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MOTTA, R.P.S. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia

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Prévia do material em texto

Rodrigo Patto Sá Motta
30fo.2
c:J08
Joo9ORGANIZAÇÃO
Culturas Políticas na História:
Novos Estudos
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U.F.M.G.• BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA
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NÃo DANIFIQUE ESTA ETIQUETA
ARC(VMSNTVM
Belo Horizonte
2009
APRESENTAÇÃO
COmRaquel Pereira, no capítulo 9, o foco retoma para a cultura co-
munista, em estudo que privilegia a atuação do PCB em Belo Horizonte, no
contexto pós-Segunda Guerra. O texto analisa as estratégias de mobilização
do Partido Comunista para ocupar espaços físicos na cidade, em que se ex-
pressaram traços da cultura política dos comunistas. A atuação do Partido
criou espaços de entretenimento que se tornaram também cenários da luta
política. A estrutura ramificada do PCB, com células e comitês instalados
em diversos pontos da cidade, produziu relação diferenciada com o espaço
urbano, permitindo a identificação de uma cartografia política da atuação
do Partido em Belo Horizonte.
No último texto da coletânea, Rosângela Assunção se inspira nas dis-
cussões teóricas em torno da categoria cultura política para compreender
o comportamento dos policiais doDOPS mineiro. O trabalho sinaliza para
a correlação existente entre a instância política e a dimensão cultural, em
que questões como valores, crenças, atitudes, linguagem e imaginário são
essenciais para compreender as ações políticas. Considerando o imaginá-
rio como um dos elementos constituidores da cultura política, Rosângela
Assunção analisa o imaginário anticomunista dos policiais do DOPS/
MG entre as décadas de 1930 e 1960, que, além de ter contribuído para
formação de identidade policial própria, conferiu sentido e legitimou as
ações repressivas contra os "inimigos subversivos".
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CAPÍTULO 1
Desafios e possibilidades na apropriação de
cultura política pela historiografia
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Rodrigo Patto Sá Motta
Este texto é baseado em reflexões acumuladas nos últimos dez anos,
beneficiadas por cursos ministrados na pós-graduação em História na
UFMG que suscitaram questões e debates estimulantes. Um dos objetivos,
ao escrevê-Ia, é precisamente oferecer aos estudantes uma porta de entrada
a esse universo conceitual, por vezes espinhoso.
O interesse por cultura política começou por volta de 1995, quando
buscava estabelecer um quadro conceitual para estrutura r minha tese de
doutorado. Vinha de pesquisas sobre história política em vertente mais
"clássica" e desejava renovar horizontes, sob influência das novas correntes
historiográficas. Publiquei, em 1996, um texto contendo as primeiras refle-
xões sobre o tema, lançando mão da literatura que pude encontrar. O texto
(Motta, 1996)1 hoje me parece ingênuo, mas então havia poucos trabalhos
sobre cultura política na historiografia, sobretudo no Brasil, de modo que
não havia bases sólidas para apoio. Desconhecia que, pelos menos desde
1992, um grupo de historiadores franceses estava empenhado na apro-
priação do conceito. Autores como Serge Berstein e Jean-François Sirinelli
) 1 -O vinham fazendo uso da categoria para estudar a história política francesa,
. - em textos que são hoje bastante conhecidos e que servem de base para a
l0''- ') maioria das reflexões dos historiadores brasileiros engajados no debate.
A força de atração exercida por cultura política em anos recentes
deve-se, principalmente, à hegemonia do paradigma culturalista. Em outros
momentos a política, a economia ou fatores sociológicos assumiram o papel
1Contribuições significativas ao debate teórico sobre cultura política têm sido publi-
cadas por historiadores e cientistas sociais brasileiros: Gomes (2005); Dutra (2001);
Kuschnir e Carneiro (1999); Krischke (1997); e Rennó (1998).
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de explicação última para os processos históricos, mas hoje a cultura ocupa
esse lugar. Nos dias atuais é muito influente a percepção de que a cultura
determina o desenrolar dos acontecimentos, da mesma forma como décadas
atrás se pensava que a economia ou os interesses sociais ofereciam a chave
para compreender a dinâmica da história. Em se tratando do paradigrna
culturalista, o mais preciso não é falar em dinâmica, ou movimento da
história, e sim em permanências e mudanças lentas. Como tudo tem sido
explicado pela influência dos fatores culturais, a política não poderia ser
exceção, daí o caráter sedutor de cultura política, que permite uma abor-
dagem culturalista dos fenômenos relacionados às disputas pelo poder.
O número de interessados por cultura política aumentou muito nos
últimos anos e transbordou os estreitos limites do universo acadêmico. O
conceito tem sido cada vez mais utilizado pela mídia e, num sinal da força
crescente de seu apelo, tem sido mobilizado até por políticos profissionais
e organizações sociais. Daí outra motivação para escrever este texto: a
percepção de que cultura política corre o risco de banalização, graças ao
uso generalizado. Tornou-se conceito da moda. Há muitos incentivos ao
usá-Io, sobretudo o desejo de mostrar-se atualizado, mas nem sempre há
preocupação com rigor e clareza na sua utilização. Muitas vezes, a categoria
tem servido apenas de rótulo novo para conteúdo antigo, como estratégia
para alcançar melhor inserção no mercado acadêmico ou na mídia. As-
sim, a expressão é mobilizada - e quase sempre sem a preocupação de
definir seu significado - em situações em que o mais adequado seria usar
termos como idéias políticas, discursos políticos ou hábitos políticos. Em
outros casos, igualmente inapropriadamente, fala-se em cultura política de
épocas, às vezes até de períodos de tempo mais precisos, como décadas
(a cultura política da década de 1920 ...").
Não se trata de almejar, arrogantemente, o papel de censor dos con-
ceitos ou guardião da pureza dos significados. A preocupação tem base
na convicção de que para haver inteligibilidade na discussão acadêmica
são necessários clareza e algum rigor no uso de conceitos e categorias.
Se cada um usar os conceitos corno bem lhe aprouver, os debates toma-
rão feições babélicas, com cada interlocutor usando linguagem diferente
e ninguém se entendendo. Os conceitos são quase sempre polissêrnicos,
sobretudo nas ciências humanas e sociais, portanto é normal admitir a
existência de mais de um significado aceitável para a mesma expressão.
Entretanto, há concepções mais consistentes e precisas, enquanto existem
usos inadequados e/ou confusos.
Em que pese a sugestão de cautela no uso do conceito, não há dú-
vida que cultura política envolve um campo conceitual muito fértil, com
14
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possibilidades instigantes de alargar nossos horizontes ele conhecimento e
compreensão. Por isso, a exposição se centrará na discussão dos aspectos
problemáticos elouso de cultura política, mas também nas potencialidades
que ele oferece. Antes, porém, serão necessárias breves referências às
origens do conceito, para situar a discussão e esclarecer a maneira como
ele será apropriado neste texto.
***
A categoria cultura política foi construída no século XX, mas seus
formuladores retiraram inspiração de autores que escreveram em períodos
anteriores. Um deles foi Alexis de Tocqueville, no livro A Democracia na
América, de 1835. Nesse trabalho, hoje um clássico, o pensador francêsdesenvolveu a idéia de que a força da organização política dos norte-ame-
ricanos derivava não somente das instituições, mas tinha relação com os
hábitos e costumes daquele povo, o que ele chamou "hábitos do coração"
(Formisano, 2001:393-426). Tal insight seria aproveitado e desenvolvido
por cientistas sociais do século XX, responsáveis por elaborar o argumen-
to de que o funcionamento dos sistemas políticos dependeria de fatores
culturais. Valeria a pena, também, na busca por precursores, investigar a
eventual contribuição da historiografia e filosofia alemãs do século XIX,
que desenvolveram o conceito Kuluu. Como entendiam que cada povo
tinha sua própria Kultur e que alguns eram culturalmente superiores,
seria razoável supor que esse pensamento implicasse a existência de uma
cultura política correlata. Mas para verificar tal hipótese seria necessário
empreender outras pesquisas, fugindo ao escopo deste trabalho.
Em seus usos iniciais, o conceito implicava certa hierarquização,
a compreensão de que alguns povos possuem cultura política, são mais
avançados, enquanto outros ainda não a têm, ou apenas em forma inferior
e incompleta. No último caso, pairava o suposto de que nos casos de au-
sência era necessário desenvolver a cultura política, inculcá-Ia nos povos
e sociedades ignaros. Encontramos o uso da expressão cultura política no
Brasil antes de ter se tornado conceito das ciências sociais, provavelmente
na acepção apresentada há pouco. Parece-me ser este o sentido do termo
cultura política que figurava no título da conhecida revista do Estado
Nov02: constituir. uma cultura política para uma nação considerada em
2 Cultura Política circulou entre 1941 e 1945. CL Gomes (1996).
15
DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA APROPRIAÇÃO DE CULTUHA POLÍTICA PELA HISTORIOGRAFIA
estágio infantil, incapaz de auto-governo. Desejava-se, talvez, forjar uma
cultura política para um povo inculto, cultivá-Ia. Curiosamente, após o
fim do Estado Novo e o fechamento da revista Cultura Política, o Partido
Comunista apropriou-se do termo ao adotá-lo como subtítulo de sua mais
importante publicação teórica: Problemas - Revista Mensal de Cultura Polí-
tica, que circulou entre 1947 e meados dos anos de 1950. Provavelmente,
os intelectuais do PCB usaram o termo para expressar a intenção de atuar
na formação e disseminação de valores políticos comunistas.
O conceito cultura política ganhou estatuto acadêmico e as primeiras
reflexões sistemáticas nos anos de 1950 e 1960, em meio ao debate das
ciências sociais norte-americanas. A motivação dos autores a discutir o
tema era compreender melhor a origem dos sistemas políticos democráti-
cos, partindo da percepção da insuficiência dos paradigmas iluministas
que viam o homem como ator político racional. Questionando a fragili-
dade das explicações tradicionais, alguns cientistas sociais começaram a
formular a hipótese de que democracias estáveis demandavam cidadãos
com valores e atitudes políticas internalizadas, ou seja, a presença de uma
cultura política.
Outro motivador para tais estudos era a preocupação de fortalecer o
campo "democrático" num contexto de disputa com o bloco socialista, o
que levou à criação de modelos de desenvolvimento aplicáveis em escala
global, sob influência das teorias de modernização em voga nos Estados
Unidos no período pós-Segunda Guerra. Ponto de partida: a concepção
de que as sociedades ocidentais, sobretudo os EUA, eram democracias
sólidas e estáveis, ficando implícita a superioridade de seu modelo em vista
das outras opções disponíveis. Como decorrência, tais democracias eram
exemplos a serem seguidos pelos povos ainda não bafejados pela sorte ou
virtude, tratando-se de encontrar explicações para a origem das diferenças
e elaborar roteiros seguros para que todos chegassem lá.
Nesse campo, ficaram célebres os trabalhos de Gabriel Almond e
Sidney Verba, principalmente no livro The Civic Culture.3 Influenciados
pelas pesquisas da antropologia, mas principalmente da psicologia," eles
3 O título completo é The Civic Culture. Political attitudes and democracy in five na-
tions (1963).
4 A def nição que usam para cultura enfatiza a dimensão psicológica: "Aqui devemos
salientar que empregamos o conceito de cultura de acordo em apenas um de seus
muitos significados: o de orientação psicológicafrente aos objetos sociais" (Rere we can
only stress that we employ the concept of culture in only one of its many meanings:
that.of psychological orieruation. touiard social objects) (Almond e Verba, 1963:13).
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RODRIGO PATIO sÁ MOTIA
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entendiam que a compreensão das ações políticas demandava enfoque
capaz de entender a influência de valores, sentimentos e tradições. Criaram
uma complexa tipologia para enquadrar as diferentes formas de cultura
política, culminando num esquema que as resumia a três tipos básicos:
cultura política paroquial, cultura política da sujeição e cultura política
participativa. A última, naturalmente, correspondia ao estágio superior
e à meta a ser alcançada pelos povos em atraso na corrida para a demo-
cracia, e quando em combinação com estruturas políticas democráticas
dava origem à cultura cívica.
O esquema teórico proposto pela dupla não era tão simplório como
muitas vezes se pensa, pois eles apontavam a complexidade do fenômeno"
e a presença de situações híbridas, sociedades em que vigoravam simulta-
neamente dois ou mesmo os três tipos de cultura politica. Exatamente por
isso, propuseram o termo sub-cultura política, para enquadrar casos em
que mais de uma cultura política convivia no mesmo espaço. Não é possível
alongar-me na explicação do modelo de Almond e Verba, mas importa enfa-
tizar que cultura política é pensada em termos de espaço nacional (alemão,
italiano, inglês, etc.), com óbvias implicações etnocêntricas. Desde então
se iniciou um debate acirrado nas ciências sociais, ainda inconcluso, sobre
o real potencial explicativo de cultura política, que tem gerado contendas
aguerridas entre entusiastas e céticos (Formisano, 2001).
Como foi comum ao longo do século XX, os historiadores se apro-
priaram de mais essa construção teórica das ciências sociais. Dado que
cultura política teve seu primeiro desenvolvimento acadêmico nos Estados
Unidos, não é de espantar que historiadores desse país estivessem entre os
primeiros a fazer uso da categoria. Um dos pioneiros foi Bernard Bailyn,
em seu livro As origens ideológicas da Revolução Americana, publicado
originalmente em 1967, que em referência ligeira menciona a influência de
uma cultura política anglo-americana sobre os colonos que se rebelaram
e construíram a nova nação."
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5 Tampouco achavam que se tratava de questão simples a exportação do modelo de-
mocrático para as regiões periféricas ao mundo ocidental. Recomendavam aos países
em atraso investir na modernização industrial e no desenvolvimento da educação,
pois tais processos ajudariam na formação da cultura cívica. Porém, advertiam, não
havia como garantir resultados positivos, pois a verdadeira cultura política demo-
crática demandaria tempo para ter consolidados seus valores básicos (pluralismo,
tolerância, moderação, confiança nas instituições entre outros).
6 Segundo Bailyn (2003:143), a convicção dos revolucionários de que estavam frente
a uma conspiração para destruir a liberdade tinha raizes "laboriosamente fincadas
na cultura política anglo-norte-americana".
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DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA APROPRIAÇÃO DE CULTURA POLÍTICA PELA HISTORIOGRAFlA
18
Entretanto, em que pese a existência de casos como o de Bailyn,
durante o período de implantação de cultura política nas ciências sociais
o grosso da corporação dos historiadores demonstrou pouco interesse pela
categoria. Na fase compreendida entre os anos 1950 e 1970, a historiografia
mais dinâmica estava pouco interessada em estudar os fenômenos políti-
cos. Nessa época exerciammaior força de atração pesquisas privilegiando
processos econômicos e sociais, e as possibilidades de renovar a história
política a partir do uso do novo conceito foram pouco aproveitadas.
O conceito passou a ser efetivamente apropriado pelos historiadores,
sobretudo os franceses, a partir do chamado (talvez mal chamado) retorno
dato) política(o), nos anos 1980 e 1990. A idéia de retorno da política pode
ser mistificadora, pois diz respeito mais à historiografia francesa que à de
outros países. Porém, dada a grande influência dos franceses sobre a his-
tória praticada no Brasil, a ênfase nas tendências historiográficas daquele
país é justificada. O fato é que estudos dedicados a fenômenos históricos
de natureza política têm se avolumado, e cultura política muitas vezes tem
ocupado papel-chave na renovação das abordagens. No período recente,
aliás, notam-se movimentos convergentes de várias disciplinas, cada vez
mais interessadas pelos encontros e influências mútuas entre cultura e
política. Além da própria história política: história das idéias, história do
livro e da leitura, história cultural, antropologia' e ciência política, para
ficar apenas em alguns exemplos.
Como já foi dito, na historiografia francesa aparecem no início dos
anos 1990 algumas reflexões que lançam mão de cultura política, princi-
pal mente trabalhos de S. Berstein e J.F. Sirinelli. É importante mencionar
que esses historiadores são externos ao movimento dos Annalles , que
tradicionalmente foi pouco receptivo à história política. Berstein e Sirinelli
pertencem a grupo que se desenvolveu à margem da influência dominante
dos Annalles sobre a historiografia francesa, trabalhando em instituições
como a Fondation Nationale des Sciences Politiques (e o Instituto de Estudos
Políticos de Paris) e sob a liderança informal de René Rémoncl. Rémoncl,
por sinal, organizou uma coletânea que é verdadeiro manifesto do retorno
da política, Por uma História Política (Rémond, 1996), tendo entre seus
colaboradores justamente Sirinelli e Berstein. Um dos propósitos desse
livro, é factível conjecturar, era marcar posição num momento em que a
história política voltava a posição de destaque na historiografia francesa.
Praticantes da história política numa fase em que ela estava desprestigiada
7 Para um balanço sobre as maneiras como aAntropologia tem pesquisado a política,
inclusive a cultura política, ver Kuschnir (2007).
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RODRIGO PATTO SÁ MUITA
e fora de moda, Rémond e seu grupo desejavam ocupar lugar proeminente
na hora do "retorno". Nada mais justo.
A coletânea Por uma História Política, publicada originalmente em
1988, é referência importante para compreender os caminhos trilhados
pela "nova" história política, e também para situar os estudos de cultura
política nesse processo. O propósito do livro, para além da já mencionada
intenção de marcar posição, era mapear os novos estudos que vinham
sendo feitos na área, mostrando as possibilidades disponíveis aos inte-
ressados. Há textos sobre eleições, partidos, intelectuais, mídia, guerra,
biografia, entre outros, em que se enfatiza o uso de fontes e abordagens
inovadoras. Porém, e significativamente, entre os textos do livro não há
um capítulo para cultura política. O conceito não está ausente do trabalho,
mas aparece apenas em referências breves, principalmente na introdução
e na conclusão do livro, ambas escritas por Rémond.H Ele prenuncia que
cultura política, conceito novo, tendia a ocupar lugar de destaque em
futuros trabalhos, e apresenta uma definição da categoria mais próxima
de modelos tradicionais, associando-a à configuração nacional ("ethos de
uma nação", "gênio de um povo'')."
Alguns historiadores do grupo seguiram por essa senda e desenvolve-
ram o conceito, mas o fizeram a partir de diversa apropriação de cultura
política. É certo que esses autores tiveram como ponto de partida a con-
tribuição norte-americana,'? mas ao contrário dos cientistas sociais dos
EUA - muito influenciados pela sociologia e a psicologia - o grupo francês
tem sua maior fonte de inspiração na antropologia, de cujo conceito de
t .
8 No capítulo que escreveu para a coletânea, dedicado aos partidos políticos, Serge
Berstein também menciona, rapidamente, cultura política. Porém, em postura con-
trastante com o posterior investimento e importância que conferiria ao conceito, aqui
Berstein entende cultura política como fenômeno integrante da ideologia.
9 Eis as passagens do texto, na íntegra: "Enfim, a noção de cultura política, que
está prestes a ocupar, na reflexão e explicação dos fenômenos políticos, um lugar
proporcional ao vazio que ela acaba de preencher, implica continuidade na lon-
guíssima duração"; e "O que se chama às vezes de cultura política, e que resume a
singularidade do comportamento de um povo, não é um elemento entre outros cla
paisagem política; é um poderoso revelador cio ethos de uma nação e ciogênio de
um povo" (Rémond, 1996:35e 450).
10 Vale a pena investigar melhor os meios de 'transmissão que permitiram essa
apropriação. Uma dessas vias pode ter sido o livro da historiadora norte-americana
Lynn Hunt, de 1984, notável estudo sobre a Revolução Francesa e que encontrou
boa acolhida na França. Uma das categorias de análise utilizadas por Hunt foi
exatamente cultura política.
19
DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA APROPRIAÇÃO DE CULTURA POLÍTICA PELA HISTORlOGRAFIA
cultura se apropriaram. Eles formularam outra forma de conceber cultura
política, tomando por base duas críticas principais ao modelo original
norte-americano: primeiro, rejeitaram suas implicações etnocêntricas,
pois ficava implícita na teorização de Almond e Verba a superioridade
da cultura política cívica (ou democrática), considerada etapa superior e
referência a ser seguida pelos povos ainda presos a formas "atrasadas" de
organização política; segundo, entendiam ser inadequada a perspectiva
nacional, tida como excessivamente generalista ao atribuir a todo um povo
as características de uma mesma cultura politica.'!
Ao contrário, os historiadores franceses preferem enfatizar as diferen-
ças existentes dentro de um mesmo espaço nacional, a partir de um olhar
que privilegia a "pluralidade das culturas políticas" (Ber~tein,1988:354).
Assim, ao invés de procurar por uma cultura política específica de cada
povo, ou tentar enquadrar as diversas experiências nacionais na tipologia
de Almond e Verba (cultura paroquial, cultura da sujeição ou cultura
participativa), os trabalhos inspirados em Berstein e Sirinelli buscam
identificar as diferentes culturas políticas que integram e disputam um
mesmo espaço nacional. Dessa forma, privilegia-se o estudo das culturas
políticas comunista, socialista, liberal, conservadora (tradicionalista), re-
publicana, entre outras, que Berstein chama de famílias políticas. Aliás,
não fica clara a distinção estabelecida por esse autor entre cultura polí-
tica e família política, que parecem representar o mesmo fenômeno. Não
obstante enfatize a necessidade de tratar as culturas políticas sempre no
plural, Berstein admite, em determinados contextos, a predominância de
algumas delas, como a cultura republicana na França dos anos iniciais
do século XX.
O investimento que tais autores têm feito nessa vertente "pluralista"
do conceito guarda estreitas relações com a história política francesa. Esse
país foi marcado por grandes controvérsias e momentos de polarização
aguda, opondo, por exemplo, em diferentes momentos, monarquia uersus
república, e socialismo versus liberalismo. Num quadro de disputas acir-
radas, em que não há consensos políticos básicos e os grupos se engalfi-
nham em torno de projetos mutuamente excludentes, fica difícil imaginar
11 Esse argumento crítico não é inteiramente justo, pois, como vimos, Almond e
Verba entendiam que em muitos países prevalecia uma mescla entre as 3 culturas
politicas. Creio que, nesse ponto, a críticade Berstein visa a um tema secundário,
deixando de atacar o ponto principal: o esquematismo da tríade proposta peta
dupla de cientistas sociais norte-americanos, que pretende resumir toda a gama do
fenômeno das culturas políticas a apenas três formas essenciais.
20
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RODRlGO PATIO sÁ MOTIA
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:E~ a existência de referências políticas coletivas, aceitas sem contestação por
todos ou mesmo pela maioria.
Na conclusão de um de seus trabalhos mais recentes, a coletânea
Cultures polítíques en France, Berstein adotou posição mais nuançada sobre
o tema, partindo da constatação de que a exceção francesa já não existiria
mais (Berstein,1999:396). A França estaria vendo o fim da característica
que a distinguia dos outros países centrais: o fato de ser dividida e con-
flagrada por culturas políticas rivais. Nos albores do século XXI, o país
caminharia para um quadro de virtual consenso básico em torno dos
valores liberal-democráticos, de modo que deixava de ser exceção e se
aproximava do modelo de cultura política dos outros países desenvolvidos.
Nesse texto, Berstein deixa entrever uma oposição menos rígidaem rela-
ção à conceituação ao estilo norte-americano; ao falar num processo de
aproximação entre as culturas políticas na direção de consensos nacionais,
e ao chamá-Ias de sub-culturas, implicitamente está sendo admitida a
existência de uma cultura política nacional. Penso que não há razão para
opor os dois modos de aplicar o conceito, quer dizer, a versão no singular
(cultura política nacional) e a versão no plural (culturas políticas disputando
e tentando ocupar o mesmo espaço). A discussão será retomada adiante,
mas por ora diria que as duas maneiras são válidas e, mais ainda, em
alguns casos chegam a ser complementares.
Partindo do que já foi dito até aqui, é possível, além de necessário,
construir uma conceituação para cultura política. A proposição é polêmi-
ca e, inevitavelmente, não vai agradar a todos os interessados, mas vale
a pena correr o risco na tentativa de aprofundar o debate. Uma definição
adequada pará cultura política, evidentemente influenciada pelos autores já
mencionados, poderia ser: conjunto de valores, tradições, práticas e repre-
sentações políticas partilhado por determinado grupo humano, que expressa
uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como
fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro.
Importa realçar que a categoria representações está sendo entendida
no sentido de "re-apresentar uma presença (sensorial, perceptiva) ou fazer
presente alguma coisa ausente, isto é, re-apresentar como presente algo que
não é diretamente dado aos sentidos" (Falcon, 2000:46)Y Dessa maneira,
com base em enfoque de sentido amplo, representações configuram um
conjunto que inclui ideologia, linguagem, memória, imaginário e iconogra-
fia, e mobilizam, portanto, mitos, símbolos, discursos, vocabulários e uma
12 Na maneira como a categoria representações é apropriada aqui, contemplam-se
tanto questões referentes à cognição quanto à imaginação.
21
DESAFIOS E POSSIB!UDADES NA APROPRlAÇÃO DE CULTURA POLíTICA PELA HISTORlOGRAFlA
rica cultura visual (cartazes, emblemas, caricaturas, cinema, fotografia,
bandeiras, etc.).
O trabalho com tal tipo de conceituação traz uma série de questões e
implicações, e sugere algumas reflexões que passo a abordar de maneira
mais pormenorizada:
'-
• As variadas formas de manifestação das culturas políticas podem ser
mais bem observadas em dimensão comparativa. É colocando em contraste
culturas políticas diversas que melhor visualizamos suas características
e peculiaridades, que ficam mais visíveis quando comparadas com o di-
ferente, o outro. Assim, por exemplo, a tendência de um grupo a resolver
de maneira conciliatória e pragmática seus conflitos é mais bem compre-
endida quando se observa o comportamento diverso de outros diante de
situações semelhantes, em que não são possíveis soluções negociadas, e as
disputas são resolvidas à base do confronto. Porém, admitir a importância
do comparativismo não implica aceitar o olhar que hierarquiza as culturas
políticas e tenta enquadrá-Ias em chave evolucionista.
Na acepção usada aqui, cultura política só pode existir na duração,
como fenômeno estruturado e reproduzido ao longo do tempo. Se formos
usar a tipologia de Fernand Braudel, para configurar uma cultura política
seria preciso pelo menos a média duração, não obstante alguns casos pos-
sam ser classificados como de longa duração (a exemplo de republicanismo, "
liberalismo e socialismo). Parece inadequado usar cultura política tendo
como referência situações efêrneras, passageiras, pois se perde a força do
conceito, que reside exatamente em revelar como certos comportamentos
políticos são influenciados por elementos arraigados na cultura de um
grupo. O valor explicativo do conceito reside em mostrar como as ações
políticas podem ser determinadas por crenças, mitos, ou pela força da
tradição. Por isso, não há lugar para o efêrnero.
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RODRIGO PATTO sÁ MOTTA
demonstram maior rigidez e dificuldade para se reciclar correm sério
risco de esclerosar-se e perder densidade social, como tem acontecido em
alguns casos (Berstein,1999:394-395).
• Restringir os estudos de cultura política ao tema das representações
pode empobrecer a compreensão do fenômeno, pois as ações e práticas por
elas ensejadas, e que também atuam na sua constituição, são igualmente
importantes. De fato, o vasto patrimônio que conforma as culturas políticas
depende, para sua formação, das ações de seus inspiradores originais e
dos aderentes posteriores. Para a construção dos grandes mitos históricos
que fazem parte das culturas, com seus heróis e mártires, bem como o
desenrolar dos eventos-chave a eles relacionados, foi importante a ação
política de determinadas personagens. Por outro lado, a reprodução no
tempo das culturas políticas demanda a realização de práticas reiterativas,
como a repetição de rituais e cerimônias, e a participação em eventos e
manifestações que servem para selar o compromisso dos aderentes, con-
firmando o sentido de pertencimento a um grupo.
Mas não se deve opor práticas e representações, como se houvesse
entre as duas dimensões uma. clara linha de determinação. O melhor é
considerar a existência de relações de mútua determinação, ou uma espécie
de "via de mão-dupla". As ações influenciam as representações, que nelas
se inspiram e buscam forma, e também garantem sua reprodução através
de práticas rituais. Porém, as representações, ou os diferentes modos como
os grupos figuram o mundo, são determinantes para suas escolhas e ações,
pois os homens agem a partir de apreensões da realidade. Como sabemos,
elas são inevitavelmente incompletas e imperfeitas; no entanto, algumas
implicam distorção maior da realidade, devidoa interesse, paixão política
ou sentimentos como o medo. Influenciados por tais representações, os
homens orientam suas ações, e às vezes agem movidos por paixões que
cegam.
• É importante considerar, seguindo sugestiva análise de Serge Berstein
(desenvolvendo argumento original de Almond e Verba), a existência de
vetores sociais responsáveis pela reprodução das culturas políticas, como
família, instituições educacionais, corporações militares, partidos e sin-
dicatos. Nada mais natural, quando lidamos com categoria que pressupõe
que as escolhas políticas dos indivíduos são determinadas por filiação a
grupos e/ou a tradições. A essa lista vale agregar outros vetares de sociali-
zação, como as Igrejas, e também adicionar a importância dos veículos de
disseminação impressos, como periódicos e livros. Nos casos de famílias
e Igrejas, estamos diante de algo que envolve a ligação dos indivíduos a
23
DESAflOS E POSSIBILIDADES NA APROPRIAÇÃO DE CULTURA POLÍTICA PELA HlSTORlOGRAFIA
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grupos sociais mais abrangentes, que interferem em sua formação para
além da dimensão política. A adesão política, nesses casos, decorre, ao
menos em parte, da identificação aos valores defendidos pelo grupo, de
modo que a escolha política pode revelar, na verdade, a fidelidade aos
pais ou à religião. Os impressos são veículo fundamental na divulgação e
disseminação dos valores das diferentes culturas políticas, e são usados
propositadamente com tal fim. Nos textos dos livros e jornais, e também
nas suas imagens visuais, desfilam heróis (e, tão importantes quanto es-
ses, os desprezíveis inimigos), mitos, símbolos e os valores morais do
grupo, e nessas publicações muitas pessoas encontraram motivação para
identificar-se e aderir.
Quanto aos partidos, é importante esclarecer uma confusão freqüente,
pois é tentador resumir as culturas políticas às formações partidárias. As
culturas políticas são construções que transcendem as instituições partidá-
rias. É verdade, muitas vezes elas dão origem à organização de partidos,
nelas inspirados e motivados a tentar colocar em prática os respectivos
projetos políticos. Porém, há pessoas que se identificam com determinada
cultura política mas não com os ,Partidos nela inspirados, considerando-os
indignos ou infiéis à tradição. E comum ver culturas políticas dando ori-
gem a diversas formações partidárias, às vezes concorrentes na luta pelo
papel de principal representante do grupo, e algumas mal se adaptam ao
formato partidário, como o peronismo, por exemplo.
• O conceito pode ser aplicado a espaços sociais diferenciados, servindo
para designar desde coletividades reunidas à volta de projetos específicos
de ordenamento da sociedade (liberalismo, socialismo, etc.), até grupos
nacionais ou mesmo regionais. Por isso a opção de alguns autores em pensá-
Ias sempre em formato plural, dividindo o mesmo espaço social, enquanto
outros enfatizam a cultura política singular de cada grupo nacional. Há
a opção, também, de manter cultura política para designar a coletividade
nacional e usar-se sub-cultura para os diferentes grupos em disputa no
interior do espaço nacional, tanto os ligados às grandes tradições (libera-
lismo, socialismo, etc.) quanto, no caso de alguns países, aqueles identi-
ficados com discursos regionais. Penso que não é fundamental discutir a
adequação ou não do termo sub-cultura. Mais importante é perceber que
não há incompatibilidade entre os dois modos de conceber cultura políti-
ca, no singular e no plural, o modo pluralista e a perspectiva nacional. É
possível admitir a existência de padrões culturais coletivos a um povo, uma
cultura política brasileira, por exemplo, ao mesmo tempo convivendo com
culturas ou sub-culturas que disputam esse espaço nacional, e que podem,
apesar de suas divergências, carregar algumas características semelhan-
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RODRJGO PAITO sÁ MOITA
tes em função do pertencimento comum. Significativamente, as maiores
objeções ao modelo no singular podem ser usadas em sentido contrário.
Quando parte dos historiadores franceses critica a suposta existência de
uma cultura política comum a seu país, o seu melhor argumento é que a
França caracterizou-se por disputas e conflitos agudos, que impediram o
estabelecimento de consensos coletivos. A política francesa, argumentam,
seria polarizada demais para permitir o surgimento de cultura política na-
cional. Ora, essa análise, que parece correta, pode ser usada para tentar
evidenciar uma cultura política tipicamente francesa, cujo traço maior,
em contraste com outros países, seria a presença de sub-culturas fortes,
belicosas e resistentes a qualquer compromisso mútuo.
• Estudos de cultura política possuem forte convergência com as pesquisas
dedicadas às diversas formas de manifestação das representações políti-
cas" (imaginário, iconografia, mitologias, etc.), devido à comum motivação
de compreender os impactos gerados pelos encontros entre cultura e po-
lítica. No entanto, nem toda história cultural do político implica o uso da
categoria cultura política. O fato de Marc Bloch ter mostrado a importância
da crença nos poderes taumatúrgicos dos monarcas na Europa medieval
não significa, necessariamente, que se deva falar na existência de uma
cultura política medieval. É comum, entre os partidos políticos, o uso de
símbolos e outras manifestações de linguagem visual em suas campanhas,
para comunicar mensagens aos eleitores; mas isso não implica sempre a
filiação a alguma cultura política. Portanto, para os que se aventuram no
campo da história cultural do político é preciso atenção para não confundir,
por exemplo, imaginário político com cultura política.
• Deve-se tomar cuidado para evitar outro tipo de confusão possível quan-
do se trabalha nesse terreno: cultura política não é sinônimo de política
cultural, que pode ser definida como o conjunto de ações de determinado
Estado ou agente político direcionadas à cultura. Aqui há um ponto de
convergência também, porque algumas culturas políticas servem de inspi-
ração para autoridades estatais criarem suas políticas culturais, a exemplo
do que ocorreu na União Soviética com o realismo socialista. Mas em que
pese a existência desses "pontos de encontro", política cultural e cultura
política são coisas distintas.
13 Obviamente, há outro sentido possível para representação política, que não está
sendo considerado aqui. Trata-se de representação que significa delegação, como no
mecanismo eleitoral por meio do qual os cidadãos escolhem pessoas para representá-
Ias no parlamento.
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DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA APROPRJAÇÃO DE CULTURA POLÍTICA PELA HlSTORJOGRAFIA
• Questão de fundamental importância são as relações polêmicas existentes
entre os estudos de cultura política e a tradição marxista. Trata-se de uma
relação em que há algumas áreas de convergência, mas também muitos
pontos de tensão e eventuais choques. O tema é complexo e demanda mais
reflexões, e não fugirei ao risco de oferecer contribuição ao debate.
Os estudos que colocam ênfase no fator cultural desenvolveram-se num
quadro de declínio da influência do paradigma marxista, que tradicional-
mente colocava a cultura em posição secundária, dependente das estruturas
econômico-sociais. O marxismo tradicional reconhecia a existência e a
importância da cultura e da ideologia, mas, na prática, elas eram subme-
tidas aos ditames da estrutura classista da sociedade, ocupando um lugar
na "superestrutura". O "marxismo", na verdade, é constituído por uma
pluralidade de leituras e apropriações dos textos do fundador, algumas mais
e outras menos fiéis. Porém, independentemente deserem ou não leituras
corretas do pensamento de Marx, o fato é que as versões deterministas
deram o tom dominante ao marxismo durante muito tempo. Nos anos de
1960, o marxismo oficial perdeu credibilidade nos meios acadêmicos, e
alguns intelectuais de filiação marxista passaram a questionar os modelos
economicistas. Essa é uma das razões para a descoberta dos trabalhos de
Antonio Crarnsci, cujas reflexões ofereceram compreensão mais sofisticada
sobre o papel da cultura. Outros autores marxistas deram contribuição
significativa aos estudos sobre a cultura, como Edward Thompson e Ray-
mond Williams, com trabalhos renovadores e questionadores dos cânones
do marxismo tradicional. 14
Pode ser atribuída à influência marxista a existência de uma ver-
tente peculiar de apropriação do conceito cultura política, que associa o
fenômeno à estrutura de classes. Daí a existência de estudos dedicados
à cultura política operária, ou à cultura política popular, por exemplo.
Nesses estudos, cultura política assume lugar de proeminência, porém,
em alguns casos permanece, embora nem sempre explicitado, o suposto
de que ela é determinada pelo fator sócio-econômico. Assim, espera-se
encontrar entre o mesmo grupo social valores políticos comuns, ou seja,
uma cultura política compartilhada, fruto de vivência social e interesses
coletivos. O problema com esse tipo de abordagem é que ele pode levar a
uma generalização abusiva, ao atribuir a todo um grupo social, à classe
trabalhadora por exemplo, comportamentos e valores políticos idênticos. O
HNo caso de E. Thompson, principalmente em Aformação da classe operária inglesa
(1987) e Costumes em comum (1998); quanto a R. Williams, O campo e a cidade na
história e na literatura (1989) e Marxismo e literaura (1979).
26
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RODRIGO PATTO sÁ MOTTA
risco é semelhante ao enfrentado pelos trabalhos sobre a cultura política
de determinado povo ou nação: a mesma tendência a um olhar genera-
lizante, que tende a desconsiderar as peculiaridades internas ao grupo
estudado.
Estudos que enfatizam o potencial agrega dor das representações
podem oferecer mais consistência, pois não supõem coincidência entre
classe e política. As culturas políticas mais sólidas, como comunismo,
republicanisrno ou fascismo, para ficar em apenas alguns exemplos, cru-
zam as diferentes classes sociais e atraem pessoas de origens diversas. É
verdade que algumas delas, notadamente as de esquerda, fazem apelos
dirigidos a grupos específicos, como os operários ou os trabalhadores. E,
na história de partidos de esquerda encontram-se, de fato, casos de forte
identificação entre grupo social e projeto político. Mas há momentos em que
as organizações de esquerda fazem chamados mais amplos, dirigindo-se
às mulheres, aos jovens e mesmo aos pequenos proprietários e, às vezes,
à vasta e indefinida categoria povo, de modo que as culturas políticas de
esquerda atraem aderentes da mais diversa origem social. Naturalmente,
é possível combinar as duas possibilidades e estudar as relações entre
grupos sociais específicos P. determinadas culturas políticas, e, de novo,
o melhor exemplo seriam os laços entre trabalhadores e esquerda. Mas é
preciso cautela para evitar os excessos generalizantes, pois há grupos de
trabalhadores mais propensos a se deixar sensibilizar por apelos da direi-
ta. Por outro lado, deve ser considerada a pluralidade da esquerda, que,
embora possua uma série de valores comuns (igualdade, universalismo,
laicismo), é fragmentada em grupos com culturas próprias, disputando
entre si os corações e as mentes dos trabalhadores.
Outro ponto fundamental para discutir as relações entre marxismo e as
pesquisas sobre cultura política é a categoria ideologia. Conceito central na
tradição marxista, ideologia ocupou lugar proeminente na superestrutura
imaginada pelo filósofo alemão. O conceito tem duas acepções principais.
No primeiro caso, ideologia significa falsa consciência e implica o mas-
caramento da realidade. Trata-se do processo através do qual a classe
dominante constrói uma falsa representação da realidade, com que esca-
moteia a sua dominação e garante a obediência dos grupos dominados. Na
segunda acepção, ideologia significa um conjunto de idéias que dá forma
a determinados projetos políticos e impele à luta pela conquista do poder,
e aí teríamos a ideologia fascista, a liberal, a socialista, etc.
Utilizando o conceito na segunda acepção apontada, ideologia não
apenas é compatível com cultura política, como enriquece a nossa com-
preensão do fenômeno. Pode-se dizer que muitas das culturas políticas
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DESAFros E POSSIBILIDADES NA APROPRlAÇÃO DE CULTURA POLÍTICA PELA HISTORJOGRAFIA
consistentes possuem ideologia, entendida como um sistema de idéias que
constitui o seu cerne. Mas é importante não resumir uma coisa à outra,
e perceber que a cultura política transcende e vai além da ideologia, ao
mobilizar sentimentos (paixões, esperanças, medos), valores (moral, hon-
ra, solidariedade), representações (mitos, heróis) e ao evocar a fidelidade
a tradições (família, nação, líderes). Toda a força da categoria cultura
política reside na percepção de que parte das pessoas adere menos pela
concordância com as idéias e mais por identificar-se com os valores e as
tradições representadas pelo grupo.
Já ideologia no sentido de falsa consciência é mais difícil de ser
combinada com a fundamentação teórica de cultura política. Primeiro,
porque pode levar à pressuposição da existência de verdade única, que
a ciência seria capaz de desvendar." Se existe uma falsa consciência, é
porque há uma verdadeira; se a realidade é ocultada pela ideologia, ela
também pode ser revelada." Segundo, em tal acepção ideologia enfatiza
a manipulação, o logro, enquanto cultura política implica a suposição que
pessoas aderem a certas representações da realidade capazes de ofere-
cer compreensão do mundo, ao mesmo tempo fornecendo identidades à
que se filiar. Entendida como falsa consciência, ideologia pode excluir a
possibilidade - a meu juízo, a maneira mais fértil de encarar a questão
- de que culturas políticas, armadas com representações fragmentárias
e distorcidas, mas ainda assim filiadas ao real, concorram entre si para
a conquista de aderentes em meio aos diversos grupos sociais. Mas, vale
a pena ressaltar, isso não significa negar a ocorrência de manipulação e
logro em outras instâncias do jogo político.
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15 É importante ressalvar que existem intérpretes do marxismo mais sofisticados,
que questionam as versões simplificadoras de ideologia e propõem análises mais
complexas das relações entre mistificação e realidade. Entre os seguidores atuais
de Marx há tanto os que negam validade ao conceito de ideologia entendida como
falseamento quanto os que mantêm a convicção sobre o caráter ilusório de certas
representações ideológicas, mas admitindo que em outros casos elas têm correspon-
dência com o reaL Sobre esse debate conferir Eagleton (1997).
16 Esta afirmação não implica a aceitação dos pressupostos relativistas. Voltarei à
discussão sobre representação e verdade adiante.
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RODRrGO PATTO SÁ MOTTA
As possibilidades abertas pelo enfoque nas culturas políticas são
amplas e férteis, e apenas recentemente começaram a ser exploradas pela
historiografia brasileira. Estudos inspirados por esse campo conceitual
permitem uma compreensão mais rica e sofisticada do comportamento
político, indo além da tradicional ênfase no interesse e na adesão a idéias
como fatores motivadores. Sem a intenção de opor à escolha racional um
paradigma culturalista, os estudos dedicados às culturas políticas revelam
outras dimensões explicativas para os fenômenos políticos, como a força
dos sentimentos (paixões, medo), a fidelidade a tradições (família, religião)
e a adesão a valores (moral, honra, patriotismo).A partir desse enfoque é grande o elenco de pesquisas a serem realiza-
das, tanto em abordagens restritas ao Brasil, quanto incorporando olhares
comparativos. Há desde caminhos mais tranqüilos a serem percorridos,
em que a presença de cultura política seria mais fácil de demonstrar, a
outras opções mais arriscadas, em que trilhas precisam ser abertas e os
resultados são incertos. Podem ser estudadas, tomando como inspiração
a matriz "pluralista", as culturas comunista, conservadora, republicana e
liberal, por exemplo. Nos dois últimos casos, tais pesquisas ajudariam a
demonstrar as peculiaridades a distinguir republicanismo de liberalismo,
que com muita freqüência passam despercebidas. No caso do Brasil há
experiências políticas singulares, que vale a pena abordar pelo prisma de
cultura política. A tradição trabalhista, por exemplo, configuraria uma cul-
tura política? Na contramão da perspectiva que enfatiza o caráter populista
do trabalhismo, estudos com enfoque na cultura política ajudam a avançar
esse debate." Outro caso interessante é o do Partido dos Trabalhadores,
cuja peculiar militância política inspirou o uso da expressão petismo. Teria
o PT originado uma cultura política própria? Seja qual for a resposta, seria
necessário perceber a influência sobre o petismo de culturas de esquerda
precedentes, como a socialista e a comunista.
Como já foi dito, o enfoque pluralista não é incompatível com o uso de
cultura política no singular, aplicada a grupos nacionais. Alguns estudos
tentaram caracterizar a cultura política brasileira com base no suporte teó-
rico-metodológico da ciência política (Carvalho, ,2000). Seriam bem-vindas
mais incursões de historiadores nesse terreno. Um tema que poderia ser
explorado é o da conciliação, para muitos traço marcante da cultura brasileira
de maneira geral, não dizendo respeito apenas à política. Nesse sentido, as
17 Angela de Castro Gomes (2005:33-41) foi pioneira na abertura dessa trilha de
investigação sobre o trabalhisrno. Para uma perspectiva diferente, que defende o
uso da categoria populismo, ver Fortes (2007:63-83).
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DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA APROPRIAÇÃO DE CULTURA POLÍTICA PELA HISTORIOGRAFIA
análises de Roberto DaMatta são particularmente interessantes, ao defender
que a lógica relacional é marca central da cultura brasileira, calcada na re-
cusa a definições rígidas e no horror aos conflitos, que são evitados em favor
de ações gradativas, moderadoras, conciliadoras e integrativas (DaMatta,
1997). Antes dele, Gilberto Freyre já havia feito referências ligeiras ao tema
da conciliação, elogiando a capacidade de contemporização dos brasileiros
no episódio do 15 de novembro de 1889, a seu ver uma manifestação mais
de sabedoria do que de apatia (Freyre, 1959:9), reveladora da capacidade
de evitar conflitos em busca de mudanças com estabilidade. José Honório
Rodrigues também abordou a questão, mas com perspectiva mais critica e
menos otimista, vendo na conciliação essencialmente um estratagema das
elites para excluir o povo e tentar convencê-lo de que é pacífico e ordeiro por
natureza. A existência de episódios de intensa violência política e estranhos
ao modelo conciliatório, como a Balaiada ou Canudos, que trouxeram à
arena pública a presença de grupos populares, seria evidência dos limites
à disposição dos grupos dominantes em transigir e negociar. Embora pro-
cure denunciar o logro implicado na conciliação, Rodrigues não nega sua
presença marcante na história hrasileira.!"
A força da tradição conciliatória no Brasil talvez seja uma razão para
o comtismo ter encontrado tantos adeptos no país. A divisa "ordem e
progresso" é síntese perfeita do espírito conciliador, que entre nós se ma-
terializou em arranjos políticos de perfil modernizante-conservador. De
fato, encontramos a manifestação de tendências conciliatórias em vários
momentos e episódios de nossa história, entre eles: o próprio surgimen-
to do país independente, em que o processo foi liderado pelo Príncipe
português, evitando rupturas bruscas; o modo como foi implantada a
República em 1889, em que as lideranças políticas do velho e do novo
sistema acomodaram-se com poucos choques; o Estado Novo e a estraté-
gia getulista de integração de tendências aparentemente opostas, que fez
escola; os resultados da crise de 1964, que, em vez da guerra civil, gerou
"guerra de saliva"; a transição pós-autoritária, em que a anistia significou
realmente esquecimento e perdão; a ascensão de Lula e do PT ao poder,
viabilizada por aliança reunindo forças de esquerda e direita.
O recurso à conciliação, à busca de soluções de compromisso que evitem
o caminho de rupturas radicais fica mais visível quando o olhar é compa-
rativo. Colocando em contraste o Brasil com países como Estados Unidos
18 No prefácio à segunda edição do livro, Rodrigues (1982) atenua um pouco seu
argumento, ao dizer que os brasileiros são efetivamente menos cruentos que outros
povos.
30
RODRIGO PATTO SÁ MOTTA
e Argentina, por exemplo, os resultados instigam à reflexão. No primeiro
caso, chama a atenção a maneira como o embate escravidão X abolição foi
resolvido nos dois países: com a guerra civil, nos EUA, de maneira lenta e
negociada, no Brasil. Com a Argentina há várias possibilidades de compa-
ração, mas podemos enfatizar o período de 1930 a 1970, em que os dois
países viram-se às voltas com situação semelhante: conflitos entre esquerda
e direita, fragilidade das instituições e partidos, intervenções militares e
períodos ditatoriais. Em que pesem as semelhanças, na Argentina houve
pouco espaço para compromisso entre os grupos rivais: expurgos dramáticos
no serviço público, matanças maciças de parte a parte e golpes sanguinários.
No Brasil houve repressão e expurgos, bem o sabemos, mas os regimes
autoritários temperaram perseguição com cooplação, violência extralegal
com o uso de mecanismos legais. Essa é uma das principais razões porque
a transição política no Brasil foi mais suave e menos dramática para os
militares envolvidos com a repressão, enquanto na Argentina vários chefes
foram julgados e condenados. Ressalve-se que não se está dizendo que as
nossas ditaduras são melhores do que as deles, menos ainda negando a
existência de violência política no Brasil, o que seria uma tolice.
Uma digressão: a conciliação à brasileira traz mais vantagens ou
desvantagens? Considerando o saldo positivo, é mais fácil passar de um
regime à outro, com menos violência e ódio, menores traumas a admi-
nistrar; portanto, há terreno mais fácil para abrir caminho à mudança.
Porém, olhando pelo outro prisma, alguns problemas tendem a não ser
resolvidos, e sim postergados para um futuro indefinido. No que tange ao
período ditatorial, o melhor é perdoar, e com isso evitar novos traumas
(pense-se nos levantes dos caras-pintadas na Argentina, em resposta às
punições aos militares pelo governo Alfonsín), ou punir culpados e com isso
desestruturar os grupos que tomaram parte na repressão? Qual o melhor
caminho para superar o autoritarismo e consolidar a democracia?
Evidentemente, a presença de tradição conciliadora não basta para
caracterizar uma cultura política. No caso brasileiro há outros temas a
explorar, como os laços frágeis entre povo e cidadania, discussão já clás-
sica no pensamento político.'? Seria o caso de restringir a explicação à
ação nefasta das elites, responsáveis por fechar aos setores subalternos os
espaços de participação política, ou não haveria um pouco de auto-exclusão
19 Ressalte-se: concordar com tal linha de análise não implica a aceitação de teses
racistas ou idéias sobre uma espécie de incapacidade inata dos brasileiros, nem exclui
a possibilidade de perceber a existência de outras formas de participação na vida
coletiva, para além da institucionalidade política tradicional (Carvalho, 2000).
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DESAFIOS E POSSIBILIDADESNA APROPRIAÇÃO DE CULTURA POLÍTICA PELA HISTORlOGRAFIA
também? Outra questão a merecer reflexões: a modesta participação po-
pular na política institucional tem sido pontuada por explosões de fúria e
momentos de mobilização. Além dos episódios do século XIX já referidos,
podem ser lembrados: a Revolta da Vacina, as inúmeras quebras de bon-
des e ônibus no decorrer do século XX,20 a reação popular ao suicídio de
Getúlio Vargas em 1954, a mobilização popular de 1962-64, em que se
viram saques ao comércio em algumas cidades, a campanha popular pelas
Diretas-já em 1984, ou os caras-pintadas em 1992. Se o argumento estiver
correto, é preciso tentar explicar por que o padrão de fraca atuação política
é pontilhado de ocasionais picos participativos. E, sobretudo, compreender
por que tais momentos são tão intensos como fugazes.
Para finalizar a discussão sobre as possibilidades nos estudos de cultu-
ra política, é interessante mencionar que pesquisas sobre culturas regionais
podem abrir um bom filão de análise. Alguns autores têm defendido a
existência de uma cultura política carioca (Motta, 1999), por exemplo, e
vale a pena tentar aplicar o conceito a outras regiões, como Minas Gerais,
São Paulo ou Rio Grande do Sul. É debate polêmico, não há dúvida, mas
pode trazer conclusões interessantes. Na pior hipótese, mesmo não se con-
figurando a existência efetiva de culturas políticas regionais, será possível
compreender melhor as representações políticas construídas pelas elites
desses estados, e sua maior ou menor capacidade de persuadir as pessoas
a identificarem-se e a agirem de acordo com tais construções.
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"'I A última parte deste texto é dedicada a discutir os riscos que o trabalho
com a categoria cultura política implica, bem como os desafios ainda a
enfrentar para dar solidez ao seu aparato teórico-metodológico.
Um dos desafios é investir nas discussões sobre' como aplicar o con-
ceito a períodos da história anteriores ao mundo contemporâneo. Alguns
dos principais autores a teorizarern sobre o tema tiveram em mente a
história contemporânea quando definiram cultura política, ou seja, o
mundo europeu (e sua área de influência) a partir do século XVIII. E
a razão é que nessa fase há transformações na dinâmica política, com a
entronização do conceito de que o Estado deve corresponder aos desejos
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20 Roberto DaMatta propõe uma interpretação interessante para os "quebra-quebras",
em Carnavais, malandros e heróis (1981).
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do povo, composto não mais por súditos, mas por cidadãos com direito
a participar dos negócios públicos. Abrem-se, assim, as condições para
que projetos, idéias, valores e representações políticas ganhem forma e
constituam culturas políticas, a disputar a atenção de indivíduos e grupos
sociais na cena pública. A categoria supõe que as pessoas tomam parte
movidas por fatores culturais, mas está presente também o elemento da
adesão, da escolha.
Não obstante, alguns autores têm utilizado cultura política para períodos
históricos anteriores, como a Roma antiga (Flower, 2006) por exemplo, mas
invariavelmente sem explicitar o modo como estão se apropriando do con-
ceito. Em alguns casos, trata-se de análises sobre representações políticas
(linguagens, iconografia) que não implicam, necessariamente, a existência
de cultura política. Pode-se afirmar que são estudos de história cultural do
político, mas nem sempre há a presença de culturas políticas. Seja como
for, cabe aos pesquisadores de tais temas e períodos investir na discussão
teórica, para construir bases mais sólidas para o uso do conceito."
Na lista dos riscos que o trabalho com cultura política traz, destaque-se
a possibilidade de exagerar uma linha de interpretação conservadora da
história. Se a política é presa à tradição e arraigada à cultura, podemos
ser tentados a enxergar uma história imóvel, na qual nada muda e tudo é
eterna repetição. Naturalmente, estamos na presença de uma distorção,
tanto mais problemática para o historiador porque tal tipo de leitura, no
limite, abole a própria história.
Outro problema é a possibilidade de incorrermos numa espécie de
reducionismo culturalista, que tem duas implicações. Primeiro: a ten-
dência a absolutizar a determinação cultural dos fenômenos políticos,
desprezando outros fatores como o interesse e a escolha individual. A
abordagem cultural é valiosa por mostrar que os indivíduos agem movi-
dos por outras influências além do interesse e do cálculo racional, mas,
se ela for encarada de maneira absoluta, pode empobrecer, ao invés de
enriquecer, nosso conhecimento. Um exemplo, retirado das experiências
do autor na coleta de testemunhos orais. Um casal de comunistas, do tipo
que aderiu dos pés à cabeça à cultura comunista, teve três filhos. Dois
deles tornaram-se também comunistas, mas apenas um manteve-se fiel até
à morte, e a identificação com os pais foi fator determinante na escolha.
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~:!•..•.. 21 Creio que a ancoragem mais segura para viabilizar a aplicação de cultura política
a períodos recuados não será encontrada nas concepções de Berstein, mas numa
tentativa de adaptar a tipologia de Almond e Verba, principalmente por meio dos
conceitos de cultura paroquial e cultura da sujeição.
33
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DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA APROPRIAÇÃO DE CULTURA POLÍTICA PELA HISTORJOGRAFIA
Porém, o terceiro não aderiu ao comunismo, embora tivesse relações com
os pais tão boas quanto os irmãos ...
Segunda observação sobre o reducionismo culturalista: há estudos
que enfoc.am as representações como uma espécie de fenômeno etéreo,
pairando acima e fora da dinâmica social. Tal tendência está relacionada
a certo modo de encarar os laços entre representações e realidade, eivada
de relativismo radical. Nessa vertente, o real só existe enquanto represen-
tação, e como todas as representações são igualmente incapazes de revelar
a verdade todas são válidas. Por isso, estudar as representações basta
para alguns autores, sem preocupar-se em distinguir as mais próximas da
realidade ou as mais fantasiosas (às vezes pura falsificação), tampouco em
pesquisar os impactos que produzem na realidade. Essa discussão remete
a uma polêmica que não é possível aprofundar aqui, e que na verdade
persegue a teoria do conhecimento desde suas origens, sem solução visível:
a questão ela realidade e da verdade, se é possível representar ou não o
mundo. Mas o relativismo radical deve ser evitado, pois leva à conclusão
de que qualquer representação é aceitável, pois todas são parciais. Não é
verdade: algumas são mais distorcidas, às vezes falsas, enquanto outras
produzem versões mais próximas da realidade. 22
Evitando tanto o relativismo quanto o cientificismo ingênuo, a ma-
neira mais fértil de encarar as relações entre realidade e representações
é reconhecer a interdependência das duas esferas, perceber os laços in-
trincados que as atam de maneira forte. As representações estão calcadas
na realidade, estão em diálogo com o mundo social, a vida concreta, e ao
mesmo tempo interferem no seu desenrolar. No campo político, há inúmeros
exemplos para ilustrar situações em que representações imprimem rumo
à realidade. Vejamos um deles: o temor ao c.omunismo, freqüentemente
desproporcional à força efetiva dos revolucionários, abrindo caminho a
golpes de Estado e a regimes autoritários. Em suma, as culturas políticas
resultam da imbricação entre práticas e representações, e o olhar sensível
a apenas uma das esferas é empobrece dor.
22 "As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas,
nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamoscompará-Ias a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer
fonte implica já um elemento construtivo. Mas a construção [...) não é incompatível
com a prova: a projeção do desejo, sem o qual não há pesquisa, não é incompatível
com os desmentidos infligidos pelo princípio de realidade. O conhecimento (mesmo
o conhecimento histórico) é possível" (Ginzburg, 2002:44-45).
34
RODRIGO PATIO sÁ MOTIA
A aplicação da categoria cultura política ao Brasil merece reflexões
cuidadosas, em vista dos argumentos sobre a suposta fragilidade dos laços
entre os brasileiros e a política. A seguir tal linha de pensamento, ela im-
plicaria a existência de culturas políticas frágeis no país, pouco enraizadas
e com adesão superficial. A não ser na vertente eurocêntrica do conceito,
para a qual, então, o Brasil não teria cultura política, seria politicamente
"inculto", essa constatação não tira a legitimidade da aplicação da categoria
à história do nosso país. Como disse antes, esse pode ser um traço da cul-
tura: política brasileira: frágil cidadania, pouco envolvimento da população
com a coisa pública. De qualquer forma, é um dado a ser considerado
em futuras pesquisas, para que se possa dimensionar adequadamente as
formas de manifestação de cultura política no Brasil.
Outro desafio para os historiadores interessados é a necessidade de
investir mais na discussão sobre metodologias de pesquisa. Na historiogra-
fia recente, os trabalhos sobre cultura política têm privilegiado o uso ele
fontes qualitativas. Mas a utilização de dados quantitativos pode trazer bons
resultados, sobretudo se combinados com boas análises qualitativas.ê" Por
exemplo, fontes quantitativas podem servir para testar hipóteses correntes
sobre comportamentos políticos supostamente calcados na tradição. As-
sim, a famosa moderação dos mineiros poderia ser verificada a partir elos
resultados eleitorais para disputas majoritárias, arquivados nos tribunais
eleitorais. Poderiam ser avaliados e contrastados os resultados obtidos por
candidatos afinados com discursos (e imagens) políticos moderados ou
radicais, em comparação com a situação em outros estados da federação.
Também poderia ser averiguada a fidelidade de determinadas regiões a
certos valores políticos, testando, através de séries eleitorais históricas, se
as imagens da baixada santista ou do Recife como bastiões "vermelhos"
nos anos 1940-1960, por exemplo, correspondem à realidade eleitoral.
Mais uma possibilidade: usar os resultados das pesquisas de opinião
realizadas pelo menos desde os anos de 1950 na tentativa de encontrar
padrões estáveis de comportamento e valores políticos.
Enfim, há muitos desafios, problemas e polêmicas envolvidos nas pes-
quisas sobre o fenômeno da cultura política, mas as possibilidades que se
descortinam à nossa frente são bastante instigantes, fazendo com que os
riscos implicados no trabalho com esse campo conceitual valham a pena.
23 Nesse terreno pode-se tirar bom proveito das pesquisas e dos métodos desenvolvidos
por cientistas políticos. Um trabalho muito interessante foi realizado por Putnam
(1996) para estudar a cultura política italiana.
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llESAFlOS E POSSIBILIDADES NA APROPRIAÇÃO DE CULTURA POLfTlCA PELA HISTORlOGRAFlA
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