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I I . , . , daniel cobnbencãt cornelius castoriadis ~Ecolo~ia J o o .!!l '0 O r. " , ' j • j ~ . p f 1 Nascido em 4 de abril de 1945 em Montauban , Tarn-e-Garone, filho de judeus-alemães emigrados em terra de asilo , mas ele próprio expulso em 1968 após sua participação decisiva no movimento de maio, acusado de perturbações da ordem pública. Reintegrado ao patrimônio nacional em dezembro de 1978, escolheu livremente continuar vivendo na Alemar1ha Federal. Autor de numerosas obras , ator em inúmeras manifestações, persiste no mau caminho. Nascido em 1922. Estudos de direito, economia e filosofia em Atenas. Sob a ocupação, organiza um grupo que se opõe à politica chauvinista do PC grego, depois adere à organização trotskista animada por Spiros Stinas. Chega à França em 1945 e funda no PC, com Claude Lefort, uma tendência que rompe com o trotskismo em 1948 e se transforma no grupo "Socialismo ou Barbárie" . Em junho de 1968, publicou, com E. Morin e C. Lefort, Maio de 1968: a Brecha (Fayard). A Instituição Imaginária da Sociedade (1975) e os Corredores do Labirinto (1978) foram publ icados pela edltoraSeull . cornelius castoriadis daniel cohn·bendit Copyright@f:dictionsduSeui!, 1981 Tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes Capa: Jacob Levitinas Revisão: Newton T . L. Sodré José E. Andrade Bibii ote'.:8 Dap . de Fi'osdia w /ê130 - D~Ió;J1f~. IO /iL editora brasiliense s.a. 01042 - rua barão de itapetin inga, 93 são paulo - brasil • , • , PREFÁCIO Q texto que vai ser lido é a transcrição das fitas grava- das flor ocasião de um debate verificado a 27 de fevereiro de (1980):m Louvain-a-Nova (Bélgica). A iniciativa da organização deste debate e o trabalho de sua preparação foram assumidos por um grupo de pessoas de horizontes bastante diversos. As exposições introdutórias ao tema de discussão (LUla antinuclear, ecologia e política) estiveram a cargo de Cornelius Castoriadis e Daniel Cohn-Bendit. A participação no debate (oitocentas pessoas aproxima- damente) ultrapassou consideravelmente as previsões e as esperanças dos organizadores. Q material que entregamos 00 público hoje é, por si mesmo, amplamente representativo dos pressupostos comuns, mas também das interrogações e das dúvidas partilhadas pelos participantes do debate. Parece-nos todavia útil tentar cercar aqui a problemática que amadu- recia em nossos espíritos há algum tempo e cujos princi- pais eixos foram revelados gradualmente por ocasião das . numerosas reuniões preliminares ao debate público. Foi, com efeito, por referência a esta problemática que foram postos os termos da discussão entre os participantes do debate e aqueles que estavam encarregados de intro- duzi-lo. No ponto de partida da reunião de Louvain-a-Nova havia o esforço visando elucidar provisoriamente - mes- mo que, no limite, apenas colocando-as claramente - um certo número de questões que surgiram durante as reu- 6 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 7· niões preparatórias. Estas questões giram em torno dos temas já clássicos, abordados pelo conjunto das correntes que levantam a bandeira da ecologia ("natureza e socie- dade", "ciência e tecnologia", "ciência e sociedade" etc.). Em vários casos, as respostas fornecidas a estas questões por diversas correntes ecológicas suscitavam em nós graves interrogações. Assim, por exemplo, a escolha da A~ .pesquis~ de uma tecnologia para a produção de energia) como eIXO central do discurso ecológico apareceu-nos(.' { como um pr?c~di?1ento atribuindo à técnica enquanto tal..1 um papel privilegiado, levando a defini-la como o deter- I minante central, senão exclusivo, do funcionamento e da instituição da sociedade. O aparecimento de interrogações tão pesadas e tão fun- damentais conduzia à idéia de que o debate deveria pôr em relação as posições adotadas pelas correntes ecoló- gicas e as que foram reveladas por outros movimentos e outras revoltas. Pareceu-nos que estas questões deviam ser debatida no interior de um espaço mais vasto do que o das habituais discussões entre ecologistas partilhando os mesmos pontos de vista. Era preciso, pois, reunir em uma mesma discussão indivíduos portadores de aspirações e interrogações diferentes, embora não necessariamente contraditórias ou incompatíveis: ecologistas militantes assim como ecologistas não organizados, indivíduos filia- dos a correntes políticas ou a movimentos sociais, todos refletindo à sua maneira diferentes aspectos da revolta co~tra a sociedade contemporânea. Assim, a ecologia sena posta em relação com o problema político, e a própria política com as tentativas dos indivíduos e dos grupos de prefigurar uma nova instituição da sociedade conforme suas aspirações e seus desejos. .Era preciso ao mesmo tempo e principalmente evitar cal.r 1?-a armadilha da crítica paternalista que se dá como objetivo esclarecer os atores diretos e se entrega, por t I c. I isso mesmo, a uma pura e simples operação de substi- tuição. Era preciso evitar a tentação de desempenhar o papel de conselheiros do movimento ecológico olhando-o do alto e do exterior e, ao mesmo tempo, recusar-se a se deixar encerrar na armadilha da "verdade militante". Era esta uma das condições essenciais para que o debate pudesse atingir seus objetivos. Mas, como se sabe, não basta enunciar os perigos para deles nos preservarmos... O desenrolar do debate e os conteúdos das interven- ções provam que é possível discutir sobre a luta antinu- , clear, a ecolo!?ia e a polí!icasem que o desenvolvÍ1:nento de uma tecnologia alternativa torne-se o centro da discussão. Isto já constitui uma crítica implícita da idéia ingênua e errônea de que uma técnica alternativa, por sua própria dinâmica, bastaria para desembocar na destruição da sociedade atual e na construção de uma sociedade radi- calmente diferente. Na mesma medida em que é falso considerar a técnica como um meio inerte, utilizável para qualquer fim, também é falso acreditar que a técnica sozinha é suficiente para determinar uma sociedade e que basta modificá-la para fazer surgir uma sociedade nova. A existência de sociedades diferentes utilizando técnicas semelhantes está aí para provar o contrário. Assim tam- bém, o lugar desmedido que a técnica ocupa na socie- dade contemporânea não constitui, em absoluto, no final das contas, um problema técnico. Se foi possível evitar que a questão da técnica alterna- tiva ocupasse o centro do debate, foi pelo fato de que o movimento antinuclear e ecológico é também portador de um outro tipo de problemática. Em primeiro lugar, com efeito, este movimento torna manifesta de maneira crítica a massiva produção de irracionalidades em nossas socie- dades. O temor, a angústia diante do acidente ou da alte- ração/desaparecimento das formas de vida naturais manifestam a pouca credibilidade das operações mistifi- outros relativamente à sociedade futura. O reconheci- mento do valor e da especificidade desta luta exclui as ati- tudes paternalistas e as manobras táticas de utilização do movimento ecológico. Contribui também para estabe- lecer uma barreira diante das extrapolações e das mira- gens ideológicas que os grupos minoritários, cada qual considerando-se como detentor exclusivo da verdade, propõem como solução única dos problemas da socie- dade. Isto posto, é evidente que a luta antinuclear e ecológica não esgota o problema político tal como o entendemos. Proposto desde a aurora dos tempos modernos, este pro- blema, para nós, mantém-se aberto por inumeráveis lutas e movimentos, certamente parciais e desconunuos, mas cujo ponto de vista parece-nos essencialmente coerente: projeto de constituição de uma sociedade igualitária, onde a coletividade detém efetivamente o poder e especialmente o de instituir a lei no sentido mais geral do termo; projeto de definiçãocoletiva dos limites de nossas necessidades e dosmeios de, sua satisfação; projeto de uma sociedade justa, a justiça não sendo concebida como acordo com uma lei dada uma vez por todas, mas como a busca cons- tante da melhor relação entre os indivíduos, os grupos e a .coletividade. Nesta ótica, convém sublinhar a afirmação feita no curso do debate de que uma sociedade ecológica profun- damente autoritária é perfeitamente concebível. Esta pos- sibilidade se enraíza, entre outras, na relação equívoca que o movimento ecológico e anti nuclear mantém com a insti- tuição social da ciência. Com efeito, freqüentemente os perigos são denunciados e as soluções avançadas na base e em nome de um saber que não está inscrito na vida quoti- diana e permanece estranho àqueles que combatem. O ca- minho a seguir é por vezes indicado em nome da pretensa neutralidade de um saber racional, universal, válido para ~8/ CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT j;~: cadoras a que se entregam as instituições burocráticas que ~A" tiram sua legitimidade de um saber pretensamente racio- o~r; nal e eficaz. Ao mesmo tempo, o movimento antinuclear e ecológico coloca, por sua vez, aprofundando-o, o problema da crise do modo de vida, que já havia sido revelado pelo abalo da família tradicional, a luta das mulheres e a rebelião da juventude. É através dessas lutas que aparece o mais claramente possível a contestação de uma certa maneira de viver, de um certo ritmo de vida urbana, de uma estética duvidosa, do gigantismo real e simbólico, das instituições sociais, econômicas e políticas, ao mesmo tempo em que vêm à luz do dia atividades e práticas criadoras. Em seguida e principalmente, o movi- mento antinuclear e ecológico exprime à sua maneira o ponto de vista da autonomia, o desejo sempre presente, mesmo quando não majoritário, de uma auto-instituição da sociedade. Finalmente, a ecologia faz renascer a rela- ção, esquecida e escondida, da sociedade com a utopia -'--- 'J"L utopia compreendida como desejo de mudança e hori- \lJ.ff' zonte dê nossa atividade, sem que se prejulgue a respeito da possibilidade de materialização efetiva desta mudança. Ampliar nestes termos a problemática, assim como constatar o alcance limitado da questão de uma técnica alternativa, não conduz de forma alguma ao menosprezo da importância da luta antinuclear enquanto luta espe- cífica. O combate contra a poluição e a contaminação torna-se urgente e fundamental para setores crescentes da população, uma vez que se trata, para cada indivíduo, de sua segurança, de sua sobrevivência, da salvaguarda do meio natural que o circunda. Isso significa que nós nos alistamos contra aqueles que, a partir de considerações de estratégias ou de tática "revo- lucionária", contestam o bom fundamento da luta ecoló- gica. A necessidade de leis antipoluição é imediata e inde- pendente dos pontos de vista e das exigências de uns e ~I , J nJ ('i-~ v. .r o DA ECOlOGIA A AUTONOMIA 9 10 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT toda a sociedade. Em suma, a fOffila contemporânea da instituição social da ciência corre o risco de se manifestar uma vez mais graças à atividade de um grupo de especia- listas formulando a velha reivindicação autoritária de uma política fundada sobre a ciência e sobre um saber eficaz, à margem da atividade coletiva, criadora e insti- tuinte, dos homens e das mulheres. De tudo isso resulta que se afirmamos hoje que a socie- dade que queremos não deverá ser antiecológica, não podemos fazê-lo a não ser na seqüência do avanço e da experiência do movimento ecológico. Mas esta afirmação é para nós uma exigência que traduz a prática das pessoas e não um discurso ideológico baseado nas conclusões daquilo que se chama de ecossistemismo. Temos que nos opor à tentação constante de legiferar para os outros em seu nome. Devemos reconhecer, no fazer dos homens e das mulheres, não uma confirmação de nossas idéias, mas a fonte de inovações irredutíveis. Nossa ambição ao publicar a resenha deste debate é de que possa servir de material de reflexão na perspectiva das lutas ulteriores. Mas pensamos também que constitui um testemunho e um documento sobre a situação presente. Pois seu interesse não se encontra somente no conteúdo dos discursos e das idéias avançadas, mas também no estado de espírito expresso pelas intervenções do público. O público era, com efeito, composto no essencial por homens e mulheres que tomam parte ativa neste com- bate. Suas intervenções, suas reações, seus silêncios e até mesmo seus bloqueios estão plenos de significação. Traduzem, muito mais do que as exposições introdutó- rias, a realidade do movimento. Neste sentido podemos afirmar que o público de Louvain-a-Nova é o verdadeiro criador deste livro. G.A. e S.Z. .. o presidente da Assembléia geral dos estudantes da universidade de Louvain-a- Nova: Agradeço em primeiro lugar a todos por terem vindo em número tão grande esta noite para esta conferência- debate. Agora, algumas palavras sobre os organizadores da conferência. É em primeiro lugar o grupo Nós, um grupo "grupuscular" de reflexão que não se preocupa em definir- se de maneira mais determinada. Em seguida, o Centro Galileu, que é ao mesmo tempo l!I}la livraria e um orga- nismo de educação permanente. Há igualmente os Amigos da Terra do Brabantês Valão, grupoecologista que trabalha sobre os aspectos só~i()-:-p()lític()sdo nuclear e das energias doces. Há também o MJP,Movimento dos Jovens pela Paz, que tenta promover a idéia de uma socie- dade ªl:ltogestionária. Finalmente, há a AG L, isto é, para os que ainda o ignoravam, a Assembléia geral dos estu- dantes de Louvain, órgão de representação dos estudantes da universidade de Louvain. Era importante mencionar os organizadores porque o debate desta noite se inscreve nas atividades de um grupo de reflexão que quer aprofundaras problemas políticos colo- eados pela energia nuclear e porque estas atividades não se limitam à organização deste debate. Para dar uma idéia L .. dos eixos de reflexão deste grupo, cito alguns dos assuntos que foram abordados até agora: ~.A ciência e a economia em face do problema da e?ergm nuclear, principalmente em seus aspectos socioló- gICOS. ~ A luta antinuclear é verdadeiramente uma colocação em questão da sociedade? ~ Podemos definir uma opção política a partir da luta antinuclear? É porque este grupo de reflexão quer prolongar suas ~ti.vidades que lanço a todos um convite para delas par- ticipar. Quanto à razão de ser desta conferência, recusamo-nos a dar um outro motivo além do seguinte: tínhamos real- mente o desejo de organizar uma conferência. Eu agra- deço e desejo a todos uma boa noitada (aplausos). Corne/ius Castoriadis: Estou contente por estar aqui e por vê-los. E estou muito surpreso pelo número de partici- pantes; muito agradavelmente surpreso e feliz. Mas ao mesmo tempo isso aumenta meu medo de decepcioná-los, tant~ ~ais porque, falando com Danyantes de vir aqui, ele me dizia que não sabia o que diria, que improvisaria. Mas el~ tem. o hábito disto e sabemos, historicamente, que se sal muito bem (risos). Quanto a mim, teria gostado de consagrar mais tempo do que me foi possível fazê-lo na preparação daquilo que pretendo dizer. Mas talvez, no final das contas, isso não teria feito dife- rença, pois as quatro ou cinco coisas que tenho a dizer, v0<;ês verão, desembocam em pontos de interrogação e tenam desembocado em pontos de interrogação de qualquer maneira. E acredito que o sentido de uma noite co- mo esta é precisamente fazer as pessoas falarem: fazer vo- cê~ falarem seja sobre questões quejá estão abertas por vocês, seja ~ e este seria um ganho considerável ~- sobre ques- tões novas que surgem no debate, com a ajuda talvez daqueles que foram encarregados de introduzi-lo. Hoje todo mundo sabe, todo mundo acredita saber-não era o caso ainda há pouco tempo ~.que a ciência e a técnica estão muito essencialmente inseridas, inscritas, enraizadas em uma instituição dada da sociedade. Da mesma forma que a ciência e a técnica da época contem- porânea nada têm de trans-históricas, não têm valor que esteja para além de toda interrogação, que pertencem ao contrário a esta instituição social-histórica que é o capita- lismo tal como nasceu no Ocidente há alguns séculos. Eis aí uma verdade geral. Sabe-se que cada sociedade cria sua técnica e seu tipo de saber, como também seu tipo de transmissão do saber. Sabe-se também que a sociedade capitalista não somente foi muito longe na criação e no desenvolvimento de um tipo de saber e de um tipo de tecnologia que a diferencia de todas as outras, mas que~ e isso também a diferencia das outras sociedades ~ além disso colocou estas atividades no centro da vida social e atribuiu-lhes uma importância que não tiveram nem outrora nem alhures. Assim também, todo mundo sabe ou todo mundo acredita saber que a,-pretensa neutralidade, a pretensa instrumentalidade da técnica e até mesmo do saber cientí- fico são ilusões. Em verdade, até mesmo esta expressão é insuficiente e mascara o essencial da questão. Pois a apre- sentação da ciência e da técnica como meios neutros ou como puros e simples instrumentos não é simples "ilusão": ela faz parte, precisamente, da instituição contemporânea da sociedade ,-C---- isto é, faz parte do imaginário social dominante de nossa época. Podemos circunscrever este imaginário social domi- nante em uma frase: o ponto de vista central da vida social é a expansão ilimitada da mestria (mditrise) racional. É claro que quando olhamos de perto - e não é necessário 13DA ECOLOGIA A AUTONOMIACORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT12 - '--F- 14 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 15 I i chegar muito perto para vê-lo - esta mestria é uma pseudomestria e esta racionalidade, uma pseudo-racio- nalidade. O que não impede que seja este o núcleo de significações imaginárias sociais que mantêm unida a sociedade contemporânea. E isso não é somente o caso nos países de capitalismo dito privado ou ocidental. É igualmente o caso nos países pretensamente "socialistas", nos países do Leste, onde os mesmos instrumentos, as mesmas fábricas, os mesmos procedimentos de organi- zação e de saber são postos igualmente a serviço desta mesma significação imaginária social, a saber, a expan- são ilimitada de uma pretensa mestria pretensamente racional. Abrirei aqui um parêntese, pois não podemos, afinal, discutir abstraindo aquilo que está se passando na atua- lidade mundial e que é muito grave. Vemos muito mais claramente hoje, com o Afeganistão - eu diria, mais exatamente: as pessoas podem ver; quanto a mim, pre- tendo que já faz trinta e cinco anos que o vejo -, que a coexistência e o antagonismo destes dois subsistemas, cada um pretendendo possuir o monopólio da via pela qual chegaremos à "mestria racional" do todo, estão em vias de tocar o ponto onde há o risco de haver efetiva- mente um domínio totalmente racional do único verda- deiro mestre e senhor, como diria Hegel, isto é, a morte. Vocês sabem que a dominação deste imaginário começa primeiramente mediante a forma da expansão ilimitada das forças produtivas - da "riqueza", do "capital". Esta expansão toma-se rapidamente extensão e desenvolvimento do saber necessário para o aumento da produção, isto é, da tecnologia e da ciência. Enfim, a ten- dência no sentido da reorganização e da reconstrução "racionais" de todas as esferas da vida social - a pro- dução, a administração, a educação, a cultura, etc... 'I transforma toda a instituição da sociedade e penetra cada vez mais no interior de todas as atividades. Mas vocês sabem também que, apesar de suas preten- sões, esta instituição da sociedade é dilacerada por uma multidão de contradições internas, que sua história está atravessada por conflitos sociais importantes. A nossos olhos, estes conflitos exprimem essencialmente o fato de que a sociedade contemporânea está dividida assimétrica e antagonicamente entre dominantes e dominados e que esta divisão se traduz, especialmente, pelos fatos da explo- ração e da opressão. Deste ponto de vista, deveríamos dizer que de direito a imensa maioria das pessoas que vivem na sociedade atual deveria opor-se à forma estabe- lecida da instituição da sociedade. Mas também é difícil acreditar que, caso isso se desse, poderia esta sociedade manter-se durante muito tempo ou até mesmo teria podido manter-se até hoje. Há, pois, uma questão muito importante que se coloca: como esta sociedade consegue manter-se e permanecer como um todo quando "deveria" suscitar a oposição da grande maioria de seus membros? Há uma resposta que devemos eliminar definitiva- mente de nossos espíritos e que caracteriza toda a velha mentalidade de esquerda: a idéia de que o sistema esta- belecido só se manteria graças à repressão e à manipu- lação das pessoas, em um sentido exterior e superficial do termo manipulação. Esta idéia é totalmente falsa e, o que é ainda mais grave, ela é perniciosa porque mascara a profundidade do problema social e político. Se queremos verdadeiramente lutar contra o sistema e também se queremos ver os pro- blemas contra os quais se choca hoje, por exemplo, um movimento como o movimento ecológico, devemos compreender uma verdade elementar que parecerá muito desagradável a alguns: o sistema se mantém porque con- segue criar a adesão daspessoas àquilo que é. Consegue 16 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT "",,,,,,,.. ------------- DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 17 \ criar, bem ou mal, para a maioria das pessoas e durante a grande maioria dos momentos de sua vida, sua adesão ao modo de vida efetivo, instituído, concreto desta socie- dade. É desta constatação fundamental que devemos partir se quisermos ter uma atividade que não seja fútil e vã. Esta adesão é certamente contraditória: vai junto com momentós de revolta contra o sistema. Mas é, apesar de tudo, urnaadesão ~ !}EO é uma sJ!!Yples passividade. Isto podemos vê-lo facilmente ao nosso redor. E, afinal, se as pessoas não aderissem efetivamente ao sistema tudo cairia por terra nas próximas seis horas. Para tomar apenas um exemplo: esta maravilha de "organização" e de "raciona- lidade" que é a fábrica capitalista - ou, mais geralmente, toda empresa capitalista, tanto a Oeste quanto a Leste - não produziria absolutamente nada, mas se desmoro- naria sob o peso da absurdidade de sua regulamentação e das antinomias internas que caracterizam sua pseudo- "racionalidade", se os trabalhadores não a fizessem fun- cionar ocasionalmente contra esta regulamentação ~ e muito além do que explicariam a coerção ou o efeito dos "estimulantes materiais". Esta adesão se deve a processos extremamente comple- xos que não se trata de analisar aqui. Pois estes processos constituem o que eu chamo de fabricação social do indiví- duo e dos indivíduos - de nós todos - na e pela socie- dade capitalista instituída tal como existe. Eu evocaria simplesmente dois aspectos desta fabri- cação. Um .dizrespeito à instilação nas pessoas, desde a '> mais tenra infância, de uma relação à autoridade, de um certo tipo de relação a um certo tipo de autoridade. E 'j . outro, à instilação nas pessoas de um conjunto de ·f'y';) "necessidades", a cuja "satisfação" estarão atrelados pela ~. vida afora. ?:f'. Primeiro, a autoridade. Quando consideramos a I .. sociedade contemporânea e a comparamos àquelas que a precederam, constatamos uma diferença importante: hoje, a autoridade se apresenta como dessacralizada, não há mais reis pela graça de Deus. Daniel Cohn- Bendit: Você está na Bélgica. Cornelius Castoriadis: Não esqueço que estou na Bélgica. Mas não acredito que o rei dos Belgas seja considerado comorei pela graça de Deus. Penso que isto deve ser um princípio do direito constitucional belga e que se há um rei dos Belgas é porque o povo belga decidiu soberanamente que haveria um rei ~ não? (Risos.) Pensar-se-ia, pois, que a autoridade hoje está dessacra- lizada. Mas na realidade não é verdade. O que, outrora, sacralizava a autoridade era a religião: como dizia São Paulo na Epístola aos Romanos, "todo poder vem de Deus". Outra coisa tomou hoje o lugar da religião e de Deus: algo que não é, para nós, "sagrado" mas que con- seguiu, bem ou mal, instalar-se socialmente como o equi- valente prático do sagrado, como uma espécie de subs- tituto da religião, uma religião chã e achatada. E esta é a idéia, a representação, a significação imaginária do saber e da técnica. Não quero dizer com isto, é claro, que aqueles que exer- cem o poder "sabem". Mas pretendem saber e é em nome deste pretenso saber - saber especializado, científico, técnico - que justificam seu poder aos olhos da popu- lação. E se podem fazê-lo é porque a população acredita I nisso, é porque foí preparada para acreditar nisso. Assim, na França, estamos esmagados por um presi- dente da República que se pretende especialista da econo- mia. Este "especialista", quando ainda era ministro das Finanças, pronunciava discursos na Câmara em que alinhava durante três horas estatísticas com quatro cifras 18 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDI1 ü .. f DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 19 decimais. Isto quer dizer que ele deveria ter sido reprovado no primeiro ano de uma Faculdade de Econo- mia, pois uma estatística com quatro cifras decimais em matéria de preço e de produção não tem estritamente nenhum sentido: no máximo, nestes domínios, podemos falar em dez por cento aproximadamente. Isso não impede que o presidente Giscard, que não é economista, tenha conseguido desenterrar um dinossauro do pretenso saber econômico, chamado Raymond Barre (risos e aplausos), que ele batizou como "o melhor economista da França". Graças ao qual o bordel da economia francesa é agora muito maior do que era há três anos e também do que teria sido se o porteiro do prédio tivesse sido presi- dente do Conselho (risos). Disto, há uma conclusão prática a tirar. Há um terreno de luta, especialmente para pessoas como vocês, como todos nós aqui que nos ocupamos mais ou menos com :'~. atividades intelectuais e científicas. Trata-se de mostrar, em primeiro lugar, que o poder na época atual não é o saber, que não somente ele não sabe tudo, mas mesmo que sabe muito menos coisas do que sabem as pessoas em geral, e que para isto há, razões profundas e orgânicas. E, em segundo lugar, que este "saber" de que se reclama o poder, mesmo quando existe, tem um caráter bem parti- cular, parcial e enviesado desde a base. Mas há também uma questão que não quero calar - embora não seja uma das questões sobre as quais deve- ríamos nos estender nesta noite. É que - esquecendo agora completamente os senhores Giscard, Barre e con- sortes - há um verdadeiro problema do saber e mesmo da técnica que nos interpela efetivamente enquanto este saber e mesmo esta técnica ultrapassam a instituição presente da sociedade. Mesmo se admitirmos - como eu o faço - que a orientação, os fins, o modo de transmissão e a organização interna do saber científico estão anco- i ~ rados no sistema social atual, ou mais ainda, que lhe são, em um certo sentido, consubstanciais, mesmo assim é preciso aceitar que há aí criação de alguma coisa que ultrapassa certamente a época contemp-orânea. Isso é verdade também, aliás, para as épocas anteriores da histó- ria. Para tomar um exemplo fácil, o teorema de Pitágoras foi descoberto e demonstrado há vinte e cinco séculos em Samos ou não seionde, pouco importa. Éclaro quefoidesco- berto em um contexto de maneira nenhuma "neutro", forma- do por um conjunto de esquemas imaginários indissociável e profundamente ligadosà concepção gregado mundo, à insti- tuição imaginária grega do mundo, como toda a geome- tria grega. Isso não impede que, vinte e cinco séculos depois, este teorema de Pitágoras, ou alguma coisa que tem o mesmo nome, não somente continue a "ser verda- deiro" (podemos prover esta expressão de todas as aspas e pontos de interrogação que quisermos), mas aparece como infinitamente mais verdadeiro quanto o próprio Pitágoras era capaz de pensá-lo, uma vez que o enun- ciado presente do teorema de Pitágoras, tal como vocês . poderão encontrá-lo em um tratado contemporâneo de análise, constitui dele uma imensa generalização. Isso continua se chamando teorema de Pitágoras, mas se enuncia: em todo espaço pré-hilbertiano, o quadrado da norma da soma de dois vetores ortogonais é igual à soma dos quadrados de suas normas. Ou, para tomar um outro exemplo: não há sociedade possível sem aritmética - por mais arcaica, primitiva, selvagem que seja esta sociedade. Mas onde se detém, então, a aritmética? Isso também faz parte da questão do saber. Émuito fácilesvaziarestaquestão dizendo, como um recente microfarsante parisiense, que o totalitarismo são os sábios no poder: o que evidentemente não faz mais do que dar créditoe reforçaramistificaçãoideo- lógica dominante. Como se Stalin, que dirigia as opera- ções do Exército russo durante a segunda guerra mundial 20 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA TE 21 debruçado sobre um mapa-múndi, como revelou Kruchev, fosse um "sábio no poder". Mas é também muito fácil esvaziar a questão, como se faz freqüente- mente em nosso meio e por pessoas que nos são próximas, querendo jogar fora a ciência e a t~cnica enquanto .tais porque seriam puros produtos do Sistema estabelecido: desemboca-se, assim, na eliminação da interrogação a respeito do mundo, de nós mesmos, de nosso saber. Venho agora à outra dimensão do processo de fabri- cação social do indivíduo, aquela que diz respeito às "necessidades". Evidentemente, não existem "necessida- des naturais" do ser humano em nenhuma definição do termo "natural" - salvo talvez em uma definição filosó- fica em que a "natureza" seria algo completamente dife- rente daquilo que vocês pensam habitualmente sob~e este termo: uma "natureza" segundo Aristóteles ou Spmoza, algo como uma norma ao mesmo tempo i~eale real..Alé~l do fato de que não estamos aqui esta noite para discutir este tipo de questões filosóficas, esta acepção do termo "natureza" não nos interessa por uma razão precisa: não vemos como poderíamos nos colocar de acordo ~ocial mente para definir necessidades que correspondenam a esta tal "natureza". Não há necessidades naturais. Toda sociedade cria um conjunto de necessidades para seus membros e lhes ensina que a vida não vale a pena ser vivida e mesmo não p~de ser materialmente vivida a não ser que estas necessidades sejam bem ou mal "satisfeitas". Qual é a especificidade do capitalismo quanto a isso? Em primeiro lugar, é que o capitalismo só conseguiu surgir, manter-se, desenvolver- se, estabilizar-se (apesar de e com as intensas lutas operá- rias que dilaceraram sua história) colocando no centro de tudo as necessidades "econômicas". Um muçulmano ou um hindu deixará de lado o dinheiro durante toda sua vida para fazer a peregrinação a Meca ou a tal templo; I l- I t para ele trata-se de uma "necessidade". Não o é para um indivíduo fabricado pela cultura capitalista: esta peregri- nação é uma superstição ou uma fantasia. Mas para este mesmo indivíduo não é superstição ou fantasia, mas "necessidade" absoluta, ter um carro ou mudar de carro a cada três anos ou ter uma televisão a cores desde que existem tais televisões. Em segundo lugar, pois, o capitalismo conseguiu criar uma humanidade para a qual, mais ou menos bem ou mal, estas "necessidades" são aproximadamente tudo o que conta na vida. E, em terceiro lugar - e é um dos pontos que nos separam radicalmente de um ponto de vista comoaquele que Marx poderia ter da sociedade capitalista -, estas necessidades que cria, o capitalismo, bem-ou-mal-e-na-maior-parte-do-tempo, consegue satis- fazê-las. Como diríamos em inglês: He promises the goods, and he delivers the goods.* A quinquilharia aí está, as lojas estão repletas - e basta você trabalhar para poder comprá-la. Basta ser bem-comportado e trabalhar que você ganhará mais, subirá, comprará mais e tudo bem. E a experiência histórica está aí para mostrar que, com algumas exceções, a coisa funciona: a coisa funciona, produz, trabalha, compra, consome e volta a funcionar. Nesta etapa da discussão, a questão não é saber se "cri- ticamos" este conjunto de necessidades de um ponto de vista pessoal, de gosto, humano, filosófico, biológico, médico ou o que quiserem. A questão recai sobre os fatos, sobre os quais não se deve nutrir ilusões. Falando breve- mente, esta sociedade funciona porque as pessoas têm que ter um carro e, em geral, podem tê-lo e podem comprar gasolina para este carro. Eis por que é preciso comJ?reen- der que uma das coisas que poderiam pôr abaixo o sistema social no Ocidente não é a "pauperização", abso- (*) Como em português. a palavra Ii(!!!d tem em inglêso duplo sentido de-bem" e "rner- cadoria", A tradução literal seria: "Ele promete os bens e entrega os bens", (N, do T,) 22 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 23 luta ou relativa, mas, por exemplo, o fato de que os gover- nos não possam mais fornecer gasolina aos automobi- listas. É preciso nos compenetrarmos bem daquilo que isso significa. Quando falamos do problema da energia, do nuclear, etc., é de fato todo o funcionamento político e social que está implicado e todo o modo de vida con- temporâneo. Assim é ao mesmo tempo "objetivamente" e do ponto de vista das pessoas, e sob este aspecto nossos críticos do embrutecimento consumista contam pouco. Podemos facilmente ilustrar a situação, mediante os futuros ~ e já presentes e passados - discursos eleitorais do cidadão Marchais, explicando: primo, se não tendes mais gasolina para rodar é culpa dos trustes, das multina- cionais e do governo que faz o jogo delas; e, secundo, se o Partido comunista chegar ao poder, ele vos dará gasolina porque não mais se submeterá às multinacionais mas também porque nossa grande aliada, amiga do povo francês e grande produtora de petróleo, a União Sovié- tica, nos fornecerá (pouco importa se as coisas começam a ir mal igualmente lá, também sob este aspecto). Vê-se aí um roteiro possível, como também existe um roteiro possível do lado aparentemente oposto ~ digo bem, aparentemente ~ isto é, do lado de uma demagogia neo- fascista que poderia se desenvolver a partir da crise de energia e de suas recaídas de todos os tipos. A crise de energia não tem sentido como crise e não é crise a não ser em relação ao modelo presente da socie- dade. É esta sociedade que tem necessidade, a cada ano, de 10 por cento de petróleo ou de energia a mais para poder continuar girando. Isso quer dizer que a crise de energia é, em um sentido, crise desta sociedade. Assim, ela contém em germe ~ e aí está uma questão que cabe muito mais a vocês do que a mim responder ~ a colocação em causa pelas pessoas do conjunto do sistema; mas talvez , t [- contenha também em germe a possibilidade de que as pes- soas sigam no plano político as correntes mais aberrantes, as mais monstruosas. Pois, tal como é, esta sociedade não poderia provavelmente continuar se não lhe assegurás- semos este ramerrão do consumo crescente. Ela poderia se recolocar em causa, dizendo: o que estamos fazendo é completamente louco, a maneira segundo a qual vivemos é absurda. Mas poderia também se agarrar ao modo de vida atual, dizendo: tal partido tem a solução, ou: basta expulsar os judeus, os árabes ou sei lá quem, para resolver nossos problemas. Tal é a questão que se coloca e que coloco a vocês atual- mente: em que ponto está a crise do modo de vida capi- talista para as pessoas? E qual poderia ser uma atividade política lúcida que acelerasse a tomada de consciência da absurdidade do sistema e ajudasse as pessoas a tornar manifestas as críticas ao sistema que, certamente, já se formam à direita e à esquerda? Gostaria de abordar agora, em ligação imediata com o que precede, o movimento ecológico. Parece-me que podemos observar, na história da sociedade moderna, uma espécie de evolução do campo sobre o qual recaíram as colocações em cheque, as contestações, as revoltas, as revoluções. Parece-me também que esta evolução pode ser algo esclarecida se nos referimos a estas duas dimen- sões da instituição da sociedade que eu evocava há pouco: a instilação nos indivíduos de um esquema de autoridade e a instilação nos indivíduos de um esquema de necessi- dades. O movimento operário pôs em cheque, desde o começo, o conjunto da organização da sociedade, mas de uma maneira que, retrospectivamente, não pode deixar de nos aparecer como um pouco abstrata. O que o movimento operário atacava principalmente era a dimen- são da autoridade ~ isto é, a dominação que é sua ver- tente "objetiva". Mesmo sob este aspecto deixava na /rr! 24 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT '",~ f.!!t FlI. C. ....... O. F.~~ DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 25 •./) . "s: I sombra ~ era quase tatal na época ~ aspectos totalmente decisivos do problema da autoridade e da dominação, por conseguinte também dos problemas políticos da recons- trução de uma sociedade autônoma. Alguns desses aspec- tos foram postos em questão posteriormente; e princi- palmente, mais recentemente, pelo movimento das mulheres e o movimento dos jovens, que atacaram os esquemas, as figuras e as relações de autoridade tais como existem em outras esferas da vida social. O que o movimento ecológico pôs em questão, de seu lado, foi a outra dimensão: Q esquema e a estrutura das necessidades, o modo de vida. E isto constitui uma supe- ração capital daquilo que pode ser visto como o caráter unilateral dos movimentos anteriores. O que está emjogo no movimento ecológico é toda a concepção, toda a posi- ção das relações entre a humanidade e o mundo e, final- mente, a questão central e eterna: o que é a vida humana? Vivemos para fazer o quê? A esta questão já existe uma resposta e nós a conhe- cemos: é a resposta capitalista. Permitam-me aqui um parêntese e uma rápida volta para trás. A mais bela e a mais concisa formulação do espírito do capitalismo que conheço é o enunciado programático bem conhecido de Descartes: atingir o saber e a verdade para "nostornar- mos senhores e possuidores da natureza". É neste enun- ciado do grande filósofo racionalista que vemos o mais claramente a ilusão, a loucura, a absurdidade do capita- lismo (como também de uma certa filosofia e de uma certa teologia que o precedem). O que é que isto quer dizer, tomarmo-nos senhores e possuidores da natureza? Obser- vem também que sobre esta idéia privada de sentido se . fund~m tanto o capitalismo quanto a obra de Marx e o marxismo. Ora, o que aparece, talvez tateando e balbuciando, através do movimento ecológico é que certamente nós não .! queremos ser senhores e possuidores da natureza. Em primeiro lugar porque compreendemos que isto não quer dizer nada, que isto não tem sentido ~ a não ser o de submeter a sociedade a um projeto absurdo e às estruturas de dominação que o encarnam. E, em seguida, porque queremos uma outra relação com a natureza e com o mundo; e isto quer dizer também um outro modo de vida e outras necessidades. Mas a questão é: qual modo de vida e quais necessi- dades? Que queremos nós? E quem, como, a partir de quê, pode responder a estas questões? Responder, isto é, não com o saber absoluto, mas com conhecimento de causa e com lucidez? A meus olhos, o movimento ecológico apareceu como um dos movimentos que tendem para a autonomia da sociedade; e a cadavez que tive que falar dele, oralmente ou por escrito, eu o incluí na série destes movimentos de quefalava há pouco. No movimento ecológico trata-se, em primeiro lugar, da autonomia em relação a um sistema técnico-produtivo, pretensamente inevitável ou preten- samente ótimo: o sistema técnico-produtivo que está aí na sociedade atual. Mas é absolutamente certo que o movi- mento ecológico, pelas questões que levanta, ultrapassa de longe esta questão do sistema técnico-produtivo, e compromete potencialmente todo o problema político e todo o problema social. Vou me explicar e terminar neste ponto. Que o movimento ecológico comprometa todo o problema político e todo o problema social, podemos vê-lo imediatamente a partir de uma questão aparente- mente limitada. Espero que me desculpem se digo coisas que vocês já devem ter ouvido dezenas de vezes e se o digo de maneira abrupta. A luta antinuclear: sim, muito bem, bravo. Mas será que isto quer dizer ao mesmo tempo: luta antieletricidade? Em caso afirmativo, é preciso então di- C!J ~ i~ •••e I- ::t o :1:- o .JOm - -=.ti: :lu" ~I () 26 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 27 zê-lo imediatamente, alto e bom som e claramente. E é preciso também dizer: nós somos contra a eletricidade e conhecemos todas as implicações daquilo que dizemos: nada de sonorização em uma sala como esta - mas isso já está feito (risos); nada de telefone; nada de blocos ope- ratórios em cirurgia (afinal, Illich afirma que a medicina não faz mais do que aumentar a taxa de mortalidade); nada de rádios, livres ou não; nada de gravadores; nada de discos de Keith Jarret, como eu ouvia há pouco em vosso clube etc. É preciso levar em conta que não há prática- mente nenhum objeto da vida moderna que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, não implique a ele- tficidade. Essa rejeição total é talvez aceitável - mas é -preciso sabê-lo e é preciso dizê-lo. Ou então, a única coisa lógica seria propor outras fontes de energia, afirmar e mostrar que não é necessário privar-se da eletricidade se excluímos as centrais elétricas, com a condição de reformar o conjunto do sistema de produção de energia de tal maneira que somente entrem em jogo energias renováveis. Como estou certo de que vocês conhecem muito mais coisas do que eu sobre as energias renováveis, não vale a pena eu me estender sobre esta questão considerada em si mesma. Mas a questão das energias renováveis ultrapassa de longe a questão das energias renováveis. Primeiramente, implica a totalidade da produção; e depois (ou antes, ao mesmo tempo) implica a totalidade da organização social. A única tenta- tiva que conheço pessoalmente de levar em conta seria- mente o conjunto da questão é o projeto Alter no qual trabalha na França o matemático Philipe Courrege com um minúsculo grupo de colaboradores benévolos. Digo seriamente porque Courrege viu de imediato que não se trata somente de assegurar a produção de energias reno- váveis, que isto implicava a totalidade da produção e, por conseguinte, ele se dedicou à construção de um pequeno "sistema" completo (ou antes, de uma grande gama de tais sistemas, dependendo cada qual dos objetivos finais pro- postos), de uma matriz fechada que cobre a totalidade das "entradas" e das "saídas" de uma pequena região mais ou menos autárquica. Mas digo seriamente, também, porque Courrege viu igualmente - e ele o diz - que aquilo que no plano "técnico" e "econômico" é uma solução se não sim- ples, mas pelo menos factível, levanta problemas políticos e sociais (ele diz: societais) imensos: a definição dos obje- tivos finais da produção, a aceitação pela comunidade de um estado estacionário, a gestão do conjunto, etc. Aqui posso dizer que me sinto em terreno familiar: não que eu possua, evidentemente, a solução, mas porque são ques- tões sobre as quais reflito e trabalho há trinta anos e que se tornam ao mesmo tempo mais precisas e mais claras quando damos um embasamento concreto à idéia de unidades sociais autogovernadas e vivendo em boa parte com base em recursos locais renováveis. Mas o que fica disso é o que mostra, "negativamente" se assim posso di- zer, o projeto Alter: se quisermos tocar no problema da energia, precisamos tocar em tudo. Ora, tudo isso não é nem teoria nem literatura. Sabe-se desde agora que os go- vernos dizem que sem centrais nucleares não haverá mais eletricidade em alguns anos; e, certamente, se nada mais se passar, e, como desde 1973, estes governos nada mais fazem do que tagarelar sobre o problema da energia sem nada fazer de real, acabará por acontecer alguma coisa como a ruptura de carga da rede da França no ano pas- sado. . . , Agora, de um outro lado, os projetos concernentes as energias renováveis são em parte recuperáveis para fins que não poderíamos nem mesmo chamar de reformistas: para fins de pura e simples calafetagem do sistema exis- tente. E, para além desta questão de recuperação, isto con- 29DA ECOLOGIA A AUTONOMIA de trabalho. E daí? Será que a partir desse argumento pe- diríamos a supressão da Previdência social? ..-- Terminarei abordando o problema que me parece o mais profundo, o mais critico, crítico no sentido inicial da palavra crise: momento e processo de decisão. Falar de uma sociedade autônoma, da autonomia da sociedade não somente em relação a tal camada dominante particu- lar, mas em relação a sua própria instituição, necessidades , . . - 'tecmcas, etc., pressupoe ao mesmo tempo a capacida- de e a vontade dos humanos de se autogovernar, no sen- tido mais forte desta palavra. Durante muito tempo, de fato desde o começo do período em que eu fazia, como meus camaradas, Socialismo ou Barbárie, era essencial- n!ente nest~s .t~m10s que se formulava para mim a ques- tao da possibilidade de uma transformação radical, revo- lucionária, da sociedade: será que os humanos têm a ca-l pacidade e principalmente a vontade de se autogovernar ~ (digo principalmente a vontade, pois a meus olhos a "ca-l~ pacidade" não constitui verdadeiramente um problema)?I Será que querem verdadeiramente ser senhores de si1 n?esmo~? Pois, afinal, se o quisessem, nada poderia impe- -I dl-los: Isto, sabemos desde Rosa Luxernburg, desde LaL Boétie, até mesmo desde os gregos. Mas, pouco a pouco, ,c- 0 ~m outro aspecto desta questão - da questão da possibi- , .19<· hdade de uma transformação radical da sociedade - co- I rneçou a me aparecer e a me preocupar cada vez mais. É que uma outra sociedade, uma sociedade autônoma não f i?1~lica somente a autogestão, o autogoverno, a aut~-ins tituição. Ela implica uma outra cultura) no sentido mais profundo deste termo. Implica uri1õúiro modo de vida ou~ras necessidades, outras orientações da vida humana: POl.S ~ocês estarão de acordo comigo para dizer que um socialismo dos engarrafamentos é um absurdo nos seus próprios termos e que a solução socialista deste problema _-.J~~.---....._--...--,.J------- CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT28 duz a uma outra interrogação: será que um "reformismo" antinuclear, energético, ecológico tem um sentido e pode ser lucidamente apoiado? Entendo aqui por "reformismo" o apoio concedido a medidas parciais que consideramos válidas e tendo um sentido (isto é, que não são anuladas pelo fato de se inserirem em um sistema que, nele mesmo, não é modificado). Por exemplo, as leis contra a poluição dos cursos de água -leis que deixam no lugar todo o res- tante: as multinacionais, o Estado, o partido comunista, o rei, etc. Uma certa posição tradicional respondia a esta questão pela negativa. Dizia-se: combatemos pela Re- volução e um dos subprodutos da Revolução será a não poluição dos rios (como também a emancipação das mulheres, a reforma da educação, etc.). Sabemos que esta resposta é absurda e mistificadora, e felizmente as mulhe- res ou os estudantes deixaram de esperar a Revolução paraexigir e obter mudanças efetivas na sua condição. Penso que a mesma coisa vale para a luta ecológica: há, por exemplo, e entre mil outras, uma grave questão da polui- ção dos cursos de água, e a luta contra este estado de coisas tem plenamente um sentido com a condição de que saibamos o que fazemos, que sejamos lúcidos. Isto quer dizer que sabemos que atualmente lutamos por tal obje- tivo parcial, porque tem um certo valor, assim como sabemos também que aquilo cuja introdução ou aplica- ção reivindicamos, enquanto existir o sistema atual, terá necessariamente uma significação ambígua e até mesmo poderá ser desviado de sua finalidade inicial. Vocês sa- bem que a Previdência social foi, em muitos países, uma conquista arrancada graças a intensa luta pela classe ope- rária. Mas sabem também que há marxistas que explicam - e, afinal, isso não é totalmente falso de um certo ponto de vista - que a Previdência social faz funcionar o siste- ma capitalista porque serve para a manutenção da força \li.( 'v não seria eliminar os engarrafamentos quadruplicando a largura da avenida dos Campos Elíseos. Que são então estas cidades? O que é que as pessoas que as lotam têm verdadeiramente vontade de fazer? Como será possível que elas "prefiram" ter seus carros e passar horas de cada dia nos engarrafamentos a outra coisa qualquer? Colocar o problema de uma nova sociedade é colocar o problema de l!!1lli__cr!ªçãQ cultural extraordinária. E a questão que se coloca e que coloco para vocês é: será que desta criação cultural temos, em nossa frente, sinais pre- cursores e prenunciadores? Nós que rejeitamos, ao menos em palavras, o modo de vida capitalista e o que ele impli- ca - e ele implica tudo, absolutamente tudo o que existe hoje - será que vemos ao nosso redor nascer um outro modo de vida que prenuncia, prefigura algo de novo, algo que daria um conteúdo substantivo à idéia de autogestão, de autogoverno, de autonomia, de auto-instituição? Por outras palavras: a idéia de autogoverno pode tomar sua plena força, atingir seu pleno apelo, se não for também le- vada por outros desejos, por outras "necessidades" que não podem ser satisfeitas no sistema social contemporâ- neo? Nós, provavelmente, que aqui estamos, podemos sem dúvida pensar em tais necessidades, nós as experimenta- mos e talvez para nós contem muito. Por exemplo, sei lá, poder ir quando quiser perambular por dois dias no mato. Mas a questão não está evidentemente aí; não se trata de nossos desejos e necessidades próprias, mas daqueles da grande massa de pessoas. E a gente se pergunta: será que algo deste gênero, a rejeição das necessidades nutridas atualmente pelo sistema e a aparição de outros pontos de vista, começa a despontar, a aparecer como importante para as pessoas que vivem hoje? E, enfim: será que aqui, neste ponto e nesta linha, não encontramos efetivamente o limite do pensamento e da ação políticas? Pois é claro, como todo pensamento e toda ação, este também deve ter um limite - e deve se esforçar por reconhecê-lo. Será que este limite não é, neste ponto, o seguinte: que nem nós nem ninguém é capaz de decidir sobre um modo de vida para os outros? Dizemos, podemos dizer, temos o direito de dizer que somos contra o modo de vida contemporâneo - o que, ainda uma vez, implica aproximadamente tudo o que existe e não somente a construção de tal central nuclear que é apenas uma impli- cação de enésima ordem. Mas dizer que somos contra tal ou qual modo de vida introduz de contrabando um pro- blema formidável: que podemos chamar de o problema do direito no sentido mais geral, não simplesmente do di- reito formal, mas do direito como conteúdo. O que acon- tece se os outros continuam a querer este outro modo de vida? Eu tomaria de propósito um exemplo extremo e absurdo porque está próximo do ponto de partida de nossa reunião. Suponham que haja pessoas que não somente queiram a eletricidade, mas queiram especificamente a eletricidade de origem nuclear. Vocês lhes oferecem toda a eletricidade do mundo, elas não querem: querem que seja nuclear. Todos os gostos existem na natureza. Que é que vocês dirão em tal caso, que é que diremos? Diremos, su- punho: há uma decisão majoritária (pelo menos espera- mos que o seja) que proíbe às pessoas de satisfazer seu goste de se abastecer com eletricidade especificamente nuclear. Exemplo, ainda uma vez, absurdo - e fácil de resolver. Mas vocês poderão facilmente imaginar milhares de outros nem absurdo nem fáceis de resolver. Pois o que é posto no modo de vida é.afinal de contas, a seguinte ques- tão: até onde pode ir o "direito" (a possibilidade efetiva, .Iegal e coletivamente assegurada) de cada indivíduo, de cada grupo, de cada comuna, de cada nação, de agircomo bem entenda a partir do momento em que sabemos - nós o sabíamos desde sempre, mas a ecologia nos relembra 30 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT 1 DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 31 33DA ECOLOGIA A AUTONOMIA dar seu pleno conteúdo ao que dizemos quanto ao fundo a s~~er que uma política revolucionária hoje é em pri- melro lugar e antes de tudo o reconhecimento da au~on.omia .das pessoas, isto é, o reconhecimento da propna sociedade como fonte última de criação institu- cional. (Aplausos.) Daniel Conh-!3endit: Poucas pessoas compreenderão ~or9ue :sto~ Incomodado por falar depois de Casto- riadis, Nao e porque o conheço muito bem; é a primeira yez que. nos encontramos. Mas, se há pessoas que me mfl~~nclaram e me fizeram evitar não poucas besteiras políticas antes que.co~leçassea fazer política, foram pes- soas como Castoriadis e este grupo que ele mencionou So~ialismo"" Barbárie, e também meu irmão que liaest~ revista e fazia, por tabela, parte do seu grupo. E, no mom~nto, encontro-me um pouco na situação de um marxista que, tendo passado anos a ler Marx certa noite tem ~ue.discutir com ele. Asseguro a vocês qu~ não é fácil. . Nao e porqu~ Castoriadis tornou-se agora psicanalista que vou fa~er diante de vocês uma psicanálise selvagem. Mas devo dl~er, apesar de tudo, que vivemos numa época em que mars ou menos só os renegados têm direito à palavra, em que basta ter sido um perfeito stalinista Garaudy ?u outro qualquer, para ter direito aos "midia": E devo dizer que há pessoas como Castoriadis que nãofi~eram e~te percurso e que não são tão jovens quanto nós, nos q~e. tivemos sorte. Eles fizeram esta experiência e eles a e~phcI~aram: o~ não entraram no partido comunista ou entao sanam muito cedo e disseram coisas importantes. E me pergunto se os renegados de hoje que têm direito a todos os" idia" - .nu la nao tenam, quanto mais não fosse para mar~ar presença, uma solução: não certamente ficar no partido comunista, mas fechar a boca durante dois ou três ano~ apenas para dizer: "Sim, sim, sim, de acordo é preCISO que eu reflita um pouco". . ' \ CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT32 com força - que estamos embarcados na mesma canoa planetária e que o que cada um faz pode repercutir sobre todos? A questão do autogoverno, da autonomia da so- ciedade é também a questão da autolimitação da sociedade. Autolimitação que tem duas vertentes: a limi- tação pela sociedade do que ela considera como os dese- jos, tendências, atos etc., inaceitáveis por tal ou qual parte de seus membros, mas também autolimitação da própria sociedade na regulamentação, na regulação, na legislação que exerce sobre seus membros. O problema positivo e substantivo do direito é poder conceber uma sociedade que está fundada sobre regras universais substantivas (a interdição do assassinato não é uma regra "formal") e ao mesmo tempo é compatível com a maior diversidade pos- sível de criação cultural e pois também de modos de vida e de sistemas de necessidades (não falo de folclore para tu- ristas). E esta síntese, esta conciliação não podemos ti- rá-la de nossa cabeça. E se a tirássemos não adiantaria para nada.Ela sairáda própria sociedade ou não sairá. Reconhecer este limite para o pensamento e para a ação políticas, é proibir-se de refazer o trabalho dos filósofos políticos do passado, substituindo-se à sociedade e deci- dindo, como Platão e mesmo Aristóteles, que tal gama musical é boa para a educação dos jovens, enquanto uma outra qualquer é má e deve pois ser proibida na cidade. Isso não implica de forma nenhuma que renunciamos a nosso próprio pensamento, a nossa própria ação, a nosso ponto de vista, nem que aceitemos cega e religiosamente tudo o que a sociedade e a história possam produzir. E, afinal, um ponto de vista abstrato de filósofo que leva Marx a decidir (pois é ele que o decide) que o que a história decidirá ou já decidiu é bom. (A história quase decidiu pelo Gulag.) Mantemos nossa responsabilidade, nosso julgamento, nosso pensamento e nossa ação, mas reconhecemos também o limite. E reconhecer este limite é Acredito que na exposição que Castoriadis fez nesta noite materializa-se toda a experiência de um pensamento que, justamente, ousa e ousou, para nós e, pois, para mim, pensar o problema fundamental da revolução. Pois o assunto desta noite é, banalmente: luta anti nuclear, ecologia e política; mas nisso aí há: "E então, compa- nheiros? A revolução, sim ou não? Isso quer dizer alguma coisa ou não? Ou a gente vira moralista tipo 'Nova filosofia' ou tipo não sei que lá, tipo 'L'Express' ou qualquer outro? "E, afinal de contas, porque os russos chegam - não sei onde, mas, enfim, eles estão em algum lugar -, chega-se a uma posição conhecida na história que tem um nome: a defesa do Ocidente. E isso é preciso dizê-lo e eu o digo porque estou profundamente tocado pelo fato de que uma grande parte de minha geração, desta famosa "geração sessenta e oito", virou a casaca. E se temos hoje um debate político não é para dizer: viro a casaca, nem para dizer: não fizemos erros. É para compreender esta questão fundamental que é: se nós sentimos como um desejo e como uma necessidade essa mudança revolucionária, por que tantas pessoas não o sentem mais como um desejo e como uma necessidade? Questão que não é fácil; e há aqueles que não puderam deixar de pensar assim e que ficaram loucos, realmente. Acredito tam bém que hoje, quando pensamos o pro- jeto revolucionário, é mais difícil do que há dez ou quinze anos. Há dez ou quinze anos partíamos alegremente em conquista do mundo repetindo uma frase que vocês conhecem. Castoriadis cita sempre os velhos filósofos. Eu cito uma frase muito mais banal; a gente dizia: "Do pas- sado, façamos tábula rasa!". Havia algumas notas musicais no fundo e era muito fácil... Tagadd, tagadá, tagadá, a gente avançava. Não era totalmente falso, não quero negá-lo. Mas hoje, quando penso nos meus primeiros passos políticos digo a miC? ~le~mo que era muito simples. Eu fazia marchas annatôrmcas. Mas o que é que a gente gritava durante estas marchas? A gente gritava: "Abaixo a bomba ~tômica'~~qu':,nto a i~so todo mundo continua de acordo), Pela U.tIl1,zaçao pacífica do nuclear" (riso geral na sala). M~s.' SIm; E, a partir daí, desenvolvíamos toda uma anahse. Tm~am~s, afora ISSO, considerações, banalidades de base muito Simples: a sociedade futura, tal como a querem<:s, serão .os conselhos operários, será pois a auto~est~o d~ ~ocIedade por si n~esma. Era simples, era claro. Nao dizíamos - eramos mgênuos, mas também ?ão tanto - não dizíamos, pois: "É a repressão que Impede as .massas de se autogerirem, as massas o querem"; dizíamos: "A vida é muito complicada há momentos históricos em que se produz uma ruptura,' em que os ,ser~s h.uma~os ~es~obrem sua capacidade de gerir sua propna VIda.... Nos líamos Socialismo ou Barbárie. colhl~r:tl0S ~ossos exemplos na história: os conselhos operanos hungaros, os conselhos operários alemães os c~ns~l~os operários não sei o quê... Sempre houve' na hIstona exemplos de ruptura. E depois houve, de qua,~quer modo, os nossos próprios "conselhos operá- nos , nossa ruptura, que vivemos e que era esse famoso Sessenta e Oito. Este Sessenta e Oito em que efetiva- m~nte, toda a sociedade se colocou questões fu~damen tais. . Acontece apenas que percebemos, ao mesmo tempo, ahIst~na avançando, que nenhuma sociedade, nenhum movimenn, estivera, afinal de contas, à altura de nossos desejOS e de,nossas necessidades. Então, de duas uma: ou nossos desejos e nossas necessidades são falsos ou há aí um problema. Este problema não sei como resolvê-lo eis por q~e q"uero discuti-lo. Mas se há este problema é pois que ha ?ao somente descontinuidade, mas ritmos total- mente dIferentes em uma mesma sociedade:--~ 35DA ECOLOGIA A AUTONOMIA CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT34 o nuclear - acredito que isso já foi muito bem dito aqui e não voltarei a insistir nisso -, o problema do nuclear em si, da energia, me interessa pouco ou nem um pouco ou totalmente. Começo a ficar cheio dos debates em que o pessoal quer demonstrar que poderíamos dispor da mesma quantidade de energia utilizando o solar. Acredito que a este respeito o Departamento de Defesa dos Estados Unidos fechou o bico de toda uma fração do movimento antinuclear ao dizer: "É verdade, é preciso que nos perguntemos se não poderíamos, no deserto onde há bases militares norte-americanas: fornecer a estas bases eletricidade a partir do sol". Por conseguinte: foguetes atômicos de um lado e de outro toda a base militar abas- tecida em eletricidade solar. Por conseguinte, o solar em si não é uma resposta a nada, e aliás os maiores investi- mentos neste domínio neste momento são feitos pelas multinacionais que compreenderam que há aí, para o futuro, possibilidades enormes. Pode-se efetivamente, sem mudar de tipo de sociedade, esquentar pela eletri- cidade solar quase todas as casas, em quase todas as regiões. A ciência avançando pouco a pouco, não há aí problema insuperável. Portanto, é evidente que o problema é 9_PL()1Jlefl}a do modo de vida. E este problema é preciso colocá-lo politi- cãiiiente.-Nãü-se trata apenas de dizer: "Eu quero viver minha vida em algum lugar no meu cantinho". É possível fazê-lo, não critico os que o fazem. Pois compreendo muito bem também que não se pode lutar indefinida- mente sem querer, num momento ou noutro, realizar sua própria experiência à parte, assim como quem não quer nada, para respirar um pouco ou porque não se pode fazer de outra maneira. Mas não é possível acreditar que isso pode mudar alguma coisa. O sistema capitalista pode integrar tudo. Nos Estados Unidos integrou alternativas de maneira fantástica. Existe nos Estados Unidos uma sociedade paralela onde se pode viver sem dar de cara um minuto sequer durante vinte e quatro horas nem com .o horrendo Carter, nem com a horrenda polícia, nem com o nuclear; vive-se no seu mundo próprio. E isso não muda nada do restante. O problema político é o seguinte: como fazer de nossa concepção, caso tenhamos uma, de nosso modo de vida, um debate que se coloque no terreno público; isto é, como confrontar, nesta situação de ruptura, as pessoas com este outro modo de vida? Tradicionalmente, falava-se de uma outra maneira. Por exemplo, no marxismo-leninismo o mais simples, dizia-se: as pessoas não têm consciência do caminho que é preciso tomar; nós que temos esta cons- ciência devemos, organizar-nos para fazer propaganda, ~tc. ~~s, para.nos, co~oca-se a este respeito um problema ideológico. POIS, depois de todas as experiências que fize- mos ---'-- quer s~jam os movimentos subjetivos, os movi- mentos culturais, o movimento das mulheres, o movi- mento dos homossexuais, o movimento dos jovens, dos / garotos, etc. -, nós sempre nos apercebemos, a partir de . um certo momento, que as estruturas que criáramos que- brar~m a cara. Isto é, que não há e que não temos pers- pectrva. Descrevo tudo ISSO um pouco rapidamente, mas ?eJato o que me trabalha neste momento é a seguinte idéia: "PorDeus do céu, hájáquinzeanos nós fazemos eu faço política ~om a certeza ou esta esperança de que' há uma POSSIbIlIdade de transformação da sociedade na q~a.l v~;o. E ao mes:no tempo, paralelamente, tenhod~vIdas . E quando digo que tenho dúvidas não é para~,Izer: estou seguro de que as dúvidas, no final das contas, em fundamento, mas não ouso confessá-lo a mim mesmo' N- -, . . . ao, nao e ISSO. MUltas vezes também politica- mente t . , . , ernos a tmpressão de ter razão estamos segurosA este . '.'f. ,. respeito, o nuclear é um sintoma absolutamente antastICO. Não sei se isso acontece a vocês com freqüên- 36 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA 37 38 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA A AUTONOMIA • 39 cia, mas eu me digo constantemente que nossa argumen- tação neste plano é sem falhas. Por exemplo, sobre o pro- blema que levanta Castoriadis: será que aluta contra o nuclear significa que não queren:Wsdetricidade1 lSão, é claro; ela significa que podemos encontrar outra coisa. Mas quando dizemos isso, dizemos também: efetiva- mente, toda sociedade neste momento está organizada de tal maneira que tem necessidade do nuclear ou de um substituto ao nuclear; portanto, se um Harrisburg explodir amanhã em algum lugar, o capitalismo encon- trará um substituto. Porque o capitalismo sempre mostrou que tem uma coisa que em qualquer caso elesabe defender, ou seja, sua própria subsistência. Portanto, se ele perceber - como já percebeu em outras situações his- tóricas - que está em um caminho errado tecnologica- mente, transformar-se-á. É por isso que não acredito que a luta antínuclear devesse derivar na direção de velhos devaneios trotskistas. Não teria sentido formular um "programa de transição" antinuclear, afirmando: isto, o sistema não poderá integrá-lo, e como as massas têm necessidade de um programa concreto, elas seguirão a linha deste programa concreto e assim o sistema encon- trar-se-á, automaticamente, posto em questão. A questão é muito mais complicada do que isso. Lembro-me a este respeito que neste verão encontrei por acaso numa cidadezinha corsa (verdadeiramente por acaso, que não venham me dizer: ah! eis aí as tuas freqüen- tações), numa praia, Laurent Fabius, um dos dirigentes do partido socialista francês, que tem a minha idade. Começamos a discutir e estava fantástico: creio que então comprendi de repente alguma coisa. Discutíamos sobre a sociedade, sobre o tipo de sociedade que queremos e no fim eu disse a ele: "Bem, o que é que vocês querem? Vocês querem um pouco mais de carros? Querem Renault um pouco melhor ou o quê? Qual é o projeto de vocês'!". Ele me disse: "Dany, isso tem uma importância secundária". "Ahl, eu disse, não diga!" Ele me disse: "Você compreen- de, todo o problema político é o seguinte: há em nossa sociedade desigualdades". Eu disse: "É verdade!" (riso geral na sala). Ele continua: "Tudo o que é preciso fazer é dar a impressão, não somente a impressão, mas ter um programa para superar estas desigualdades. Dando assim a esperança de superar as desigualdades, chegare- mos ao poder e, uma vez no poder, .. colocaremos o problema da sociedade". A V~}.!:l_'!-"hi~tórià': tomamos o poder e en~ seguida diremos às pessoas o que é precisô fazer. E creio que todas as organizações políticas têm este sonho. Elas sabem muito bem, como disse Castoriadis que o capitalismo fez a conquista das cabeças das pessoas e que nenh~ma estratégia até o momento chegou a refazer esta conquista, a retomar, a liberar as cabeças. Então tenta-se fazer a conquista da instituição que domina estas cabeças para, utilizando a mesma estrutura contínuar. Ora, há mil exemplos, de Portugal até não sei onde, que most~am que este método não funciona. É aberrante a~redltar que um país possa passar em três semanas de cinqüenta anos de fascismo para o socialismo autogerido ou para algo ?e análogo. Isso quer dizer que se pretende que em sua Vida as pessoas não sentem nada não vivem nada, não compreendem nada. ' Há umexemplo histórico recente que deveria fazer-nos compreender a_necessidade de uma reflexão deste tipo, é o exemplo do Ira. Todos os estrategistas da esquerda e da ~xtre~a-:esquerda nos disseram depois da derrota do m~penahsmo no Vietnã: o imperialismo reestruturou-se cnan~o aquilo que chamamos de Trilateral. Vocêsconhe- ce'-:l1 ISSO, suponho. E esta Trilateral domina o mundo O Ira o Xá er d '1 desta Tri ., a um os pr ares esta Tnlateral; e um velhobarbud . . A' .. o, com rntrncassetes, pos abaixo toda a estratégia da Tnlateral. Portanto, há efetivamente momentos histó- I. - Referência a Maio de 68: a Brecha. de Edgard Morin, Claude Lefort e Castoriadis (Edições Fayard, Paris. junho de 1968).O título "A Brecha" foi proposto por Claude Lefort. (Nota de Castoriadis.) ricos em que a revolução é possível porque aqueles que estão no poder e o próprio sistema social são incapazes por razões históricas de responder às necessidades das pessoas - necessidades que não são somente necessi- dades materiais, mas que estão cravadas na cultura e na vida das pessoas. Então o poder mais fantástico se esboroa como um castelo de cartas. E aqui não falo de minha atitude em relação ao Islã, isso não me interessa neste nível. O que me interessa é que há aí um processo revolu- cionário - se chamamos revolução uma mudança radical do poder sem que haja, não diria um tiro, mas sem que haja tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno. Houve efetivamente no Irã massas de pessoas que destruíram um poder sem tomá-lo - o que coloca por outro lado o pro- blema daqueles que o tomam. Se quisermos hoje medir a dimensão de nossa questão sobre á Revolução, veremos que se trata, grosso modo, do seguinte: estar confrontado com uma sociedade auto- satisfeita e não autogerida que nos aparece como um muro contra o qual vamos, com uma disposição fantástica, quebrar nossa cara por ondas históricas suces- sivas sem ser capazes de tirar daí as lições. Para sair daí é preciso resolver esta grande questão: como ser capazes de fazer política - isto é, organizar-se, tentar refletir, tentar desestabilizar o sistema social, criando uma brecha - para retomar uma das expressões que devo ainda a Castoriadis e Lefort I - na qual se precipitam um monte de coisas e um monte de pessoas. Portanto, formular um projeto revolucionário, um projeto político que é no começo minoritário mas a partir do qual podemos a qualquer momento explicitar o que faríamos se fôssemos majoritários. .. 41 ----"'-------- DA ECOLOGIA A AUTONOMIA Por que as pessoas aceitam este sistema social tal como existe? Nós sentimos esta sociedade como não sendo livre. Vivemos com necessidades que não podemos satisfazer nesta sociedade. Por exemplo, não temos nenhuma vontade de trabalhar em uma fábrica, ou em uma escola ou onde quer que seja durante quarenta ou cinqüenta horas por semana. Se há os que querem, é problema deles; mas nós temos uma concepção da vida segundo a qual devemos decerto fazer um trabalho útil durante um certo tempo, mas o essencial do trabalho nós o vemos corno criação, que ultrapassa de longe o que podemos fazer nesta sociedade onde somos obrigados á trabalhar perpe- tuamente apenas para ganhar a vida. Ora, se as pessoas aceitam o sistema social tal como é, eu creio - é um problema muito difícil e é necessário ser prudente neste ponto - que é sobretudo porque lhes apa- rece como sendo, dentre todos os sistemas que se lhe propõem a nível mundial, talvez o mais livre. E é esta uma das razões pelas quais não saberíamos jamais ser antico- munistas em demasia. Pois uma das motivações mais poderosas que fazem com que as pessoas em nossas socie- dades não queiram mudar é fornecida pela existência de um outro sistema pelo qual não queiram trocar seu modo de vida. E isso é uma experiência que não está nem mesmo a nível consciente. Aqueles que não vêem esteproblema podem ir à Alemanha onde é efetivamente muito claro: há duas Alemanhas e é possível visitar Berlim Oriental para ver o que é o socialismo real. Mas se olharmos mais profundamente, apercebemo- nos. de que a sociedade capitalista nela mesma é uma sociedade "socialista". Tomemos os Estados Unidos: há duzentos milhões de pessoas, e cento e trinta milhões de pessoas que grosso modo ganham a mesma coisa, comem a mesma coisa, olham os mesmos programas de televisão, fazem amor da mesma maneira, têm os mesmos carros, s I r CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT40 fazem sei lá o que da mesma maneira, se enchem da mesma maneira, têm obesidade da mesma maneira ~ não sabem o que fazer de sua vida da mesma maneira. E, em um certo sentido, o "igualitarismo" - e o sonho das socie- dades "socialistas" é criar este "igualitarismo'tO capita- lismo e as sociedades ditas "socialistas" têm o mesmo medo: o medo da diferença, o medo do indivíduó.J Politicamente, deveríamos ser capazes, em um movi- mento não simplesmente antinuclear mas ecológico, de colocar todos os problemas e colocá-los de maneira sim- ples, aceitando, ao mesmo tempo: suas contradições. ,~m movimento, por exemplo, que dIZ: fazemos uma cntica radical da sociedade tal como existe, não queremos viver nas famílias tais como as que conhecemos, à maneira de nossos pais ou outras pessoas. Criamos comunidade~. Mas ao mesmo tempo sabemos que em nossas comum- dades sentimos necessidades de restituição da família. Quero dizer: deveríamos ser capazes de colocar nossas necessidades e suas próprias contradições, que são também nossas necessidades. É isso que chamo um movi- mento democrático: um movimento capaz de mostrar que suas críticas da sociedade e as necessidades que valoriza não querem dizer que não compreenda as contradições e a existência de outras necessidades. Pois cada qual só tem uma vida. Volto a minha questão: por que as pessoas aceitam o sistema? Se discutimos com as pessoas em um engarrafa- mento, ninguém vai nos dizer: "É meu sonho, todas as noites, os engarrafamentos. Sem engarrafamentos eu seria verdadeiramente infeliz". Na realidade, o que eles pensam é: não há alternativa; e eu pago o engarrafa- mento para ter quatro semanas de férias. A gente fica com quatro semanas de férias, que são um sinal de liberdade; e também não é isso. Mas é difícil organizar sua vida de outra maneira quando não há efetivamente movimento social propondo uma alternativa. E é aí que tudo parece morder a própria cauda. Não há movimento que permita às incertezas dos indivíduos se resolverem. Mas em uma situação de ruptura social, como Maio de 68, ou então as grandes manifestações anti nucleares que nos foi possível viver na Alemanha, apercebemo-nos de repente de que essas incertezas efetivamente existem. Exemplo: Gorleben, na Alemanha, onde devia ser cons- truída a grande usina de tratamento dos lixos nucleares, é um recanto verdadeiramente "católico" (calho), que votava sempre 70 por cento pelos democrata-cristãos. Estas pessoas se mobilizaram contra esta usina por razões freqüentemente absurdas: "Sob Hitler nunca teríamos tido centrais nucleares" (risos na safa). O que quero dizer é que não é assim tão simples. E, quando a gente discute com os camponeses, constatamos que essas pessoas descobrem os cabeludos, as comunidades e de repente dizem com seus botões: "Mas o que é que está havendo? Eu estou contra aqueles pelos quais votei e me vejo ao lado dos cabeludos que sempre xinguei". Eles se colocam questões. Aí aparece, efetivamente, a possibilidade de ultrapassar alguma coisa. Mas eu acredito que nenhum movimento é ainda capaz neste momento - nem nós, nem o camponês - de aceitar esta diferença enquanto tal e principalmente deixá-la caminhar. Todo movimento político aceita como ponto de partida a diferença mas para depois suplantá-la - é o que se costuma chamar, politicamente, de "dialética". Penso que devemos deixar existir estas diferenças antes de suplantá-las, dar-lhes a possibilidade de se exprimir para que uma subjetividade política possa ser encontrada. As alternativas políticas tais como as construímos, o movimento ecológico, por exem- plo, determinam os limites do campo de nossa utopia. determinam o quadro no qual nossa utopia tenta se exprimir. Mas ao mesmo tempo, na confrontação política 43DA ECOLOGIA A AUTONOMIACORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT42 tal como ocorre hoje, é preciso ser muito prudente antes de rotular alguém de progressista ou conservador, reacio- nário, reformista ou revolucionário. O movimento antinuclear é muito complexo deste ponto de vista. É verdade que se diz, e que Castoriadis disse, que na Alemanha há, no movimento, fascistas. Há um retorno àquilo que se chamava de BIU! und Boden - o sangue e a terra. Há uma tentativa de retomar contato com esta identidade perdida que o fascismo dera ao povo alemão. Pois o fascismo também é um problema que algum dia vai ser preciso tentar compreender. O fascismo não veio por acaso nem foi simplesmente imposto de cima. O fascismo foi a expressão de um povo que não tinha mais identidade e que saltou no abismo. Havia esta busca de identidade, não foram os dez mil malvados capitalistas que manipularam o povo alemão, é preciso partir de baixo. Hoje, o mesmo Hitler, os mesmos capitalistas, não teriam nenhuma chance na Alemanha, nenhuma, nenhuma, nenhuma. Mas falando de fascismo, eu gostaria de dar um exemplo do que chamo agircomo maioria. Penso que ninguém pode suspeitar de mim, enquanto judeu, de ser pró-fascista; pois bem, sou partidário da liberdade de expressão para os fascistas e estou por aqui com aqueles que dizem: "A liberdade para todo mundo salvo para os inimigos da liberdade". Pois é esta frase que nos fará a todos passar para o Gulag mais cedo ou mais tarde. Para ser claro: se os fascistas distribuem panfletos, respondemos com panfletos; se quiserem efetivamente jogar outros jogos, nós também quebraremos a cara deles. Não se trata de dar a outra face, nem de dizer "tudo bem, pessoal, nós somos todos cristãos", nada disso; trata-se de defender coisas que aprendemos politicamente. Da mesma forma, a propósito do exemplo que dera Castoriadis, acredito que o problema daqueles que querem centrais nucleares seria simples de resolver se se instituísse na sociedade - o que seria o caso se fôssemos majoritários - a possibilidade de um debate. A ausência desta possibilidade é uma das críticas que dirigimos a esta sociedade. O movimento anti-nuclear, o movimento ecológico deve tentar conquistar todos os terrenos que o coloquem em posição de debate em todos os níveiscontra aqueles que, neste momento, dominam os debates. Toda política que não tenta, não diria conquistar as cabeças, mas pelo menos sensibilizar as cabeças, caminha para o fracasso. Se falamos tanto em autonomia e em criação, devemos demonstrar em nossas estratégias, de uma maneira exemplar, nossa capacidade, no movimento, de criar indivíduos autônomos. Leiam Trotski, vocês vão ver que ele fala sempre das massas como de campos de trigo que pendem para um lado e depois para o outro. Ou então, há a Internacional que duela com o Imperialismo; ele se vê sempre no comando e atrás dele há milhões e milhões; toda esta imaginária da classe operária que nos vem dos anos 20, cada operário semelhante ao outro, etc. Pois bem, não, estamos cheios disso. Se nosso movimento dá não somente a impressão de que um não se assemelha ao outro, mas mostra que somos realmente diferentes e que nesta diferença conseguimos fazer política - aí então poderemos pôr efetivamente em perigo o sistema social. Pois este sistema pretende defender a liberdade individual e neste terreno nenhum movimento até agora tentou colocá-lo em questão. A gente sempre disse: "Essas aí não passam de liberdades formais e nós queremos liberdades reais". Mas é outra coisa que se trata de dizer:
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