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Nocturno Indiano - Antonio Tabucchi

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Noc tu r no Ind i a no
Anton i o Tabucch i
Romance
Cor r i g i d o
Noc tu r no Ind i a no
3ª ed i ção
Tradução de Mar i a Emí l i a Marques Mano
Quetza l
L i sboa / 1989
 
Ti t u l o da ed i ção or i g i n a l : Not t u r n o i nd i a no
Capa e ar r an j o grá f i c o : Rogér i o Pet i n ga
1984, Se l l e r i o ed i t o r e , v i a Si r a cusa 50, Pa le rmo 
Di re i t o s rese r v ados para a pub l i c a ç ão em L íngua por t u guesa : 
Quetza l Ed i t o r e s
Rua Sanches Coe lho , 3. 9. " Esq. 
1600 L i sboa
Te le f o nes : 761397/762593 Te lex : 65732 PEGEST P
Compos to e imp res so por : T ipog r a f i a Guer r a , Viseu
Depós i t o l ega l n. " 83948
As pessoas que dormem mal parecem ser mais ou menos cu l padas :
o que fazem e las? Tornam a no i t e presen t e
Maur i c e Blancho t
 
NOTA
Este l i v r o , a lém de uma in són i a , é uma v i agem. A insón i a per t e n ce 
a quem esc r e veu o l i v r o , a v i agem a quem a fez . Porém, como também 
eu t i v e de perco r r e r os mesmos luga r e s que o pro t agon i s t a des t a 
h i s t ó r i a perco r r e u , parece- me opor t u no fo r nece r um breve índ i c e 
dos mesmos. Não se i bem se para i s so con t r i b u i u a i l u s ão de que um 
repo r t ó r i o topog r á f i c o , com a fo r ç a que o rea l possu i , pudesse dar 
l uz a es te Noc tu r no onde se procu r a uma sombra , ou a i r r a c i o n a l 
con j e c t u r a de que a lgum amante de i t i n e r á r i o s i ncong r uen t e s venha 
a pode r um d ia u t i l i z á - l o como gu i a . 
A. T
 
Índ i c e dos luga r e s des t e l i v r o
1. Kha ju r a ho Hote l . Suk l a j i St r ee t , sem número , Bomba im. 
2. Breach Candy Hosp i t a l . Bhu l aba i Desa i Road, Bomba im. 
3. Ta j Maha l In t e r- Con t i n en t a l Hote l . Gateway o f Ind i a , 
Bomba im. 
4. Rai lways Ret i r i n g Rooms. Vic t o r i a Sta t i o n ; Cent r a l 
Rai lway , Bomba im. Dorm ida com b i l h e t e de combo io vá l i d o ou com o 
Ind r a i l Pass . 
5. Ta j Coromande l Hote l . 5 Nungambakkam Road, Madras t a . 
6. Theosoph i c a l Soc i e t y . 12 Adya r Road, Adya r , Madras t a . 
7. Autobus- Stop . Est r ada Madras t a- Manga l o r e , ce r ca de 
50 km de Manga l o r e , l oca l i d a d e desconhec i d a . 
8. Arceb i s p ado e Colég i o de S. Boaven t u r a . Est r ada 
de Calangu t e- Pana j i , ve l ha Goa, Goa. 
9. Zuar i Hote l . Swatan t r y a Path , sem número , Vasco 
da Gama, Goa. 
10. Pra i a de Calangu t e . Cerca de 20 km de Pana j i , Goa. 
11 . Mandov i Hote l . 28 Bandodka r Marg , Pana j i , Goa. 
12. Obero i Hote l . Bogma lo Beach, Goa. 
 
Pr ime i r a Par t e
O cho fe r de táx i usava pêra , uma redez i n ha no cabe l o e um rab i c ho 
a tado com uma f i t a branca . Pense i que fosse um s i kh , porque o meu 
gu i a desc r e v i a- o exac t amen t e ass im. O meu gu i a i n t i t u l a v a- se: 
Ind i a , a t r a ve l su r v i v a l k i t , t i n h a- o comprado em Lond res , mais 
por cu r i o s i d a de do que por qua l que r ou t r a co i s a , porque fo r nec i a 
sob re a Índ i a i n f o rmações bas t an t e b i za r r a s e, à pr ime i r a v i s t a , 
supé r f l u a s . Só mais ta r de me dar i a con t a da sua u t i l i d a d e . 
O homem gu ia va depres sa de mais para o meu gos t o e tocava a buz i na 
com fú r i a . Pareceu- me que roçava os peões de propós i t o , com um 
sor r i s o inde f i n í v e l que não me agradava . Na mão d i r e i t a usava uma 
luva pre t a e também i s t o não me agradou . Quando meteu por Mar i ne 
Dr i v e pareceu- me aca lma r- se e a l i n h ou t r anqu i l amen t e numa das 
f i l a s
13
do t r ân s i t o , do lado do mar . Com a mão en l u vada ind i c o u as 
pa lme i r a s ao l ongo do mar e do arco do go l f o . 
- Al i é Trobay , d i s se , e à nossa f r en t e f i c a a I l h a de Elephan t a , 
mas não se vê. Com ce r t e z a há-de que re r v i s i t á - l a , os barcos 
par t em de hora a hora do Gateway o f Ind i a " . 
Pergun t e i - lhe porque es ta va a perco r r e r Mar i r Dr i v e . Não 
conhec i a Bomba im, mas procu r a va segu i r o seu percu r s o no mapaz i nho 
que t i n h a em c ima dos joe l h o s . Os meus pon tos de re f e r ê n c i a eram 
Malaba r Hi l l e o Chor , o mercado dos lad r ões . O meu ho te l f i c a v a 
en t r e esses do i s pon tos e, para lá chega r , não era prec i s o 
perco r r e r Mar i ne Dr i v e . Estávamos a segu i r na d i r e c ção opos t a . 
O ho te l que me ind i c o u f i c a num ba i r r o mise rá ve l , d i s se 
a fave lmen t e . 
- a mercado r i a é de má qua l i d a de , os tu r i s t a s que vêm a Bomba im 
pe l a pr ime i r a vez vão para r a luga r e s pouco recomendáve i s , l evo- o 
para um ho te l mais próp r i o para uma pessoa como o senho r " . 
Cusp i u pe l a j ane l a e p i s cou o o lho : nE com mercado r i a de pr ime i r a 
c l a s se Ex ib i u um sor r i s o v i s co so de grande cump l i c i d a de o que me 
agradou a inda menos. 
- Pare aqu i " , mande i , imed i a t amen t e . 
Ele vo l t o u- se e o lhou para mim com ar ser v i l . 
- Mas aqu i não posso , d i s se , há o t r ân s i t o . 
Então desço na mesma, pro f e r i ab r i n do a por t a e segu rando- a bem. 
Ele t r a vou bruscamen te e começou uma a lga r a v i a d a numa l í n g ua 
que dev i a ser o mara t h i . T inha um ar fu r i b u ndo e cre i o que as 
pa l a v r a s que s i b i l a v a en t r e den tes não dev i am ser das mais 
educadas , mas não me impo r t e i nada. Levava comigo apenas
14
uma pequena mala que t i n h a ao meu lado , por i s so nem seque r fo i 
prec i s o sa i r para me dar a bagagem. Deixe i- l he uma no ta de cem 
rup i a s e desc i para o enorme passe i o de Mar i ne Dr i v e ; na pra i a 
hav i a uma fes t a re l i g i o s a ou uma fe i r a , sabe- se lá , com uma grande 
mul t i d ã o ap i nhada em f r en t e de qua l que r co i s a que não consegu i 
d i s t i n g u i r . ao longo do mar hav i a vagabundos de i t a do s no paredão , 
miúdos que vend i am qu i nqu i l h a r i a , mend igos . Hav i a também uma f i l a 
de r i c k s baw a moto r , sa l t e i para den t r o de um cub í c u l o amare l o 
l i g ado a uma moto re t a e gr i t e i ao homenz i nho a rua do meu ho te l . 
Ele car r e gou no peda l de ar r anque e par t i u a toda a mecha, 
en f i a n do- se no t r ân s i t o . 
O Ba i r r o das Gaio l a s era mui t o p io r do que eu imag i na r a . 
Conhec i a- o a t r a vé s de a lgumas fo t og r a f i a s de um fo t óg r a f o cé l eb r e 
e pensava es ta r prepa r ado para a misé r i a humana, mas as 
fo t og r a f i a s fecham o v i s í v e l num rec t ângu l o . O v i s í v e l sem moldu r a 
é sempre uma co i s a d i f e r e n t e . E depo i s aque l e v i s í v e l t i n ha um 
che i r o demas i ado fo r t e . Melho r d i zendo , mui t o s che i r o s . 
Quando en t r ámos no ba i r r o ca í a o crepúscu l o e, o tempo de 
perco r r e r uma rua , de repen t e , como acon t e ce nos t r óp i c o s , ca i u a 
no i t e . Uma grande par t e das cons t r u ç ões do Ba i r r o das Gaio l a s é de 
made i r a e de es te i r a s . As prost i t u t a s es tão em caso t a s de tábuas 
descon j un t a da s , com a cabeça de fo r a a t r a vé s de um pos t i g o . 
Algumas daque l a s caso t a s eram pouco maio r e s do que a guar i t a de 
uma sen t i n e l a . E depo i s hav i a bar r a ca s e cor t i n a s de fa r r a po s , 
ta l v e z l o j a s ou ou t r a s ac t i v i d a de s
15
comerc i a i s , i l um i n adas com candee i r o s de pe t r ó l e o , d ian t e das 
qua i s hav i a magotes de gen te . Mas o ho te l Kha ju r a ho t i n ha uma 
pequena tabu l e t a i l um i n ada e f i c a v a quase à esqu i na de uma rua com 
ed i f í c i o s em cons t r u ç ão . O ves t í b u l o , se ass im se pode chamar , 
t i n h a um aspec t o equ í v o co sem ser sórd i d o . Era uma sa l a na 
penumbra com um ba l cão a l t o como os ba l c ões dos pubs ing l e s e s , de 
cada lado do ba l cão hav i a do i s aba j u r e s verme l hos e a t r á s es tava 
uma mulhe r de idade . Ves t i a um sar i v i s t o s o e t i n h a as unhas 
p in tadas de azu l , pe l o aspec t o pod i a ser europe i a , embora usasse 
na tes t a um dos mui t o s s i na i s das mulhe r e s i nd i a nas . Most r e i - lhe o 
meu passapo r t e e d i s se que t i n h a fe i t o a rese r v a por te l e g r ama . 
Ela fez um ges t o de assen t imen t o e pôs- se a cop i a r os meus dados 
de iden t i f i c a ç ã o com os tens i v a d i l i g ê n c i a , depo i s deu-me a f i c h a 
para ass i na r . 
Com ou sem casa- de- banho?", pergun t o u- me, e espec i f i c o u os 
preços . 
Esco l h i o qua r t o com casa- de-banho. Pareceu- me que a 
pronúnc i a da recepc i o n i s t a t i n h a um l i g e i r o so taque amer i c ano , mas 
não apro f unde i . 
Des t i n ou- me o qua r t o e deu-me a chave . O por t a- chaves era de 
ce l u l ó i d e t r an spa r en t e com uma deca l c oman i a den t r o a cond i z e r com 
o ho te l . 
- Quer j an t a r? , pergun t o u- me. Olhava- me com descon f i a n ç a . Perceb i 
que o loca l não era f r equen t a do por oc i den t a i s . Era ev i den t e que 
pergun t a va a s i próp r i a o que faz i a eu a l i , com uma bagagem 
ins i g n i f i c a n t e , depo i s de te r te l e g r a f a d o do aeropo r t o . 
16
 Respond i que s im. A ide i a não me at r a í a par t i c u l a rmen t e , mas 
t i n h a mui t a fome e não me parec i a opo r t u no anda r pe l o ba i r r o 
àque l a hora . 
- A sa l a de jan t a r fecha às o i t o , d i s se . depo i s das o i t o só 
ser v imos no quar t o . 
Disse que pre f e r i a j an t a r em ba i xo . e la conduz i u- me até uma 
cor t i n a do ou t r o lado do ves t í b u l o e en t r e i numa sa l e t a abobadada 
com as paredes p in t a das de escu ro , onde hav i a mesas ba i x as . As 
mesas es ta vam quase todas l i v r e s e a lu z era mui t o f r a ca . O menu 
prome t i a uma in f i n i d a d e de pra t o s , mas depo i s , ao pergun t a r ao 
empregado , f i q u e i a sabe r que jus t amen t e naque l a no i t e t i n h a 
acabado tudo . Hav i a só o número qu i n ze . Jan te i rap i d amen t e ar r o z e 
pe i xe , beb i uma cer ve j a morna e
vo l t e i para o át r i o . A recepc i o n i s t a a inda es ta va
sen tada no seu luga r e parec i a abso r v i d a a d i spo r
ped r i n h a s co l o r i d a s numa espéc i e de espe l ho . No
pequeno so fá do can to , jun t o à por t a da en t r ada , 
es ta vam do i s rapazo l a s mui t o escu ro s , ves t i d o s à
oc i den t a l , com ca l ç as à boca de s i no . Parece r am não dar por 
mim, mas eu sen t i imed i a t amen t e um cer t o mal- es ta r . Pare i d ian t e 
do ba l c ão e espe re i que fosse e la a fa l a r . De fac t o fa l o u . Disse 
a lgo com uma voz neu t r a e ind i f e r e n t e . não perceb i bem do que se 
t r a t a v a e ped i- l he para repe t i r . 
Era uma tabe l a . As ún i c as quan t i a s que perceb i fo r am a 
pr ime i r a e a ú l t ima : dos t r e ze aos qu i n ze anos , t r e zen t a s rup i a s , 
depo i s dos c i nquen t a , c i n co
rup i a s . 
- As mulhe r e s es tão na sa l e t a do pr ime i r o anda r , 
conc l u i u . 
17
 Ti r e i uma ca r t a do bo l s o e most r e i - lhe a ass i na t u r a . Sab i a o 
nome de memór i a , mas pre f e r i most r a r- l ho esc r i t o , para não have r 
equ í v o cos . 
Vima la Sar , d i s se eu. Quero uma rapa r i g a que se chama Vima la 
Sar" . 
Ela lançou um o lha r ráp i d o aos do i s rapazo l a s sen tados no 
so fá . 
Vima la Sar já não t r aba l h a aqu i , d i s se , fo i- se embora" . 
Para onde fo i?" , pergun t e i . 
Não se i , respondeu , mas temos rapa r i g a s mais bon i t a s do que 
e la . 
As co i s as não começavam mui t o bem. Pe lo can to do o lho 
pareceu- me que os do i s rapazo l a s faz i am um l i g e i r o mov imen t o , mas 
ta l v e z fos se apenas imp res são minha . 
Procu r e- ma, d i s se rap i d amen t e , eu espe ro no qua r t o . 
Por so r t e t i n h a no bo l so duas no tas de v i n t e dó l a r e s . Deixe i- l has 
en t r e as pedr i n ha s co l o r i d a s e pegue i na minha male t a . Enquan t o 
sub i a as escadas t i v e uma pequena i nsp i r a ç ã o d i t a da pe l o medo. 
- A minha emba i xada sabe que es tou aqu i , d i s se em voz a l t a . 
O qua r t o parec i a l impo . Es tava p in t a do de ve rde pá l i d o e nas 
paredes hav i a gravu r a s com escu l t u r a s eró t i c a s de Kha ju r a ho , 
pareceu- me, mas não t i n h a mui t a von t ade de me cer t i f i c a r . A cama 
era mui t o ba i xa e ao lado hav i a uma po l t r o n a es fa r r a pada e um 
mont i n ho de a lmo fadas co l o r i d a s . Na mes inha- de-cabece i r a hav i a 
vár i o s ob j e c t o s de fo rma incon f u nd í v e l . Desp i- me e pegue i em roupa 
in t e r i o r la vada . A casa de banho era um cub í c u l o la cado que t i n ha 
na por t a um pos t e r com uma lou r a
18
montada numa Coca-co l a . O pos t e r es tava amare l e c i d o e manchado dos 
insec t o s , a lou r a usava o cabe l o à Mar i l y n Monroe , t i p o anos 
c i nquen t a , o que aumen tava a sua i ncong r uênc i a . Ao chuve i r o
fa l t a v a o cr i v o , era s imp l e smen t e um cano donde
jo r r a v a um jac t o de água à a l t u r a da cabeça , mas
la va r- me pareceu- me a co i s a mais vo l up t u o sa do
mundo: t i n ha no pê l o o i t o horas de av i ão , t r ê s horas de 
aeropo r t o e a t r a ves s i a de Bomba im. 
Não se i quan to tempo dorm i . Ta l vez duas horas , ta l v e z mais . 
Quando as pancad i n has na por t a me
aco rda r am, fu i abr i r maqu ina lmen t e , ao pr i n c í p i o
nem seque r me ape rceb i onde me encon t r a v a . A rapa r i g a era 
pequena e ves t i a um bon i t o sa r i . Estava
a sua r e a maqu i l h a gem começava a des f a ze r- se ao
can to dos o lhos . Disse : 
- Boa no i t e , senho r , eu sou Vima l a Sar . 
F i cou de pé no quar t o , de o lhos ba i x os e braços ca í dos como se me 
desse opor t u n i d ade de a examina r . 
- Sou um amigo de Xav i e r , - d i s se eu. 
Ela le van t o u os o lhos e l i uma grande su rp r e sa
no seu ros t o . T inha co l o cado a ca r t a de l a sob re
a mes inha de cabecei r a . Olhou para e la e começou a cho ra r . 
- Porque é que e le ve i o para r a um luga r des t e s? pergun t e i . O 
que faz i a aqu i? Onde es tá agora?
- Ela começou a so l u ça r ba i x i n h o e eu perceb i que
t i n ha fe i t o demas i adas pergun t a s . 
- Aca lme- se, d i s se . 
Quando soube que eu lhe t i n ha esc r i t o , zangou- se mui t o , d i s se 
e la . 
- E porque me esc re veu?
19
- Porque encon t r e i a sua d i r e c ção na agenda de Xav i e r " , d i s se e la , 
sab i a que vocês t i n h am s ido mui t o amigos , em tempos" . 
Porque é que e le se zangou?". 
Ela le vou a mão à boca como para imped i r o cho ro . Nos ú l t imos 
tempos to r na r a- se mau", d i s se , es ta va doen te . 
Mas o que é que e le faz i a?" . 
Faz i a negóc i o s " , d i s se e la , não se i , não me con ta va nada, já 
não era bom". 
Que t i p o de negóc i o s?" . 
Não se i " , repe t i u , não me con ta va nada, às vezes andava 
ca l ado d ias e d ias , e depo i s , de repen t e , f i c a v a mui t o ag i t a do e 
t i n h a grandes exp l o sões de fú r i a " . 
Quando é que e le chegou aqu i?" . 
No ano passado" , d i s se e la , v i nha de Goa, faz i a negóc i o s com 
e les , depo i s adoeceu" . 
Eles , quem?". 
 "Os de Goa, d i s se , de Goa, não se i . Sen tou- se no 
so faz i n ho j un t o da cama, de i xa r a de cho ra r , parec i a mais ca lma. 
Compre qua l que r co i s a para bebe r , d i s se e la , naque l e armar i o z i n h o 
há l i c o r e s , uma gar r a f a cus t a c i nquen t a rup i a s " . 
Fu i ao armar i o z i n h o e pegue i numa pequena gar r a f a che i a de um 
l í q u i d o amare l a do , um l i c o r de tange r i n a . 
Mas quem eram esses de Goa?", i ns i s t i , lemb ra- se pe l o menos do 
nome, qua l que r co i s a?
Ela abanou a cabeça e começou ou t r a vez a cho ra r . Os de Goa", 
d i s se , de Goa, não se i . Estava doen t e" , repe t i u . 
Fez uma pausa e deu um longo susp i r o . Às vezes
parec i a i nd i f e r e n t e a tudo" , d i s se , mesmo a mim. 
20
A ún i ca co i s a que o in t e r e s s a va um pouco eram as car t a s de 
Madras t a , mas depo i s , no d ia segu i n t e , vo l t a v a ao mesmo. 
Que car t a s?" . 
As ca r t a s de Madras t a " , d i s se e la i ngenuamen te , como se fosse uma 
in f o rmação su f i c i e n t e . 
Mas de quem?", i ns i s t i , quem lhe esc r e v i a? . 
"Não se i " , d i s se , uma soc i edade , não me lembro , nunca me de i xou 
lê- l as . 
E e le respond i a?, pergun t e i a inda . 
Vima l a f i c o u abso r t a . Sim, respond i a , penso que s im, passava 
mui t a s horas a esc r e ve r " . 
Por favo r " , ped i , ten t e faze r um es fo r ç o , o que era essa 
soc i edade?". 
Não se i , d i s se , era uma soc i edade de es tudo , c re i o , não se i , 
senho r " . Fez ou t r a pausa e depo i s d i s se : e le era bom, a sua 
von t ade era boa, mas a sua na tu r e z a t i n ha um des t i n o t r i s t e " . 
T inha os dedos en t r e l a ç ado s , uns dedos compr i d o s e bon i t o s . Depo i s 
o lhou para mim com uma exp res são de a l í v i o como se lhe t i v e s s e 
v i ndo à memór i a uma reco r da ção . Theosoph i c a l Soc i e t y , d i s se . E 
pe l a pr ime i r a vez sor r i u . 
Ouça, d i s se eu, con te- me tudo com ca lma, tudo o que se lembra r , 
tudo o que possa d i ze r- me. 
Serv i- l he mais um copo. Ela bebeu e começou a con ta r . Fo i uma 
h i s t ó r i a l onga , pro l i x a , che i a de de ta l h e s . Fa lou- me da h i s t ó r i a 
de l e s , das es t r a da s de Bomba im, de excu r sões a leg r e s a Basse i n e a 
Elephan t a . E a inda de ta r des no Vic t o r i a Garden , de i t a do s na 
re l v a , dos banhos em Chowpa t t y Beach, sob as pr ime i r a s chuvas da 
monção. Soube como Xav i e r t i n h a aprend i d o a r i r e do que r i a ;
21
e de quan t o gos t a va do pôr- do-so l no mar de Oman, quando passeavam 
ao f im da ta r de , à be i r a- mar . Era uma h i s t ó r i a que e la t i n h a 
cu i dadosamen t e l impo de to r pezas e de misé r i a s . Era uma h i s t ó r i a 
de amor . 
Xav i e r t i n ha esc r i t o mui t a s co i s as , d i s se e la , depo i s , um 
d ia , que imou tudo . Estava aqu i , nes t e ho te l , pegou numa bac i a de 
cob re e que imou tudo . 
Porquê?, pergun t e i . 
Es tava doen te , d i s se e la , a sua na tu r e za t i n ha um des t i n o 
t r i s t e . 
Quando Vima l a se fo i embora a no i t e dev i a es ta r no f im . Não 
o lhe i para o re l ó g i o . Cor r i as cor t i n a s da jane l a e es tend i - me na 
cama. Antes de ado rmece r chegou até mim um gr i t o d i s t a n t e . Ta l vez 
fos se uma oração ou uma invocação ao novo d ia que es tava a nasce r . 
22
I I
Como se chamava?, . 
 Chamava-se Xav i e r , respond i . 
Como o miss i o ná r i o? , pergun t o u e le . E depo i s d i s se : c l a r o que não 
é i ng l ê s , não é verdade?, . 
Não, d i s se , é por t u guês , mas não ve i o como miss i o ná r i o , é um 
por t uguês que se perdeu na Índ i a . 
O médico abanou a cabeça em s ina l af i rma t i v o . Usava um ch i nó 
br i l h a n t e que se mov ia cada vez que mex ia a cabeça , como uma touca 
de bor r a cha . 
Na Índ i a perde- se mui t a gen te , d i s se , é um pa í s fe i t o de propós i t o 
para i s so . 
Eu d i s se : po i s é. E depo i s o lhe i para e le e também e le o lhou para 
mim com ar desp reocupado como se es t i v e s s e a l i po r acaso e tudo 
acon t e ces se por acaso , porque ass im t i v e s s e de ser . 
23
Também sabe o ape l i d o?" , pergun t o u , às vezes pode a juda r " . 
Jana t a Pin t o , d i s se eu, t i n ha remo tas or i g ens ind i a na s , acho 
que um seu an tepassado era de Goa, pe l o menos era o que e le 
d i z i a " . 
O médico fez um ges t o que parec i a s i gn i f i c a r : i s so chega ; mas 
não era i s so que quer i a d i ze r , na tu r a lmen t e . 
Haverá ce r t amen t e um arqu i v o " , d i s se , espe ro eu, . 
Ele sor r i u com ar in f e l i z e cu l pado . T inha os den tes mui t o 
brancos e uma fa l h a na f i l a supe r i o r . 
Um arqu i v o . . . ", resmungou. De repen t e , a sua exp re s são to r nou-
se dura , tensa . Olhou- me com seve r i d a de , quase com desp re zo . I s t o 
é um hosp i t a l de Bomba im", d i s se secamen te , ponha de par t e as suas 
ca tego r i a s europe i a s , são um luxo ar r ogan t e " . 
Cale i- me e também e le f i c o u em s i l ê n c i o . Do bo l so da ba ta 
t i r o u uma car t e i r a de pa l ha e pegou num c iga r r o . At r á s da sua 
mesa, na parede , hav i a um grande re l ó g i o . Marcava se te horas , 
es tava parado . Olhe i para e le e e le percebeu o que eu es ta va a 
pensa r . 
Há mui t o que es tá parado" , d i s se , de qua l que r modo é meia- no i t e " . 
Bem se i " , d i s se eu, es tou à sua espe ra desde as o i t o , o 
médi co de d ia d i s se- me que o senho r era o ún i c o que ta l v e z me 
pudesse a juda r , d i z que tem boa memór i a" . 
Ele vo l t o u a so r r i r , com o seu so r r i s o t r i s t e e cu l padoe eu 
perceb i que mais uma vez t i n ha comet i d o uma ga fe , que não era uma 
qua l i d a de te r boa memór i a , num luga r como aque l e . 
Era seu amigo?". 
24
 De ce r t o modo, d i s se eu, em tempos" . 
Quando fo i i n t e r n ado?. 
Há quase um ano, c re i o , no f im da monção, . 
Um ano é mui t o tempo, d i s se e le . E depo i s con t i n u ou a monção é o 
per í o do p io r , vem mui t í s s ima gen te . 
 Imag i no , respond i . 
Pôs a cabeça en t r e as mãos como se re f l e c t i s s e ou como se 
es t i v e s s e mui t o cansado . 
Não imag i na , d i s se . Tem uma fo t og r a f i a de l e?. 
Era uma pergun t a s imp l e s e prá t i c a , mas eu t r opece i na respos t a , 
porque também eu sen t i o peso da memór i a e, ao mesmo tempo, a sua 
inadequação . O que é que se reco r da de um ros t o , no fundo? Não, 
não t i n ha uma fo t o g r a f i a , t i n h a apenas a minha reco r da ção : e a 
minha reco r da ção era só minha , não era desc r i t í v e l , era a 
exp re s são que eu t i n ha do ros t o de Xav i e r . F i z um es fo r ç o e d i s se : 
é um homem da minha a l t u r a , magro , de cabe l o s l i s o s , tem 
aprox imadamen t e a minha idade , às vezes uma exp res são como a sua, 
do u to r , porque , se sor r i , parece t r i s t e . 
Não é uma desc r i ç ã o mui t o prec i s a , d i s se e le , mas tan t o faz , não 
me lembro de nenhum Jana t a Pin t o , pe l o menos de momento . 
Encon t r á v amo- nos numa sa l a mui t o c i n zen t a , desp i da . Na parede do 
fundo hav i a uma grande t i n a de c imen t o , como um lavadou r o . Estava 
che i a de fo l h a s de pape l . Jun to da t i n a hav i a uma espéc i e de mesa 
compr i d a , também es ta a t r a vancada de papé i s . O médi co levan t o u- se 
e fo i ao fundo da sa l a . Pareceu- me que coxeava . Pôs-se a mexer nos 
papé i s da mesa. De longe , t i v e a imp res são
25
de que eram fo l h a s de cade rno e bocados de pape l cas t anho , de 
embru l h o . 
É o meu arqu i v o , d i s se , são tudo nomes. 
Eu f i q ue i sen t ado em f r en t e da mes inha o lhando para os poucos 
ob j e c t o s que a ocupavam. Hav i a uma pequena bo l a de cr i s t a l com a 
imagem da pon te de Lond res e uma fo t og r a f i a emoldu r ada de uma casa 
que parec i a um cha l e t su í ç o . Pareceu- me absu rdo . A uma jane l a do 
cha l e t v i a- se uma f i g u r a de mulhe r , mas a fo t og r a f i a es tava 
des f o cada e não t i n h a con t o r n o s . 
Não é um drogado , po i s não?, pergun t o u- me do fundo da sa l a . 
Não ace i t amos drogados . 
F ique i em s i l ê n c i o e depo i s abane i a cabeça . 
Ta l vez não, respond i depo i s , não c re i o , não se i " . 
Mas como sabe que ve i o para o hosp i t a l , tem a ce r t e z a?" . 
Disse- me uma pros t i t u t a do ho te l Kha j u r aho , era lá que e le es tava 
hospedado , no ano passado . 
E o senho r?, pergun t o u , também es tá lá hospedado?
Dormi lá a no i t e passada , mas amanhã mudo. procu r o não f i c a r 
no mesmo ho te l mais do que uma no i t e , quando é poss í v e l . 
Porquê?, pergun t ou e le descon f i a d o . 
T inha um monte de papé i s nos braços e o lhava- me por c ima dos 
ócu l o s . 
Porque s im, d i s se . Gosto de mudar todas as no i t e s , tenho comigo 
apenas es ta pequena mala . 
E para amanhã, j á dec i d i u?
Ainda não, d i s se eu. Acho que gos t a r i a de um ho te l mui t o 
con f o r t á v e l , ta l v e z de l uxo . 
26
Poder i a i r para o Ta j Maha l , d i s se e le , é o ho te l mais l uxuoso de 
toda a Ás ia . 
Ta l vez não se j a má ide i a " , respond i . 
Ele meteu os braços na t i n a en t r e os bocados de pape l . 
Tan to s homens" , d i s se . 
T inha- se sen tado na borda da t i n a e puse ra- se a l impa r os ócu l o s . 
Esf r egou os o lhos com um lenço como se os devesse te r cansados ou 
i r r i t a d o s . 
Pó, d i s se . 
O pape l?" , pergun t e i eu. 
Ele ba i xou os o lhos , v i r o u- me as cos t a s . 
O pape l , d i s se , os homens" . 
De longe ve i o um lúgub r e es t r o ndo metá l i c o , como um b idão que 
ro l a s se pe l a s escadas aba i x o . 
De qua l que r modo não es tá cá, d i s se e le , de i xando ca i r todos os 
papé i s , penso que é i nú t i l procu r á- lo en t r e todos es tes nomes". 
Ins t i n t i v amen t e le van t e i - me. Tinha chegado o momento de me 
desped i r , ju l g ue i que era i s t o que me es ta va a d i ze r : que me fos se 
embora . Mas e le não pareceu dar- se con t a d i s so , d i r i g i u - se a um 
armar i o z i n h o de meta l que em tempos remo tos dev i a te r s i do p in t a do 
de branco . Vascu l hou den t r o de l e e pegou em medi camen t o s que meteu 
apressadamen t e nos bo l sos da ba ta , pareceu- me que os agar r a v a ao 
acaso , sem os esco l h e r . 
Se a inda cá es tá , a ún i c a mane i r a de o encon t r a r é i r à procu r a 
de l e , d i s se , eu tenho de faze r a minha vo l t a , se qu i se r pode v i r 
comigo . 
Di r i g i u - se para a por t a e abr i u- a. 
Fare i uma vo l t a mais compr i d a do que cos t umo, es ta no i t e , pode ser 
que você não ache opor t u no v i r comigo . 
Levan t e i - me e fu i a t r á s de l e . 
Acho opor t u no , d i s se . Posso l eva r a minha bagagem comigo?. 
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O át r i o para o qua l se abr i a a por t a era uma sa l a hexagona l e 
de cada um dos seus lados par t i a um cor r e do r . Estava a t r a vancada 
de roupa , de sacos , de lençó i s c i n zen t o s . Alguns t i n h am manchas 
roxas e cas t anhas . Metemos pe l o pr ime i r o cor r e do r à nossa d i r e i t a ; 
no umbra l hav i a um le t r e i r o em h indu , a lgumas le t r a s t i n ham ca í do , 
de i xando uma mancha c l a r a en t r e as l e t r a s verme l has . 
Não toque em nada, , d i s se , e não se aprox ime demas i ado dos 
doen t e s , vocês europeus são mui t o de l i c a dos , . 
O co r r edo r era mui t o compr i d o , p in t a do de azu l ce l e s t e , 
melancó l i c o . O chão es tava pre t o de bara t a s que reben t a vam deba i x o 
dos nossos sapa t o s , embora f i z é s s emos o poss í v e l para não as 
p i sa r . 
Exte rm i namo- las , d i s se o médi co , mas um mês depo i s vo l t am a 
nasce r , as paredes es tão imp regnadas de la r v a s , se r i a prec i s o 
demo l i r o hosp i t a l " . 
O co r r edo r te rm i na va num novo át r i o idên t i c o ao pr i n c i p a l , 
mas es t r e i t o e sem luz , sepa rado por uma cor t i n a . 
O que faz i a o senho r Jana t a Pin t o?, , pergun t ou- me 
enquan t o ar r edava a cor t i n a do á t r i o . 
Pense i em d i ze r- l he t r adu t o r s imu l t â n eo , , que era o que ta l v e z 
devesse d i ze r . E em vez d i s so respond i : esc r e v i a con t o s . 
Ah", d i s se e le . Tenha cu i dado , aqu i há um deg rau . De que 
t r a t a v am?, . 
Bem, , d i s se eu, não se i bem como exp l i c a r . d igamos que 
fa l a v am de co i s a s fa l h adas , de er r o s humanos , por exemp lo , fa l a v a 
de um homem que passou toda a v i da a sonha r com uma v i agem e 
quando
28f i n a lmen t e , tem opor t u n i d ade de a faze r , nesse d ia dá-se con ta de 
que j á não l he ape tece fazê- la" . 
Contudo e le par t i u , , d i s se o médi co . 
Ass im parece , d i s se eu, e fec t i v amen t e" . 
O médi co de i xou ca i r a cor t i n a a t r á s de nós . 
Aqu i den t r o há uma cen t ena de pessoas , d i s se , rece i o que não se j a 
um espec t á cu l o agradáve l para s i , são os que es tão aqu i há a lgum 
tempo, o seu amigo pode r i a es ta r en t r e es te s , se bem que me pareça 
imp rováve l " . 
Segu i- o e en t r ámos na maio r sa l a que eu já v i . Era quase tão 
grande como um hanga r , e ao longo das paredes e em t r ê s f i l a s 
cen t r a i s hav i a camas, ou melho r , enxe rgas . Do tec t o pend i am 
a lgumas lâmpadas mor t i ç a s e eu pare i um momento porque o che i r o 
era mui t o fo r t e . De cóco r a s , jun t o à por t a da en t r ada , es tavam 
do i s homens ves t i d o s com roupas mise r á ve i s que, quando en t r ámos , 
se a fas t a r am. 
São In t o cá ve i s " , d i s se o médi co , são e les que se ocupam das 
necess i d ades corpo r a i s dos doen t e s , não há mais n inguém que faça 
es te t r aba l h o . A Índ i a é ass im" . 
Na pr ime i r a cama hav i a um ve l ho . Estava comp le t amen t e nu e era 
mui t o magro . Parec i a mor t o , mas t i n ha os o lhos ar r ega l a do s e o lhou 
para nós sem a menor exp re s são . T inha um enorme pén i s pousado na 
bar r i g a . O médi co aprox imou- se e tocou- lhe a tes t a . Pareceu- me que 
lhe met i a um medi camen t o na boca , mas não perceb i bem, porque me 
encon t r a v a aos pés da enxe rga . 
É um sádbuy , d i s se o médi co , os seus órgãos gen i t a i s es tão 
consag r ados ao
29
deus , em tempos era adorado pe l a s mulhe r e s es té r e i s , mas nunca 
proc r i o u " . 
Depo i s e le afas t o u- se e eu segu i- o. Parava em todas as camas, 
enquan t o eu f i c a v a de lado a o lha r para o ros t o do en fe rmo . Jun t o 
de ou t r o s apenas um momento tocando- lhe a tes t a . As paredes 
es tavam manchadas de verme l ho , por causa das cusp i d e l a s do be te l 
mascado , e o ca l o r era su focan t e . Ou era ta l v e z o che i r o demas i ado 
in t e n so que dava aque l a sensação de aba famen t o , de su focação . As 
ven t o i n ha s no tec t o , con t udo , es tavam paradas . Depo i s o médi co 
vo l t o u para t r á s e eu segu i- o em s i l ê n c i o . 
Não es tá , d i s se eu, en t r e es tes não es tá . 
Ele vo l t o u a afas t a r a co r t i n a do át r i o com imu tá ve l co r t e s i a 
e deu-me passagem. 
Es tá um ca l o r in supo r t á v e l " , d i s se eu, e as ven to i n ha s es tão 
paradas , é i nc r í v e l , . 
Em Bomba im a co r r en t e , de no i t e , é mui t o f r a ca , respondeu- me. 
E con tudo têm um reac t o r nuc l ea r em Trombay , v i a chaminé da 
be i r a- mar . 
Esboçou um so r r i s o mui t o le ve . 
A ene rg i a va i quase toda para as fáb r i c a s , e depo i s para os ho té i s 
de lu xo , e para o ba i r r o de Mar i ne Dr i v e , aqu i temos de nos 
con f o rma r " . 
Começou a caminha r ao longo do cor r e do r e tomou a d i r e c ção opos t a 
àque l a donde t í n h amos v i ndo . 
Ass im é a Índ i a conc l u i u . 
O senho r es tudou aqu i?" , pergun t e i . 
Parou a o lha r para mim, e pareceu- me que nos seus o lhos passava um 
re l âmpago de nos t a l g i a . 
Estude i em Lond res e depo i s espec i a l i z e i - me em
30
 Zur i q ue . 
T i r ou do bo l so o seu es to j o de pa l ha e pegou num c iga r r o . 
Uma espec i a l i d a d e absu rda , para a Índ i a . Sou card i o l o g i s t a , mas 
aqu i n inguém f i c a doen te do co ração , só vocês na Europa mor rem de 
en fa r t e . 
De que se mor re , aqu i?, pergun t e i eu. 
-De tudo o que não tem a ve r com o coração . Sí f i l i s , tube r c u l o s e , 
l ep r a , t i f o , sep t i c em i a , có l e r a , mening i t e , pe l ag r a , d i f t e r i a e 
ou t r a s co i s as . Mas eu gos t a va de es tuda r o coração , gos t a va de 
percebe r aque l e múscu l o que comanda a nossa v i da . Fez um ges t o com 
a mão abr i n do e fechando o punho. Ta l vez eu ju l g a s se que 
descob r i r i a qua l que r co i s a l á den t r o . 
O co r r edo r desembocava num pequeno pá t i o cobe r t o , em f r en t e 
de um pav i l h ã o ba i xo de t i j o l o s . 
Você é c ren t e?, pergun t e i . 
- Não, d i s se e le , sou a teu . Ser a teu é a p io r das 
mald i ç õe s , na Índ i a . 
At r a vessámos o pá t i o e parámos à f r en t e da por t a do pav i l h ã o . 
 -Aqu i den t r o es tão os in cu r á v e i s , há uma remo ta poss i b i l i d a d e que 
o seu amigo es te j a en t r e e les . 
O que têm?", pergun t e i . 
Tudo o que possa imag i na r " , d i s se e le , mas ta l v e z se j a melho r i r-
se embora" . 
Também acho, respond i . 
Vou acompanhá- lo , d i s se e le . 
-Não, não se in comode, por favo r , ta l v e z eu possa sa i r por aque l a 
por t i n i a do gradeamen to , parece- me que dá para a rua . 
31
Chamo-me Ganesh" , d i s se , como o deus a leg r e com ca ra de 
e le f a n t e . 
Eu também lhe d i s se o meu nome an tes de me afas t a r . O 
por t ão z i n h o da sa í da f i c a v a a poucos passos , para a lém de uma sebe 
de ja sm i ns . Estava abe r t o . Quando me vo l t e i a o lha r para e le , e le 
d i s se a inda . 
Se eu o encon t r a r , d igo- lhe a lguma co i s a?, . 
Não, por favo r " , d i s se eu, não lhe d iga nada. 
Ele t i r o u o ch i nó como se fos se um chapéu e fez uma l i g e i r a vén i a . 
Eu sa í para a rua . Es tava a amanhece r e a gen te nos passe i o s 
começava a aco rda r . Alguns es tavam a enro l a r as es te i r a s do 
repouso noc t u r n o . A rua es tava invad i d a de cor vos que sa l t i t a v am 
em vo l t a do es te r c o das vacas , Jun t o à escada r i a da en t r a da es tava 
um táx i descon j un t a do com um cho fe r que dorm i t a v a com a cara 
apo i ada na j ane l a . 
Ta j Maha l , d i s se eu, en t r a ndo . 
32
I I I
OS ún i cos hab i t a n t e s de Bomba im que não se preocupam com o d i r e i t o 
de admissão , v i gen t e no Ta j Maha l são os cor vos . Descem sob re a 
esp l anada do In t e r c o n t i n e n t a l , pousam c io sos nas jane l a s do 
ed i f í c i o mais an t i g o , empo le i r am- se nos ramos das mangue i r a s dos 
ja r d i n s , sa l t i t a n d o sob re o impecáve l tape t e de re l v a que ce r ca a 
p i s c i n a . Ser i am capazes de bebe r dos bordos ou dar b i cadas na 
casca de la r an j a do copo do mar t i n i se um d i l i g e n t e c r i a do de 
l i b r é os não enxo t a s se com um pau de cr i c k e t , como num espec t á cu l o 
absu rdo pos t o em cena por um encenado r ex t r a v agan t e . É prec i s o 
cu i dado com os co r vos , têm o b i co mui t o porco . A câmara munic i p a l 
de Bomba im teve de mandar tapa r os eno rmes depós i t o s do aquedu t o : 
acon t e ceu já que as aves , que se enca r r e gam de re i n t r o d u z i r no 
c i c l o
33
b io l ó g i c o os cadáve r e sque os Parses expõem nas Tor r e s do Si l ên c i o 
(há numerosas to r r e s na zona de Malaba r Hi l l ) , de i xa r am ca i r na 
água a lguns bocados . Mas apesa r des t a s medidas , a câmara muni c i p a l 
não reso l v e u ev i den t emen t e o prob l ema da h ig i e ne , porque depo i s há 
o prob l ema dos ra t o s , dos insec t o s , das in f i l t r a ç õ e s nos esgo t o s . 
É melho r não bebe r a água de Bomba im. Pode bebe r- se no Ta j Maha l , 
que possu i os seus depu rado r e s próp r i o s e se orgu l h a da sua água. 
Porque o Ta j não é um ho te l : com os seus o i t o c en t o s qua r t o s é uma 
c i dade den t r o de uma c i dade . 
Quando en t r e i nes t a c i dade fu i receb i d o por um por t e i r o 
d i s f a r ç a do de pr í n c i p e ind i a no , de fa i x a e de tu r ban t e verme l hos 
que me gu i ou até à por t a r i a f l ame j a n t e de dourados onde hav i a 
ou t r o s empregados também masca rados de mabara j a . Provave lmen t e 
pensa r am que eu também es tava masca rado , mas ao con t r á r i o , que era 
um r i c a ço d i s f a r ç a do de pobre , e f i z e r am o poss í v e l para me 
ar r an j a r um quar t o na a la nob re do ed i f í c i o , a do mobi l i á r i o 
an t i g o e v i s t a para o Gateway o f Ind i a . O meu pr ime i r o impu l s o fo i 
d i ze r que não es tava a l i po r ques t ões de es té t i c a , mas apenas para 
dorm i r num desca r ado con f o r t o , e que pod i am ins t a l a r - me à von t ade 
de l e s num quar t o com mobí l i a ve rgonhosamen t e moderna , que mesmo o 
ar r anha- céus do In t e r c o n t i n e n t a l se r v i a . Mas depo i s pareceu- me 
crue l dar- l hes es ta des i l u s ão . Recuse i porém a su i t e dos pavões . 
Era excess i v a para uma pessoa só, mas não era ev i den t emen t e por 
uma ques t ão de preço , espec i f i q u e i para mante r o es t i l o que já 
t i n h a esco l h i d o . 
34
O quar t o era imponen t e , a minha male t a
precede r a- me por v i a s mis t e r i o s a s e es ta va em c ima de um banco de 
corda , a banhe i r a j á es tava che i a de água e de espuma, met i- me 
ne l a e depo i s embru l he i - me numa toa l h a de l i n h o . As jane l a s davam 
para o mar de Oman, era já quase d ia c l a r o , com uma luz rosada que 
t i n g i a a pra i a , a v i da da Índ i a começava a fo rm i ga r , as pesadas 
cor t i n a s de ve l udo verde des l i z a v am doces e mac ias como um pano de 
tea t r o , f i - l as desce r sob re a pa i sagem e o quar t o fo i todo 
penumbra e s i l ê n c i o , o zumb ido pregu i ç o so e recon f o r t a n t e da 
grande ven t o i n ha emba lou- me, t i v e apenas tempo de pensa r que 
também e la era um luxo supé r f l u o porque todo o qua r t o es tava 
per f e i t amen t e c l ima t i z a d o , e chegue i imed i a t amen t e a uma ve l ha 
cape l a numa co l i n a medi t e r r â n i c a , a cape l a era branca e faz i a 
ca l o r , es távamos es fomeados e Xav i e r , r i n do , t i r a v a sandu i c hes e 
v i nho f r e s c o , I sabe l também r i a , enquan t o Magda es tend i a uma manta 
na re l v a , l onge hav i a o azu l ce l e s t e do mar e um bur r o so l i t á r i o 
dorm i t a v a à sombra da cape l a . Mas não era um sonho, era uma 
reco r da ção rea l : o lhava no escu r o do quar t o e v i a aque l a cena 
d i s t a n t e que me parec i a um sonho porque t i n ha dorm ido mui t a s horas 
e o meu re l ó g i o marcava qua t r o da ta r de . F ique i mui t o tempo na 
cama a pensa r naque l e s tempos , vo l t e i a perco r r e r pa i sagens , 
ros t o s , v i das . Reco rde i as excu r sões de car r o a t r a vé s dos p inha i s , 
os nomes que t í n hamos dado uns aos ou t r o s , a gu i t a r r a de Xav i e r e 
a voz aguda de Magda, que anunc i a v a com i r ó n i c a grav i d ade , 
im i t a ndo os vendedo r e s ambu lan t e s das fe i r a s : senho r as e senho res
35
um pouco de atenção , temos connosco o roux i n o l i t a l i a n o! E eu 
pres t a va- me ao jogo e começava a can t a r ve l has canções 
napo l i t a n a s , im i t a ndo os gorge i o s an t i q u ados dos can t o r e s de 
ou t r o s tempos , enquan t o todos se r i am e ap l aud i am. Ent r e nós eu 
era o Roux e t i n h a- me res i g nado : as le t r a s i n i c i a i s de roux i n o l . 
Mas, d i t o ass im, parec i a um be lo nome exó t i c o , não hav i a razão 
para a gen te se zanga r . E depo i s os verões segu i n t e s des f i l a r am 
por sua vez . Magda a cho ra r , pense i , porquê? Ser i a ju s t o? E a 
Isabe l e as suas i l u s ões? E quando aque l a s reco r da ções ganha ram 
con t o r n o s in supo r t á v e i s , n í t i d o s como se fossem pro j e c t a do s na 
parede , l evan t e i - me e sa í do quar t o . 
Às se i s da ta r de já não são horas para a lmoça r e é um pouco 
cedo de mais para jan t a r . Mas no Ta j Maha l , d i z i a o meu gu i a , 
graças aos seus qua t r o res t au r a n t e s , pode- se comer a qua l que r 
hora . No ú l t imo anda r do Apo lo Bunde r" hav i a o Rendez- vous , mas 
era demas i ado ín t imo . E demas i ado ca ro . Pare i no Apo lo Bar e 
esco l h i uma mesa jun t o do v i d r o da esp l anada o lhando as pr ime i r a s 
l uzes da no i t e , a be i r a- mar era uma gr i n a l d a , tome i do i s g ins 
tón i c o s que me puse ram de bom humor e esc r e v i uma car t a à Isabe l . 
Esc rev i duran t e mui t o tempo, de jac t o , com en tus i a smo , e con t e i -
l he tudo . Fa le i - lhe daque l e s d ias passados e da minha v i agem e de 
como os sen t imen t o s vo l t am a af l o r a r com o tempo. Disse- lhe também 
co i sa s que nunca pensa r i a d i ze r- l he e quando vo l t e i a le r a car t a , 
com a a leg r i a in consc i e n t e de quem bebeu em je j um, perceb i que 
aque l a ca r t a , no fundo , era para Magda, t i n ha- a esc r i t o para e la , 
sem dúv i da , 
36
embora d i s ses se Quer i d a I sabe l " ; ass im amar r o t e i - a e de i xe i - a no 
c i n ze i r o , desc i ao rés- do-chão, en t r e i no Tan j o r e Res tau r an t e 
ped i um jan t a r sumptuoso , exac t amen t e como fa r i a um pr í n c i p e 
d i s f a r ç a do de pobre . E depo i s , quando acabe i de jan t a r , era de 
no i t e , o Ta j an imava- se e c i n t i l a v a de lu z , no re l v a do jun t o da 
p i s c i n a os cr i a do s de l i b r é es tavam pron t o s para a fugen t a r os 
cor vos , eu ins t a l e i - me num so fá no meio daque l e ha l l tão grande 
como um campo de fu t ebo l e pus-me a con t emp l a r o luxo . Não se i 
quem d i s se que no puro ac to de o lha r há sempre um pouco de 
sad i smo. Ten te i , mas não consegu i l emb ra r- me, porém, sen t i que 
hav i a a lgo de verdade i r o naque l a f r a se : e ass im pus-me a o lha r com 
maio r vo l úp i a , com a per f e i t a sensação de ser apenas do i s o lhos 
que o lhavam enquan t o eu es tava a lgu r e s , sem sabe r onde. Olhe i as 
mulhe r e s , e as jó i a s , os tu r ban t e s , os bar r e t e s mour i s c o s , os 
véus , as caudas , os ves t i d o s de cer imón i a , os muçu lmanos e os 
mi l i o n ár i o s amer i c anos , os re i s do pe t r ó l e o e os cr i a do s 
s i l e n c i o s o s : escu t e i garga l h adas , f r a ses compreens í v e i s e 
incompreens í v e i s , cump l i c i d a de s , seg redos . E tudo i s t o nunca parou 
duran t e toda a no i t e , quase a té ao amanhece r . Depo i s , quando as 
vozes se espaça r am e as luzes amor t e ce r am, encos t e i a cabeça às 
a lmo fadas do so fá e adormec i . Não fo i por mui t o tempo, porque o 
pr ime i r o barco para Elephan t a , mesmo em f r en t e do Ta j , l evan t a 
fe r r o às se te : e naque l e barco , a lém de um casa l de japoneses de 
meia- idade de máqu ina fo t og r á f i c a ao pescoço , i a também eu. 
37
IV
 que fazemos nós den t r o des t e s corpos , d i s se o senho r que se 
prepa r a va para se es tende r na cama ao l ado da minha . 
A sua voz não t i n h a uma en toação in t e r r o g a t i v a , ta l v e z não fos se 
uma pergun t a , era só, a seu modo, uma cons t a t a ç ão , em todo o caso 
ser i a uma pergun t a a que eu não pode r i a responde r . A luz que v i nha 
do ca i s da es tação era amare l a e desenhava nas paredes 
esca l a v r a das a sua sombra magra que se mov ia no quar t o com leveza , 
com prudênc i a e d i s c r i ç ã o , pareceu- me, como se movem os ind i a nos . 
De longe , v i nha uma voz len t a e monó tona , ta l v e z uma oração ou um 
lamen t o so l i t á r i o sem espe rança , como os lamen t o s que se exp r imem 
só por s i , sem nada ped i r . Era-me imposs í v e l dec i f r á - l o . A Índ i a 
era também i s t o : um un i ve r s o de sons monótonos , i nd i f e r e n c i a d o s , 
i nd i s t i n t o s . 
39
Ta l vez v i a j emos den t r o de l e s" , d i s se eu. Dev i a te r passado um 
ce r t o tempo desde a sua pr ime i r a f r a se , t i n ha segu i do ou t r a l i n ha 
de pensamen to : a lguns segundos de sono, ta l v e z . Estava mui t o 
cansado . 
Como d i s se?" , pergun t ou . 
Es tava a re f e r i r - me aos co rpos" , d i s se eu, ta l v e z se j am como 
malas , em que nos t r an spo r t amos a nós próp r i o s " . 
Por c ima da por t a hav i a uma ve i l l e u s e azu l , como nas 
car r u agens dos combo io s noc t u r n o s . Ao mis t u r a r- se com a luz 
amare l a da que v i nha da jane l a , c r i a v a uma luz verde- pá l i d a , quase 
um aquá r i o . Olhe i para e le e, na luz esve r deada , quase lúgub r e , v i 
o per f i l de um ros t o a f i l a d o , com o nar i z l i g e i r amen t e aqu i l i n o , 
as mãos sob re o pe i t o . 
Conhece Mantegna?", pergun t e i - l he . 
Também a minha pergun t a era absu rda , mas não menos do que a de l e , 
ce r t amen t e . 
Não, d i s se , é um ind i a no?, . 
É um i t a l i a n o , d i s se eu. 
Só conheço ing l e s e s" , ac res cen t o u , os ún i cos europeus que conheço 
são i ng l e s e s , . 
O lamen t o d i s t a n t e recomeçou com maio r in t e n s i d a de , ago ra era 
mui t o agudo, por i ns t a n t e s j u l g ue i que fos se um chaca l . 
É um an ima l " , d i s se eu, o que é que acha?. 
Pense i que era um amigo seu, respondeu em voz ba i xa . 
Não, não, d i s se eu, es tava a re f e r i r - me à voz que vem de fo r a . 
Mantegna é um p in t o r , mas eu não o conhec i , mor reu há a lguns 
sécu l o s " . 
40
O homem resp i r o u pro f undamen t e . Estava ves t i d o de branco , mas 
perceb i que não era mulçu lmano . 
Eu es t i v e em Ing l a t e r r a " , d i s se e le , mas também fa l a v a f r ancês , se 
pre f e r e fa l amos f r an cês" . 
A sua voz era neu t r a , como se f i z e s s e uma af i rmação d ian t e do 
gu i che t de uma repa r t i ç ã o púb l i c a ; e i s t o , não se i porquê , 
per t u r b ou- me. 
É um ja i n a " , d i s se e le da í a a lguns segundos , cho ra por causa da 
maldade do mundo". 
Eu d i s se : Ah, c l a r o " , porque t i n h a perceb i d o que agora se es tava a 
re f e r i r ao l amen t o que v i nha de l onge . 
Em Bomba im não há mui t o s ja i n a s " , d i s se a segu i r no tom de quem 
exp l i c a o fac t o a um tu r i s t a , no Su l s im, a inda há mui t o s . É uma 
re l i g i ã o mui t o be l a e mui t o es túp i d a . Disse i s so sem qua l que r 
desp re zo , sempre no tom neu t r o de um depo imen t o . 
O senho r o que é?", pergun t e i , que i r a descu l pa r a minha 
ind i s c r i ç ã o . 
Sou j a i n a " , d i s se . 
O re l ó g i o da es ta ção ba teu a meia- no i t e . O lamen t o d i s t a n t e parou 
de repen t e , como se espe ras se o ba te r do re l ó g i o . Começou um novo 
d ia" , d i s se o homem, a par t i r des t e momento é ou t r o d ia . 
F ique i em s i l ê n c i o . As a f i rmações de l e não de i xavam espaço ao 
d iá l o go . Passa ram a lguns minu t o s , pareceu- me que as luzes do ca i s 
t i n h am en f r a quec i d o . A resp i r a ç ão do meu companhe i r o to r na r a- se 
pausada e len t a , como se dorm i s se . Quando vo l t o u a fa l a r t i v e uma 
espéc i e de sob res sa l t o . 
Eu vou para Varanas i , d i s se , e o senho r?" . 
41
Para Madras t a , d i s se eu. 
Madras t a , repe t i u e le , s im, s im. 
Quer i a ver o luga r onde d i zem que o após t o l o S. Tomás fo i 
mar t i r i z a d o , os por t ugueses cons t r u í r am lá uma ig r e j a no sécu l o 
XVI , não se i o que res t a de l a . E depo i s tenho de i r a Goa, vou 
consu l t a r uma an t i g a b ib l i o t e c a , fo i para i s so que v im à Índ i a . 
É uma pereg r i n a ç ão?" , pergun t ou e le . Respond i que não. Ou melho r , 
s im, mas não no sen t i d o re l i g i o s o do te rmo . Quando mui t o era um 
i t i n e r á r i o pr i v ado , se i l á , procu r a va somen te ras t o s . 
O senho r é ca tó l i c o , suponho , d i s se o meu companhe i r o . 
Todos os europeus são ca tó l i c o s , de cer t o modo, d i s se eu. Ou pe l o 
menos c r i s t ã o s , é pra t i c amen t e a mesma co i s a" . 
O homem repe t i u o meu advé rb i o como se o sabo reasse . Fa lava 
um ing l ê s mui t o e legan t e , com pequenas pausas e as voga i s 
l evemen t e ar r a s t a da s e hes i t a n t e s , como é apanág i o de a lgumas 
un i ve r s i d a de s , perceb i . Prac t i c a l l y . . . Actua l l y , d i s se e le , "que 
pa l a v r a s cur i o s a s , ouv i- as mui t a s vezes em Ing l a t e r r a , vocês , 
europeus , usam mui t a s vezes es tas pa l a v r a s . Fez uma pausa mais 
l onga , mas perceb i que não t i n ha acabado de fa l a r . Nunca consegu i 
chega r à conc l u s ão se é por pess im i smo ou por op t im i smo , 
prossegu i u , o que é que l he parece?
Pergun t e i - lhe se não se impo r t a v a de exp l i c a r melho r . 
Bom, d i s se e le , é d i f í c i l exp l i c a r melho r . Por exemp lo , às 
vezes pergun t o a mim próp r i o se é
42
uma pa l a v r a que ind i c a sobe rba ou se, pe l o con t r á r i o , quer 
s imp l e smen t e d i ze r c i n i smo . E também mui t o medo, ta l v e z . Está a 
percebe r? 
Não se i , d i s se eu, não é mui t o fác i l . Mas ta l v e z a pa l a v r a 
pra t i c amen t e não que i r a d i ze r pra t i c amen t e nada. 
O meu companhe i r o r i u .Era a pr ime i r a vez que r i a . 
-O senho r é mui t o háb i l , d i s se , ganhou-me ao mesmo tempo de i xou- me 
ganha r , pra t i c amen t e . 
Também eu r i , e depo i s ac res cen t e i imed i a t amen t e : 
se j a como fo r , no meu caso é pra t i c amen t e medo. 
Calámo-nos um bocado , depo i s o meu companhe i r o ped i u- me l i c e n ç a 
para fumar . Rebuscou num saco que t i n h a ao pé da cama e no qua r t o 
espa l hou- se o che i r o daque l e s c i ga r r o s i nd i a nos pequenos e 
per f umados fe i t o s de uma fo l h a de tabaco . 
Em tempos l i os Evange l hos , d i s se e le , um l i v r o mui t o es t r a nho . 
Só es t r a nho? ", pergun t e i . 
Teve uma hes i t a ç ão . Também che i o de sobe rba , d i s se , sem o fensa . 
Rece i o não es ta r a percebe r mui t o bem, d i s se eu. 
Estava a re f e r i r - me a Cr i s t o , d i s se e le . 
O re l ó g i o da es ta ção ba teu meia- no i t e e meia . Sen t i a que o sono se 
es tava a apode ra r de mim. Do parque , at r á s das l i n h a s , chegou o 
croc i t a r dos cor vos . 
Varanas i é Benares , d i s se eu, é uma c i dade san t a , o senho r também 
va i em pereg r i n a ç ão?
43 
O meu companhe i r o apagou o c i ga r r o e toss i u . 
Vou para mor re r , d i s se , res t am-me poucos d ias de v i da . 
Aje i t o u a a lmo fada deba i x o da cabeça . 
Mas ta l v e z se j a melho r dorm i r , con t i n u ou , não temos mui t a s horas 
de sono, o meu combo io par t e às c i n co . 
O meu par t e pouco depo i s , d i s se eu. 
Não tenha rece i o , d i s se e le , o cr i a do v i r á aco rdá- lo a tempo. 
Suponho que não te r emos ocas i ã o de nos vo l t a rmos a encon t r a r sob 
as aparênc i a s em que nos conhecemos, es tas nossas ac tua i s malas . 
Dese j o- l he boa v i agem. 
Boa v i agem para s i também, respond i . 
44
Segunda Par t e
O meu gu i a af i rmava que o melho r res t a u r a n t e era o Mysore 
Res tau r an t do Coromande l , e eu t i n h a uma grande cur i o s i d a de em 
con f i rmá- lo . Na bou t i q u e do rés- do- chão compre i uma camisa 
branca , à ind i a na , e um par de ca l ç a s e legan t e s . Sub i ao meu 
quar t o e tome i um longo banho para la va r todas as marcas da 
v i agem. Os quar t o s do Coromande l têm mobí l i a a im i t a r o es t i l o 
co l on i a l , de bom gos t o . O meu quar t o dava para as t r a se i r a s , para 
um la r go amare l a do , cer cado de vege t a ção se l v agem. Era um quar t o 
enorme, com duas camas grandes cobe r t a s por duas co l c has mui t o 
bon i t a s . Ao fundo , ao pé da jane l a , hav i a uma esc r i v a n i n h a com uma 
gave t a ao cen t r o e t r ê s de cada lado . Fo i por pura casua l i d a de que 
esco l h i a ú l t ima gave t a da d i r e i t a para pôr os meus papé i s . 
45
Acabe i por desce r mui t o mais ta r de do que que r i a , mas em todo 
o caso o Mysore f i c a v a aber t o a té à meia- no i t e . Era um res t au r a n t e 
com v id r a ç a s sob re a p i s c i n a , com mesas redondas e b iombos de 
bambu p in t a dos de ve rde . Os aba j u r e s das mesas t i n h am luzes azu i s 
e hav i a mui t o ambien t e . Um mús i co , sob re um es t r a do fo r r a do de 
verme l ho , en t r e t i n h a os c l i e n t e s com mús i ca mui t o d i s c r e t a . O 
cr i a do gu i ou- me at r a vé s das mesas e fo i mui t o so l í c i t o ao 
aconse l ha r- me a comida . Conced i- me t r ê s pra t o s e beb i sumo de 
manga f r e s c o . Os c l i e n t e s eram quase todos ind i a nos , mas na mesa 
ao lado da minha es tavam do i s senho r es ing l e s e s com ar dou to r a l 
que fa l a v am de ar t e drav í d i c a . Mant i n ham uma conve r sa mui t o grave 
e compe ten t e e duran t e todo o jan t a r d i ve r t i - me a con t r o l a r se as 
in f o rmações que fo r nec i am um ao ou t r o eram exac t a s . De vez em 
quando, um de le s comet i a er r o s c rono l ó g i c o s , mas o ou t r o parec i a 
não se aper cebe r . São cur i o s a s as conve r sa s ouv i das por acaso : 
d i r i a que eram ve l hos co l egas de un i ve r s i d a de e só quando um de le s 
con f i o u ao ou t r o que renunc i a v a ao voo do d ia segu i n t e para 
Colombo, perceb i que se t i n h am conhec i d o naque l e d ia . Ao sa i r , 
es t i v e ten t a do a en t r a r no Eng l i s h Bar do á t r i o , mas depo i s ache i 
que o meu cansaço não prec i s a v a de nenhuma a juda a l coó l i c a e sub i 
para o meu quar t o . 
Quando o te l e f o ne tocou , es tava a lava r os den tes . De 
repen t e pense i que fos se a Theosoph i c ; Soc i e t y , que me prome te r a 
uma con f i rmação te l e f ó n i c a , mas ao pega r no te l e f o ne exc l u í a 
h ipó t e se , 
46
 tendo em con ta a hora . Depo i s lembre i - me que an tes do jan t a r 
t i n h a av i s ado a recepção de que uma to r ne i r a da casa de banho 
func i o nava mal . De fac t o , era da recepção . 
Descu l pe , senho r , es tá aqu i uma senho r a que dese j a fa l a r - l he . 
O quê?, pergun t e i , com a escova en ta l a da en t r e os den tes . 
Está aqu i uma senho ra que dese j a fa l a r com o senho r , repe t i u a voz 
da te l e f o n i s t a . Ouv i o c l i q u e da cav i l h a e uma voz fem in i n a , rouca 
e dec i d i d a , d i s se : 
Sou a pessoa que ocupava o seu quar t o an tes de s i . Prec i s o 
abso l u t amen t e de l he fa l a r , es tou no ha l l . 
Se espe ra r c i n co minu t o s vou te r cons i g o ao eng l i s h Bar , d i s se , 
a inda deve es ta r aber t o . 
Pre f i r o sub i r eu, d i s se , sem me dar tempo de rep l i c a r , é um 
assun t o da máx ima urgênc i a " . 
Quando ba teu eu t i v e r a apenas tempo de me vo l t a r a ves t i r . Disse 
que a por t a es ta va aber t a e e la en t r ou , parando um momento a o lha r 
para mim. O co r r edo r es tava na penumbra . Só v i que era a l t a e que 
t r a z i a um lenço sob re os ombros . Ent r ou e fechou a por t a . Eu 
es tava sen tado na po l t r o n a , em p lena luz , e levan t e i - me. Não d i s se 
nada, espe re i . E, de fac t o , e la fa l o u . Fa lou sem avança r um passo , 
com a mesma voz rouca e dec i d i d a que t i n h a ao te l e f o ne . 
Que i r a descu l pa r- me por es ta i n t r om i s s ão , deve acha r uma má 
educação inconceb í v e l , i n f e l i zmen t e há c i r c un s t â n c i a s em que não 
se pode procede r dou t r o modo. 
Ouça, d i s se eu, a Índ i a é mis t e r i o s a por de f i n i ç ã o , mas as 
cha radas não são o meu fo r t e , poupe-me es fo r ç o s i nú t e i s . 
47
Ela o lhou para mim com os tens i v a su rp r e sa . 
Deixe i s imp l e smen t e no seu qua r t o a lgumas co i s as que me 
per t en cem, d i s se com ca lma. Venho buscá- las . 
Imag i nava que vo l t a s s e , d i s se eu, mas não
espe ra va tão cedo , ou melho r , tão ta r de . 
A mulhe r o lhou para mim com redob r ada su rp r e sa . 
Que quer d i ze r?" . 
Que você é uma lad r a " , d i s se eu. 
A mulhe r o lhou para a jane l a e t i r o u o lenço dos
ombros . Pareceu- me bon i t a , ou ta l v e z fosse a lu z f i l t r a d a 
pe l o aba j u r que dava à suacara um ar ar i s t o c r á t i c o e d i s t a n t e . Já 
não era mui t o j ovem e o seu corpo era mui t o e legan t e . 
Você é mui t o de f i n i t i v o , d i s se . Passou a mão
pe l a ca ra como se qu i s es se afugen t a r o cansaço
ou um pensamen to . Os seus ombros es t r emece r am com um l i g e i r o 
ar r ep i o . 
O que é que quer d i ze r rouba r?, pergun t ou . 
O s i l ê n c i o ca i u en t r e nós e de i- me con ta da to r ne i r a que 
con t i n u a va a go te j a r de modo exaspe r an t e . 
te l e f o ne i an tes de jan t a r " , d i s se eu, garan t i r am- me que a 
ar r an j a v am imed i a t amen t e . 
um ru í d o in supo r t á v e l , rece i o que não me de i xe
dorm i r " . 
Ela so r r i u . Encos t a r a- se à cómoda de bambu com
um braço ca í do ao longo do co rpo como se es t i v e s s e mui t o 
cansada . 
Acho que te r á de se hab i t u a r , d i s se . Eu es t i v e aqu i uma semana e 
ped i dezenas de vezes que a ar r an j a s s em, por f im con f o rme i- me. 
Fez uma pequena pausa . Você é f r an cês?" . 
Não, respond i . 
48
Olhou- me com ar des f e i t o . 
Vim de táx i de Madura i " , d i s se e la , v i a j e i todo o d ia . 
Passou o l enço pe l a tes t a como se fos se um lenço de assoa r . 
Por um ins t a n t e teve uma exp res são desespe r ada , pareceu- me. 
A Índ i a é hor r í v e l " , d i s se , e as es t r a da s um in f e r n o . 
Madura i f i c a mui t o l onge , rep l i q u e i , porquê
Madura i? ". 
Ia para Tr i v and r um, depo i s , da l i , i r i a para
Colombo. 
Mas de Madras t a também há um av i ão para Colombo, ob j e c t e i . 
Não que r i a apanha r esse , d i s se e la , t i n ha boas
razões , não lhe se rá d i f í c i l deduz i- la s . 
Fez um ges t o cansado . 
De qua l que r modo j á o perd i " . 
Olhou- me com um ar i n t e r r o g a t i v o e eu d i s se :
Es tá tudo a l i onde o de i xou , na ú l t ima gave t a do lado 
d i r e i t o . 
A esc r i v a n i n ha es ta va at r á s de l a , era uma esc r i v a n i n ha de 
bambu com can t o s de la t ã o e um grande espe l ho no qua l se 
re f l e c t i am os seus ombros nus . Ela abr i u a gave t a e pegou no maço 
de documen to s a tado com um e lás t i c o . 
É demas i ado es túp i d o , d i s se e la . Faz-se uma
co i s a des t a s e depo i s esquece- se tudo numa gave t a . 
Tive- o gua rdado duran t e uma semana no co f r e do
ho te l , e depo i s de i x e i - o aqu i enquan t o faz i a as
malas . 
Olhou- me como se espe ras se a minha con f i rmação . 
De fac t o é mesmo es túp i d o , d i s se eu, a t r an s f e r ê n c i a de todo esse 
d inhe i r o é uma bur l a de
49
grande enve rgadu r a , e depo i s você ca i numa d i s t r a c ç ão tão 
es túp i d a " . 
Ta l vez es t i v e s s e demas i ado nervosa , d i s se e la . 
Ou demas i ado ocupada a v i nga r- se", ac res cen t e i . A sua car t a era 
no táve l , a sua v i ngança fe r o z , e e le não pode faze r nada, se você 
chega r a tempo. É só uma ques t ão de tempo" . 
Os seus o lhos fa i s c a r am o lhando- me no espe l ho . Depo i s v i r o u-
se de repen t e , v i b r an t e , com o pescoço h i r t o . 
Leu também a minha car t a! exc l amou com desdém. 
Cop ie i a té uma par t e , d i s se eu. 
Ela o lhou- me com surp r e sa ou medo, ta l v e z . 
Cop iou?", repe t i u , porquê?". 
Só a par t e f i n a l " , d i s se eu. Lamen to mui t o , fo i mais fo r t e do 
que eu. De res t o , não se i a quem é ende reçada , perceb i apenas que 
se t r a t a de um homem que a deve te r fe i t o so f r e r mui t o . 
Era demas i ado r i c o , d i s se e la , pensava que pod i a compra r 
tudo , a té as pessoas . 
Depo i s fez um ges t o nervoso , apon tando para s i próp r i a , e eu 
perceb i . 
Ouça, parece- me que percebo vagamen te o que se passou . Você 
não ex i s t i u duran t e anos , fo i sempre apenas um tes t a de fe r r o , a té 
que um d ia dec i d i u dar uma rea l i d a de a esse nome. E essa rea l i d a de 
é você mesma. Mas eu de s i conheço apenas o nome com que ass i nou , 
é um nome mui t o comum e não tenho i n t e n ções de sabe r mais nada. 
na ve rdade" , d i s se e la , o mundo es tá che i o de Marga re t h s " . 
Afas t o u- se da esc r i v a n i n ha e fo i sen ta r- se no banco do 
toucado r . Apo iou os co tove l o s nos j oe l h o s
50
e pôs a ca ra en t r e as mãos. F icou ass im mui t o tempo, sem d i ze r 
nada, escondendo a cara . 
Que pensa faze r agora?, pergun t e i . 
Não se i , respondeu , tenho mui t o medo. Tenho de es ta r nesse barco 
de Colombo, amanhã, senão todo aque l e d inhe i r o se evapo r a . 
-Ouça, d i s se eu, é no i t e a l t a , não pode i r para Tr i v and r um a es tas 
horas , e em todo o caso , não chega r i a a tempo do av i ão de amanhã. 
Amanhã de manhã, daqu i , há um av i ão para Colombo, es tá com sor t e 
porque , se se apresen t a r com tempo, ar r an j a l uga r , e a sua sa í da 
des t e ho te l es tá reg i s t a da . 
Olhou para mim como se não percebesse . Olhou- me por mui t o 
tempo, i n t e n samen t e , es tudando- me. 
-Pe la minha par t e , você par t i u rea lmen t e" , ac res cen t e i , nes t e 
quar t o há duas camas con f o r t á v e i s . 
Pareceu descon t r a i r - se. Cruzou as pernas e esboçou um sor r i s o . 
Porque faz i s so?, pergun t ou . 
Não se i " , d i s se eu. Ta l vez eu tenha s impa t i a pe l o s fug i t i v o s . E, 
depo i s , também eu lhe roube i a lguma co i s a . 
Deixe i a minha mala na recepção , d i s se e la . 
Ta l vez se j a mais pruden t e de i xá- la l á , va i buscá- la amanhã de 
manhã. Posso empres t a r- l he um p i j ama , somos quase do mesmo 
tamanho. 
Ela r i u . 
Permanece apenas o prob l ema da to r ne i r a , d i s se e la . 
Também r i . 
De qua l que r modo, você já es tá hab i t u a da , penso . O prob l ema é só 
meu. 
51
 
VI
Le co rps huma in pou r r a i t b ien n 'ê t r e qu 'une appa rence , 
d i s se e le . I I cache no t r e réa l i t é , i l s ' épa i s s i t su r no t r e l um iè r e 
ou sur no t r e ombrep . 
Levan t ou a mão e fez um ges t o vago. Ves t i a uma jaque t a l a r ga , 
branca ; a manga f l u t u o u sob re o pu l so magro . Bem, mas i s so não é a 
teoso f i a que o d i z . Vic t o r Hugo, Les Trava i l l e u r s de la Nle r v . 
Sor r i u e es tendeu- me uma beb i da . Ergueu o copo che i o de água como 
se fos se para br i n da r . 
A quê?, pense i . E depo i s ergu i também eu o copo e d i s se : À luz e à 
sombra . 
Ele vo l t o u a sor r i r . Descu l pe es te j an t a r demas i ado f r uga l " , 
d i s se , mas era a ún i ca mane i r a de conve r sa r com uma cer t a ca lma 
depo i s da sua breve v i s i t a des t a ta r de . Lamen to que os meus 
comprom i s sos
53
não me tenham perm i t i d o recebê- lo com mais comod idade . 
É uma hon ra , d i s se eu, é mui t o s impá t i c o da sua par t e , não me 
at r e ve r i a a espe ra r tan t o , . 
Raramen te recebemos v i s i t a s aqu i na sede, 
prossegu i u no seu tom de vaga ju s t i f i c a ç ã o , mas penso te r 
perceb i d o que não é um s imp l e s cur io s o . 
Dei- me con t a que o meu b i l h e t e um pouco mis t e r i o s o , os meus 
te l e f o nemas , a minha v i s i t a da ta r de em que t i n h a apenas fe i t o 
a lusão a uma pessoa desapa r e c i d a " , tudo i s so parec i a uma mensagem 
em cód i go ; não pod i a con t i n u a r naque l e tom. Era necessá r i o 
exp l i c a r - me com c la r e za , com exac t i d ã o . Mas o que é que eu t i n h a 
que pergun t a r , a f i n a l? Só uma remo ta no t í c i a , um ras t o h ipo t é t i c o : 
uma poss í v e l p i s t a para chega r a Xav i e r . 
Es tou à procu r a de uma pessoa , d i s se , chama-se Xav i e r Jana t a 
Pin t o , desapa r eceu há quase um ano, t i v e as ú l t imas no t í c i a s de l e 
em Bomba im, mas tenho boas razões para c re r que es tava em con t a c t o 
com a Theosoph i c a l Soc i e t y , e i s o mot i v o que me t r a z aqu i " . 
Ser i a uma ind i s c r i ç ã o pergun t a r- lhe qua i s os mot i v o s que o le vam a 
pensa r i s so?, pergun t ou o meu an f i t r i ã o . 
Ent r ou um cr i a do com uma bande j a e nós ser v imo- nos com 
parc imón i a : eu por boa educação , e le cer t amen t e por háb i t o . 
Quer i a sabe r se era membro da Theosoph i c a l Soc i e t y , d i s se 
eu. 
O meu an f i t r i ã o o lhou- me nos o lhos . 
Não era , a f i rmou em voz ba i xa . 
54
-Mas mant i n ha uma co r r e spondênc i a convosco , d i s se eu. 
-Ta l vez" , d i s se e le , mas nesse caso t r a t a r - se- ia de uma 
cor r e s pondênc i a pr i v ada e rese r v ada . 
Começámos a comer a lmôndegas de vege t a i s acompanhadas de um 
ar r o z to t a lmen t e i ns í p i d o . O cr i a do espe rava de par t e com o 
tabu l e i r o na mão. A um ges t o do meu an f i t r i ã o desapa r e ceu 
d i s c r e t amen t e . 
- Temos um arqu i v o , mas é rese r v ado aos nossos sóc i o s . De 
qua l que r modo, não i nc l u i a cor r e s pondênc i a pr i v ada , espec i f i c o u . 
Eu anu í em s i l ê n c i o , po i s aper ceb i - me de que e le es tava a conduz i r 
a conve r sa a seu be l- praze r e que era inú t i l eu con t i n u a r com 
pergun t a s d i r e c t a s e demas i ado exp l í c i t a s . 
O senho r conhece a Índ i a? , pergun t ou- me da í a pouco . 
Não, respond i , é a pr ime i r a vez que cá venho , a inda não perceb i 
bem onde es tou . 
Não es tava a re f e r i r - me conc r e t amen t e à geog ra f i a , prec i s o u , 
quer i a d i ze r a cu l t u r a . Que l i v r o s l eu?
Mui t o poucos , respond i , ando agora a le r um que se in t i t u l a A 
t r a ve l su r v i v a l k i t , que me tem s ido bas t an t e ú t i l . E mui t o 
d i ve r t i d o , d i s se e le , g lac i a l , e mais nada?
Bem, d i s se eu, mais a lgumas co i s as , de que agora não me lembro . 
Conco rdo que não v im prepa r ado . A ún i ca co i s a que reco r do bem é um 
l i v r o de Sch l ege l , mas não o mais conhec i d o dos do i s , 
55
o i rmão , c re i o , in t i t u l a v a- se Sobre a l i n gua e a sabedo r i a dos 
ind i a nos . 
Ele re f l e c t i u e d i s se : 
deve ser um l i v r o an t i g o . 
Sim", d i s se eu, é de 1808". 
Os a lemães sen t i am- se mui t o at r a í d o s pe l a nossa cu l t u r a , 
mui t a s vezes fo rmu l a v am ju í z o s i n t e r e s s an t e s sob re a Índ i a , não 
acha? 
 "Ta l vez" , d i s se eu, não es tou à a l t u r a de o a f i rma r 
ca tego r i c amen t e . 
Que pensa de Hesse , por exemp lo? 
Hesse era su í ç o , d i s se eu. 
Não, não, prec i s o u o meu an f i t r i ã o , era a lemão, adqu i r i u a 
nac i ona l i d a d e su í ç a só em 1921 . 
De qua l que r modo mor reu su í ç o" , in s i s t i . 
Ainda não me d i s se o que pensa de l e , re t o r q u i u o meu an f i t r i ã o em 
tom amáve l . 
Era a pr ime i r a vez que sen t i a cresce r em mim uma fo r t e 
i r r i t a ç ã o . Aque l a sa l a i nósp i t a , escu r a , fechada , com bus t o s de 
bronze ao longo das paredes e as v i t r i n a s che i a s de l i v r o s ; aque l e 
i nd i a no sab i c hão e presunçoso que es tava a conduz i r a conve r sa a 
seu je i t o ; os seus modos en t r e condescenden t e s e as tuc i o s o s : tudo 
i s t o me provocava um mal- es ta r que, dava-me con t a , se es tava 
es tup i d amen t e
 a t r an s f o rma r em có l e r a . T inha v i ndo por razões bem d i f e r e n t e s e 
e le t i n ha- as igno r ado com desenvo l t u r a , ind i f e r e n t e à minha 
ans i edade que, sem dúv i da , t i n h a perceb i d o pe l o s meus te l e f o nemas 
e pe l o meu b i l h e t e . E es tava a l i a submete r- me a pergun t a s i d i o t a s 
sob re Hermann Hesse . Sen t i - me gozado . 
Conhece o roso l i o? , pergun t e i - lhe , já a lguma vez o provou?. 
56
Cre i o que não, d i s se e le , o que é?. 
É um l i c o r i t a l i a n o que ago ra ra r amen t e se encon t r a , beb i a- se nos 
sa l ões burgueses do sécu l o XIX, é um l i c o r adoc i c ado e pega j o so . 
Hermann Hesse faz- me pensa r no roso l i o . Quando reg r e s sa r a I t á l i a 
mando- lhe uma gar r a f a , se é que a inda se encon t r a . 
Ele o lhou para mim sem percebe r se aqu i l o era ingenu i d ade ou 
inso l ê n c i a . Natu r a lmen t e era inso l ê n c i a , não era i s so que pensava 
de Hesse . 
Acho que não gos t a r i a , d i s se secamen te . Eu sou abs t ém i o , e a lém 
d i s so de tes t o co i s a s doces" . Dobrou o guardanapo e d i s se : Vamos 
tomar o chá?, . 
Passámos para as po l t r o n a s jun t o à es tan t e e o cr i a do en t r o u com a 
bande j a como se es t i v e s s e à espe ra a t r á s da cor t i n a . 
Com açúca r?" , pergun t ou- me o meu an f i t r i ã o , se r v i n do- me o chá. 
Não, obr i g ado , respond i , eu também não gos t o de co i s a s doces . 
Segu i u- se um longo e embaraçoso s i l ê n c i o . O meu an f i t r i ã o es tava 
de o lhos fechados , imóve l , por momentos pense i que t i v e s s e 
adormec i do . Ten te i ca l c u l a r a sua idade , sem sucesso . T inha um 
ros t o ve l ho , mas mui t o l i s o . Repare i que usava sandá l i a s de t i r a s , 
sem meias . 
O senho r é gnós t i c o? , pergun t ou- me de repen t e , mantendo os o lhos 
fechados . 
Cre i o que não, d i s se eu. E depo i s ac res cen t e i : Não, não sou, tenho 
apenas a lguma cur i o s i d a de . 
Ele abr i u os o lhos e o lhou para mim com mal í c i a , ou com i r o n i a . 
Até onde chega a sua cur i o s i d a de?. 
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Swedenbo rg , d i s se eu, Sche l l i n g , Ann i e Besan t : um pouco de 
todos , . Ele pareceu most r a r in t e r e s s e e eu espec i f i q u e i : A a lguns 
chegue i por v i a s i nd i r e c t a s , por exemp lo Ann ie Besan t . Traduz i u- a 
Fernando Pessoa , é um grande poe ta por t uguês , mor reu desconhec i d o 
em t r i n t a e c i n co . 
Pessoa" , d i s se e le , com cer t e z a . 
 Conhece- o?, pergun t e i . 
Alguma co i s a" , d i s se e le , como o senho r conhece os ou t r o s . 
Pessoa dec l a r a v a- se gnós t i c o , d i s se eu, rosa- cruz , esc r e veu uma 
sér i e de poes i a s eso t é r i c a s i n t i t u l a d a s Passos da Cruz . 
Nunca as l i , d i s se o meu an f i t r i ã o , mas conheço a lguma

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