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Da Ecologia a Autonomia

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I
I
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daniel cobnbencãt
cornelius castoriadis
~Ecolo~ia
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• j ~ . p f
1
Nascido em 4 de abril de 1945 em Montauban ,
Tarn-e-Garone, filho de judeus-alemães
emigrados em terra de asilo , mas ele próprio
expulso em 1968 após sua participação
decisiva no movimento de maio, acusado
de perturbações da ordem pública.
Reintegrado ao patrimônio nacional em
dezembro de 1978, escolheu livremente
continuar vivendo na Alemar1ha Federal.
Autor de numerosas obras , ator em inúmeras
manifestações, persiste no mau caminho.
Nascido em 1922. Estudos de direito,
economia e filosofia em Atenas. Sob a
ocupação, organiza um grupo que se opõe
à politica chauvinista do PC grego, depois
adere à organização trotskista animada por
Spiros Stinas. Chega à França em 1945 e
funda no PC, com Claude Lefort, uma
tendência que rompe com o trotskismo em
1948 e se transforma no grupo "Socialismo ou
Barbárie" . Em junho de 1968, publicou, com
E. Morin e C. Lefort, Maio de 1968: a Brecha
(Fayard). A Instituição Imaginária da
Sociedade (1975) e os Corredores do Labirinto
(1978) foram publ icados pela edltoraSeull .
cornelius castoriadis
daniel cohn·bendit
Copyright@f:dictionsduSeui!, 1981
Tradução:
Luiz Roberto Salinas Fortes
Capa:
Jacob Levitinas
Revisão:
Newton T . L. Sodré
José E. Andrade
Bibii ote'.:8 Dap .
de Fi'osdia
w /ê130 -
D~Ió;J1f~. IO /iL
editora brasiliense s.a.
01042 - rua barão de itapetin inga, 93
são paulo - brasil
•
,
•
,
PREFÁCIO
Q texto que vai ser lido é a transcrição das fitas grava-
das flor ocasião de um debate verificado a 27 de fevereiro
de (1980):m Louvain-a-Nova (Bélgica). A iniciativa da
organização deste debate e o trabalho de sua preparação
foram assumidos por um grupo de pessoas de horizontes
bastante diversos. As exposições introdutórias ao tema de
discussão (LUla antinuclear, ecologia e política) estiveram
a cargo de Cornelius Castoriadis e Daniel Cohn-Bendit.
A participação no debate (oitocentas pessoas aproxima-
damente) ultrapassou consideravelmente as previsões e as
esperanças dos organizadores.
Q material que entregamos 00 público hoje é, por si
mesmo, amplamente representativo dos pressupostos
comuns, mas também das interrogações e das dúvidas
partilhadas pelos participantes do debate. Parece-nos
todavia útil tentar cercar aqui a problemática que amadu-
recia em nossos espíritos há algum tempo e cujos princi-
pais eixos foram revelados gradualmente por ocasião das .
numerosas reuniões preliminares ao debate público. Foi,
com efeito, por referência a esta problemática que foram
postos os termos da discussão entre os participantes do
debate e aqueles que estavam encarregados de intro-
duzi-lo.
No ponto de partida da reunião de Louvain-a-Nova
havia o esforço visando elucidar provisoriamente - mes-
mo que, no limite, apenas colocando-as claramente - um
certo número de questões que surgiram durante as reu-
6 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 7·
niões preparatórias. Estas questões giram em torno dos
temas já clássicos, abordados pelo conjunto das correntes
que levantam a bandeira da ecologia ("natureza e socie-
dade", "ciência e tecnologia", "ciência e sociedade" etc.).
Em vários casos, as respostas fornecidas a estas questões
por diversas correntes ecológicas suscitavam em nós
graves interrogações. Assim, por exemplo, a escolha da
A~ .pesquis~ de uma tecnologia para a produção de energia) como eIXO central do discurso ecológico apareceu-nos(.' { como um pr?c~di?1ento atribuindo à técnica enquanto tal..1 um papel privilegiado, levando a defini-la como o deter-
I minante central, senão exclusivo, do funcionamento e da
instituição da sociedade.
O aparecimento de interrogações tão pesadas e tão fun-
damentais conduzia à idéia de que o debate deveria pôr
em relação as posições adotadas pelas correntes ecoló-
gicas e as que foram reveladas por outros movimentos e
outras revoltas. Pareceu-nos que estas questões deviam
ser debatida no interior de um espaço mais vasto do que o
das habituais discussões entre ecologistas partilhando os
mesmos pontos de vista. Era preciso, pois, reunir em uma
mesma discussão indivíduos portadores de aspirações e
interrogações diferentes, embora não necessariamente
contraditórias ou incompatíveis: ecologistas militantes
assim como ecologistas não organizados, indivíduos filia-
dos a correntes políticas ou a movimentos sociais, todos
refletindo à sua maneira diferentes aspectos da revolta
co~tra a sociedade contemporânea. Assim, a ecologia
sena posta em relação com o problema político, e a
própria política com as tentativas dos indivíduos e dos
grupos de prefigurar uma nova instituição da sociedade
conforme suas aspirações e seus desejos.
.Era preciso ao mesmo tempo e principalmente evitar
cal.r 1?-a armadilha da crítica paternalista que se dá como
objetivo esclarecer os atores diretos e se entrega, por
t
I
c.
I
isso mesmo, a uma pura e simples operação de substi-
tuição. Era preciso evitar a tentação de desempenhar o
papel de conselheiros do movimento ecológico olhando-o
do alto e do exterior e, ao mesmo tempo, recusar-se a se
deixar encerrar na armadilha da "verdade militante". Era
esta uma das condições essenciais para que o debate
pudesse atingir seus objetivos. Mas, como se sabe, não
basta enunciar os perigos para deles nos preservarmos...
O desenrolar do debate e os conteúdos das interven-
ções provam que é possível discutir sobre a luta antinu-
,
clear, a ecolo!?ia e a polí!icasem que o desenvolvÍ1:nento de
uma tecnologia alternativa torne-se o centro da discussão.
Isto já constitui uma crítica implícita da idéia ingênua e
errônea de que uma técnica alternativa, por sua própria
dinâmica, bastaria para desembocar na destruição da
sociedade atual e na construção de uma sociedade radi-
calmente diferente. Na mesma medida em que é falso
considerar a técnica como um meio inerte, utilizável para
qualquer fim, também é falso acreditar que a técnica
sozinha é suficiente para determinar uma sociedade e que
basta modificá-la para fazer surgir uma sociedade nova. A
existência de sociedades diferentes utilizando técnicas
semelhantes está aí para provar o contrário. Assim tam-
bém, o lugar desmedido que a técnica ocupa na socie-
dade contemporânea não constitui, em absoluto, no final
das contas, um problema técnico.
Se foi possível evitar que a questão da técnica alterna-
tiva ocupasse o centro do debate, foi pelo fato de que o
movimento antinuclear e ecológico é também portador de
um outro tipo de problemática. Em primeiro lugar, com
efeito, este movimento torna manifesta de maneira crítica
a massiva produção de irracionalidades em nossas socie-
dades. O temor, a angústia diante do acidente ou da alte-
ração/desaparecimento das formas de vida naturais
manifestam a pouca credibilidade das operações mistifi-
outros relativamente à sociedade futura. O reconheci-
mento do valor e da especificidade desta luta exclui as ati-
tudes paternalistas e as manobras táticas de utilização do
movimento ecológico. Contribui também para estabe-
lecer uma barreira diante das extrapolações e das mira-
gens ideológicas que os grupos minoritários, cada qual
considerando-se como detentor exclusivo da verdade,
propõem como solução única dos problemas da socie-
dade.
Isto posto, é evidente que a luta antinuclear e ecológica
não esgota o problema político tal como o entendemos.
Proposto desde a aurora dos tempos modernos, este pro-
blema, para nós, mantém-se aberto por inumeráveis lutas
e movimentos, certamente parciais e desconunuos, mas
cujo ponto de vista parece-nos essencialmente coerente:
projeto de constituição de uma sociedade igualitária, onde
a coletividade detém efetivamente o poder e especialmente
o de instituir a lei no sentido mais geral do termo; projeto
de definiçãocoletiva dos limites de nossas necessidades e
dosmeios de, sua satisfação; projeto de uma sociedade
justa, a justiça não sendo concebida como acordo com
uma lei dada uma vez por todas, mas como a busca cons-
tante da melhor relação entre os indivíduos, os grupos e a
.coletividade.
Nesta ótica, convém sublinhar a afirmação feita no
curso do debate de que uma sociedade ecológica profun-
damente autoritária é perfeitamente concebível. Esta pos-
sibilidade se enraíza, entre outras, na relação equívoca que
o movimento ecológico e anti nuclear mantém com a insti-
tuição social da ciência. Com efeito, freqüentemente os
perigos são denunciados e as soluções avançadas na base e
em nome de um saber que não está inscrito na vida quoti-
diana e permanece estranho àqueles que combatem. O ca-
minho a seguir é por vezes indicado em nome da pretensa
neutralidade de um saber racional, universal, válido para
~8/ CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT
j;~: cadoras a que se entregam as instituições burocráticas que
~A" tiram sua legitimidade de um saber pretensamente racio-
o~r; nal e eficaz. Ao mesmo tempo, o movimento antinuclear e
ecológico coloca, por sua vez, aprofundando-o, o
problema da crise do modo de vida, que já havia sido
revelado pelo abalo da família tradicional, a luta das
mulheres e a rebelião da juventude. É através dessas lutas
que aparece o mais claramente possível a contestação de
uma certa maneira de viver, de um certo ritmo de vida
urbana, de uma estética duvidosa, do gigantismo real e
simbólico, das instituições sociais, econômicas e políticas,
ao mesmo tempo em que vêm à luz do dia atividades e
práticas criadoras. Em seguida e principalmente, o movi-
mento antinuclear e ecológico exprime à sua maneira o
ponto de vista da autonomia, o desejo sempre presente,
mesmo quando não majoritário, de uma auto-instituição
da sociedade. Finalmente, a ecologia faz renascer a rela-
ção, esquecida e escondida, da sociedade com a utopia -'---
'J"L utopia compreendida como desejo de mudança e hori-
\lJ.ff' zonte dê nossa atividade, sem que se prejulgue a respeito
da possibilidade de materialização efetiva desta mudança.
Ampliar nestes termos a problemática, assim como
constatar o alcance limitado da questão de uma técnica
alternativa, não conduz de forma alguma ao menosprezo
da importância da luta antinuclear enquanto luta espe-
cífica. O combate contra a poluição e a contaminação
torna-se urgente e fundamental para setores crescentes da
população, uma vez que se trata, para cada indivíduo, de
sua segurança, de sua sobrevivência, da salvaguarda do
meio natural que o circunda.
Isso significa que nós nos alistamos contra aqueles que,
a partir de considerações de estratégias ou de tática "revo-
lucionária", contestam o bom fundamento da luta ecoló-
gica. A necessidade de leis antipoluição é imediata e inde-
pendente dos pontos de vista e das exigências de uns e
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v.
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o
DA ECOlOGIA A AUTONOMIA 9
10 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT
toda a sociedade. Em suma, a fOffila contemporânea da
instituição social da ciência corre o risco de se manifestar
uma vez mais graças à atividade de um grupo de especia-
listas formulando a velha reivindicação autoritária de
uma política fundada sobre a ciência e sobre um saber
eficaz, à margem da atividade coletiva, criadora e insti-
tuinte, dos homens e das mulheres.
De tudo isso resulta que se afirmamos hoje que a socie-
dade que queremos não deverá ser antiecológica, não
podemos fazê-lo a não ser na seqüência do avanço e da
experiência do movimento ecológico. Mas esta afirmação
é para nós uma exigência que traduz a prática das pessoas
e não um discurso ideológico baseado nas conclusões
daquilo que se chama de ecossistemismo. Temos que nos
opor à tentação constante de legiferar para os outros em
seu nome. Devemos reconhecer, no fazer dos homens e
das mulheres, não uma confirmação de nossas idéias, mas
a fonte de inovações irredutíveis.
Nossa ambição ao publicar a resenha deste debate é de
que possa servir de material de reflexão na perspectiva das
lutas ulteriores. Mas pensamos também que constitui um
testemunho e um documento sobre a situação presente.
Pois seu interesse não se encontra somente no conteúdo
dos discursos e das idéias avançadas, mas também no
estado de espírito expresso pelas intervenções do público.
O público era, com efeito, composto no essencial por
homens e mulheres que tomam parte ativa neste com-
bate. Suas intervenções, suas reações, seus silêncios e até
mesmo seus bloqueios estão plenos de significação.
Traduzem, muito mais do que as exposições introdutó-
rias, a realidade do movimento. Neste sentido podemos
afirmar que o público de Louvain-a-Nova é o verdadeiro
criador deste livro.
G.A. e S.Z.
..
o presidente da Assembléia geral dos estudantes da
universidade de Louvain-a- Nova:
Agradeço em primeiro lugar a todos por terem vindo
em número tão grande esta noite para esta conferência-
debate.
Agora, algumas palavras sobre os organizadores da
conferência. É em primeiro lugar o grupo Nós, um grupo
"grupuscular" de reflexão que não se preocupa em definir-
se de maneira mais determinada. Em seguida, o Centro
Galileu, que é ao mesmo tempo l!I}la livraria e um orga-
nismo de educação permanente. Há igualmente os
Amigos da Terra do Brabantês Valão, grupoecologista
que trabalha sobre os aspectos só~i()-:-p()lític()sdo nuclear e
das energias doces. Há também o MJP,Movimento dos
Jovens pela Paz, que tenta promover a idéia de uma socie-
dade ªl:ltogestionária. Finalmente, há a AG L, isto é, para
os que ainda o ignoravam, a Assembléia geral dos estu-
dantes de Louvain, órgão de representação dos estudantes
da universidade de Louvain.
Era importante mencionar os organizadores porque o
debate desta noite se inscreve nas atividades de um grupo de
reflexão que quer aprofundaras problemas políticos colo-
eados pela energia nuclear e porque estas atividades não se
limitam à organização deste debate. Para dar uma idéia
L
..
dos eixos de reflexão deste grupo, cito alguns dos assuntos
que foram abordados até agora:
~.A ciência e a economia em face do problema da
e?ergm nuclear, principalmente em seus aspectos socioló-
gICOS.
~ A luta antinuclear é verdadeiramente uma colocação
em questão da sociedade?
~ Podemos definir uma opção política a partir da luta
antinuclear?
É porque este grupo de reflexão quer prolongar suas
~ti.vidades que lanço a todos um convite para delas par-
ticipar.
Quanto à razão de ser desta conferência, recusamo-nos
a dar um outro motivo além do seguinte: tínhamos real-
mente o desejo de organizar uma conferência. Eu agra-
deço e desejo a todos uma boa noitada (aplausos).
Corne/ius Castoriadis: Estou contente por estar aqui e por
vê-los. E estou muito surpreso pelo número de partici-
pantes; muito agradavelmente surpreso e feliz. Mas ao
mesmo tempo isso aumenta meu medo de decepcioná-los,
tant~ ~ais porque, falando com Danyantes de vir aqui, ele
me dizia que não sabia o que diria, que improvisaria. Mas
el~ tem. o hábito disto e sabemos, historicamente, que se
sal muito bem (risos). Quanto a mim, teria gostado de
consagrar mais tempo do que me foi possível fazê-lo na
preparação daquilo que pretendo dizer.
Mas talvez, no final das contas, isso não teria feito dife-
rença, pois as quatro ou cinco coisas que tenho a dizer,
v0<;ês verão, desembocam em pontos de interrogação e
tenam desembocado em pontos de interrogação de
qualquer maneira. E acredito que o sentido de uma noite co-
mo esta é precisamente fazer as pessoas falarem: fazer vo-
cê~ falarem seja sobre questões quejá estão abertas por vocês,
seja ~ e este seria um ganho considerável ~- sobre ques-
tões novas que surgem no debate, com a ajuda talvez
daqueles que foram encarregados de introduzi-lo.
Hoje todo mundo sabe, todo mundo acredita saber-não era o caso ainda há pouco tempo ~.que a ciência e a
técnica estão muito essencialmente inseridas, inscritas,
enraizadas em uma instituição dada da sociedade. Da
mesma forma que a ciência e a técnica da época contem-
porânea nada têm de trans-históricas, não têm valor que
esteja para além de toda interrogação, que pertencem ao
contrário a esta instituição social-histórica que é o capita-
lismo tal como nasceu no Ocidente há alguns séculos.
Eis aí uma verdade geral. Sabe-se que cada sociedade
cria sua técnica e seu tipo de saber, como também seu tipo
de transmissão do saber. Sabe-se também que a sociedade
capitalista não somente foi muito longe na criação e no
desenvolvimento de um tipo de saber e de um tipo de
tecnologia que a diferencia de todas as outras, mas que~
e isso também a diferencia das outras sociedades ~ além
disso colocou estas atividades no centro da vida social e
atribuiu-lhes uma importância que não tiveram nem
outrora nem alhures.
Assim também, todo mundo sabe ou todo mundo
acredita saber que a,-pretensa neutralidade, a pretensa
instrumentalidade da técnica e até mesmo do saber cientí-
fico são ilusões. Em verdade, até mesmo esta expressão é
insuficiente e mascara o essencial da questão. Pois a apre-
sentação da ciência e da técnica como meios neutros ou
como puros e simples instrumentos não é simples "ilusão":
ela faz parte, precisamente, da instituição contemporânea
da sociedade ,-C---- isto é, faz parte do imaginário social
dominante de nossa época.
Podemos circunscrever este imaginário social domi-
nante em uma frase: o ponto de vista central da vida social
é a expansão ilimitada da mestria (mditrise) racional. É
claro que quando olhamos de perto - e não é necessário
13DA ECOLOGIA A AUTONOMIACORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT12
- '--F-
14 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 15
I
i
chegar muito perto para vê-lo - esta mestria é uma
pseudomestria e esta racionalidade, uma pseudo-racio-
nalidade. O que não impede que seja este o núcleo de
significações imaginárias sociais que mantêm unida a
sociedade contemporânea. E isso não é somente o caso
nos países de capitalismo dito privado ou ocidental. É
igualmente o caso nos países pretensamente "socialistas",
nos países do Leste, onde os mesmos instrumentos, as
mesmas fábricas, os mesmos procedimentos de organi-
zação e de saber são postos igualmente a serviço desta
mesma significação imaginária social, a saber, a expan-
são ilimitada de uma pretensa mestria pretensamente
racional.
Abrirei aqui um parêntese, pois não podemos, afinal,
discutir abstraindo aquilo que está se passando na atua-
lidade mundial e que é muito grave. Vemos muito mais
claramente hoje, com o Afeganistão - eu diria, mais
exatamente: as pessoas podem ver; quanto a mim, pre-
tendo que já faz trinta e cinco anos que o vejo -, que a
coexistência e o antagonismo destes dois subsistemas,
cada um pretendendo possuir o monopólio da via pela
qual chegaremos à "mestria racional" do todo, estão em
vias de tocar o ponto onde há o risco de haver efetiva-
mente um domínio totalmente racional do único verda-
deiro mestre e senhor, como diria Hegel, isto é, a morte.
Vocês sabem que a dominação deste imaginário
começa primeiramente mediante a forma da expansão
ilimitada das forças produtivas - da "riqueza", do
"capital". Esta expansão toma-se rapidamente extensão e
desenvolvimento do saber necessário para o aumento da
produção, isto é, da tecnologia e da ciência. Enfim, a ten-
dência no sentido da reorganização e da reconstrução
"racionais" de todas as esferas da vida social - a pro-
dução, a administração, a educação, a cultura, etc...
'I
transforma toda a instituição da sociedade e penetra cada
vez mais no interior de todas as atividades.
Mas vocês sabem também que, apesar de suas preten-
sões, esta instituição da sociedade é dilacerada por uma
multidão de contradições internas, que sua história está
atravessada por conflitos sociais importantes. A nossos
olhos, estes conflitos exprimem essencialmente o fato de
que a sociedade contemporânea está dividida assimétrica
e antagonicamente entre dominantes e dominados e que
esta divisão se traduz, especialmente, pelos fatos da explo-
ração e da opressão. Deste ponto de vista, deveríamos
dizer que de direito a imensa maioria das pessoas que
vivem na sociedade atual deveria opor-se à forma estabe-
lecida da instituição da sociedade. Mas também é difícil
acreditar que, caso isso se desse, poderia esta sociedade
manter-se durante muito tempo ou até mesmo teria
podido manter-se até hoje. Há, pois, uma questão muito
importante que se coloca: como esta sociedade consegue
manter-se e permanecer como um todo quando "deveria"
suscitar a oposição da grande maioria de seus membros?
Há uma resposta que devemos eliminar definitiva-
mente de nossos espíritos e que caracteriza toda a velha
mentalidade de esquerda: a idéia de que o sistema esta-
belecido só se manteria graças à repressão e à manipu-
lação das pessoas, em um sentido exterior e superficial do
termo manipulação.
Esta idéia é totalmente falsa e, o que é ainda mais grave,
ela é perniciosa porque mascara a profundidade do
problema social e político. Se queremos verdadeiramente
lutar contra o sistema e também se queremos ver os pro-
blemas contra os quais se choca hoje, por exemplo, um
movimento como o movimento ecológico, devemos
compreender uma verdade elementar que parecerá muito
desagradável a alguns: o sistema se mantém porque con-
segue criar a adesão daspessoas àquilo que é. Consegue
16 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT
"",,,,,,,.. -------------
DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 17
\
criar, bem ou mal, para a maioria das pessoas e durante a
grande maioria dos momentos de sua vida, sua adesão ao
modo de vida efetivo, instituído, concreto desta socie-
dade. É desta constatação fundamental que devemos
partir se quisermos ter uma atividade que não seja fútil e
vã.
Esta adesão é certamente contraditória: vai junto com
momentós de revolta contra o sistema. Mas é, apesar de
tudo, urnaadesão ~ !}EO é uma sJ!!Yples passividade. Isto
podemos vê-lo facilmente ao nosso redor. E, afinal, se as
pessoas não aderissem efetivamente ao sistema tudo cairia
por terra nas próximas seis horas. Para tomar apenas um
exemplo: esta maravilha de "organização" e de "raciona-
lidade" que é a fábrica capitalista - ou, mais geralmente,
toda empresa capitalista, tanto a Oeste quanto a Leste -
não produziria absolutamente nada, mas se desmoro-
naria sob o peso da absurdidade de sua regulamentação e
das antinomias internas que caracterizam sua pseudo-
"racionalidade", se os trabalhadores não a fizessem fun-
cionar ocasionalmente contra esta regulamentação ~ e
muito além do que explicariam a coerção ou o efeito dos
"estimulantes materiais".
Esta adesão se deve a processos extremamente comple-
xos que não se trata de analisar aqui. Pois estes processos
constituem o que eu chamo de fabricação social do indiví-
duo e dos indivíduos - de nós todos - na e pela socie-
dade capitalista instituída tal como existe.
Eu evocaria simplesmente dois aspectos desta fabri-
cação. Um .dizrespeito à instilação nas pessoas, desde a
'> mais tenra infância, de uma relação à autoridade, de um
certo tipo de relação a um certo tipo de autoridade. E
'j . outro, à instilação nas pessoas de um conjunto de
·f'y';) "necessidades", a cuja "satisfação" estarão atrelados pela
~. vida afora.
?:f'. Primeiro, a autoridade. Quando consideramos a
I
..
sociedade contemporânea e a comparamos àquelas que a
precederam, constatamos uma diferença importante: hoje,
a autoridade se apresenta como dessacralizada, não há
mais reis pela graça de Deus.
Daniel Cohn- Bendit: Você está na Bélgica.
Cornelius Castoriadis: Não esqueço que estou na Bélgica.
Mas não acredito que o rei dos Belgas seja considerado
comorei pela graça de Deus. Penso que isto deve ser um
princípio do direito constitucional belga e que se há um rei
dos Belgas é porque o povo belga decidiu soberanamente
que haveria um rei ~ não? (Risos.)
Pensar-se-ia, pois, que a autoridade hoje está dessacra-
lizada. Mas na realidade não é verdade. O que, outrora,
sacralizava a autoridade era a religião: como dizia São
Paulo na Epístola aos Romanos, "todo poder vem de
Deus". Outra coisa tomou hoje o lugar da religião e de
Deus: algo que não é, para nós, "sagrado" mas que con-
seguiu, bem ou mal, instalar-se socialmente como o equi-
valente prático do sagrado, como uma espécie de subs-
tituto da religião, uma religião chã e achatada. E esta é a
idéia, a representação, a significação imaginária do saber e
da técnica.
Não quero dizer com isto, é claro, que aqueles que exer-
cem o poder "sabem". Mas pretendem saber e é em nome
deste pretenso saber - saber especializado, científico,
técnico - que justificam seu poder aos olhos da popu-
lação. E se podem fazê-lo é porque a população acredita I
nisso, é porque foí preparada para acreditar nisso.
Assim, na França, estamos esmagados por um presi-
dente da República que se pretende especialista da econo-
mia. Este "especialista", quando ainda era ministro das
Finanças, pronunciava discursos na Câmara em que
alinhava durante três horas estatísticas com quatro cifras
18 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDI1
ü ..
f DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 19
decimais. Isto quer dizer que ele deveria ter sido
reprovado no primeiro ano de uma Faculdade de Econo-
mia, pois uma estatística com quatro cifras decimais em
matéria de preço e de produção não tem estritamente
nenhum sentido: no máximo, nestes domínios, podemos
falar em dez por cento aproximadamente. Isso não
impede que o presidente Giscard, que não é economista,
tenha conseguido desenterrar um dinossauro do pretenso
saber econômico, chamado Raymond Barre (risos e
aplausos), que ele batizou como "o melhor economista da
França". Graças ao qual o bordel da economia francesa é
agora muito maior do que era há três anos e também do
que teria sido se o porteiro do prédio tivesse sido presi-
dente do Conselho (risos).
Disto, há uma conclusão prática a tirar. Há um terreno
de luta, especialmente para pessoas como vocês, como
todos nós aqui que nos ocupamos mais ou menos com
:'~. atividades intelectuais e científicas. Trata-se de mostrar,
em primeiro lugar, que o poder na época atual não é o
saber, que não somente ele não sabe tudo, mas mesmo que
sabe muito menos coisas do que sabem as pessoas em
geral, e que para isto há, razões profundas e orgânicas. E,
em segundo lugar, que este "saber" de que se reclama o
poder, mesmo quando existe, tem um caráter bem parti-
cular, parcial e enviesado desde a base.
Mas há também uma questão que não quero calar -
embora não seja uma das questões sobre as quais deve-
ríamos nos estender nesta noite. É que - esquecendo
agora completamente os senhores Giscard, Barre e con-
sortes - há um verdadeiro problema do saber e mesmo
da técnica que nos interpela efetivamente enquanto este
saber e mesmo esta técnica ultrapassam a instituição
presente da sociedade. Mesmo se admitirmos - como eu
o faço - que a orientação, os fins, o modo de transmissão
e a organização interna do saber científico estão anco-
i
~
rados no sistema social atual, ou mais ainda, que lhe são,
em um certo sentido, consubstanciais, mesmo assim é
preciso aceitar que há aí criação de alguma coisa que
ultrapassa certamente a época contemp-orânea. Isso é
verdade também, aliás, para as épocas anteriores da histó-
ria. Para tomar um exemplo fácil, o teorema de Pitágoras
foi descoberto e demonstrado há vinte e cinco séculos em
Samos ou não seionde, pouco importa. Éclaro quefoidesco-
berto em um contexto de maneira nenhuma "neutro", forma-
do por um conjunto de esquemas imaginários indissociável e
profundamente ligadosà concepção gregado mundo, à insti-
tuição imaginária grega do mundo, como toda a geome-
tria grega. Isso não impede que, vinte e cinco séculos
depois, este teorema de Pitágoras, ou alguma coisa que
tem o mesmo nome, não somente continue a "ser verda-
deiro" (podemos prover esta expressão de todas as aspas e
pontos de interrogação que quisermos), mas aparece
como infinitamente mais verdadeiro quanto o próprio
Pitágoras era capaz de pensá-lo, uma vez que o enun-
ciado presente do teorema de Pitágoras, tal como vocês .
poderão encontrá-lo em um tratado contemporâneo de
análise, constitui dele uma imensa generalização. Isso
continua se chamando teorema de Pitágoras, mas se
enuncia: em todo espaço pré-hilbertiano, o quadrado da
norma da soma de dois vetores ortogonais é igual à soma
dos quadrados de suas normas. Ou, para tomar um outro
exemplo: não há sociedade possível sem aritmética - por
mais arcaica, primitiva, selvagem que seja esta sociedade.
Mas onde se detém, então, a aritmética? Isso também faz
parte da questão do saber. Émuito fácilesvaziarestaquestão
dizendo, como um recente microfarsante parisiense, que o
totalitarismo são os sábios no poder: o que evidentemente
não faz mais do que dar créditoe reforçaramistificaçãoideo-
lógica dominante. Como se Stalin, que dirigia as opera-
ções do Exército russo durante a segunda guerra mundial
20 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA
TE
21
debruçado sobre um mapa-múndi, como revelou
Kruchev, fosse um "sábio no poder". Mas é também
muito fácil esvaziar a questão, como se faz freqüente-
mente em nosso meio e por pessoas que nos são próximas,
querendo jogar fora a ciência e a t~cnica enquanto .tais
porque seriam puros produtos do Sistema estabelecido:
desemboca-se, assim, na eliminação da interrogação a
respeito do mundo, de nós mesmos, de nosso saber.
Venho agora à outra dimensão do processo de fabri-
cação social do indivíduo, aquela que diz respeito às
"necessidades". Evidentemente, não existem "necessida-
des naturais" do ser humano em nenhuma definição do
termo "natural" - salvo talvez em uma definição filosó-
fica em que a "natureza" seria algo completamente dife-
rente daquilo que vocês pensam habitualmente sob~e este
termo: uma "natureza" segundo Aristóteles ou Spmoza,
algo como uma norma ao mesmo tempo i~eale real..Alé~l
do fato de que não estamos aqui esta noite para discutir
este tipo de questões filosóficas, esta acepção do termo
"natureza" não nos interessa por uma razão precisa: não
vemos como poderíamos nos colocar de acordo ~ocial­
mente para definir necessidades que correspondenam a
esta tal "natureza".
Não há necessidades naturais. Toda sociedade cria um
conjunto de necessidades para seus membros e lhes ensina
que a vida não vale a pena ser vivida e mesmo não p~de ser
materialmente vivida a não ser que estas necessidades
sejam bem ou mal "satisfeitas". Qual é a especificidade do
capitalismo quanto a isso? Em primeiro lugar, é que o
capitalismo só conseguiu surgir, manter-se, desenvolver-
se, estabilizar-se (apesar de e com as intensas lutas operá-
rias que dilaceraram sua história) colocando no centro de
tudo as necessidades "econômicas". Um muçulmano ou
um hindu deixará de lado o dinheiro durante toda sua
vida para fazer a peregrinação a Meca ou a tal templo;
I
l-
I
t
para ele trata-se de uma "necessidade". Não o é para um
indivíduo fabricado pela cultura capitalista: esta peregri-
nação é uma superstição ou uma fantasia. Mas para este
mesmo indivíduo não é superstição ou fantasia, mas
"necessidade" absoluta, ter um carro ou mudar de carro a
cada três anos ou ter uma televisão a cores desde que
existem tais televisões.
Em segundo lugar, pois, o capitalismo conseguiu criar
uma humanidade para a qual, mais ou menos bem ou
mal, estas "necessidades" são aproximadamente tudo o
que conta na vida. E, em terceiro lugar - e é um dos
pontos que nos separam radicalmente de um ponto de
vista comoaquele que Marx poderia ter da sociedade
capitalista -, estas necessidades que cria, o capitalismo,
bem-ou-mal-e-na-maior-parte-do-tempo, consegue satis-
fazê-las. Como diríamos em inglês: He promises the
goods, and he delivers the goods.* A quinquilharia aí está,
as lojas estão repletas - e basta você trabalhar para poder
comprá-la. Basta ser bem-comportado e trabalhar que
você ganhará mais, subirá, comprará mais e tudo bem. E a
experiência histórica está aí para mostrar que, com
algumas exceções, a coisa funciona: a coisa funciona,
produz, trabalha, compra, consome e volta a funcionar.
Nesta etapa da discussão, a questão não é saber se "cri-
ticamos" este conjunto de necessidades de um ponto de
vista pessoal, de gosto, humano, filosófico, biológico,
médico ou o que quiserem. A questão recai sobre os fatos,
sobre os quais não se deve nutrir ilusões. Falando breve-
mente, esta sociedade funciona porque as pessoas têm que
ter um carro e, em geral, podem tê-lo e podem comprar
gasolina para este carro. Eis por que é preciso comJ?reen-
der que uma das coisas que poderiam pôr abaixo o
sistema social no Ocidente não é a "pauperização", abso-
(*) Como em português. a palavra Ii(!!!d tem em inglêso duplo sentido de-bem" e "rner-
cadoria", A tradução literal seria: "Ele promete os bens e entrega os bens", (N, do T,)
22 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 23
luta ou relativa, mas, por exemplo, o fato de que os gover-
nos não possam mais fornecer gasolina aos automobi-
listas.
É preciso nos compenetrarmos bem daquilo que isso
significa. Quando falamos do problema da energia, do
nuclear, etc., é de fato todo o funcionamento político e
social que está implicado e todo o modo de vida con-
temporâneo. Assim é ao mesmo tempo "objetivamente" e
do ponto de vista das pessoas, e sob este aspecto nossos
críticos do embrutecimento consumista contam pouco.
Podemos facilmente ilustrar a situação, mediante os
futuros ~ e já presentes e passados - discursos eleitorais
do cidadão Marchais, explicando: primo, se não tendes
mais gasolina para rodar é culpa dos trustes, das multina-
cionais e do governo que faz o jogo delas; e, secundo, se o
Partido comunista chegar ao poder, ele vos dará gasolina
porque não mais se submeterá às multinacionais mas
também porque nossa grande aliada, amiga do povo
francês e grande produtora de petróleo, a União Sovié-
tica, nos fornecerá (pouco importa se as coisas começam a
ir mal igualmente lá, também sob este aspecto). Vê-se aí
um roteiro possível, como também existe um roteiro
possível do lado aparentemente oposto ~ digo bem,
aparentemente ~ isto é, do lado de uma demagogia neo-
fascista que poderia se desenvolver a partir da crise de
energia e de suas recaídas de todos os tipos.
A crise de energia não tem sentido como crise e não é
crise a não ser em relação ao modelo presente da socie-
dade. É esta sociedade que tem necessidade, a cada ano,
de 10 por cento de petróleo ou de energia a mais para
poder continuar girando. Isso quer dizer que a crise de
energia é, em um sentido, crise desta sociedade. Assim, ela
contém em germe ~ e aí está uma questão que cabe muito
mais a vocês do que a mim responder ~ a colocação em
causa pelas pessoas do conjunto do sistema; mas talvez
,
t
[-
contenha também em germe a possibilidade de que as pes-
soas sigam no plano político as correntes mais aberrantes,
as mais monstruosas. Pois, tal como é, esta sociedade não
poderia provavelmente continuar se não lhe assegurás-
semos este ramerrão do consumo crescente. Ela poderia se
recolocar em causa, dizendo: o que estamos fazendo é
completamente louco, a maneira segundo a qual vivemos
é absurda. Mas poderia também se agarrar ao modo de
vida atual, dizendo: tal partido tem a solução, ou: basta
expulsar os judeus, os árabes ou sei lá quem, para resolver
nossos problemas.
Tal é a questão que se coloca e que coloco a vocês atual-
mente: em que ponto está a crise do modo de vida capi-
talista para as pessoas? E qual poderia ser uma atividade
política lúcida que acelerasse a tomada de consciência da
absurdidade do sistema e ajudasse as pessoas a tornar
manifestas as críticas ao sistema que, certamente, já se
formam à direita e à esquerda?
Gostaria de abordar agora, em ligação imediata com o
que precede, o movimento ecológico. Parece-me que
podemos observar, na história da sociedade moderna,
uma espécie de evolução do campo sobre o qual recaíram
as colocações em cheque, as contestações, as revoltas, as
revoluções. Parece-me também que esta evolução pode
ser algo esclarecida se nos referimos a estas duas dimen-
sões da instituição da sociedade que eu evocava há pouco:
a instilação nos indivíduos de um esquema de autoridade
e a instilação nos indivíduos de um esquema de necessi-
dades. O movimento operário pôs em cheque, desde o
começo, o conjunto da organização da sociedade, mas de
uma maneira que, retrospectivamente, não pode deixar de
nos aparecer como um pouco abstrata. O que o
movimento operário atacava principalmente era a dimen-
são da autoridade ~ isto é, a dominação que é sua ver-
tente "objetiva". Mesmo sob este aspecto deixava na
/rr!
24 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT '",~
f.!!t FlI. C. ....... O. F.~~
DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 25
•./)
. "s:
I
sombra ~ era quase tatal na época ~ aspectos totalmente
decisivos do problema da autoridade e da dominação, por
conseguinte também dos problemas políticos da recons-
trução de uma sociedade autônoma. Alguns desses aspec-
tos foram postos em questão posteriormente; e princi-
palmente, mais recentemente, pelo movimento das
mulheres e o movimento dos jovens, que atacaram os
esquemas, as figuras e as relações de autoridade tais como
existem em outras esferas da vida social.
O que o movimento ecológico pôs em questão, de seu
lado, foi a outra dimensão: Q esquema e a estrutura das
necessidades, o modo de vida. E isto constitui uma supe-
ração capital daquilo que pode ser visto como o caráter
unilateral dos movimentos anteriores. O que está emjogo
no movimento ecológico é toda a concepção, toda a posi-
ção das relações entre a humanidade e o mundo e, final-
mente, a questão central e eterna: o que é a vida humana?
Vivemos para fazer o quê?
A esta questão já existe uma resposta e nós a conhe-
cemos: é a resposta capitalista. Permitam-me aqui um
parêntese e uma rápida volta para trás. A mais bela e a
mais concisa formulação do espírito do capitalismo que
conheço é o enunciado programático bem conhecido de
Descartes: atingir o saber e a verdade para "nostornar-
mos senhores e possuidores da natureza". É neste enun-
ciado do grande filósofo racionalista que vemos o mais
claramente a ilusão, a loucura, a absurdidade do capita-
lismo (como também de uma certa filosofia e de uma certa
teologia que o precedem). O que é que isto quer dizer,
tomarmo-nos senhores e possuidores da natureza? Obser-
vem também que sobre esta idéia privada de sentido se .
fund~m tanto o capitalismo quanto a obra de Marx e o
marxismo.
Ora, o que aparece, talvez tateando e balbuciando,
através do movimento ecológico é que certamente nós não
.!
queremos ser senhores e possuidores da natureza. Em
primeiro lugar porque compreendemos que isto não quer
dizer nada, que isto não tem sentido ~ a não ser o de
submeter a sociedade a um projeto absurdo e às estruturas
de dominação que o encarnam. E, em seguida, porque
queremos uma outra relação com a natureza e com o
mundo; e isto quer dizer também um outro modo de vida
e outras necessidades.
Mas a questão é: qual modo de vida e quais necessi-
dades? Que queremos nós? E quem, como, a partir de quê,
pode responder a estas questões? Responder, isto é, não
com o saber absoluto, mas com conhecimento de causa e
com lucidez?
A meus olhos, o movimento ecológico apareceu como
um dos movimentos que tendem para a autonomia da
sociedade; e a cadavez que tive que falar dele, oralmente
ou por escrito, eu o incluí na série destes movimentos de
quefalava há pouco. No movimento ecológico trata-se,
em primeiro lugar, da autonomia em relação a um sistema
técnico-produtivo, pretensamente inevitável ou preten-
samente ótimo: o sistema técnico-produtivo que está aí na
sociedade atual. Mas é absolutamente certo que o movi-
mento ecológico, pelas questões que levanta, ultrapassa
de longe esta questão do sistema técnico-produtivo, e
compromete potencialmente todo o problema político e
todo o problema social. Vou me explicar e terminar neste
ponto.
Que o movimento ecológico comprometa todo o
problema político e todo o problema social, podemos
vê-lo imediatamente a partir de uma questão aparente-
mente limitada. Espero que me desculpem se digo coisas
que vocês já devem ter ouvido dezenas de vezes e se o digo
de maneira abrupta. A luta antinuclear: sim, muito bem,
bravo. Mas será que isto quer dizer ao mesmo tempo: luta
antieletricidade? Em caso afirmativo, é preciso então di-
C!J
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26 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 27
zê-lo imediatamente, alto e bom som e claramente. E é
preciso também dizer: nós somos contra a eletricidade e
conhecemos todas as implicações daquilo que dizemos:
nada de sonorização em uma sala como esta - mas isso
já está feito (risos); nada de telefone; nada de blocos ope-
ratórios em cirurgia (afinal, Illich afirma que a medicina
não faz mais do que aumentar a taxa de mortalidade);
nada de rádios, livres ou não; nada de gravadores; nada de
discos de Keith Jarret, como eu ouvia há pouco em vosso
clube etc. É preciso levar em conta que não há prática-
mente nenhum objeto da vida moderna que de um modo
ou de outro, direta ou indiretamente, não implique a ele-
tficidade. Essa rejeição total é talvez aceitável - mas é
-preciso sabê-lo e é preciso dizê-lo.
Ou então, a única coisa lógica seria propor outras
fontes de energia, afirmar e mostrar que não é necessário
privar-se da eletricidade se excluímos as centrais elétricas,
com a condição de reformar o conjunto do sistema de
produção de energia de tal maneira que somente entrem
em jogo energias renováveis. Como estou certo de que
vocês conhecem muito mais coisas do que eu sobre as
energias renováveis, não vale a pena eu me estender sobre
esta questão considerada em si mesma. Mas a questão das
energias renováveis ultrapassa de longe a questão das
energias renováveis. Primeiramente, implica a totalidade
da produção; e depois (ou antes, ao mesmo tempo)
implica a totalidade da organização social. A única tenta-
tiva que conheço pessoalmente de levar em conta seria-
mente o conjunto da questão é o projeto Alter no qual
trabalha na França o matemático Philipe Courrege com
um minúsculo grupo de colaboradores benévolos. Digo
seriamente porque Courrege viu de imediato que não se
trata somente de assegurar a produção de energias reno-
váveis, que isto implicava a totalidade da produção e, por
conseguinte, ele se dedicou à construção de um pequeno
"sistema" completo (ou antes, de uma grande gama de tais
sistemas, dependendo cada qual dos objetivos finais pro-
postos), de uma matriz fechada que cobre a totalidade das
"entradas" e das "saídas" de uma pequena região mais ou
menos autárquica. Mas digo seriamente, também, porque
Courrege viu igualmente - e ele o diz - que aquilo que no
plano "técnico" e "econômico" é uma solução se não sim-
ples, mas pelo menos factível, levanta problemas políticos
e sociais (ele diz: societais) imensos: a definição dos obje-
tivos finais da produção, a aceitação pela comunidade de
um estado estacionário, a gestão do conjunto, etc. Aqui
posso dizer que me sinto em terreno familiar: não que eu
possua, evidentemente, a solução, mas porque são ques-
tões sobre as quais reflito e trabalho há trinta anos e que se
tornam ao mesmo tempo mais precisas e mais claras
quando damos um embasamento concreto à idéia de
unidades sociais autogovernadas e vivendo em boa parte
com base em recursos locais renováveis. Mas o que fica
disso é o que mostra, "negativamente" se assim posso di-
zer, o projeto Alter: se quisermos tocar no problema da
energia, precisamos tocar em tudo. Ora, tudo isso não é
nem teoria nem literatura. Sabe-se desde agora que os go-
vernos dizem que sem centrais nucleares não haverá mais
eletricidade em alguns anos; e, certamente, se nada mais se
passar, e, como desde 1973, estes governos nada mais
fazem do que tagarelar sobre o problema da energia sem
nada fazer de real, acabará por acontecer alguma coisa
como a ruptura de carga da rede da França no ano pas-
sado. . . ,
Agora, de um outro lado, os projetos concernentes as
energias renováveis são em parte recuperáveis para fins
que não poderíamos nem mesmo chamar de reformistas:
para fins de pura e simples calafetagem do sistema exis-
tente. E, para além desta questão de recuperação, isto con-
29DA ECOLOGIA A AUTONOMIA
de trabalho. E daí? Será que a partir desse argumento pe-
diríamos a supressão da Previdência social?
..--
Terminarei abordando o problema que me parece o
mais profundo, o mais critico, crítico no sentido inicial da
palavra crise: momento e processo de decisão. Falar de
uma sociedade autônoma, da autonomia da sociedade
não somente em relação a tal camada dominante particu-
lar, mas em relação a sua própria instituição, necessidades
, . . - 'tecmcas, etc., pressupoe ao mesmo tempo a capacida-
de e a vontade dos humanos de se autogovernar, no sen-
tido mais forte desta palavra. Durante muito tempo, de
fato desde o começo do período em que eu fazia, como
meus camaradas, Socialismo ou Barbárie, era essencial-
n!ente nest~s .t~m10s que se formulava para mim a ques-
tao da possibilidade de uma transformação radical, revo-
lucionária, da sociedade: será que os humanos têm a ca-l pacidade e principalmente a vontade de se autogovernar
~ (digo principalmente a vontade, pois a meus olhos a "ca-l~ pacidade" não constitui verdadeiramente um problema)?I Será que querem verdadeiramente ser senhores de si1 n?esmo~? Pois, afinal, se o quisessem, nada poderia impe-
-I dl-los: Isto, sabemos desde Rosa Luxernburg, desde LaL Boétie, até mesmo desde os gregos. Mas, pouco a pouco,
,c- 0 ~m outro aspecto desta questão - da questão da possibi-
, .19<· hdade de uma transformação radical da sociedade - co-
I rneçou a me aparecer e a me preocupar cada vez mais. É
que uma outra sociedade, uma sociedade autônoma não
f i?1~lica somente a autogestão, o autogoverno, a aut~-ins­
tituição. Ela implica uma outra cultura) no sentido mais
profundo deste termo. Implica uri1õúiro modo de vida
ou~ras necessidades, outras orientações da vida humana:
POl.S ~ocês estarão de acordo comigo para dizer que um
socialismo dos engarrafamentos é um absurdo nos seus
próprios termos e que a solução socialista deste problema
_-.J~~.---....._--...--,.J-------
CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT28
duz a uma outra interrogação: será que um "reformismo"
antinuclear, energético, ecológico tem um sentido e pode
ser lucidamente apoiado? Entendo aqui por "reformismo"
o apoio concedido a medidas parciais que consideramos
válidas e tendo um sentido (isto é, que não são anuladas
pelo fato de se inserirem em um sistema que, nele mesmo,
não é modificado). Por exemplo, as leis contra a poluição
dos cursos de água -leis que deixam no lugar todo o res-
tante: as multinacionais, o Estado, o partido comunista, o
rei, etc. Uma certa posição tradicional respondia a esta
questão pela negativa. Dizia-se: combatemos pela Re-
volução e um dos subprodutos da Revolução será a não
poluição dos rios (como também a emancipação das
mulheres, a reforma da educação, etc.). Sabemos que esta
resposta é absurda e mistificadora, e felizmente as mulhe-
res ou os estudantes deixaram de esperar a Revolução
paraexigir e obter mudanças efetivas na sua condição.
Penso que a mesma coisa vale para a luta ecológica: há, por
exemplo, e entre mil outras, uma grave questão da polui-
ção dos cursos de água, e a luta contra este estado de
coisas tem plenamente um sentido com a condição de que
saibamos o que fazemos, que sejamos lúcidos. Isto quer
dizer que sabemos que atualmente lutamos por tal obje-
tivo parcial, porque tem um certo valor, assim como
sabemos também que aquilo cuja introdução ou aplica-
ção reivindicamos, enquanto existir o sistema atual, terá
necessariamente uma significação ambígua e até mesmo
poderá ser desviado de sua finalidade inicial. Vocês sa-
bem que a Previdência social foi, em muitos países, uma
conquista arrancada graças a intensa luta pela classe ope-
rária. Mas sabem também que há marxistas que explicam
- e, afinal, isso não é totalmente falso de um certo ponto
de vista - que a Previdência social faz funcionar o siste-
ma capitalista porque serve para a manutenção da força
\li.(
'v
não seria eliminar os engarrafamentos quadruplicando a
largura da avenida dos Campos Elíseos. Que são então
estas cidades? O que é que as pessoas que as lotam têm
verdadeiramente vontade de fazer? Como será possível
que elas "prefiram" ter seus carros e passar horas de cada
dia nos engarrafamentos a outra coisa qualquer?
Colocar o problema de uma nova sociedade é colocar o
problema de l!!1lli__cr!ªçãQ cultural extraordinária. E a
questão que se coloca e que coloco para vocês é: será que
desta criação cultural temos, em nossa frente, sinais pre-
cursores e prenunciadores? Nós que rejeitamos, ao menos
em palavras, o modo de vida capitalista e o que ele impli-
ca - e ele implica tudo, absolutamente tudo o que existe
hoje - será que vemos ao nosso redor nascer um outro
modo de vida que prenuncia, prefigura algo de novo, algo
que daria um conteúdo substantivo à idéia de autogestão,
de autogoverno, de autonomia, de auto-instituição? Por
outras palavras: a idéia de autogoverno pode tomar sua
plena força, atingir seu pleno apelo, se não for também le-
vada por outros desejos, por outras "necessidades" que
não podem ser satisfeitas no sistema social contemporâ-
neo?
Nós, provavelmente, que aqui estamos, podemos sem
dúvida pensar em tais necessidades, nós as experimenta-
mos e talvez para nós contem muito. Por exemplo, sei lá,
poder ir quando quiser perambular por dois dias no mato.
Mas a questão não está evidentemente aí; não se trata de
nossos desejos e necessidades próprias, mas daqueles da
grande massa de pessoas. E a gente se pergunta: será que
algo deste gênero, a rejeição das necessidades nutridas
atualmente pelo sistema e a aparição de outros pontos de
vista, começa a despontar, a aparecer como importante
para as pessoas que vivem hoje?
E, enfim: será que aqui, neste ponto e nesta linha, não
encontramos efetivamente o limite do pensamento e da
ação políticas? Pois é claro, como todo pensamento e toda
ação, este também deve ter um limite - e deve se esforçar
por reconhecê-lo. Será que este limite não é, neste ponto, o
seguinte: que nem nós nem ninguém é capaz de decidir
sobre um modo de vida para os outros? Dizemos, podemos
dizer, temos o direito de dizer que somos contra o modo
de vida contemporâneo - o que, ainda uma vez, implica
aproximadamente tudo o que existe e não somente a
construção de tal central nuclear que é apenas uma impli-
cação de enésima ordem. Mas dizer que somos contra tal
ou qual modo de vida introduz de contrabando um pro-
blema formidável: que podemos chamar de o problema
do direito no sentido mais geral, não simplesmente do di-
reito formal, mas do direito como conteúdo. O que acon-
tece se os outros continuam a querer este outro modo de
vida? Eu tomaria de propósito um exemplo extremo e
absurdo porque está próximo do ponto de partida de nossa
reunião. Suponham que haja pessoas que não somente
queiram a eletricidade, mas queiram especificamente a
eletricidade de origem nuclear. Vocês lhes oferecem toda a
eletricidade do mundo, elas não querem: querem que seja
nuclear. Todos os gostos existem na natureza. Que é que
vocês dirão em tal caso, que é que diremos? Diremos, su-
punho: há uma decisão majoritária (pelo menos espera-
mos que o seja) que proíbe às pessoas de satisfazer seu goste
de se abastecer com eletricidade especificamente nuclear.
Exemplo, ainda uma vez, absurdo - e fácil de resolver.
Mas vocês poderão facilmente imaginar milhares de
outros nem absurdo nem fáceis de resolver. Pois o que é
posto no modo de vida é.afinal de contas, a seguinte ques-
tão: até onde pode ir o "direito" (a possibilidade efetiva,
.Iegal e coletivamente assegurada) de cada indivíduo, de
cada grupo, de cada comuna, de cada nação, de agircomo
bem entenda a partir do momento em que sabemos - nós
o sabíamos desde sempre, mas a ecologia nos relembra
30 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT
1
DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 31
33DA ECOLOGIA A AUTONOMIA
dar seu pleno conteúdo ao que dizemos quanto ao fundo
a s~~er que uma política revolucionária hoje é em pri-
melro lugar e antes de tudo o reconhecimento da
au~on.omia .das pessoas, isto é, o reconhecimento da
propna sociedade como fonte última de criação institu-
cional. (Aplausos.)
Daniel Conh-!3endit: Poucas pessoas compreenderão
~or9ue :sto~ Incomodado por falar depois de Casto-
riadis, Nao e porque o conheço muito bem; é a primeira
yez que. nos encontramos. Mas, se há pessoas que me
mfl~~nclaram e me fizeram evitar não poucas besteiras
políticas antes que.co~leçassea fazer política, foram pes-
soas como Castoriadis e este grupo que ele mencionou
So~ialismo"" Barbárie, e também meu irmão que liaest~
revista e fazia, por tabela, parte do seu grupo. E, no
mom~nto, encontro-me um pouco na situação de um
marxista que, tendo passado anos a ler Marx certa noite
tem ~ue.discutir com ele. Asseguro a vocês qu~ não é fácil. .
Nao e porqu~ Castoriadis tornou-se agora psicanalista
que vou fa~er diante de vocês uma psicanálise selvagem.
Mas devo dl~er, apesar de tudo, que vivemos numa época
em que mars ou menos só os renegados têm direito à
palavra, em que basta ter sido um perfeito stalinista
Garaudy ?u outro qualquer, para ter direito aos "midia":
E devo dizer que há pessoas como Castoriadis que nãofi~eram e~te percurso e que não são tão jovens quanto nós,
nos q~e. tivemos sorte. Eles fizeram esta experiência e eles
a e~phcI~aram: o~ não entraram no partido comunista ou
entao sanam muito cedo e disseram coisas importantes. E
me pergunto se os renegados de hoje que têm direito a
todos os" idia" - .nu la nao tenam, quanto mais não fosse para
mar~ar presença, uma solução: não certamente ficar no
partido comunista, mas fechar a boca durante dois ou três
ano~ apenas para dizer: "Sim, sim, sim, de acordo é
preCISO que eu reflita um pouco". . '
\
CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT32
com força - que estamos embarcados na mesma canoa
planetária e que o que cada um faz pode repercutir sobre
todos? A questão do autogoverno, da autonomia da so-
ciedade é também a questão da autolimitação da
sociedade. Autolimitação que tem duas vertentes: a limi-
tação pela sociedade do que ela considera como os dese-
jos, tendências, atos etc., inaceitáveis por tal ou qual parte
de seus membros, mas também autolimitação da própria
sociedade na regulamentação, na regulação, na legislação
que exerce sobre seus membros. O problema positivo e
substantivo do direito é poder conceber uma sociedade
que está fundada sobre regras universais substantivas (a
interdição do assassinato não é uma regra "formal") e ao
mesmo tempo é compatível com a maior diversidade pos-
sível de criação cultural e pois também de modos de vida e
de sistemas de necessidades (não falo de folclore para tu-
ristas). E esta síntese, esta conciliação não podemos ti-
rá-la de nossa cabeça. E se a tirássemos não adiantaria
para nada.Ela sairáda própria sociedade ou não sairá.
Reconhecer este limite para o pensamento e para a ação
políticas, é proibir-se de refazer o trabalho dos filósofos
políticos do passado, substituindo-se à sociedade e deci-
dindo, como Platão e mesmo Aristóteles, que tal gama
musical é boa para a educação dos jovens, enquanto uma
outra qualquer é má e deve pois ser proibida na cidade.
Isso não implica de forma nenhuma que renunciamos a
nosso próprio pensamento, a nossa própria ação, a nosso
ponto de vista, nem que aceitemos cega e religiosamente
tudo o que a sociedade e a história possam produzir. E,
afinal, um ponto de vista abstrato de filósofo que leva
Marx a decidir (pois é ele que o decide) que o que a
história decidirá ou já decidiu é bom. (A história quase
decidiu pelo Gulag.) Mantemos nossa responsabilidade,
nosso julgamento, nosso pensamento e nossa ação, mas
reconhecemos também o limite. E reconhecer este limite é
Acredito que na exposição que Castoriadis fez nesta
noite materializa-se toda a experiência de um pensamento
que, justamente, ousa e ousou, para nós e, pois, para mim,
pensar o problema fundamental da revolução. Pois o
assunto desta noite é, banalmente: luta anti nuclear,
ecologia e política; mas nisso aí há: "E então, compa-
nheiros? A revolução, sim ou não? Isso quer dizer alguma
coisa ou não? Ou a gente vira moralista tipo 'Nova
filosofia' ou tipo não sei que lá, tipo 'L'Express' ou
qualquer outro? "E, afinal de contas, porque os russos
chegam - não sei onde, mas, enfim, eles estão em
algum lugar -, chega-se a uma posição conhecida na
história que tem um nome: a defesa do Ocidente. E isso é
preciso dizê-lo e eu o digo porque estou profundamente
tocado pelo fato de que uma grande parte de minha
geração, desta famosa "geração sessenta e oito", virou a
casaca. E se temos hoje um debate político não é para dizer:
viro a casaca, nem para dizer: não fizemos erros. É para
compreender esta questão fundamental que é: se nós
sentimos como um desejo e como uma necessidade essa
mudança revolucionária, por que tantas pessoas não o
sentem mais como um desejo e como uma necessidade?
Questão que não é fácil; e há aqueles que não puderam
deixar de pensar assim e que ficaram loucos, realmente.
Acredito tam bém que hoje, quando pensamos o pro-
jeto revolucionário, é mais difícil do que há dez ou quinze
anos. Há dez ou quinze anos partíamos alegremente em
conquista do mundo repetindo uma frase que vocês
conhecem. Castoriadis cita sempre os velhos filósofos. Eu
cito uma frase muito mais banal; a gente dizia: "Do pas-
sado, façamos tábula rasa!". Havia algumas notas
musicais no fundo e era muito fácil... Tagadd, tagadá,
tagadá, a gente avançava.
Não era totalmente falso, não quero negá-lo. Mas hoje,
quando penso nos meus primeiros passos políticos digo a
miC? ~le~mo que era muito simples. Eu fazia marchas
annatôrmcas. Mas o que é que a gente gritava durante
estas marchas? A gente gritava: "Abaixo a bomba
~tômica'~~qu':,nto a i~so todo mundo continua de acordo),
Pela U.tIl1,zaçao pacífica do nuclear" (riso geral na sala).
M~s.' SIm; E, a partir daí, desenvolvíamos toda uma
anahse. Tm~am~s, afora ISSO, considerações, banalidades
de base muito Simples: a sociedade futura, tal como a
querem<:s, serão .os conselhos operários, será pois a
auto~est~o d~ ~ocIedade por si n~esma. Era simples, era
claro. Nao dizíamos - eramos mgênuos, mas também
?ão tanto - não dizíamos, pois: "É a repressão que
Impede as .massas de se autogerirem, as massas o
querem"; dizíamos: "A vida é muito complicada há
momentos históricos em que se produz uma ruptura,' em
que os ,ser~s h.uma~os ~es~obrem sua capacidade de gerir
sua propna VIda.... Nos líamos Socialismo ou Barbárie.
colhl~r:tl0S ~ossos exemplos na história: os conselhos
operanos hungaros, os conselhos operários alemães os
c~ns~l~os operários não sei o quê... Sempre houve' na
hIstona exemplos de ruptura. E depois houve, de
qua,~quer modo, os nossos próprios "conselhos operá-
nos , nossa ruptura, que vivemos e que era esse famoso
Sessenta e Oito. Este Sessenta e Oito em que efetiva-
m~nte, toda a sociedade se colocou questões fu~damen­
tais.
. Acontece apenas que percebemos, ao mesmo tempo, ahIst~na avançando, que nenhuma sociedade, nenhum
movimenn, estivera, afinal de contas, à altura de nossos
desejOS e de,nossas necessidades. Então, de duas uma: ou
nossos desejos e nossas necessidades são falsos ou há aí
um problema. Este problema não sei como resolvê-lo eis
por q~e q"uero discuti-lo. Mas se há este problema é pois
que ha ?ao somente descontinuidade, mas ritmos total-
mente dIferentes em uma mesma sociedade:--~
35DA ECOLOGIA A AUTONOMIA
CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT34
o nuclear - acredito que isso já foi muito bem dito
aqui e não voltarei a insistir nisso -, o problema do
nuclear em si, da energia, me interessa pouco ou nem um
pouco ou totalmente. Começo a ficar cheio dos debates
em que o pessoal quer demonstrar que poderíamos dispor
da mesma quantidade de energia utilizando o solar.
Acredito que a este respeito o Departamento de Defesa
dos Estados Unidos fechou o bico de toda uma fração do
movimento antinuclear ao dizer: "É verdade, é preciso que
nos perguntemos se não poderíamos, no deserto onde há
bases militares norte-americanas: fornecer a estas bases
eletricidade a partir do sol". Por conseguinte: foguetes
atômicos de um lado e de outro toda a base militar abas-
tecida em eletricidade solar. Por conseguinte, o solar em si
não é uma resposta a nada, e aliás os maiores investi-
mentos neste domínio neste momento são feitos pelas
multinacionais que compreenderam que há aí, para o
futuro, possibilidades enormes. Pode-se efetivamente,
sem mudar de tipo de sociedade, esquentar pela eletri-
cidade solar quase todas as casas, em quase todas as
regiões. A ciência avançando pouco a pouco, não há aí
problema insuperável.
Portanto, é evidente que o problema é 9_PL()1Jlefl}a do
modo de vida. E este problema é preciso colocá-lo politi-
cãiiiente.-Nãü-se trata apenas de dizer: "Eu quero viver
minha vida em algum lugar no meu cantinho". É possível
fazê-lo, não critico os que o fazem. Pois compreendo
muito bem também que não se pode lutar indefinida-
mente sem querer, num momento ou noutro, realizar sua
própria experiência à parte, assim como quem não quer
nada, para respirar um pouco ou porque não se pode fazer
de outra maneira. Mas não é possível acreditar que isso
pode mudar alguma coisa. O sistema capitalista pode
integrar tudo. Nos Estados Unidos integrou alternativas
de maneira fantástica. Existe nos Estados Unidos uma
sociedade paralela onde se pode viver sem dar de cara um
minuto sequer durante vinte e quatro horas nem com .o
horrendo Carter, nem com a horrenda polícia, nem com o
nuclear; vive-se no seu mundo próprio. E isso não muda
nada do restante.
O problema político é o seguinte: como fazer de nossa
concepção, caso tenhamos uma, de nosso modo de vida,
um debate que se coloque no terreno público; isto é, como
confrontar, nesta situação de ruptura, as pessoas com este
outro modo de vida? Tradicionalmente, falava-se de uma
outra maneira. Por exemplo, no marxismo-leninismo o
mais simples, dizia-se: as pessoas não têm consciência do
caminho que é preciso tomar; nós que temos esta cons-
ciência devemos, organizar-nos para fazer propaganda,
~tc. ~~s, para.nos, co~oca-se a este respeito um problema
ideológico. POIS, depois de todas as experiências que fize-
mos ---'-- quer s~jam os movimentos subjetivos, os movi-
mentos culturais, o movimento das mulheres, o movi-
mento dos homossexuais, o movimento dos jovens, dos
/ garotos, etc. -, nós sempre nos apercebemos, a partir de
. um certo momento, que as estruturas que criáramos que-
brar~m a cara. Isto é, que não há e que não temos pers-
pectrva. Descrevo tudo ISSO um pouco rapidamente, mas
?eJato o que me trabalha neste momento é a seguinte
idéia: "PorDeus do céu, hájáquinzeanos nós fazemos eu
faço política ~om a certeza ou esta esperança de que' há
uma POSSIbIlIdade de transformação da sociedade na
q~a.l v~;o. E ao mes:no tempo, paralelamente, tenhod~vIdas . E quando digo que tenho dúvidas não é para~,Izer: estou seguro de que as dúvidas, no final das contas,
em fundamento, mas não ouso confessá-lo a mim
mesmo' N- -, . .
. ao, nao e ISSO. MUltas vezes também politica-
mente t . , .
, ernos a tmpressão de ter razão estamos segurosA este . '.'f. ,. respeito, o nuclear é um sintoma absolutamente
antastICO. Não sei se isso acontece a vocês com freqüên-
36 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 37
38 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA
•
39
cia, mas eu me digo constantemente que nossa argumen-
tação neste plano é sem falhas. Por exemplo, sobre o pro-
blema que levanta Castoriadis: será que aluta contra o
nuclear significa que não queren:Wsdetricidade1 lSão, é
claro; ela significa que podemos encontrar outra coisa.
Mas quando dizemos isso, dizemos também: efetiva-
mente, toda sociedade neste momento está organizada de
tal maneira que tem necessidade do nuclear ou de um
substituto ao nuclear; portanto, se um Harrisburg
explodir amanhã em algum lugar, o capitalismo encon-
trará um substituto. Porque o capitalismo sempre
mostrou que tem uma coisa que em qualquer caso elesabe
defender, ou seja, sua própria subsistência. Portanto, se
ele perceber - como já percebeu em outras situações his-
tóricas - que está em um caminho errado tecnologica-
mente, transformar-se-á. É por isso que não acredito que a
luta antínuclear devesse derivar na direção de velhos
devaneios trotskistas. Não teria sentido formular um
"programa de transição" antinuclear, afirmando: isto, o
sistema não poderá integrá-lo, e como as massas têm
necessidade de um programa concreto, elas seguirão a
linha deste programa concreto e assim o sistema encon-
trar-se-á, automaticamente, posto em questão. A questão
é muito mais complicada do que isso.
Lembro-me a este respeito que neste verão encontrei
por acaso numa cidadezinha corsa (verdadeiramente por
acaso, que não venham me dizer: ah! eis aí as tuas freqüen-
tações), numa praia, Laurent Fabius, um dos dirigentes
do partido socialista francês, que tem a minha idade.
Começamos a discutir e estava fantástico: creio que então
comprendi de repente alguma coisa. Discutíamos sobre a
sociedade, sobre o tipo de sociedade que queremos e no
fim eu disse a ele: "Bem, o que é que vocês querem? Vocês
querem um pouco mais de carros? Querem Renault um
pouco melhor ou o quê? Qual é o projeto de vocês'!". Ele
me disse: "Dany, isso tem uma importância secundária".
"Ahl, eu disse, não diga!" Ele me disse: "Você compreen-
de, todo o problema político é o seguinte: há em nossa
sociedade desigualdades". Eu disse: "É verdade!" (riso
geral na sala). Ele continua: "Tudo o que é preciso fazer é
dar a impressão, não somente a impressão, mas ter um
programa para superar estas desigualdades. Dando
assim a esperança de superar as desigualdades, chegare-
mos ao poder e, uma vez no poder, .. colocaremos o
problema da sociedade". A V~}.!:l_'!-"hi~tórià': tomamos o
poder e en~ seguida diremos às pessoas o que é precisô
fazer. E creio que todas as organizações políticas têm este
sonho. Elas sabem muito bem, como disse Castoriadis
que o capitalismo fez a conquista das cabeças das pessoas
e que nenh~ma estratégia até o momento chegou a refazer
esta conquista, a retomar, a liberar as cabeças. Então
tenta-se fazer a conquista da instituição que domina estas
cabeças para, utilizando a mesma estrutura contínuar.
Ora, há mil exemplos, de Portugal até não sei onde, que
most~am que este método não funciona. É aberrante
a~redltar que um país possa passar em três semanas de
cinqüenta anos de fascismo para o socialismo autogerido
ou para algo ?e análogo. Isso quer dizer que se pretende
que em sua Vida as pessoas não sentem nada não vivem
nada, não compreendem nada. '
Há umexemplo histórico recente que deveria fazer-nos
compreender a_necessidade de uma reflexão deste tipo, é o
exemplo do Ira. Todos os estrategistas da esquerda e da
~xtre~a-:esquerda nos disseram depois da derrota do
m~penahsmo no Vietnã: o imperialismo reestruturou-se
cnan~o aquilo que chamamos de Trilateral. Vocêsconhe-
ce'-:l1 ISSO, suponho. E esta Trilateral domina o mundo O
Ira o Xá er d '1 desta Tri ., a um os pr ares esta Tnlateral; e um velhobarbud . . A'
.. o, com rntrncassetes, pos abaixo toda a estratégia
da Tnlateral. Portanto, há efetivamente momentos histó-
I. - Referência a Maio de 68: a Brecha. de Edgard Morin, Claude Lefort e Castoriadis
(Edições Fayard, Paris. junho de 1968).O título "A Brecha" foi proposto por Claude
Lefort. (Nota de Castoriadis.)
ricos em que a revolução é possível porque aqueles que
estão no poder e o próprio sistema social são incapazes
por razões históricas de responder às necessidades das
pessoas - necessidades que não são somente necessi-
dades materiais, mas que estão cravadas na cultura e na
vida das pessoas. Então o poder mais fantástico se esboroa
como um castelo de cartas. E aqui não falo de minha
atitude em relação ao Islã, isso não me interessa neste
nível. O que me interessa é que há aí um processo revolu-
cionário - se chamamos revolução uma mudança radical
do poder sem que haja, não diria um tiro, mas sem que
haja tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno. Houve
efetivamente no Irã massas de pessoas que destruíram um
poder sem tomá-lo - o que coloca por outro lado o pro-
blema daqueles que o tomam.
Se quisermos hoje medir a dimensão de nossa questão
sobre á Revolução, veremos que se trata, grosso modo, do
seguinte: estar confrontado com uma sociedade auto-
satisfeita e não autogerida que nos aparece como um
muro contra o qual vamos, com uma disposição
fantástica, quebrar nossa cara por ondas históricas suces-
sivas sem ser capazes de tirar daí as lições. Para sair daí é
preciso resolver esta grande questão: como ser capazes de
fazer política - isto é, organizar-se, tentar refletir, tentar
desestabilizar o sistema social, criando uma brecha -
para retomar uma das expressões que devo ainda a
Castoriadis e Lefort I - na qual se precipitam um monte
de coisas e um monte de pessoas. Portanto, formular um
projeto revolucionário, um projeto político que é no
começo minoritário mas a partir do qual podemos a
qualquer momento explicitar o que faríamos se fôssemos
majoritários.
..
41
----"'--------
DA ECOLOGIA A AUTONOMIA
Por que as pessoas aceitam este sistema social tal como
existe? Nós sentimos esta sociedade como não sendo livre.
Vivemos com necessidades que não podemos satisfazer
nesta sociedade. Por exemplo, não temos nenhuma
vontade de trabalhar em uma fábrica, ou em uma escola
ou onde quer que seja durante quarenta ou cinqüenta
horas por semana. Se há os que querem, é problema deles;
mas nós temos uma concepção da vida segundo a qual
devemos decerto fazer um trabalho útil durante um certo
tempo, mas o essencial do trabalho nós o vemos corno
criação, que ultrapassa de longe o que podemos fazer
nesta sociedade onde somos obrigados á trabalhar perpe-
tuamente apenas para ganhar a vida.
Ora, se as pessoas aceitam o sistema social tal como é,
eu creio - é um problema muito difícil e é necessário ser
prudente neste ponto - que é sobretudo porque lhes apa-
rece como sendo, dentre todos os sistemas que se lhe
propõem a nível mundial, talvez o mais livre. E é esta uma
das razões pelas quais não saberíamos jamais ser antico-
munistas em demasia. Pois uma das motivações mais
poderosas que fazem com que as pessoas em nossas socie-
dades não queiram mudar é fornecida pela existência de
um outro sistema pelo qual não queiram trocar seu modo
de vida. E isso é uma experiência que não está nem mesmo
a nível consciente. Aqueles que não vêem esteproblema
podem ir à Alemanha onde é efetivamente muito claro: há
duas Alemanhas e é possível visitar Berlim Oriental para
ver o que é o socialismo real.
Mas se olharmos mais profundamente, apercebemo-
nos. de que a sociedade capitalista nela mesma é uma
sociedade "socialista". Tomemos os Estados Unidos: há
duzentos milhões de pessoas, e cento e trinta milhões de
pessoas que grosso modo ganham a mesma coisa, comem
a mesma coisa, olham os mesmos programas de televisão,
fazem amor da mesma maneira, têm os mesmos carros,
s
I
r
CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT40
fazem sei lá o que da mesma maneira, se enchem da
mesma maneira, têm obesidade da mesma maneira ~ não
sabem o que fazer de sua vida da mesma maneira. E, em
um certo sentido, o "igualitarismo" - e o sonho das socie-
dades "socialistas" é criar este "igualitarismo'tO capita-
lismo e as sociedades ditas "socialistas" têm o mesmo
medo: o medo da diferença, o medo do indivíduó.J
Politicamente, deveríamos ser capazes, em um movi-
mento não simplesmente antinuclear mas ecológico, de
colocar todos os problemas e colocá-los de maneira sim-
ples, aceitando, ao mesmo tempo: suas contradições. ,~m
movimento, por exemplo, que dIZ: fazemos uma cntica
radical da sociedade tal como existe, não queremos viver
nas famílias tais como as que conhecemos, à maneira de
nossos pais ou outras pessoas. Criamos comunidade~.
Mas ao mesmo tempo sabemos que em nossas comum-
dades sentimos necessidades de restituição da família.
Quero dizer: deveríamos ser capazes de colocar nossas
necessidades e suas próprias contradições, que são
também nossas necessidades. É isso que chamo um movi-
mento democrático: um movimento capaz de mostrar que
suas críticas da sociedade e as necessidades que valoriza
não querem dizer que não compreenda as contradições e a
existência de outras necessidades. Pois cada qual só tem
uma vida.
Volto a minha questão: por que as pessoas aceitam o
sistema? Se discutimos com as pessoas em um engarrafa-
mento, ninguém vai nos dizer: "É meu sonho, todas as
noites, os engarrafamentos. Sem engarrafamentos eu
seria verdadeiramente infeliz". Na realidade, o que eles
pensam é: não há alternativa; e eu pago o engarrafa-
mento para ter quatro semanas de férias. A gente fica com
quatro semanas de férias, que são um sinal de liberdade; e
também não é isso. Mas é difícil organizar sua vida de
outra maneira quando não há efetivamente movimento
social propondo uma alternativa. E é aí que tudo parece
morder a própria cauda. Não há movimento que permita
às incertezas dos indivíduos se resolverem.
Mas em uma situação de ruptura social, como Maio de
68, ou então as grandes manifestações anti nucleares que
nos foi possível viver na Alemanha, apercebemo-nos de
repente de que essas incertezas efetivamente existem.
Exemplo: Gorleben, na Alemanha, onde devia ser cons-
truída a grande usina de tratamento dos lixos nucleares, é
um recanto verdadeiramente "católico" (calho), que
votava sempre 70 por cento pelos democrata-cristãos.
Estas pessoas se mobilizaram contra esta usina por razões
freqüentemente absurdas: "Sob Hitler nunca teríamos
tido centrais nucleares" (risos na safa). O que quero dizer é
que não é assim tão simples. E, quando a gente discute
com os camponeses, constatamos que essas pessoas
descobrem os cabeludos, as comunidades e de repente
dizem com seus botões: "Mas o que é que está havendo?
Eu estou contra aqueles pelos quais votei e me vejo ao
lado dos cabeludos que sempre xinguei". Eles se colocam
questões. Aí aparece, efetivamente, a possibilidade de
ultrapassar alguma coisa. Mas eu acredito que nenhum
movimento é ainda capaz neste momento - nem nós,
nem o camponês - de aceitar esta diferença enquanto tal
e principalmente deixá-la caminhar. Todo movimento
político aceita como ponto de partida a diferença mas
para depois suplantá-la - é o que se costuma chamar,
politicamente, de "dialética". Penso que devemos deixar
existir estas diferenças antes de suplantá-las, dar-lhes a
possibilidade de se exprimir para que uma subjetividade
política possa ser encontrada. As alternativas políticas tais
como as construímos, o movimento ecológico, por exem-
plo, determinam os limites do campo de nossa utopia.
determinam o quadro no qual nossa utopia tenta se
exprimir. Mas ao mesmo tempo, na confrontação política
43DA ECOLOGIA A AUTONOMIACORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT42
tal como ocorre hoje, é preciso ser muito prudente antes
de rotular alguém de progressista ou conservador, reacio-
nário, reformista ou revolucionário.
O movimento antinuclear é muito complexo deste
ponto de vista. É verdade que se diz, e que Castoriadis
disse, que na Alemanha há, no movimento, fascistas. Há
um retorno àquilo que se chamava de BIU! und Boden -
o sangue e a terra. Há uma tentativa de retomar contato
com esta identidade perdida que o fascismo dera ao povo
alemão. Pois o fascismo também é um problema que
algum dia vai ser preciso tentar compreender. O fascismo
não veio por acaso nem foi simplesmente imposto de
cima. O fascismo foi a expressão de um povo que não
tinha mais identidade e que saltou no abismo. Havia esta
busca de identidade, não foram os dez mil malvados
capitalistas que manipularam o povo alemão, é preciso
partir de baixo. Hoje, o mesmo Hitler, os mesmos
capitalistas, não teriam nenhuma chance na Alemanha,
nenhuma, nenhuma, nenhuma. Mas falando de fascismo,
eu gostaria de dar um exemplo do que chamo agircomo
maioria. Penso que ninguém pode suspeitar de mim,
enquanto judeu, de ser pró-fascista; pois bem, sou
partidário da liberdade de expressão para os fascistas e
estou por aqui com aqueles que dizem: "A liberdade para
todo mundo salvo para os inimigos da liberdade". Pois é
esta frase que nos fará a todos passar para o Gulag mais
cedo ou mais tarde. Para ser claro: se os fascistas
distribuem panfletos, respondemos com panfletos; se
quiserem efetivamente jogar outros jogos, nós também
quebraremos a cara deles. Não se trata de dar a outra face,
nem de dizer "tudo bem, pessoal, nós somos todos
cristãos", nada disso; trata-se de defender coisas que
aprendemos politicamente.
Da mesma forma, a propósito do exemplo que dera
Castoriadis, acredito que o problema daqueles que
querem centrais nucleares seria simples de resolver se se
instituísse na sociedade - o que seria o caso se fôssemos
majoritários - a possibilidade de um debate. A ausência
desta possibilidade é uma das críticas que dirigimos a esta
sociedade. O movimento anti-nuclear, o movimento
ecológico deve tentar conquistar todos os terrenos que o
coloquem em posição de debate em todos os níveiscontra
aqueles que, neste momento, dominam os debates. Toda
política que não tenta, não diria conquistar as cabeças,
mas pelo menos sensibilizar as cabeças, caminha para o
fracasso.
Se falamos tanto em autonomia e em criação, devemos
demonstrar em nossas estratégias, de uma maneira
exemplar, nossa capacidade, no movimento, de criar
indivíduos autônomos. Leiam Trotski, vocês vão ver que
ele fala sempre das massas como de campos de trigo que
pendem para um lado e depois para o outro. Ou então, há
a Internacional que duela com o Imperialismo; ele se vê
sempre no comando e atrás dele há milhões e milhões;
toda esta imaginária da classe operária que nos vem dos
anos 20, cada operário semelhante ao outro, etc. Pois
bem, não, estamos cheios disso. Se nosso movimento dá
não somente a impressão de que um não se assemelha ao
outro, mas mostra que somos realmente diferentes e que
nesta diferença conseguimos fazer política - aí então
poderemos pôr efetivamente em perigo o sistema social.
Pois este sistema pretende defender a liberdade individual
e neste terreno nenhum movimento até agora tentou
colocá-lo em questão. A gente sempre disse: "Essas aí não
passam de liberdades formais e nós queremos liberdades
reais". Mas é outra coisa que se trata de dizer:

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