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Legado da obra tolkeniana para a mitologia inglesa

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LEGADO DA OBRA TOLKENIANA PARA A MITOLOGIA INGLESA1 
 
 
Danielle Cristina da Cunha2 
Bruno Henrique Coelho3 
Adelma Francisca Marques4 
 
 
RESUMO 
Este trabalho é um estudo sobre o complexo mundo criado por J.R.R.Tolkien, e tem como 
objetivo averiguar a proposta do escritor inglês de sua obra ser uma tentativa de elaborar 
uma mitologia para seu país, que segundo o próprio, sofria de uma defasagem nessa 
questão. Recorrendo à crítica genética e à pesquisa bibliográfica, pretende-se fazer uma 
análise do desenvolvimento de sua obra – notadamente o surgimento do elo que uniu O 
Hobbit ao Senhor dos Anéis, e traz referências de O Silmarillion - e comparar aspectos de 
suas criações com mitos greco-romanos e nórdicos e com a cosmovisão cristã, a fim de 
demonstrar se Tolkien cumpriu satisfatoriamente seu intento. 
 
PALAVRAS-CHAVE: 1. J.R.R.Tolkien. 2. Mitologia. 3.Crítica Genética 4.Cosmovisão cristã 
________________________ 
 
INTRODUÇÃO 
 
O presente trabalho apresenta um estudo sobre o escritor John Ronald Reul 
Tolkien e suas obras mais conhecidas, O Hobbit (2012) e O Senhor dos Anéis 
(2002), e tem como finalidade debruçar-se no aspecto mitológico intencionado por 
Tolkien em seu mundo imaginário da Terra-média, continente palco das tramas dos 
livros mencionados e de O Silmarillion e Contos Inacabados, estes últimos 
organizados e publicados postumamente por seu filho Christopher, e que fornecem 
profundidade e coerência histórica aos seus livros de maior sucesso supracitados. 
 
1
 Artigo científico elaborado para a disciplina de Prática de Redação Científica, no Centro Universitário Nossa 
Senhora do Patrocínio – CEUNSP/Itu, 2016. 
2
 Aluna do Curso de Letras, 7º Semestre, do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio – CEUNSP/Itu, 
2016. E-mail: elle-6@hotmail.com 
3
 Orientador Temático, Professor Especialista da disciplina de Tópicos Avançados, do Centro Universitário 
Nossa Senhora do Patrocínio – CEUNSP/Itu, 2016. E-mail: bhcoelho@terra.com.br 
4
 Orientador Metodológico – Professora Especialista da disciplina de Prática de Redação Científica do Centro 
Universitário Nossa Senhora do Patrocínio – CEUNSP/Itu, 2016. E-mail: adelma.marques@ceunsp.edu.br 
 
2 
 
Tendo em vista que a produção literária de Tolkien foi um projeto de vida, 
tomando-lhe cerca de 50 anos de dedicação, este estudo se inicia com sua 
biografia, dando especial ênfase aos episódios fundamentais de sua vida que 
contribuíram para a formulação de seu legendário. 
Em um segundo momento, por meio da crítica genética, tendo como aparato 
teórico Salles (2008), foi feita a seleção de cartas e rascunhos do autor para 
compreender o desenvolvimento de seu projeto mitológico. 
Por fim, baseando-se no procedimento de pesquisa bibliográfica, utilizando-se 
especialmente Kyrmse (2003), Martins Filho (2006) e Shippey (2002), este trabalho 
procura comprovar as influências e o legado da criação tolkeniana para a mitologia 
inglesa. 
 
1 VIDA E OBRA 
 
“Em uma toca no chão vivia um hobbit.” 
Assim se inicia o primeiro livro aparentemente sem grandes pretensões, 
juntamente da carreira literária do professor inglês John Ronald Reuel Tolkien. O 
Hobbit, publicado originalmente em 1937 pela editora George Allen & Unwin, 
segundo o próprio autor, partiu de uma manifestação do seu subconsciente quando, 
entediado, corrigia uma pilha de exames para o Certificado Escolar e, 
inesperadamente, deparou-se com uma página em branco: 
“Tudo que me lembro sobre o início de O Hobbit é de sentar para corrigir 
provas para o Certificado Escolar no cansaço interminável daquela tarefa 
anual imposta sobre acadêmicos sem dinheiro e com filhos. Em uma folha 
em branco rabisquei: ‘Numa toca no chão vivia um hobbit.’ Não sabia e não 
sei por quê.” (TOLKIEN, 2006, p. 207) 
 
Embora essa frase tenha se revelado como o lampejo de inspiração que o 
levou a escrever futuramente não só O Hobbit, mas também O Senhor dos Anéis, 
muito antes de sentir tal insight, Tolkien já cultivava uma vasta coleção de notas 
esparsas e rascunhos de um projeto alimentado por ele e amigos desde a juventude. 
E para desvelar esse projeto que lhe tomou cerca de cinquenta anos, é antes 
necessário ter conhecimento, mesmo que breve e limitado, de sua vida e das 
circunstâncias nas quais sua obra foi produzida. 
3 
 
Apesar de proclamar-se inglês (“Em termos ingleses, sou de fato um 
habitante das West-Midlands que se sente em casa apenas nos condados ao longo 
das Fronteiras Galesas” TOLKIEN, 2006, p. 210) Tolkien nasceu em Bloemfontein, 
África do Sul em 3 de janeiro de 1892. Sua família era deveras inglesa, mas seu pai, 
Arthur Tolkien, em ocasião de uma oportunidade de emprego no Banco da África, foi 
transferido e fixou-se em Bloemfonteim, de modo que sua noiva, Mabel Suffield, 
juntou-se a ele em 1891, lá se casando e dando à luz a John Ronald no ano 
seguinte e a Hilary, em 1894. Contudo, o clima árido da região mostrou-se 
prejudicial à frágil saúde do bebê John, e Mabel teve de retornar para a Inglaterra 
em 1895. Seu marido deveria segui-los, mas infelizmente veio a falecer em 1896 
devido à febre reumática, deixando a família em situação financeiramente 
complicada. 
A agora jovem viúva Mabel passou por vários apuros para sustentar e educar 
seus filhos, sobretudo após converter-se para o catolicismo, fato que a levou a ser 
hostilizada por ambos os lados da família e causou a cessação de qualquer auxílio 
financeiro, que apesar de mirrado, vinha recebendo. O forte apego espiritual da mãe 
ao catolicismo marcou profundamente o pequeno Ronald e teve repercussão 
futuramente na base mitológica de seu legendário. 
Devido à sempre atribulada situação com as finanças, a família teve de mudar 
de casa com grande frequência, e especialmente dois locais em que viveram foram 
de extrema relevância para estimular a imaginação de Tolkien. Em 1896, Mabel e os 
filhos mudaram-se para o vilarejo de Sarehole, uma vasta região rural, na qual os 
meninos, que tinham um grande laço afetivo, faziam longas caminhadas 
aventureiras, fantasiando os habitantes como magos e ogros. Foi um momento de 
felicidade e aguçamento criativo, sobretudo após Mabel introduzir Ronald ao mundo 
das letras. 
Contudo, em 1900, os Tolkien foram movidos por duas razões para mudarem-
se novamente: o ingresso de Ronald na King’s Edward School, em Birmingham, a 
mais de treze quilômetros de distância do chalé onde moravam, e o fato de Mabel 
estar passando pelo processo de conversão religiosa e a igreja católica mais 
próxima ficar no centro dessa cidade. O contraste entre a harmonia e a beleza 
campestre de Sarehole, com a industrialização, o caos e a poluição de Birmingham 
materializaram-se futuramente na obra de Tolkien nas imagens do Condado - a vila 
dos hobbits - e do avanço desenfreado e ambicioso por poder e tecnologia de 
4 
 
Saruman - em O Senhor dos Anéis. Também foi nessa época que Tolkien travou seu 
primeiro contato com a língua galesa – por meio de escritos em vagões de carvão 
que passavam pela ferrovia atrás de sua casa -, cujas características “acabaram 
mais tarde moldando a fonologia e a gramática do sindarin, o élfico cinzento” 
(KYRMSE, 2003, p.6), um dos idiomas de sua mitologia. 
Encontrando auxílio e paz espiritual no Oratório de Birmingham, Mabel 
conheceu Padre Francis Xavier Morgan, com o qual construiu uma forte e decisiva 
amizade: em 1904 Mabel foi diagnosticada com diabetes e teve sua saúde 
rapidamente deteriorada, e foi padre Morgan quem forneceu ajuda e posteriormente 
ficou com a tutela dos meninos após, tragicamente, ficarem órfãos. 
Responsável, assim, pela guarda dos garotos,que o amavam como um pai 
substituto, padre Morgan assegurou-lhes um lar, pagando-lhes um alojamento, e 
estimulou seus estudos. Em 1908, em um dos alojamentos resididos pelos irmãos, 
Ronald conheceu Edith Bratt, com quem compartilhava uma história semelhante de 
orfandade, e pela qual se apaixonou rapidamente. Ao saber do romance, padre 
Morgan proibiu o pupilo de se encontrar com Edith, pois temia que Ronald se 
distraísse do objetivo de passar nos exames de admissão de Oxford, os quais 
exigiam grande afinco nos estudos, dando-lhe permissão para retomar o namoro 
quando atingisse a maioridade, dali a três anos. 
Não restando outra opção, Ronald debruçou-se com dedicação aos exames 
e, com um grupo de amigos íntimos, fundou o clube T.C.,B.S. – Tea Club, Barrovian 
Society – o qual se reunia na biblioteca de King Edward para tomar chá, discutir e 
recitar sagas mitológicas antigas, uma paixão entre os garotos. Em 1910 Ronald 
obteve uma bolsa de estudos e, antes de se mudar para Oxford, fez uma viagem 
para Suíça, cujas paisagens “forneceram as impressões que mais tarde usaria na 
narrativa do Hobbit, e depois no Senhor dos Anéis.” (KYRMSE, 2003, p. 7). 
Uma vez na universidade, Tolkien iniciou sua vida acadêmica no campo da 
filologia, intensificando seu amor pela língua galesa e descobrindo também o 
finlandês, cuja fonologia e gramática forneceram a base para o idioma mais 
sofisticado do universo tolkeniano: quenya, também chamado de alto-élfico. 
Em 1913, logo completando 21 anos Ronald enviou uma carta para Edith 
Bratt, por quem permaneceu fiel desde o momento que se apaixonaram. Alguns 
contratempos afligiram ao casal, que formalizou o noivado em 1914, ano de 
5 
 
graduação de Tolkien e de eclosão da Grande Guerra, catástrofe que o levou a se 
alistar no Corpo de Fuzileiros de Lancashire. 
A guerra deixou fortes marcas na vida de Tolkien, que participou de uma série 
de combates nos quais presenciou em primeira mão o horror da morte, além de ter 
enfrentado a perda de dois grandes amigos de juventude, ambos membros do 
T.C.,B.S. Em uma carta escrita poucos dias antes de morrer, Rob Gilson, um desses 
amigos, dizia que aqueles do T.C.,B.S. que sobrevivessem deveriam representar a 
voz do grupo e produzir algo que os honrassem. Tal carta gerou um profundo abalo 
em Ronald, que em pouco tempo começou a formular os primeiros elementos de 
sua mitologia, escrevendo em um caderno o qual intitulou de “The Book of Lost 
Tales (O Livro dos Contos Perdidos); esse foi o germe do que mais tarde se 
transformaria no Silmarillion” (KYRMSE, 2003, p.9). 
Após o término da 1ª Guerra Mundial, a família, agora acrescida do bebê 
John, fixou-se em Oxford e Tolkien pôde dedicar-se a sua carreira acadêmica. 
Trabalhou como linguista para o projeto New English Dictionary, pesquisando a 
etimologia de alguns vocábulos e em 1924 tornou-se catedrático de Língua Inglesa 
em Leeds. Simultaneamente ao crescimento acadêmico de Tolkien, sua produção 
mitológica prosseguia e encontrou um terreno extremamente fértil quando Ronald 
conquistou uma vaga de professor na Universidade de Oxford e lá conheceu Clive 
Staples Lewis (C.S.Lewis, que viria a se tornar popular após escrever As Crônicas 
de Nárnia), com quem descobriu partilhar a apreciação por idiomas e mitos antigos. 
Tolkien e Lewis, juntamente de outros acadêmicos mais próximos, formaram o grupo 
Inklings, que, à semelhança do T.C.,B.S., reunia amigos interessados em literatura, 
poesia, mitologia – especialmente a nórdica – e dessa vez, substituindo o chá por 
cerveja. Os Inklings –“o nome lembra ink, ‘tinta’, sugerindo pessoas que viviam de 
escrever, e também inkling, ‘vaga noção’, dando a entender que tinham idéias (sic) 
mal cozidas” (KYRMSE, 2003, p.11) – além de se tornar famoso na história da 
literatura inglesa, foi também fundamental para o desenvolvimento criativo de 
Tolkien, que recebia intenso apoio para apresentar suas ideias de contos e poemas. 
Ao lado dos Inklings, os filhos de Tolkien – após John vieram Michael, 
Chistopher e Priscilla – foram outro profundo incentivo para criar e contar histórias. 
Do desejo de entreter as crianças surgiu A aventuras de Tom Bombadil, 
Roverandom, Sr. Bliss, Mestre Gil de Ham e As cartas do Papai Noel, romances e 
contos divertidos e de teor infantil, que trilhavam um caminho paralelo aos escritos 
6 
 
épicos. Contudo, de acordo com Kyrmse (2003, p. 12) essas duas vertentes se 
encontraram no momento de concepção d’O Hobbit, cuja ideia, como já foi dito 
anteriormente, surgiu num momento de correção de provas. O Hobbit congregava 
em si o estilo espirituoso de Ronald ao mesmo tempo em que apresentava um 
complexo pano de fundo histórico, tornando-se mais denso no decorrer da trama. 
Contra as expectativas do próprio escritor, O Hobbit foi aprovado pela editora 
Allen & Unwin e desde sua publicação, em 21 de setembro de 1937, se tornou um 
sucesso de vendas. Tal fato levou os editores a pedirem uma sequência, de modo 
que Tolkien ofereceu-lhes – sem êxito – O Silmarillion. 
Magoado com essa rejeição, Ronald empreendeu-se então a escrever um 
“novo Hobbit”, que, à medida que foi sendo desenvolvido, foi ganhando tons mais 
sombrios. Visando coerência entre esta nova história – que viria a se tornar O 
Senhor dos Anéis – Tolkien precisou revisar e modificar alguns capítulos d’O Hobbit 
para adequá-lo às novas ideias que vinham surgindo. 
A redação de O Senhor dos Anéis abarcou longos anos da vida de Tolkien, 
devido não somente a sua rotina atribulada de professor e pai, como também ao 
início da Segunda Guerra Mundial – na qual ingressaram seus filhos Michael e 
Christopher – e, principalmente, ao seu perfeccionismo, que ao mesmo tempo era 
uma virtude, garantindo coerência histórica e linguística a seus escritos, e quase foi 
sua ruína. 
Em 1949, doze anos depois do início da empreitada, Tolkien terminou de 
datilografar a última versão de O Senhor dos Anéis, sendo C.S. Lewis o primeiro a 
lê-la, parabenizando-o com efusivos elogios. Um grande problema seria convencer 
os editores a publicá-lo num único volume – como o preço do papel era 
extremamente alto naquele período do pós-guerra, a editora Allen & Unwin sugeriu a 
subdivisão da obra em três volumes, sugestão veementemente negada por Tolkien, 
que procurou negociar com outra editora, a Collins. Esta, interessada precipuamente 
em comprar os direitos do rentável O Hobbit, recusou a publicação, mesmo que em 
três partes, de O Senhor dos Anéis, de modo que seu autor não encontrou outra 
solução senão ceder à proposta da Allen & Unwin. 
Não sem percalços e atrasos consideráveis, o primeiro volume, intitulado A 
Sociedade do Anel foi publicada em agosto de 1954, As Duas Torres em novembro 
desse mesmo ano e O Retorno do Rei em outubro de 1955. 
7 
 
Os livros tornaram-se um sucesso de vendas a exemplo de seu antecessor e 
conquistaram, desde então, críticas em sua grande maioria favoráveis, como a do 
jornal Truth, sob voz de A.E. Cherryman: “É um trabalho espantoso. Ele [Tolkien] 
acrescentou algo, não apenas ao mundo da literatura, mas à história também.” 
(CHERRYMAN, 1954 apud WHITE, 2013, p.184). 
Quando outros países requereram os direitos de publicação dos livros em 
seus idiomas e territórios, Tolkien, como estudioso de linguística e filologia, escreveu 
um guia de instruções detalhadas sobre as traduções dos nomes próprios em sua 
obra. 
Acostumado à vida regrada de professor em Oxford, Tolkien surpreendeu-se 
com o assédio que passou a enfrentar de fãs e jornalistas e, logo após aposentar-se, 
em 1959, mudou-se junto com a esposa para Bournemouth, uma região mais 
tranquila e afastada na costa inglesa, lá se ocupando em respondercartas de 
leitores, dar prosseguimento a revisão de O Silmarillion e aproveitar com Edith pela 
primeira vez uma vida de fartura, propiciada pelas vendas de O Senhor dos Anéis. 
Em 1971, Edith veio a falecer em consequência de uma inflamação na 
vesícula e, sob pedido de Ronald, foi gravado em sua lápide: Edith Mary Tolkien/ 
Lúthien/ 1899-1971. Lúthien era uma linda princesa élfica, a primeira imortal a 
conquistar um humano e com ele se casar, abdicando da vida eterna, uma das mais 
belas lendas de O Silmarillion e a favorita de Tolkien, que se inspirou na esposa 
para escrevê-la. Dois anos depois, devido a uma crise de úlcera com hemorragia 
aguda, Ronald veio a falecer em 2 de setembro de 1973, e em sua lápide está a 
inscrição: John Ronald Reul Tolkien/ Beren/ 1892-1973, sendo Beren o mortal 
arrebatado pela beleza de Lúthien. 
Assumindo o papel de testamenteiro literário, Christopher Tolkien tomou a 
árdua tarefa de compilar os rascunhos e histórias não terminadas do pai e garantir-
lhes um aspecto publicável. O Silmarillion saiu às vendas em 1977, Os Contos 
Inacabados em 1980, e vários outros livros foram publicados até os dias de hoje, 
restando ainda muito material inédito chegar ao Brasil. 
 
2 PROCESSO DE CRIAÇÃO TOLKENIANA 
 
8 
 
Tolkien, como já foi dito, era muito exigente consigo mesmo e procurava 
sempre “alcançar não somente a máxima consistência, mas também a visão mais 
perfeita possível do mundo e do mito que estava criando” (KYRMSE, 2003, p.145), e 
para ele, um fator de assaz relevância era o linguístico, que, aliás, não era somente 
um fascínio (“[...] a paixão dominante de Tolkien era a filologia”, SHIPPEY, 2002, 
p.xi, tradução minha), mas também a sua área profissional, “[...] sou amaldiçoado 
com uma aguda sensibilidade em tais assuntos.” (TOLKIEN, 2006, p.140). 
Somando-se a esses fatores está a revelação do autor, logo no início do prefácio de 
O Senhor dos Anéis, que a história teve o papel secundário de fornecer pano de 
fundo para a inspiração de ordem primordialmente linguística. Há muitos 
documentos nos quais Tolkien deixa registrado suas motivações e evolução de 
enredo e aí reside o objetivo deste capítulo: analisar concisamente – dado a 
limitação de espaço – o processo de criação artística do escritor, levando em conta o 
que considera a crítica genética. 
Para Calvino (1990, p.91 apud SALLES, 2008, p.18) “[...] arte não é só o 
produto considerado ‘acabado’ [...] a obra consiste na cadeia infinita de agregação 
de idéias [sic], ou seja, na série infinita de aproximações para atingi-la”, e o que 
apregoa a crítica genética, segundo Salles (2008), é o acompanhamento teórico-
crítico do processo de gênese de uma obra de arte, sendo necessário recorrer a 
manuscritos e outros documentos de processo deixados pelo escritor que registrem 
os diversos momentos de criação. 
Tolkien legou um material muito vasto de rascunhos e cartas: os próprios O 
Silmarillion e Contos Inacabados são resultado da compilação de manuscritos feita 
criteriosamente por seu filho Christopher, sendo inevitável, segundo este, não haver 
nestes livros “algumas diferenças de tom e de descrição, alguns pontos obscuros e, 
aqui e ali, alguma falta de coesão” (TOLKIEN, 2011, p.ix). Neste capítulo será feito 
um recorte específico: em qual momento e porque Tolkien considerou necessário e 
propício tornar o anel de Gollum, apresentado n’O Hobbit apenas como um mero 
objeto mágico que conferia invisibilidade, numa das peças-chave da trilogia O 
Senhor dos Anéis. 
Antes de iniciar a análise, é preciso fazer um resumo em linhas gerais da 
trama d’O Hobbit, com destaque ao ponto de maior interesse para este trabalho: 
Bilbo Bolseiro é um hobbit habitante do Condado, cujo povo pertence a um ramo da 
raça humana e tem por principais características a baixa estatura, o intenso contato 
9 
 
com a natureza e a pouca inclinação a novidades. Bilbo é, contudo, perturbado 
quando Gandalf, o mago, e uma companhia de treze anões, liderados por Thorin 
Escudo-de-carvalho, batem à sua porta e levam-no para uma expedição que tem 
como objetivo resgatar o tesouro saqueado pelo dragão Smaug no tempo de Thrór, 
avô de Thorin. Até alcançarem a Montanha Solitária, onde a fera estava abrigada, a 
comitiva enfrenta várias dificuldades: num dado momento, Gandalf precisa separar-
se do grupo e partir com urgência para averiguar o surgimento de uma sombra na 
Floresta Verde, relacionada à obscura figura que vinha sendo chamada de 
Necromante. Em outra situação, durante uma fuga de orcs numa passagem nas 
Montanhas Sombrias, Bilbo é deixado desacordado para trás. Quando desperta, vê-
se num ambiente extremamente escuro, e ao engatinhar encontra um anel e guarda-
o no bolso, sem saber que este tinha poderes de invisibilidade e pertencia à criatura 
Gollum, que morava nos arredores da gruta onde estava perdido. Ambos travam 
contato e Gollum propõe ao hobbit um jogo de adivinhas, no qual se o segundo 
vencesse, poderia ir embora e teria ajuda do primeiro para isso, mas caso este 
ganhasse, iria devorar o Sr. Bolseiro. A narrativa prossegue com o protagonista 
ileso, mas não se conclui com a retomada das riquezas pelos anões, mas sim após 
uma guerra deflagrada entre estes, homens e elfos, da qual Bilbo sobrevive rico em 
experiência e sabedoria, além de possuidor do anel. 
Sabe-se que assim que lançado, O Hobbit teve uma ótima aceitação e atingiu 
um grande número de vendas, sendo compreensível que os editores incentivassem 
Tolkien a escrever uma sequência, um “novo Hobbit”. Em 4 de fevereiro de 1938, 
Tolkien enviou para C.A. Furth, da Allen & Unwin uma cópia anexada do primeiro 
capítulo – “Uma festa muito inesperada” - de uma possível continuação que estava 
elaborando. Segundo ele, numa carta enviada treze dias depois para o mesmo 
destinatário, 
Dizem que o primeiro passo é o mais difícil. Não considero difícil. Tenho 
certeza de que poderei escrever ilimitados ‘primeiros capítulos’. Escrevi 
muitos, de fato. A continuação de O Hobbit continua onde estava, e tenho 
apenas as noções mais vagas de como prosseguir. Sem jamais pretender 
uma continuação, temo que eu tenha gasto todos os meus ‘motivos’ e 
personagens favoritos no ‘Hobbit’ original. (TOLKIEN, 2006, p. 33) 
 
Tolkien realmente escreveu e reformulou muitas vezes o começo do novo 
livro, mas não podia estar mais enganado quando supôs ter esgotado personagens 
10 
 
e ideias. Pelo contrário, o enredo evoluía à medida que era escrito, acabando por 
assumir proporções épicas que nem mesmo ele conjecturava. 
Assim, o que era para ser uma simples continuação de um livro infantil, 
“tomou uma direção não premeditada” (TOLKIEN, 2006, p.38). Tolkien dizia sentir 
dificuldade em estabelecer uma relação entre o livro anterior e o novo, e que sua 
mente estava preocupada com as mitologias do Silmarillion, “para o qual até mesmo 
o Sr. Bolseiro acabou sendo arrastado contra minha vontade original, e não creio 
que serei capaz de movimentar-me em demasia fora dele [...]” (TOLKIEN, 2006, 
p.42). Nesta carta de 24 de julho de 1938, Tolkien deixa clara a inevitável fusão 
pelas quais suas obras estavam passando, e em outra, do mês seguinte revela o 
nome da nova história: Hobbit – “O Senhor dos Anéis”. 
Em The Return of the Shadow (O Retorno da Sombra), sexto volume de um 
total de doze organizados por Christopher na coleção History of Middle-earth, a qual 
contém rascunhos e versões provisórias ou incompletas d’O Senhor dos Anéis, é 
possível acompanhar os pensamentos de Tolkien, na página 22, acerca do anel de 
Bilbo: “O Anel: qual sua origem. Necromante? Não muito perigoso, quando usado 
com boas intenções. Mas ele exige uma punição. Você deve perdê-loou perder a si 
mesmo. (tradução minha)”. Mais adiante Christopher, que inclusive colaborou 
bastante no processo de elaboração da trama, comenta que “já nesse estágio, 
quando meu pai estava ainda trabalhando no capítulo de abertura, muito sobre a 
natureza do Anel já estava presente no embrião” (TOLKIEN, 2004, p.22, tradução 
minha), e que a “direção não premeditada” dita por Tolkien numa das cartas para 
seus editores, seria sem dúvida o surgimento dos Cavaleiros Negros, cuja relação 
com o anel se desenvolveu conforme ele escrevia. 
Sobre a primeira aparição desses Cavaleiros Negros é possível comparar o 
seguinte trecho de uns dos rascunhos do autor, com a versão finalizada: 
 
Pela curva vinha um cavalo branco e montado sobre ele um pacote – ou era 
o que parecia: um homem pequeno totalmente envolto em uma grande capa 
e capuz, de modo que somente seus olhos eram visíveis, e suas botas nos 
estribos abaixo. 
O cavalo parou quando se aproximou de Bingo. A figura descobriu o nariz e 
farejou; e então silenciou-se como se estivesse ouvindo algo. De repente 
uma risada veio de dentro do capuz. 
‘Bingo, meu garoto!’ disse Gandalf, jogando de lado seu manto. (TOLKIEN, 
2004, p. 26, tradução minha). 
 
Pela curva vinha um cavalo negro, não um pônei de hobbit, mas um cavalo 
grande; montado por um homem grande, que parecia abaixado na sela, 
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envolto numa grande capa e num capuz preto, de modo que só se viam as 
botas nos estribos altos. O rosto, coberto por uma sombra, era invisível. 
Quando chegou à árvore onde estava Frodo, o cavalo parou. A figura do 
cavaleiro permanecia imóvel com a cabeça abaixada, como que tentando 
escutar algo. De dentro do capuz veio um ruído, como se alguém tentasse 
farejar um cheiro indefinível; a cabeça se virava para os dois lados da 
estrada. (TOLKIEN, 2002, p.102). 
 
O que seria a princípio o mago Gandalf (“cavalo branco”, “homem pequeno”, 
“somente seus olhos eram visíveis”, “uma risada veio de dento do capuz”), acabou 
convertendo-se em um Cavaleiro Negro (“cavalo negro”, “homem grande”, “grande 
capa e capuz preto”, “rosto [...] era invisível”, “de dentro do capuz veio um ruído”), 
além da alteração do nome da personagem Bingo, para Frodo – sobrinho de Bilbo. 
O Necromante – mais tarde desvendado como Sauron, o Senhor do Escuro e 
a quem o anel verdadeiramente pertencia e por quem fora confeccionado -, e esses 
Cavaleiros – também conhecidos como Espectros e posteriormente revelados como 
homens que foram gratificados por Sauron com outros anéis, mas terminaram por 
sucumbir ao poder e a servi-lo como mestre -, seriam a ligação que Tolkien estava 
procurando estabelecer entre as histórias: 
 
O anel mágico era a única coisa óbvia em O Hobbit que poderia ser 
relacionada com minha mitologia. Para ser o fardo de uma história grande, 
teria de ser de suprema importância. Liguei-o então à referência 
(originalmente) deveras casual ao Necromante [...] (TOLKIEN, 2006, p.329). 
 
Uma vez decido que o elo necessário seria o anel, Tolkien desenvolveu seu 
passado, como ele chegou às mãos da criatura Gollum. Entre a versão rascunhada 
e a finalizada há sensíveis alterações na lenda da criação do Anel, mas ambas 
mantém-se similares quanto a ele ter sido forjado pelo Senhor do Escuro como uma 
maneira de dominar os povos da Terra-média, aos quais foram oferecidos outros 
anéis, inferiores em poder e todos subjugados ao Um Anel, que devido a uma 
sequência de batalhas, foi perdido num rio, sendo daí encontrado por um ser 
semelhante a um hobbit. Esta criatura, chamada Sméagol (Digol no manuscrito), 
seduzida pela beleza e pelo poder emanado do anel, tomou-o para si e foi 
lentamente sendo corrompida, física, moral e psicologicamente, até transformar-se 
na figura esquálida e sombria do Gollum com quem Bilbo deparou-se na gruta. 
Com a questão da origem já formulada, restava a Tolkien corrigir o que 
considerou uma falha substancial: em O Hobbit, no capítulo “Adivinhas no Escuro”, 
Gollum não só propõe a Bilbo que, caso este vencesse, o ajudaria a sair da gruta, 
12 
 
como também inclui dentro da aposta o Anel, o qual entrega de bom grado após ser 
derrotado. A falta de coerência a ser retificada seria que Gollum jamais seria capaz 
de tamanha atitude de desprendimento, pois o Um Anel desperta no indivíduo que o 
detém o sentimento de cobiça que o leva a atos extremos para não perdê-lo, haja 
vista Sauron tenha depositado parte de sua própria essência e poder maligno 
quando o concebeu. Sobre essa força do Anel Tolkien escreveu: 
 
Ele era mais poderoso do que todos os outros anéis [...] apesar de seu 
poder depender do usuário – e seu perigo [também depender]: quanto mais 
simples o usuário, e o menor tempo que o tenha utilizado. Para Gollum, ele 
apenas o ajudou a caçar (mas tornou-o infame). Para Bilbo ele foi útil, mas 
o deixou perdido novamente. Para Bingo também foi dessa maneira. 
Gandalf poderia ter triplicado seu poder, mas ele não se atreveu a usá-lo 
(não depois que descobriu tudo a seu respeito). Um elfo poderia tornar-se 
quase tão poderoso como o Senhor, mas sucumbiria às trevas. (TOLKIEN, 
2004, p. 158, tradução minha). 
 
Tão logo reparado esse detalhe elementar, uma nova edição do livro foi 
lançada, e como justificativa para a primeira versão que não condizia à veracidade 
interna da história, Tolkien agiu com grande perspicácia: nas capas d’O Senhor dos 
Anéis, ilustradas pelo próprio, há uma inscrição em runas que 
 
[...] vertidas para o português, [...] assumiriam a seguinte forma: O Senhor 
dos Anéis traduzido do Livro Vermelho do Marco Ocidental por John Ronald 
Reuel Tolkien. Aqui está contada a história da Guerra do Anel e do Retorno 
do Rei conforme vista pelos hobbits. (TOLKIEN, 2002, pp.v-vi) 
 
 
Segundo Lopes (2002), 
 
O procedimento, conhecido como pseudotradução, é no mínimo tão velho 
quanto ‘Dom Quixote’ --Cervantes também o emprega no começo do século 
17--, mas nenhum autor supera Tolkien ao usá-lo para simular uma boneca 
russa literária, com camadas e mais camadas de transmissão cultural. 
 
Dessa forma, ao assumir-se de maneira fictícia não como o criador, mas 
como o tradutor dos livros, que derivariam, portanto, de uma fonte historiográfica da 
terceira era da Terra-média, Tolkien atribui estrategicamente a inconsistência da 
primeira versão do encontro entre Gollum e Bilbo a este mesmo, já que foi o Sr. 
Bolseiro quem produziu parte do registro: 
 
Esse relato Bilbo colocou em suas memórias e parece nunca tê-lo 
alterado [...] Evidentemente isso ainda constava no Livro Vermelho original, 
da mesma forma que em várias cópias e resumos. Mas muitas cópias 
contêm a história verdadeira (como uma alternativa), derivada sem dúvida 
13 
 
das notas de Frodo ou Samwise; ambos souberam a verdade, embora não 
parecessem dispostos a apagar qualquer coisa já escrita pelo velho hobbit. 
Gandalf, entretanto, desacreditou da primeira história de Bilbo assim 
que a escutou, e continuou muito curioso a respeito do anel. Finalmente 
conseguiu saber da verdadeira história pelo próprio Bilbo [...] (TOLKIEN, 
2002, pp. 17-18) 
 
Tal artifício também serviu de acréscimo assertivo para um propósito que 
Tolkien tinha em mente e que será tratado a seguir. 
 
3 UMA MITOLOGIA PARA A INGLATERRA 
 
Dentre as centenas de cartas escritas por Tolkien e organizadas por 
Humphrey Carpenter, um dos maiores biógrafos do autor, a carta de número 131 é a 
que mais recebe atenção de todo estudioso que se dedica a compreender a obra do 
filólogo inglês: escrita provavelmente no final de 1951 e endereçada para Milton 
Waldman, da editora Collins, quando do período de negociação da publicação d’O 
Senhor dos Anéis, ela contêm a intenção de Tolkien dedemonstrar a 
interdependência de seus livros e a impossibilidade de fracioná-los. Para tanto, ele 
resume cronologicamente o conteúdo de seu mundo imaginário e relata o motivo por 
trás de sua criação: 
Não ria! Mas certa vez (minha crista foi há muito baixada), eu tinha 
em mente criar um corpo de lendas mais ou menos associadas, que 
abrangesse desde o amplo e cosmogônico até o nível do conto de fadas 
romântico – o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor 
sorvendo o esplendor do vasto pano de fundo -, que eu poderia dedicar 
simplesmente à Inglaterra, ao meu país. [...] Desenvolveria alguns dos 
grandes contos na sua plenitude e deixaria muitos apenas no projeto e 
esboçados. (TOLKIEN, 2006, p. 141) 
 
Segundo ele, a Inglaterra era deficitária no aspecto mitológico, 
[...] não possuía histórias próprias (relacionadas à sua língua e solo), não da 
qualidade que eu buscava e encontrei (como um ingrediente) nas lendas de 
outras terras. Havia gregas, celtas e românicas, germânicas, escandinavas 
e finlandesas (que muito me influenciou), mas não inglesas, salvo materiais 
de livros de contos populares empobrecidos. (TOLKIEN, 2006, p. 141) 
 
Essa suposta lacuna na cultura inglesa suscitada pelo filólogo já fora sugerida 
por outros, como o também romancista inglês Edward Morgan Foster: 
 
Por que a Inglaterra não possui uma grande mitologia? Nosso 
folclore jamais avança além da delicadeza encantadora e as maiores 
melodias sobre nosso mundo rural foram todas sopradas pelas flautas da 
14 
 
Grécia. Por mais profunda e autêntica que possa ser a imaginação local, 
parece ter falhado nisso. Parou nas bruxas e nas fadas (FOSTER, 2005, p. 
306 apud WHITE, 2013, p. 83). 
 
Além de Foster, Shippey (2002), professor de Oxford que leciona atualmente 
a mesma disciplina de Tolkien, observa que antes deste, diferentes estudiosos de 
outros países já haviam se engajado num intento semelhante de recolher ou 
elaborar um complexo mitológico vernáculo, tais como o finlandês Elias Lönnrot, 
responsável por reconstruir o épico Kalevala, os alemães Jacob e Wilhelm Grimm, 
cujo projeto era compilar, de uma só vez, uma gramática, um dicionário, uma 
mitologia, um ciclo de lendas heroicas e um corpo de contos de fadas para a 
Alemanha, e o dinamarquês Nikolai Grundtvig, que tomou para si a reconstrução da 
cultura nacional atentando-se para as sagas e literaturas épicas antigas. Ao dizer 
que planejava criar uma mitologia para a Inglaterra, Tolkien, portanto, “não estava 
dizendo algo completamente sem precedentes” (SHIPPEY, 2002, p. xvi, tradução 
minha). 
Uma vez compreendido o estímulo por detrás da obra, cabe analisar o perfil 
não somente profissional de Tolkien, mas também suas crenças e religiosidade. 
Com a infância marcada pela conversão da mãe e a juventude sob guarda de 
um padre, Tolkien inevitavelmente tornou-se um católico devoto e fiel ao livro 
sagrado. Mas para ele, a interferência direta da religião cristã nos mitos e contos de 
fadas configurava-se como algo fatal, já que estes representam os antigos dias 
pagãos, e “[...] devem refletir e conter em solução elementos de verdade (ou erro) 
moral e religiosa, mas não explícitos, não na forma conhecida no mundo ‘real’ 
primário” (TOLKIEN, 2006, p. 141). Esse posicionamento, por mais racional que 
fosse, talvez gerasse alguma crise de consciência em Tolkien, até o momento que 
ele creu ter descoberto uma forma de conciliação. 
Essa descoberta foi o poema religioso mítico em inglês antigo (anglo-saxão) 
Crist of Cynewulf, especialmente os seguintes versos: “Éalá Éarendel, engla 
beorhtast, / ofer middangeard monnum sended (‘Salve, Éarendel, mais brilhante dos 
anjos/ Sobre a Terra-média enviado aos homens’) (KYRMSE, 2003, p. 8). O que 
impressionou Tolkien, então estudante de filologia comparada, foi o inusitado termo 
Éarendel, o qual constatou não pertencer ao inglês antigo, mas sim remeter a um 
período muito mais remoto. Para Tolkien, tal nome “era o mito por trás de um 
fragmento obscuro de um conto de fadas sobrevivente da Islândia: uma história 
15 
 
sobre o marinheiro heroico Orentil, que na mitologia nórdica era identificado como a 
estrela matutina” (DAY, 2004, p.8). “Estrela matutina”, explana Day (2004) mais 
adiante, também era associada a João Batista, santo cristão precursor do Messias. 
Um ano após travar contato com o poema, Tolkien imbuiu-se da reconstrução 
do que considerou ser o verdadeiro mito de Earendel, cujo resultado foi “A balada de 
Eärendil”, marinheiro élfico responsável por levar a mensagem de seu povo e dos 
homens pedindo misericórdia aos Valar (espíritos angélicos) no Oeste (nas terras 
imortais), pois vinham padecendo nas mãos de Morgoth, Senhor das Trevas, na 
Terra-média. A causa do sofrimento provinha de atitudes erradas tomadas tanto por 
elfos quanto por homens, e os Valar, compadecendo-se de suas dores, partiram 
com suas hostes para restaurar a paz numa guerra de dimensões inimagináveis. 
Retratando o momento histórico do final da 1ª era de seu legendário, esta versão é 
apresentada em prosa n’O Silmarillion, existindo também uma versão em poema 
narrativo. 
Uma particularidade interessante da mitologia idealizada por Tolkien a partir 
da mola propulsora do místico termo Earendel, é que, diferentemente do politeísmo 
greco-romano e nórdico, por exemplo, ele optou por desenvolvê-la em um viés 
monoteísta, dando-lhe uma roupagem indiretamente cristã: 
 
O Senhor dos Anéis obviamente é uma obra fundamentalmente 
religiosa e católica; inconscientemente no início, mas conscientemente na 
revisão. É por isso que não introduzi, ou suprimi, praticamente todas as 
referências a qualquer coisa como ‘religião’, a cultos ou práticas no mundo 
imaginário. Pois o elemento religioso é absorvido na história e no 
simbolismo. (TOLKIEN, 2006, p.167) 
 
Martins Filho realizou um interessante estudo em forma de livro-guia visando 
contribuir para uma maior compreensão do mundo imaginário de Tolkien, e nele 
apresenta, entre outras coisas, sinopses dos livros mais conhecidos, tabelas e 
breves análises comparando alguns aspectos de diferentes mitologias. Observa que 
a “greco-romana era marcada pelo politeísmo antropomórfico, em que cada um dos 
deuses corresponde a uma força ou elemento da Natureza humanizado” (MARTINS 
FILHO, 2006, p.16), por exemplo, Zeus/Júpiter é o pai dos deuses e Senhor do 
trovão e Poseidon/Netuno, o deus do mar e dos rios. Na mitologia nórdica destacam-
se Odin (Rei dos deuses) e Thor (deus do vento, da chuva e da agricultura). 
Conforme explana o autor, o que Tolkien fez foi aproveitar traços 
característicos da cultura celta e anglo-saxã, que formaram a Inglaterra, e pinçar 
16 
 
elementos da mitologia greco-romana, integrando-os por fim na visão cristã de base 
criacionista, no qual o mundo é fruto do ato-criador de um Deus Único: “Havia Eru, o 
Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele criou primeiro os Ainur, os Sagrados, 
gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o mais 
fosse criado.” (TOLKIEN, 2011, p.3). 
Muitos paralelismos podem ser traçados entre a obra mítica tolkeniana e as 
mitologias greco-romana e nórdica e a cosmovisão cristã, tais como a montanha de 
Valinor, Taniquetil, onde se assenta Manwë (um valar, espírito angélico ligeiramente 
compatível a um deus) que é uma imagem do monte Olimpo, na região da Tessália; 
o paraíso viking e morada dos deuses, Walhalla, encontra semelhança na Terra de 
Aman e Valinor, onde habitavam os Valar e os Maiar (seres de natureza angélica, 
porém inferiores ao Valar em hierarquia, assim como os semideuses o são em 
relação aos deuses) e a queda de Lúcifer encontra eco na perdição de Melkor(também chamado de Morgoth), cuja inveja e desejo de construir seu próprio mundo 
o fez declinar da condição de Valar para Senhor das Trevas. 
Esses são apenas alguns pontos passíveis de serem analisados, havendo 
muitos outros dentro da vastidão do mundo coerentemente construído por Tolkien. E 
como constata Martins Filho (2006), todas as estórias fantásticas mitológicas foram 
em algum momento criadas por pessoas concretas, cujos nomes se perderam, 
tendo sido assimiladas pelas culturas de seus povos como algo consolidado na 
tradição, logo, é possível conjecturar que daqui a aproximadamente cem anos, a 
mitologia inglesa de Tolkien terá se arraigado na cultura popular, com a diferença de 
seu nome ser conhecido, e da questão da antiguidade, condição que valoriza a 
tradição, ser inferior. 
Um fator que já demonstra o nível de aceitação popular de Tolkien, sem 
precisar aguardar que tamanha predição se cumpra, mas que por outro lado, a 
sustenta, é a classificação do filólogo como melhor autor e melhor livro do século XX 
(O Senhor dos Anéis), de acordo com as pesquisas das livrarias Waterstones, do 
Daily Telegraph e da editora Folio Society, realizadas em 1997, na Grã-Bretanha. A 
aceitação de Tolkien também é visível na adaptação da trilogia cinematográfica sob 
direção de Peter Jackson, a qual arrebatou a estarrecedora quantia de 17 estatuetas 
do prêmio Oscar entregues pela Academia de Artes de Hollywood, demonstrando o 
quanto a Terra-média é apreciada e valorizada pelo grande público. 
17 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
Este trabalho visou analisar o mundo criado pelo escritor J.R.R.Tolkien 
levando-se em consideração os eventos de sua vida responsáveis por moldarem 
seus gostos e crenças, os quais se refletem em sua obra. 
Seguindo carreira literária como professor de língua inglesa e anglo-saxã e 
estudioso do campo da filologia, Tolkien sentia-se insatisfeito com o complexo 
mitológico de seu país, o que levou a audaciosa decisão de criar si mesmo um 
material que fizesse jus à grandiosa cultura inglesa. 
A pesquisa genética permitiu uma melhor visualização do processo de 
elaboração de sua mitologia, sendo possível compreender a mente criativa de 
Tolkien ao se observar em seus rascunhos como suas ideias foram ganhando novos 
traços conforme a trama era tecida, com os mitos do Silmarillion, há muito tempo 
criados, interferindo e por fim mesclando-se às novas histórias até formar um todo 
complexo e bem urdido. 
 O referencial teórico de Martins Filho e Shippey forneceu material para 
compreender a fundo a proposta de Tolkien de criar uma mitologia, comprovando 
não ser uma ideia completamente original, mas que ganhou com ele praticamente 
uma nova proporção, haja vista Tolkien tenha iniciado a elaboração hercúlea de seu 
legendário sozinho e partindo somente da sugestão de um nome mítico – Earendel – 
desenvolvendo a partir daí uma mitologia pormenorizada, com especial atenção ao 
aspecto linguístico, que lhe era tão caro. 
O sucesso e alcance da obra tolkieniana são facilmente observáveis e 
quantificáveis, seja partindo-se do número de vendas de seus livros, de sua 
classificação nas pesquisas de popularidade, ou da premiada adaptação 
cinematográfica d’O Senhor dos Anéis, tendo-se demonstrado o quanto Tolkien e 
sua mitologia são benquistos e reverenciados não só na Inglaterra, seu querido país 
de origem, mas em todo o mundo. 
 
REFERÊNCIAS 
 
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das 
Letras. 1990 
18 
 
 
CHERRYMAN, A.E. Truth, 6 ago. 1954. 
 
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Paulo: Arxjovem, 2004. 184p. 
 
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média. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1207328-como-o-
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2016. 
 
MARTINS FILHO, Ives Gandra. O mundo do Senhor dos Anéis: vida e obra de 
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KYRMSE, Ronald. Explicando Tolkien. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 180p. 
 
SALLES, Cecília Almeida. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos 
sobre o processo de criação artística. 3. ed. rev. São Paulo: Educ, 2008. 139p. 
 
SHIPPEY, Tom. J.R.R. Tolkien: author of the century. New York: Houghton Miffin, 
2002. 347p. 
 
TOLKIEN, J.R.R. CARPENTER, Humphrey (org.) As cartas de J.R.R. Tolkien. 
Curitiba: Arte e Letra, 2006. 460p. 
 
TOLKIEN, J.R.R. O hobbit. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 299p. 
 
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______. The return of the shadow. 2004. Disponível em: <http://www.e-
reading.club/bookreader.php/138993/Tolkien_06_The_Return_of_the_Shadow.pdf> 
Acesso em: 17 maio 2016. 
 
WHITE, Michael. J.R.R. Tolkien: o senhor da fantasia. Rio de Janeiro: DarkSide, 
2013. 280p.

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