vendas de seus livros, de sua classificação nas pesquisas de popularidade, ou da premiada adaptação cinematográfica d’O Senhor dos Anéis, tendo-se demonstrado o quanto Tolkien e sua mitologia são benquistos e reverenciados não só na Inglaterra, seu querido país de origem, mas em todo o mundo. REFERÊNCIAS CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras. 1990 18 CHERRYMAN, A.E. Truth, 6 ago. 1954. DAY, David. O mundo de Tolkien: fontes mitológicas de O Senhor dos Anéis. São Paulo: Arxjovem, 2004. 184p. FOSTER, E.M. Howards end. São Paulo: Globo, 2005. p. 306. LOPES, Reinaldo José. Como o filólogo J.R.R.Tolkien inventou a tradição da Terra- média. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1207328-como-o- filologo-j-r-r-tolkien-inventou-a-tradicao-da-terra-media.shtml> Acesso em: 14 maio 2016. MARTINS FILHO, Ives Gandra. O mundo do Senhor dos Anéis: vida e obra de J.R.R. Tolkien. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 157p. KYRMSE, Ronald. Explicando Tolkien. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 180p. SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3. ed. rev. São Paulo: Educ, 2008. 139p. SHIPPEY, Tom. J.R.R. Tolkien: author of the century. New York: Houghton Miffin, 2002. 347p. TOLKIEN, J.R.R. CARPENTER, Humphrey (org.) As cartas de J.R.R. Tolkien. Curitiba: Arte e Letra, 2006. 460p. TOLKIEN, J.R.R. O hobbit. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 299p. ______. O senhor dos anéis: A sociedade do anel. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. O Silmarillion. 5. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 467p. ______. The return of the shadow. 2004. Disponível em: <http://www.e- reading.club/bookreader.php/138993/Tolkien_06_The_Return_of_the_Shadow.pdf> Acesso em: 17 maio 2016. WHITE, Michael. J.R.R. Tolkien: o senhor da fantasia. Rio de Janeiro: DarkSide, 2013. 280p.
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