Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
HISTÓRIA DO DIREITO PARTE III – SOCIEDADE MEDIEVAL O Medievo é o enfraquecimento do soberano. Vimos como nas sociedades primevas aquele que distribui o que possui de bens e víveres tem grande chance de se tornar líder tribal. Chamamos este indivíduo de “esbanjador”, para opô-lo ao “poupador”, este entendido como aquele indivíduo que acumula bens à custa do trabalho social coletivo como forma de se destacar pela riqueza que possui. É curioso verificar que na Idade Média, sob os auspícios da cristandade, a acumulação era condenável e julgada como crime de Usura (Decreto nº 22.626, de 7 de Abril de 1933). No século XIII, Sto. Tomás de Aquino se exprimia com relação a essa “moral” dizendo que “O dinheiro só existe para ser gasto”, ou seja, para não ser capitalizado. Desde o século V que Clemente de Alexandria desenvolvera a ideia de “Como o rico se salva”, sendo o primeiro sacerdote cristão, se aproveitando do caos do fim do Império Romano do Ocidente, a admitir de forma oficial um rico penetrar no reino dos céus. Esta possibilidade está vinculada, claro, à obediência dos cânones da Santa Igreja e do papado, e ao desvio de somas consideráveis de riquezas das mãos dos reinos para os mosteiros e abadias europeias. Com exceção dos judeus, perseguidos e queimados, extorquidos de suas propriedades, o resto da vida medieval está incrustado na ideia maior da grandeza única da vida após a morte, na ressurreição ao lado de Cristo, ou a compra de um pedaço do paraíso na terra, prática, aliás, que infelizmente ainda grassa como retrocesso nos dias atuais. Quanto mais o sentimento de perda e frustração, maior o sentimento órfico e consequentemente a necessidade de elevar a vida ao sobrenatural teocêntrico. Neste contexto que se pode falar de uma “economia do ser”, onde as relações de vassalagem são o substituto do livre mercado ou endinheiramento, opondo uma sociedade de prestação e contraprestação de serviços com a futura “economia do haver”, monetária, que surge no Renascimento. Sto. Tomás, por outro lado, estava preocupado com o “justo preço”, ideia matriarcal de igualdade e justiça, pois ao contrário do que se pensa o medievo não é só atrocidades, mas uma vez economicamente baseado em relações pessoalíssimas de vassalagem, “ajusta” uma vida social pela equidistância, claro, com exceção de uns poucos e da própria igreja. Desta forma, a cristandade, pelo menos nos primeiros séculos a partir da queda do Império Romano do Ocidente, ou seja, a partir do século V, regula econômica e juridicamente o velho continente, levando os comentaristas de Sto. Tomás a endossar as evasivas contra a usura e os negócios espúrios que mais tarde, já a partir do século X, se transformarão em endinheiramento e acumulação capitalista. Étienne Gilson chega a afirmar que “a lei não é xipófaga da moral”, pressuposto filosófico empirista e utilitarista de um Hume, princípio a ser resgatado no século XVIII, em pleno Iluminismo. Logo, o caminho restrito tomasiano se perderá meio ao desenvolvimento das forças econômicas e produtivas, técnico cientificas e financeiras do Renascimento, e então pode-se afirmar que o Código Civil não passará de tentativa de suportar a vida em sociedade. Os católicos regozijam-se com a encíclica De Rerum Novarum assinada pelo papa Leão XIII em 1891 onde finalmente lembrava-se da riqueza originária de toda a história humana, o trabalhador, excluído e miserável. Depois, na encíclica Quadragésimo Ano, Pio XI reconhecia o direito das “artes do lucro” e, portanto, da capitalização desproporcionada, da usura e do egoísmo desmesurado como estorno ou compensação do sentimento órfico que a sociedade industrial, e a capitalista em especial, promoveram na cultura Ocidental. Mas muito antes disso, o atrativo de endinheiramento e riqueza desmedida já se tinham instalado voltando a cristandade as costas a isso. É de destacar que a supremacia do soberano absoluto, no mais das vezes mantendo alianças estratégicas com a classe sacerdotal, característica das sociedades antigas, agora dá origem ao Direito Público e sua especialidade, o Código Penal. Todos os soberanos e reis da antiguidade que têm alguma importância para a História do Direito foram autoritários e assumiram autoritariamente toda a força necessária a esvaziar o poder eclesiástico e orgiástico das seitas e da religião, e por isso são revolucionários no sentido de Constituições laicas. No final da Idade Média, devido às restrições cristãs e ao embate com os invasores germânicos e mulçumanos, o Direito Privado se avulta e o Código Civil tenta colocar, a par do poder do soberano e da igreja e seu Direito Canônico, eminentemente penal e inquisitório (Inquisição), algumas prerrogativas a tentar assimilar a permissividade e os costumes mais libertos desses povos invasores na tentativa de convertê-los ao cristianismo e manter certa coesão no caos medieval. Neste contexto a lei e o Direito são patriarcais e quase que unicamente patrocinado pela cristandade e pelo poder papal. Mas esta tentativa de renovar algo da cidadania Greco-romana do passado através de alguns parâmetros de Direito Privado, não compartilhava nenhuma definição de Direitos Naturais, pois o único direito que interessava à igreja é aquele que emana de Deus, e aos homens cabe apenas obedecê-los. A noção de direitos humanos naturais só irá aparecer no Renascimento, como movimento mesmo de emancipação do Direito reagindo à igreja, apanhado o velho continente de sobressalto quando se descobre as Américas e ali se encontra indígenas que em absoluto estado de natureza demonstram inteligência, organização social e formas restaurativas de vigiar e punir comportamentos indesejáveis. Tanto assim é que só na Magna Carta de 1215, uma espécie de Constituição do reino britânico, se faz menção a algum tipo de direitos humanos, cujos princípios são posteriormente consagrados no Bill of Rights de 1689 – inclusive a criação do sistema monárquico parlamentarista que será reconfirmada em seguida por todos os soberanos ingleses. Estes pactos sociais normatizados positivamente inspiraram muito tempo depois a Constituição Americana de 1787 e a Declaração dos Direitos Humanos na Revolução Francesa de 1789. São esses princípios universalistas da condição natural do homem, com direitos inalienáveis, que modernamente a Organização das Nações Unidas (ONU) consagrou em sua Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Por trás desse movimento revolucionário renascentista, em relação ao poder eclesiástico medieval, encontra-se também a Reforma Protestante de Martin Lutero (1483-1546) na Alemanha e Escandinávia, João Calvino (1509-1564) na França, Ulrico Zuínglio (1484-1531) na Suiça, Thomas Cranmer (1489-1556) na Inglaterra e John Knox (1514-1572) na Escócia. Contra o poder da igreja católica e sua riqueza angariada através de favores e intrigas políticas, guerras religiosas – Cruzadas -, apoios e negociações com os senhores feudais, reis e famílias poderosas, inclusive usando de seu papel salvador de almas humanas no céu como meio de troca monetário, se insurgiram esses cristãos devotos em busca de uma liturgia menos interesseira e política. Mas ainda que tais religiosos protestantes tivessem boas intenções em renovar o cristianismo e aproximá-lo mais das escrituras sagradas e de Deus, o fato é que seus princípios serviram perfeitamente aos interesses dos comerciantes dos burgos, navegadores, financistas e todo tipo de artesãos e fabricantes que viriam a se constituir na Burguesia comercial, banqueira e industrial, próprias do Sistema Capitalista de Produção já a partir de meados do século XVII. Por exemplo, se a usura e a capitalização privada, como vimos, eram repudiadase perseguidas com a excomunhão e mesmo a fogueira da Inquisição, sobre todos os que não tivessem a proteção e autorização da igreja e do papa, a proposta protestante mina definitivamente essa perseguição ao afirmar que não existe diferença entre comercializar batatas e usufruir de lucro e emprestar dinheiro e usufruir de juros. Por isso não seria mais necessária a doação à igreja para alcançar a salvação, pois sendo Deus omnipresente e oniciente, bastaria conversar com ele, ou seja, orar em qualquer lugar e a qualquer momento para que ele escutasse, comungasse e perdoasse as ofensas e os pecados humanos. Obviamente que isto esvazia a riqueza e o poder do catolicismo e liberta o homem de vez das amarras medievais à igreja de Roma, e às relações de vassalagem dos plebeus com os senhores feudais e reis. Essa multidão de vassalos plebeus perde então sua secular relação com a terra e a obrigação dos seus senhores em os protegerem, impulsionando a vida econômica nos burgos e alimentando a classe burguesa de mão de obra para trabalhar, posteriormente de consumidores miseráveis ávidos por sobreviverem. Por “libertar” o homem medieval em direção ao sistema mercantil e de acumulação privada, o Protestantismo se espalhou rapidamente pela Europa a partir do Leste e Norte, influenciando reinos e provocando guerras fratricidas entre concidadãos, levando a religião e suas várias dissidências protestantes para as colônias inglesas, holandesas e algumas francesas. O maior exemplo disso é a colonização dos Estados Unidos da América onde se estabeleceu colônias de imigrantes fugidos dessas guerras civis e, em alguns casos, a consolidação do protestantismo mais conservador, como no caso dos Anabatistas. Se o protestantismo cresceu, inclusive graças ao financiamento dos soberanos que se opõem ao papa católico, e aos burgueses que vêm nessa vertente do cristianismo uma oportunidade de consolidar seus negócios, e também graças ao dízimo pago por todos os fiéis protestantes, por outro lado o catolicismo não poderia assistir passivamente à perda gigantesca de seus devotos e de seu poder. Neste sentido que existirá a Contra Reforma e a aderência do catolicismo papal aos novos rumos da economia de mercado e endinheiramento, procurando ora cativar os endinheirados burgueses oferecendo- lhes a salvação, sem os expurgar e excomungar, ora manter as alianças católicas com os soberanos amigos, assegurando-lhes o poder absoluto – Absolutismo. O maior exemplo da ferocidade com que o Catolicismo Apostólico Romano foi à luta contra o Protestantismo está no episódio trágico e o genocídio efetivado contra os protestantes franceses, em minoria dentro de um reino aliado do papa, que por sua brutalidade ficou conhecido como “Noite de São Bartolomeu” em 1572, onde morreram entre 30 e 100 mil protestantes. Não é por acaso que a França sempre tenha sido protegida pela igreja romana e o absolutismo monárquico tenha aí perdurado até o final do século XVIII, quando a Revolução Francesa pôs fim de vez à monarquia. * Apesar de tudo, ou melhor, por tudo isso, somos no mais das vezes levados a acreditar que o Medievo foi o “período das trevas” para a civilização ocidental. No entanto, pelo menos do ponto de vista jurídico, essa “negritude” medieval, essa predominância religiosa e essa economia com base no relacionamento entre favores – Economia do Ser (Oswald de Andrade) -, deixou como legado algumas instituições e institutos cruciais ao funcionamento do Direito e de todo o Ordenamento Jurídico, que prevalecem até nossos dias, obviamente modificados em seus princípios e filosofia. O Inquérito, o júri, as provas materiais, o contraditório, a sentença após o tramitado e julgado, que são elementos necessários para um “ato jurídico perfeito” tem sua consolidação processual na Idade Média, tendo a Santa Inquisição por patrono. Como se disse anteriormente, o Inquérito “começou” com o “Édipo Rei”. De fato a materialidade do Direito Grego na Antiguidade Clássica introduziu o testemunho como prova material do Inquérito, impulsionando racionalmente este instituto como parte fundamental do que viria a se denominar Processo Penal na civilização ocidental. Não que nesse período só se experimentasse o Inquérito como forma de julgamento. Pelo contrário, esse instituto do Direito era, possivelmente, o que menos se usava, e exatamente por isso que a “Trilogia Tebana” escrita por Sófocles no século V a. C. em Atenas, é tão preciosa e intencionalmente instigante. Sófocles inaugura a defesa de um novo Direito que afugentasse o hábito ordálio - remeter à vontade dos deuses e ao juramento, ou submetidos a provações diante deles - da capacidade de apenar. Ora, é evidente que diante das duas formas de Direito, a primeira, a que está representada na tragédia de Édipo, como no “Édipo em Colono” e em “Antígona”, é aquela que coloca em juízo o próprio poder do soberano e da justiça por seu intermédio e vontade. É surpreendente que o ateniense deste período enfrentasse uma luta pela racionalidade e objetivação jurídica em duas frentes: contra a religião e contra o poder exacerbado do rei. Hodiernamente o devido Processo Penal incorpora o Inquérito como peça jurídica inicial, separando-o, no entanto, da Ação Penal, que se inicia quando o Poder Judiciário é provocado e aceita a Ação Penal. Na Antiguidade e na Idade Média o Inquérito era confundido com a Ação Penal, vez que não existia a diferenciação entre a ação policial e o Judiciário. A primeira tentativa positiva, ainda inacabada, de separar o Inquérito da Ação penal, encontra-se na cláusula 39 da Magna Carta inglesa (CPP - Art. 4 a 23).
Compartilhar