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História do Direito Parte II - Sociedades Antigas A característica mais comum na formação das primeiras sociedades de Estado, aqui denominadas de Sociedade Antigas, é a concentração do poder no soberano. Isto significa que a autoridade do rei é suficiente para organizar e controlar a vida social, ou seja, a sua imposição prevalece como força jurídica. Ele ordena, julga, oferece o veredito. Seu poder tem origem na tradição e na hereditariedade desde os primeiros grupos familiares sedentários. O sedentarismo favorece o patriarcado e este, por sua vez, se desenvolve de forma hereditária, vitalícia, geração após geração. Fustel de Coulanges em seu “A Cidade Antiga”, explica que pequenos grupos nômades passaram a preferir estabelecer-se em determinados territórios mais férteis e que ao fazerem isso deram origem às unidades familiares. Várias famílias relacionaram-se e o matrimônio interfamiliar provavelmente levou à formação de um conjunto maior, a fátria. Fátrias embora disputassem territórios entre si, uniam-se em casos excepcionais diante de calamidades naturais, mas principalmente para defenderem o território do invasor externo. Estava dado o pontapé inicial para o surgimento das Cidades-estados da Antiguidade. A centralidade de poder em um rei, soberano absoluto, é, em termos, uma vitória do poder laico, do guerreiro e seus descendentes, sobre o poder religioso, o misticismo e a feitiçaria do xamã e sacerdote. Esta primeira revolução antropocêntrica só foi possível na medida em que a comunidade primeva aceitou a hipervalorização do altruísta, o “esbanjador”, talvez por algum ato heroico do qual dependesse a própria sobrevivência da comunidade como um todo. Não é desproposital imaginar que na base do poder absoluto do soberano nas antigas civilizações esteja um misto de bravura e heroísmo com um incontinente altruísmo, pois o que se conhece da vida primeva é que o poder estava limitado ao embate entre duas forças, a do feiticeiro e a do guerreiro. Na oposição entre o místico e o laico residia a impossibilidade da acumulação de riqueza e concentração de poder patriarcal, mesmo entre as tribos sedentárias. Isto, contudo, não significa que o poder religioso dos sacerdotes se esvaísse completamente e que nenhuma influência tivesse sobre a sociedade. Pelo contrário. Com raras exceções, a mudança e a capacidade do soberano assumir centralidade político-administrativa e jurídica não acabou com a religião e tampouco com seus intérpretes e signatários. Por todas as civilizações mais antigas o que se observa é uma casta, o grupo religioso, assumir funções vitais e possuir status e privilégios muito acima da população só com menos importância do que o rei. Assim é no Egito à cerca de 50 séculos atrás, na Babilônia à cerca de 20 séculos, entre os Hebreus, na Índia, na Grécia e em Roma. Ainda hoje é notório o poder da religião, das igrejas e de seus prepostos, mesmo nos Estados modernos constitucionalmente laicos, como no caso do Brasil, ou verifica-se no recrudescimento dos Estados fundamentalistas religiosos no Oriente. O motivo pelo qual a classe e as castas sacerdotais descendentes dos antigos xamãs, feiticeiros e oráculos, mantiveram seu prestigio e seu poder nos reinados soberanos, está igualmente explicado em “A Cidade Antiga”. As famílias originárias das posteriores civilizações antigas, antes de se unirem, cultuavam entidades míticas, deuses diferentes, como forma mesma de se diferenciarem uma das outras, e tal fato estava presente nos primeiros momentos de acasalamento exógeno e na formação das fátrias ancestrais. Os deuses que cultuavam eram a sua identidade. Não é de estranhar que posteriormente tantos deuses e tantas divindades pagãs conferissem aos sacerdotes uma distinção toda especial que, como se vê, persiste até hoje na forma de seitas e igrejas as mais diversificadas. * Existem, excepcionalmente, exemplos que destoam desta singularidade e tendência à prevalência do soberano absoluto alicerçado pela casta sacerdotal. Por exemplo, as civilizações pré-colombianas das Américas, Astecas, Incas e Maias, apresentavam inicialmente um soberano sacerdote, portanto onde a religião prevaleceu sobre o poder do guerreiro e do homem comum, e não o contrário. Interessante que posteriormente aparece a casta de sacerdotes, mantendo-se o poder do rei, normalmente como deus, ou designado superiormente por eles em nome dos deuses. Ao que tudo indica, levando em consideração o poder dos sacerdotes maias e o terror que impunham à população, o rei era um deles e era escolhido por eles em nome dos deuses. Outro exemplo significativo é o governo de Aquenaton – na verdade Amenófis IV – que na XVIII disnatia egípcia acabou com o politeísmo e elegeu Aton, o disco solar, como único deus e a si mesmo como um deus da magnitude de Aton. Este episódio histórico adorna de forma soberba a luta permanente entre o soberano absoluto e o poder sacerdotal religioso. Logo em seguida, seu filho Tutancâmon, que subiu ao trono com 7 anos – morreu com 17 anos – restaurou a velha cultura de cultuar vários deuses e, desta forma, restaurou igualmente o poder e os benefícios dos sacerdotes egípcios. O que as civilizações antigas nos mostram é uma permanente luta pela supremacia do poder entre religião e o rei. A luta dos reis para centralizarem em si o poder de governar, isto é, administrar, controlar e julgar a sociedade, é um marco de suma importância para o Direito, uma vez que é esta centralização autoritária o embrião futuro do laicismo governamental e do ordenamento jurídico laico. A luta pela jurisdição do Estado começava ali quando Aquenaton se intitulava soberano absoluto e único deus a ser adorado como tal. Mais do que isso, é possível orientarmo-nos pela seguinte tese: o surgimento jurídico de leis, doutrina e jurisprudência são mecanismos de consolidação do poder do soberano (laico) em relação ao direito sacerdotal, templário e canônico de todas as religiões já provadas pelo homem. Existe uma passagem bíblica sobre a história dos Hebreus importante neste contexto. Se Aquenaton mostrou seu poder e sua soberania em relação aos sacerdotes introduzindo o monoteísmo na cultura egípcia, o rei Salomão fez o contrário, por volta do século X a.C. Contrariado pelo Sinédrio, o conselho fundamentalista que zelava pela obediência à tradição judaica e aos mandamentos estabelecidos por Moisés, que o havia proibido de casar com a Rainha de Sabá, soberana do que hoje é a Etiópia e Yemen, e que estava grávida de um filho seu, passou a experimentar e mesmo incentivar o desenvolvimento de várias seitas religiosas chegando a participar de cultos politeístas e pagãos, contrariando as leis de Moisés e a adoração de um deus único. Aqui também os patriarcas judaicos devem ter percebido o quanto isto ameaçava o seu poder enquanto grupo privilegiado havia séculos. O famoso e sempre atual caso do “Édipo Rei”, peça teatral de Sófocles, que se passa em Tebas no século V a.C., é outro exemplo dessa tentativa de interpretar a separação entre poder eclesiástico e poder temporal. A estória de Édipo é significativa para o Direito por diversos motivos, mas o principal é a luta entre o cumprimento da Lei e o cumprimento do dever moral meio ao poder do soberano na antiguidade. A peça foi escrita sob o reinado de Péricles, rei de Atenas, e sob o domínio ainda das leis promulgadas por Sólon, em uma sociedade que, apesar de seu culto aos deuses e respeito aos Oráculos, havia desenvolvido as ciências e efetuada uma verdadeira revolução antropocêntrica, talvez a mais importante da antiguidade. Como soberano Édipo julga um processo para descobrir quais os motivos das desgraças que assolam a cidade de Tebas,conforme predito pelo oráculo. Ao longo das investigações descobre que matara seu pai em duelo, sem o saber, casara-se com sua mãe, Jocasta, e com ela tivera 2 filhos e 3 filhas, na verdade filhos irmãos. Como se vê o pecado de incesto e o casamento endogâmico já aqui é discutido como intolerável o que, com alguma propriedade, reforçou a repulsa que temos hoje sobre tais relacionamentos. A primeira coisa que chama a atenção é que Édipo, do alto de seu poder, poderia ter abortado o processo e evitado que se descobrisse toda a fatalidade que acometera sua família. Mas ele persegue a verdade até as últimas consequências, considerando provas materiais, como os depoimentos dos participantes da trama e testemunhas oculares, assegurando a continuidade do processo formal, e com isso reforça mais a sua soberania e a sua sabedoria como governante, do que fazer o que seria normal à época, evitar ser exposto e sacrificado. Esta insistência de Édipo reforça a sua luta contra o poder dos sacerdotes e mesmo do oráculo que o instigou a procurar a verdade em seu palácio, na medida em que demonstra com isso que um soberano sábio e justo não precisava temer os deuses e suas maldições (CF –Art. 5; Inciso XXXVII, LIII, LIV, LV, LVI, LX – Art. 93; inciso IX). Depois, sabendo o ocorrido e vendo o suicídio de sua mãe esposa, sua mãe e mãe de seus filhos, Édipo fura os olhos e pede o desterro de sua terra, refugiando-se com duas filhas em Colono. Édipo não tenta nenhum golpe para se manter no poder, ou qualquer artimanha jurídica ou política – tão comum em nossos dias - para se manter como rei, mas se autopune. O peso de sua consciência é superior ao seu poder como rei, mas ao mesmo tempo, se resgata inquestionavelmente a moral como fator importante à justiça, reclama para sua fatalidade e sua autopunição o mesmo poder como soberano de produzir a justiça sem interferência divina. O oráculo não disse para ele furar os olhos e se desterrar, mas ele o faz apesar de tudo, pela nobreza que encerra em sua fatalidade, e assim, dá continuidade ao soberano laicizado por sua nobreza de caráter ou honra. Os soberanos que lutam contra o poder sacerdotal só têm, para conquistar seus concidadãos, a prova de sua bravura e sua honra em proteger o território e suas gentes, fórmula mais tarde consagrada nos tipos de governo e seus princípios por Montesquieu. Outro fato não menos interessante são as escaramuças e as lutas internas constantes no Império Romano. Roma foi primeiro um Reinado, depois uma República e finalmente um Império. Enquanto Reinado e mesmo República prevaleceu o politeísmo, o paganismo, o culto aos deuses do olimpo disfarçados com novos nomes (Zeus é Júpiter, Dionísio é Baco, Palas é Minerva, Afrodite é Vênus). A herança do culto aos deuses é a mesma das demais civilizações antigas, a origem está na identificação das famílias gentílicas com seus deuses particulares como forma de identidade e diferenciação. Mesmo durante a República, onde se institui a Lei das XII Tábuas, por revindicação e luta dos plebeus contra os patrícios, dando prerrogativas aos plebeus só usufruídas pela aristocracia, o politeísmo e paganismo mais libertino prevaleceram, não apenas pela tradição e costumes dos povos germânicos que se instalaram na península itálica, mas devido à própria cultura e filosofia apregoada então, o estoicismo. Aliás, é importante que se perceba que os plebeus romanos já são em grande parte de origem germânica, portanto, as revindicações plebeias em Roma são na verdade conquistas desses povos não originários vindos do Leste, cuja cultura de um Direito menos material, influenciará a futura consolidação de leis promovida posteriormente pelo imperador Justiniano, principalmente a parte do Digesto (a nossa atual Jurisprudência). Os estoicos entre outras características apregoavam a integração do homem com a natureza e o aproveitamento de todos os conhecimentos e filosofias para que o homem alcançasse a felicidade e a justiça. Figuras como Cícero e mais tarde Sêneca, são expoentes políticos com vida ativa importantíssima no senado e no império romano, hábeis oradores e ilustrados filósofos que incentivam, pela sua filosofia estoica, esse paganismo, esse politeísmo, essa integração e o gozo dos sentidos provocados pela integração com a natureza. Não se deve tirar da escola Estoica, no entanto, de que tais práticas místicas devam ser levadas a cabo sem ética, muito pelo contrário, a ética deve permear de forma permanente as escolhas e as práticas dos homens para que os excessos sejam evitados. Messalina é pagã, publicamente libertina, esposa do imperador Claudio, ela representa ainda o poder do soberano intercalado e submisso às tradições pagãs e sacerdotais. Agripina, protegida de Claudio, ao querer todo o poder para seu filho, Domício, o futuro imperador Nero, usa a filosofia de Sêneca, preceptor do futuro Nero, afastando assim, de alguma forma, o poder religioso da corte. Para tanto, logo que Messalina morre, Agripina manda matar o verdadeiro herdeiro do trono, o filho legítimo de Claudio, dá todos os poderes a Sêneca, que acaba conspirando com Nero a matar a mãe, e “governa” por quase dez anos como amigo principal do imperador. Finalmente, temendo ser também morto por seu conselheiro principal, Nero ordena que se mate, e segundo a história relata, manda queimar Roma. Este movimento no seio do Império Romano se fará sentir em um Direito mais laico, afirmando o poder do soberano: Augusto – na verdade Caio Otávio – escolhe 20 senadores que faziam de poder moderador com o Senado (senatus consultos) e legislavam através de “editos”; o trabalho de compilação e consolidação do Corpus Juris Civilis de Justiniano; e mesmo quando Constantino declara o cristianismo como religião oficial do Império, um pouco antes, em 312. Ao queimar Roma, Nero não estava louco, mas tentando aterrorizar o Império, mostrando definitivamente quem detém o poder, nem o senado nem os filósofos, nem nenhuma seita existente então - como judeus, cristãos, místicos orientais, adoradores dos deuses egípcios. Ao mesmo tempo tentava começar de novo uma soberania imperial, que afinal, ainda sobreviveu a ele por muitos séculos. Existe uma tendência a ver como uma das causas da derrocada do Império Romano a libertinagem sexual, que, sem dúvida, em alguns casos, chegou à promiscuidade, como no caso do imperador Calígula. Mas no plano jurídico e político é interessante perceber como a luta palaciana pela supremacia do imperador sobre o senado, constituído quase exclusivamente por aristocratas patrícios, abriu caminho para uma legislação unificada bastante laicizada, efetuando-se várias constituições até Justiniano, diminuindo assim o poder da casta religiosa/aristocrata, e que, a declaração da religião cristã como oficial e única no Império, longe de ser a vitória da religião sobre o soberano, é, na verdade, uma estratégia deste para se manter como tal e com totais poderes. Constantino haveria dito, na promulgação do cristianismo como religião oficial do Império: “Façamos a revolução nós, antes que o povo a faça”. Se por um lado a oralidade e o misticismo pagão foram a origem do Direito em todas as grandes civilizações, herança das velhas famílias e clãs gentílicos e, mais longe ainda, das imberbes sociedades primárias, por outro lado a História do Direito revela a permanente tensão entre poder eclesiástico e poder temporal, entre religião e Estado, entre casta sacerdotal e soberano laico, embate esse que provoca, na medida em que o soberano prevalece, a supremacia do Direito como uma terceira força na pacificação e convivência social.
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