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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO JORNALISMO ELA TEM MAIS DE 40: SENTIDOS SOBRE O FEMININO E A MATURIDADE NA REVISTA VOGUE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Bianca Jaíne Santos de Souza Santa Maria, RS, Brasil 2014 ELA TEM MAIS DE 40: SENTIDOS SOBRE O FEMININO E A MATURIDADE NA REVISTA VOGUE Bianca Jaíne Santos de Souza Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Comunicação Social – habilitação Jornalismo, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo Orientadora: Prof. Drª. Laura Strelow Storch Santa Maria, RS, Brasil 2014 Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Comunicação Social Curso de Comunicação Social – Habilitação Jornalismo A comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho de Conclusão de Curso ELA TEM MAIS DE 40: SENTIDOS SOBRE O FEMININO E A MATURIDADE NA REVISTA VOGUE elaborado por Bianca Jaíne Santos de Souza como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – habilitação Jornalismo COMISSÃO EXAMINADORA: Laura Strelow Storch, Drª. (Presidente/Orientadora) Gisele Dotto Reginato, Ms. (UFRGS) Morgana de Melo Machado, Ms. (UNIFRA) Santa Maria, 11 de dezembro de 2014. AGRADECIMENTOS: Levo como um lema pessoal que, em qualquer passo de nossas vidas, precisamos valorizar quem esteve ao nosso lado. Nada se completa sozinho. Estamos sempre alicerçados por pessoas importantes que, de uma maneira ou de outra, auxiliam para que cheguemos ao lugar almejado. Neste trabalho de conclusão de curso e em todo o percurso desses quatro anos de graduação, tive a sorte de contar com muitas pessoas a todo o tempo, para qualquer tipo de apoio, tanto material, quanto emocional. Em primeiro lugar, agradeço à minha família – minha mãe, pai e sobrinho Mathias – que além de não medir esforços para me proporcionar todo o conforto possível, aguentam minhas crises emocionais, me ouvem, me ajudam e são a minha principal base. Aos colegas, ou mais do que isso, amigos, que por motivo desconhecido recebem a nominação de “André e equipe”, o meu agradecimento pela ajuda de sempre, pelas trocas de informação, pelo apoio na hora do aperto e na hora da comemoração. Amigos que com certeza levarei no coração para além da faculdade. À amiga Letícia, o meu ‘muito obrigada’, por todo o auxílio durante a execução desse trabalho e por estar desde a infância ao meu lado, oferecendo a sua amizade em todos os momentos. Ao amigo Augusto que esteve presente como uma pessoa muito especial durante esses últimos quatro anos e que dividiu comigo todas as angústias e alívios de universitários. Por ter sempre uma palavra de apoio ou uma risada sincera para tornar as coisas mais leves, os meus agradecimentos. À minha querida professora orientadora, pela calma, compreensão e auxílio durante essa caminhada. Meus agradecimentos, não somente pelas trocas acadêmicas, mas também pela amizade. Aos amigos e familiares que, durante esse período final de graduação, foram compreensíveis com minhas ausências e atrasos. Obrigada. A moda já foi muitas vezes considerada como um tema trivial ou frívolo, indigno de qualquer abordagem mais séria. Nada poderia ser tão falacioso. Longe de ser um caleidoscópio de mudanças de significado, a moda é uma parte crucial da sociedade e da cultura modernas. (Valerie Steele) RESUMO Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Comunicação Social – habilitação Jornalismo Departamento de Comunicação Social Centro de Ciências Sociais e Humanas Universidade Federal de Santa Maria ELA TEM MAIS DE 40: SENTIDOS SOBRE O FEMININO E A MATURIDADE NA REVISTA VOGUE AUTORA: BIANCA JAÍNE SANTOS DE SOUZA ORIENTADORA: LAURA STRELOW STORCH Data e local da defesa: Santa Maria, 11 de dezembro de 2014. O presente trabalho aborda as construções de sentidos sobre o feminino e a maturidade dentro do campo da moda, estilo e comportamento, representados pelo jornalismo de revista, desde o estudo do papel social da mulher a partir da moda, chegando até a análise desta representação pela revista Vogue Brasil. O interesse de pesquisa está centrado na questão “Quais são sentidos construídos na revista Vogue sobre a mulher com mais de 40 anos?” Para desenvolver o trabalho, optamos pela Análise de Discurso de linha francesa como percurso metodológico. Foram escolhidas dez matérias, selecionadas dentro das edições de janeiro a junho de 2014 da revista Vogue, que é considerada uma das mais influentes publicações do campo da moda e comportamento no mundo. A partir dessas seis edições definidas como corpus de pesquisa, optamos então, por analisar os textos que mostram perfis e histórias de mulheres com mais de 40 anos. Pudemos apresentar, de modo geral, cinco categorias de análise que juntas explicam a representação dessas mulheres por Vogue, são elas: a “boa” maturidade - vinculada à superação e ao exemplo de vida; competência profissional; legitimação masculina; classe social elevada; e beleza e excentricidade como características pessoais. Palavras-chave: Jornalismo de Revista. Moda. Feminino. Maturidade. Vogue. ABSTRACT Course Conclusion’s Work Social Comunication Course - Journalism Department of Social Comunication Center of Social Sciences and Humanities Federal University of Santa Maria SHE IS OLDER THAN 40’S: SENSES OF FEMININE AND AGING IN THE VOGUE MAGAZINE AUTHOR: BIANCA JAÍNE SANTOS DE SOUZA ADVISOR PROFESSOR: LAURA STRELOW STORCH Date and place of defense: Santa Maria, 11, December of 2014. This work approaches the construction of meanings about feminine and aging within the field of fashion, style and behavior, represented by the magazine journalism, from the study of the social role of women in fashion’s perspective, reaching the analysis of this representation by Vogue Brazil Magazine. The research interest is centered on the question "What are the meanings constructed in Vogue magazine about women over 40 years?" To develop the study, we opted for the Discourse Analysis of French line as methodological approach. Ten reportages were selected between January-June editions of 2014 from Vogue magazine, which is considered one of the most influential publications in the field of fashion and behavior in the world. From these six issues defined as research corpus, we decided then to analyze the texts that show profiles and stories of women over 40 years. We were able to provide, in a general way, five categories of analysis that, added together, explain the representation of these women by Vogue, which are: the "good" maturity - linked to overcoming and example of life; professional competence; male legitimacy; higher social class; and beauty and eccentricity as personal characteristics. Key-words: Magazine Journalism. Fashion. Feminine. Aging. Vogue.LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Corpus consolidado da pesquisa SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................................... 10 2. FEMININO E A MODA .......................................................................................................................................... 12 2.1 O papel da moda na construção social da mulher ................................................................................. 12 2.2 Histórico moda e o feminino .......................................................................................................................... 15 2.2.1 A relação da mulher com a moda a partir de compreensões históricas sobre o “feminino” ....................................................................................................................................................................................... 15 2.2.2 A relação da mulher com a moda a partir do trabalho ................................................................. 18 2.2.3 A relação da mulher com a moda a partir da construção de identidade................................ 20 3. O JORNALISMO DE REVISTA E MODA .......................................................................................................... 23 3.1 A mídia e a moda ................................................................................................................................................. 23 3.2 O jornalismo de revista ............................................................................................................................. 25 3.2.1 Revistas femininas e revistas de moda ................................................................................................. 28 3.3 Narrativa e personagem ........................................................................................................................... 30 4. AS CONSTRUÇÕES METODOLÓGICAS .......................................................................................................... 33 4.1 A revista Vogue .................................................................................................................................................... 33 4.2 Recortes de análise e corpus de pesquisa ................................................................................................. 36 4.3 A metodologia: Análise de Discurso............................................................................................................ 38 5. A REPRESENTAÇÃO DA MULHER COM MAIS DE 40 NA VOGUE ...................................................... 42 5.1 A “boa” maturidade..................................................................................................................................... 45 5.2 A competência profissional ..................................................................................................................... 48 5.3 A legitimação masculina ........................................................................................................................... 50 5.4 A classe social elevada ............................................................................................................................... 54 5.5 A beleza, excentricidade e ousadia como características pessoais ......................................... 57 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................................... 60 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................................................. 64 ANEXOS ............................................................................................................................................................................... 66 10 1. INTRODUÇÃO O campo da moda é considerado, muitas vezes, como superficial, em função de seu caráter efêmero. Em contrapartida, além de ser uma indústria global, que movimenta a economia, a moda é uma forma de auto expressão e de comunicar identidades, classes e gêneros sexuais e sociais. Para apresentar um estudo sobre moda de uma maneira consistente, é necessária a observação do histórico da moda moderna, relacionando diretamente à construção do papel social da mulher e à compreensão do feminino. A moda e comportamento possuem uma estreita ligação com a área de mídia e comunicação. O jornalismo de revista é o que melhor explora esse campo, com diversas opções de discursos para representar a segmentação “feminino” e “moda”, dentro da produção jornalística. Podemos então ressaltar a importância da moda como comunicação, e da própria mídia em geral, como um meio difusor, participante e também transformador de um determinado momento histórico-cultural. É comum encontrar análises acadêmicas sobre a representação da mulher em revistas de moda, na maioria das vezes, destacando a juventude e a beleza. Para a realização deste trabalho iniciamos com uma pesquisa de estado da arte, onde encontramos alguns trabalhos referentes ao jornalismo de moda, como por exemplo, o trabalho de Debora Elman, que trata dos modelos de estilos de vida estipulados pela revista Vogue (ELMAN, 2008). Daniela Aline Hinerasky também apresenta artigos relacionados à essa área do jornalismo no Brasil, no sentido de analisar os blogs de moda (HINERASKY, 2011). O trabalho de Daniela Maria Schmitz avalia a recepção e identidade da mulher neste campo, sem especificar sua idade e dando ênfase para a mulher jovem – modelo – que aparece nos editoriais de moda (SCHMITZ, 2007). Diferente disso, propomos uma discussão a cerca da maneira com que a revista de maior influência no campo da moda no mundo, mostra a mulher “madura”. Quem são essas personagens? O que elas representam para a leitora da revista? Quais são as semelhanças e as diferenças entre elas? Porque elas são valorizadas? Como são representadas no discurso jornalístico da revista? Para responder a todas essas questões, resumimos em uma pergunta principal de pesquisa: “Qual a representação da mulher com mais de 40 anos pelo discurso da revista Vogue?” Esta análise tem como objetivo estudar os modos que os textos da revista Vogue Brasil, escolhida como objeto de pesquisa, representam a mulher com mais de 40 anos em suas reportagens de perfil, considerando sempre o cenário cultural que tanto a revista, quanto o público leitor estão inseridos. Para isso, é importante observar, por exemplo, o direcionamento deste público e o universo em que essa área do jornalismo está inserida. 11 Neste sentido, como objetivos específicos, escolhemos mapear os perfis e reportagens que apresentam a personagem feminina, acima dos 40 anos, nas edições da revista Vogue; observar a representação desta mulher/ personagem; e analisar os sentidos construídos sobre o feminino e a maturidade na publicação. Em um recorte temporal e com base no percurso metodológico da Análise de Discurso, podemos observar a mulher com mais de 40 anos representada a partir de algumas categorias, como: o conceito de “boa maturidade” afirmado pela revista, com traços ligados à superação, forma de vontade e exemplos de vida; a valorização da mulher a partir de seu âmbito profissional, seja com suas múltiplas profissões, ou com seu grande sucesso na área que exerce; a inserção do universo da moda, principalmente das décadas passadas, na cultura machista, representado na análisepela necessidade de legitimação masculina a cerca das personagens perfiladas; a constante valorização de uma classe social elevada, que traduz o extremo interesse da revista em demostrar a ligação de sua linha editorial e de seu público leitor especializado, com a questão das classes econômicas e sociais elevadas; e a beleza, excentricidade e ousadia das mulheres como características pessoais, que servem para apoiá-las dentro deste universo. 12 2. FEMININO E A MODA A moda desempenha um papel importante na noção de identidade de uma pessoa, a partir de um contexto cultural específico. Da alta costura ao prêt-à-porter, a moda nada mais é que uma forma de comunicar. O último século apresentou desde a moda destinada à elite, até a quase universalidade atual, que torna o consumo acessível para a maioria. Este campo da moda e estética institui uma emergência na cultura da feminilidade, o que provoca uma transformação eficaz das relações sociais (CIDREIRA, 2007). Por isso, neste capítulo, vamos discutir a construção do papel da mulher na sociedade, observando como ela se organiza na história da moda. Focamos em um estudo sobre moda e feminino, considerando as diferentes compreensões históricas sobre o “feminino”, trabalho e construção da identidade individual. 2.1 O papel da moda na construção social da mulher A etimologia da palavra fashion (moda, em inglês) remete à palavra faction, ou seja, facção – no sentido político, trazendo a ideia de conflito entre grupos e posse de poder. No latim, a palavra moda deriva de modus, literalmente “medida”. O termo passou a expressar valores diversos como conformidade e relações sociais, rebelião e excentricidade, aspiração social e status, sedução e encanto (FOGG, 2013). Apesar de os argumentos extraídos da etimologia não serem tradicionalmente bem aceitos, a presença de um tal sentido político na família da palavra “fashion” não deveria ser ignorada. É no sentido de já conterem referências às operações e aos efeitos do poder que a moda e a indumentária, como fenômenos comunicativos e culturais, não são consideradas nem neutras, nem inocentes (BARNARD, 2003, p.66). Diariamente tomamos decisões sobre o status e o papel social das pessoas, baseado no que estão vestindo, tratando as roupas como “hieróglifos sociais”1 (BARNARD, 2003). A moda é uma das formas mais significativas de se construir e compreender as relações sociais entre as pessoas. A cada passo da história, a moda caminha junto, adaptando-se às necessidades das pessoas e contribuindo, em sentido cultural, mesmo em processos de distinção social. 1 Hieróglifos Sociais: Termo de Marx (1954:79) sobre o uso das roupas como comunicadores da posição social daqueles que a vestem. 13 No início do século XX2, grandes estilistas das maisons parisienses vestiam as mulheres de altos escalões da sociedade, como a realeza, a aristocracia, as mulheres ricas e as celebridades da época. As mulheres que podiam pagar por roupas assinadas por grandes nomes estavam em uma classe econômica privilegiada na sociedade. Grandes costureiros europeus proviam vestidos para serem usados na corte e nos cerimoniais. A vida social dessas mulheres exigia roupas diferentes para cada ocasião e nível de formalidade. Havia trajes específicos para a manhã, para um passeio, para a tarde, receber visitas, para o jantar, para a noite, um baile de gala, ópera, teatro, corte, luto - o que fazia com que as mulheres “desfilassem” sua posição na sociedade. A moda segue misturando referências do passado, do período vitoriano, a uma interpretação do estilo dos anos 1940. Destacamos um aspecto importante dessa época que é a expansão do mercado do jeans. Antigamente, o jeans era usado apenas por trabalhadores e crianças na América, e começou a fazer parte do guarda-roupa adolescente a partir dos anos 1950, com a popularidade e influência do cinema e de personalidades do rock, como Elvis Presley. Anos após, a peça se tornou símbolo da juventude, com capacidade de modificar seu significado conforme a posição social da pessoa que a veste. O jeans pode ser interpretado como rebeldia, conformismo, uniformidade, cross-dressing, vestuário unissex, erótico, roupa básica do dia a dia ou item da alta moda. É um dos símbolos atuais de que uma peça de roupa pode significar muito na cultura, no comportamento e na economia. A moda começa então a representar e a vender um estilo de vida. A atribuição de marcas aos produtos existe desde a era da fabricação em massa do século XIX, quando os fabricantes deixaram de ser anônimos e suas mercadorias se tornaram universalmente reconhecidas pelo logotipo. Durante a década de 1980, a marca emergiu como um ativo tangível merecedor de avaliação financeira. (FOGG, 2013, p.412). O universo da moda construiu pra si referencias e padrões de comportamento específicos. As pessoas nessa cultura são classificadas conforme o que vestem, a marca que usam, o lugar onde compram, a revista que leem, etc. O mundo do fast fashion de hoje, caracterizado pelo rápido consumo, sobrecarga visual, inúmeras escolhas e ênfase na auto expressão, tudo isso instantaneamente difundido no éter e disponibilizado para compra em um único clique, seria incompreensível para a mulher do período eduardiano, mas ela entenderia a atração eterna que a moda exerce. Apesar da percepção de democratização e do maior acesso em vários aspectos em comparação com o século passado, a moda ainda é um ditador que detém o poder sobre nosso estilo de vida (BLACKMAN, 2012, p.221). 2 Optamos por iniciar nosso estudo no século XX, em função da necessidade de haver uma delimitação no tempo, de forma que torne a pesquisa mais consistente e específica. Levamos em conta que, em outros momentos da história, o vestuário e a moda, de igual forma, cumpriram papeis sociais e culturais, mas, foi o século XX que testemunhou o rápido desenvolvimento da produção, disseminação e consumo da moda. 14 Erving Goffman (2009) usa o termo “representação” para se destinar às atividades dos indivíduos frente a um grupo de observadores, tendo sobre estes alguma influência. E usa o termo “fachada” para o desempenho do indivíduo, de forma geral e fixa, a fim de definir a sua situação para aqueles que o observam. “Fachada, portanto é o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante a representação” (GOFFMAN, 2009, p.29). O autor separa a fachada em partes padronizadas: o “cenário”, referente às partes cênicas de um equipamento expressivo; e a “fachada pessoal”, que incluiria os itens que, de modo mais íntimo, identificamos como o próprio autor. Como parte da fachada pessoal, segundo Goffman (2009), podemos incluir categorias como sexo, idade, características raciais, altura, aparência, atitude, padrões de linguagem, gestos, expressões e, é claro, o vestuário. As roupas fazem parte de um veículo de transmissão de sinais transitório, pois variam em uma representação, de um momento para outro. Os estímulos que formam a fachada pessoal podem ser divididos em “aparência” e “maneiras”, podendo chamar de aparência, aquelas características que funcionam para revelar um status social do ator. “Tais estímulos nos informam também sobre o estado ritual temporário do indivíduo, isto é, se ele está empenhado numa atividade social formal, trabalho ou recreação informal, se está realizando, ou não, uma nova fase no ciclo das estações ou no seu ciclo de vida” (GOFFMAN, 2009, p.31). Espera-seque a aparência e a maneira sejam compatíveis na personalidade do indivíduo. Basicamente, a fachada de um indivíduo transmite informações ao grupo social em que ele está inserido, levando em conta as experiências sociais e o pensamento estereotipado dos observadores. No caso da moda, essas informações são transmitidas através das roupas e das marcas que vestimos. Sugeriu-se que o acordo social sobre o que se vestirá é ele próprio um vínculo social que, por sua vez, reforça outros vínculos sociais. A função unificadora da moda e da indumentária serve para comunicar a afiliação de um grupo social, tanto para aqueles que são seus membros quanto para os que não são (BARNARD, 2003, p.91). A moda e a indumentária são formas de comunicar, entre outras coisas, a posição social do indivíduo, por atividades culturais. Podem ser compreendidas, portanto, como importante elemento na construção da identidade (individual e coletiva). No universo feminino, de forma particular, a moda tem ocupado espaço fundamental na compreensão das mudanças sobre o papel da mulher na sociedade. 15 2.2 Histórico moda e o feminino De modo a observarmos como essas construções sociológicas sobre a moda se organizam na história contemporânea, focamos nosso estudo em uma narrativa sobre a moda e o feminino que considera diferentes eixos de problematização: a relação da mulher com a moda a partir das diferentes compreensões históricas sobre o “feminino”; a relação da mulher com a moda a partir do trabalho; e a relação da mulher com a moda a partir da construção da identidade individual. 2.2.1 A relação da mulher com a moda a partir de compreensões históricas sobre o “feminino” A moda se modifica com o tempo, acompanhando, ou até mesmo interferindo nas mudanças culturais da sociedade. Considera-se a industrialização da sociedade como ponto de partida da história da moda, em meados do século XIX, quando os estilos passaram a ser ditados por costureiros e estilistas. A partir daí, observa-se que a moda começa a ser um dos aspectos da segmentação cultural e social, principalmente para as mulheres. O apertado espartilho que trazia o peito para frente e levava os quadris para trás; o peito ereto, coberto por colares, envolto em um tecido de renda e chiffon; os chapéus decorados com flores e penas, às vezes até com um pássaro inteiro, faziam a mulher ficar com uma aparência pesada, parecendo uma estátua (BLACKMAN, 2012, p.10). Esse estilo caracterizava a mulher da corte das primeiras décadas do século XX. O espartilho, inclusive, é um item que não podemos deixar de citar, pois ele “moldava” o corpo da mulher, para que ela ficasse de acordo com os padrões de beleza pré-estabelecidos. Era quase que indispensável em qualquer modelo de vestimenta, para demonstrar a feminilidade da mulher, e o seu uso classificava a posição dela perante a sociedade. Algumas mulheres preferiam não corresponder a essas regras de moda e de beleza ditadas na época, e optavam por vestir-se “artisticamente”, deixando de lado as tendências dominantes. Eram as chamadas bohemians (boêmias), que frequentavam os círculos de vanguarda e vestiam roupas de estilistas diferentes daqueles escolhidos por mulheres da alta corte. No contexto histórico, era uma época de mudanças significativas para as mulheres. Elas começaram a ser admitidas em algumas universidades, a luta pelo direito ao voto estava a caminho e o mercado de trabalho estava abrindo as portas, apesar de o trabalho doméstico ou em linhas de montagem ter sido a única opção para a maioria delas. 16 A vida feminina mudava rapidamente, um processo que se intensificou com a eclosão da Primeira Guerra. Algumas foram para o front como médicas, enfermeiras, motoristas ou membros das forças auxiliares, e as que ficaram tiveram de substituir os homens na indústria, na cidade e no campo. Isso as forçou a adotar formas de vestir tradicionalmente masculinas (BLACKMAN, 2012, p.12). Durante o período da guerra, entre 1914 e 1918, a alta costura desacelerou o passo, mas o fascínio da couture europeia era grande demais para ser ofuscada e, por isso, após esse período recuou aos padrões anteriores. A calça comprida, por exemplo, após a guerra voltou a ser um item estritamente masculino, usada apenas por algumas poucas mulheres consideradas audaciosas. Mas, a própria sociedade sofria mudanças, que refletiam no campo da moda, cultura e no papel social da mulher. As antigas hierarquias sociais começaram a desaparecer, como resultado da guerra, da política e da economia. “A nova mulher do período pré-guerra se transformou na figura amazona art déco, na melindrosa de cabelos curtos que bebia, provavelmente usava drogas, com certeza fumava em público e dançava até tarde nos clubes e cabarés da moda ou nos inferninhos dos círculos boêmios” (BLACKMAN, 2012, p.12). A maioria delas não vivia dessa forma, mas era fruto da imaginação popular. As “regras” que a moda impõe à mulher se modificam rapidamente e sofrem influências da economia, da cultura e do contexto histórico. Bem diferente da década de 1910, os vestidos, por volta de 1930, deveriam alongar o tronco, era preciso aumentar os ombros, não havia adereços na cabeça e os cabelos deveriam ser curtos e levemente ondulados. Para a noite, os vestidos tinham um maior apelo sensual, o que não se via alguns anos antes. Também entre as décadas de 1920 e 1930, é dado um importante passo para a popularização da moda. Surge o conceito de moda prêt-à-porter (pronto para usar), nos Estados Unidos. Antes, as mulheres da alta-sociedade vestiam-se com modelos feitos sob medida pelos couturiers, mas esse era um serviço oferecido apenas para as mulheres ricas. Foi então que lojas de departamento começaram a oferecer modelos iguais ou parecidos com os desejados. Uma alternativa mais em conta e acessível se fazia necessária, e esta começou a se materializar na forma de roupas prontas para o uso, ou prêt-à-porter. Os fabricantes da indústria nova-iorquina da moda, situados em volta da Sétima Avenida, refinaram suas capacidades técnicas e financeiras para melhoras o desenho de peças com preços moderados (FOGG, 2013, p. 276) Foi então que Paris perdeu influência como a capital da moda, deixando espaço para Nova York - principalmente durante a Segunda Guerra, com a ocupação alemã na França, quando fabricantes americanos se mobilizaram para tornar seu país o centro da moda mundial. O prêt-à- porter foi fundamental para que os Estados Unidos continuasse sendo referência de moda até hoje, com as maiores marcas de lojas de departamento. 17 Na Alemanha de Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial, o regime político impunha regras também na aparência das pessoas. Vestidos estampados com floridos, saias amplas, cabelos loiros, corpos saudáveis e pele bronzeada representavam o ideal de feminilidade alemã. “As mulheres que eram convocadas para trabalhar nas Forças Armadas recebiam uma série de roupas práticas, se não monótonas. Para muitas delas, porém, os uniformes representavam o primeiro guarda-roupa de suas vidas composto por peças de boa qualidade” (BLACKMAN, 2012, p.152). Já no final dos anos 1940, enquanto as empresas americanas desenvolviam o estilo prêt- à-porter para um universo feminino corporativo e social em expansão, evidenciando a praticidade e popularização, alguns estilistas continuavam se concentrando na alta-costura luxuosa. O estilista francês Christian Dior lançou o conhecido New Look, em 1947, que trazia características inovadoras para a alta-costura. A primeira coleção de Dior trazia de volta a silhueta curvilínea do século XIX, ombrosnaturais e saias amplas que vão até dez centímetros abaixo do joelho. Para muitos, o New Look foi considerado o retorno das “roupas de bom gosto”, uma “lufada de ar fresco”, para outros, um desperdício de tecido, um exagero, em tempos de austeridade (BLACKMAN, 2012). Como prova dessa divergência de opiniões, logo após a sua estreia em Paris, Dior foi convidado para receber o prémio Neiman Marcus3, o Oscar da Moda, em Dallas. Na oportunidade, ele visitou grandes cidades dos Estados Unidos e era recebido com uma mistura de bajulação e protestos, contra o comprimento longo dos vestidos, contra o exagero de tecido, contra a volta da silhueta marcada. O uso de tecidos caros era realmente grande para quem havia passado por anos difíceis de racionamento, mas, mesmo assim, o novo estilo encantou a maioria das mulheres, que logo trocaram os uniformes pela feminilidade dos vestidos de Dior. Iniciava-se aquela que ficou conhecida como a Época de Ouro da Alta-Costura. Nas décadas de 1940 e 1950, compradores, editores e clientes tinham de se submeter aos grandes estilistas franceses. Os modelos eram licenciados pelos criadores para serem confeccionados a um custo menor4. Como se pode observar, em alguns casos até hoje, a alta moda ditava a tendência das ruas. As indústrias de confecção interpretavam os modelos da 3 Neiman Marcus é uma centenária rede de lojas de departamento, onde se encontram as últimas coleções de estilistas renomados de todo o mundo, além de acessórios, cosméticos, móveis, objetos de decoração e joias. Em 1934, a rede veiculou comerciais nas principais revistas de moda dos Estados Unidos, criando um forte laço com esse universo. E, em 1938, para ressaltar essa íntima ligação com a moda, a empresa lançou o prêmio Neiman Marcus Award, concedido para os melhores designers e estilistas do mundo da moda. 4 Para mulheres que participavam dos esforços da guerra, trabalhavam fora ou em casa, foram criados trajes como o vestido Popover, de Claire McCardell. Feito de denin, com um bolso grande pregado em um dos lados e luva de cozinha presa na cintura, podia ser usado com outras roupas ou sozinho. Ele custava cerca de sete dólares e foi sucesso nos Estados Unidos. 18 passarela e os oferecia com preços mais acessíveis. O New Look se espalhou pelos grandes polos da moda mundial, com diferentes adaptações. Diversos estilistas, atrizes de cinema e personalidades da sociedade adotaram o estilo. Isso fez com que essa moda se popularizasse e atingisse outras classes, que não a alta sociedade. Em Paris, com os crescentes custos trabalhistas e diminuição de renda da população, os estilistas reconheceram que também teriam de se adequar à nova tendência jovem, com peças mais baratas e o já conhecido prêt-à-porter. A partir daí apareceram estilistas que, na corrida por se adaptarem ao novo clima da moda, faziam roupas com materiais sintéticos, peças unissex e modelos inovadores e ousados. As transformações no campo da moda agora não eram ditadas por uma elite exclusiva, mas vinham das ruas. Assim como já não havia mais um polo central que pontuava as regras de estilo, a alta moda havia “se espalhado”. Essa diversidade de estilo, de peças, estilistas e composições fez com que as mulheres não se vestissem mais de forma tão padronizada. Agora se podia escolher o que vestir, conforme a cultura, o padrão social e o grupo a que se sentiam pertencentes na sociedade. A moda nunca esteve engessada à um único estilo, constituído em uma única época, ela caminha entre os anos, sempre renovando o antigo, misturando com o inovador, fazendo releituras e adaptando-se aos contextos históricos e às demandas. Com os anos 1980, veio a criatividade fértil, estimulada pelas escolas de arte londrinas, com uma nova leva de fotógrafos, estilistas, editores e modelos. A partir dessa época, Paris, Nova York e Milão, passam a ser consideradas as capitais da moda, deixando espaço para talentos do mundo inteiro. “As casas de alta-costura se diversificaram e mantiveram suas receitas com linhas de prêt-à-porter e franquias de perfumes, óculos de sol e cosméticos.” (BLACKMAN, 2012, p.220). A fragmentação e a diversidade caracterizavam a moda a partir da década de 1980. Anos depois, já na década de 1990, a moda iria contra o pós-modernismo, que se expressava no estilo “heroin chic”, com a nova fotografia de moda mostrando modelos extremamente magras e pouco saudáveis, que por algum tempo foi o corpo do desejo feminino. Para isso, os estilistas famosos reverenciavam cada vez mais o passado. 2.2.2 A relação da mulher com a moda a partir do trabalho A partir do fim da Primeira Guerra Mundial, o modo de se vestir e o estilo de vida das mulheres as separavam em diferentes segmentos, como: as que trabalhavam, com seus uniformes; as amazonas ou esportistas, com macacões, óculos, luvas e chapéus; as que se vestiam com alta costura, ao estilo dos couturiers mais famosos e as que seguiam as tendências das estrelas de cinema. 19 Nos anos 1920, a mulher tentava se aproximar ao máximo do estilo e comportamento do homem. Por uma necessidade de ela exercer tarefas que antes eram destinadas apenas ao sexo masculino, a mulher demonstrava também na moda características andróginas. “[...] achatou o busto, afrouxou a cintura, deixou as pernas à mostra e reduziu a silhueta a um tubo acompanhado por um chapéu colado à cabeça e com abas flexíveis, chamado cloche. Os espartilhos não haviam sido totalmente abandonados, mas reduzidos, para que o conjunto alcançasse um aspecto quase de menino” (BLACKMAN, 2012, p.12). Com a evolução dos meios de transportes, as mulheres se entusiasmaram com a velocidade e com as viagens, o que também fez com que o âmbito da moda se adaptasse a esse novo estilo. No início, usavam roupas parecidas com as usadas pelos homens, com couro e capacetes protetores, mas à medida que a prática de esportes se tornava popular na Europa, os couturiers lançavam roupas do estilo esportista adaptados para as mulheres. A famosa tenista francesa Suzanne Lenglen, por volta do ano 1925, inovou no estilo dentro das quadras e influenciou na moda fora delas. O modelo esportista representava uma expressão de modernidade, já que, aos poucos, a mulher vinha conquistando espaço nas competições esportivas. Durante a Segunda Guerra Mundial, que começou em 1939, a moda, mais uma vez, adapta-se ao contexto histórico, e surge o Estilo Nacionalista. A mulher voltou a usar uniforme. “[...] das pessoas que não foram para o front esperava-se que usassem os recursos disponíveis conscientemente, que reciclassem o que tinham para vestir” (BLACKMAN, 2012, p.14). Em torno de 1940, as roupas começaram a ser racionadas, tanto na Europa, quanto na América. Este racionamento não regulava apenas a quantidade de peças que se podia comprar, mas também o tipo de tecido usado na confecção. Apenas alguns itens conseguiram sobreviver ao rigoroso controle, como os chapéus, que se tornaram símbolo de expressão individual da mulher, especialmente na França e Itália, onde também se estimulou a criação de novos designs de calçados. Isso estimulou a criatividade e o gosto da mulher por adequar suas peças e criar novas abordagens na moda. “As pessoas adaptavam-se porque não havia escolha, mas mesmo assim faziam um esforço considerável para conseguir manter um sentido de moda.” (BLACKMAN, 2012, p.14). A boa aparência era considerada essencial para a moral das tropas, durante a guerra. Com isso, empresas de cosméticos tinham a oportunidade de expandir seus produtos e ofereciam maquiagens que combinavam com o visual dos uniformes. Destacam-se as mulheresda Unidade Auxiliar Feminina das Forças Armadas dos Estados Unidos – a WAAC (Women’s Auxiliary Corps), que vestiam modelos adaptados das roupas masculinas. Assim como na Primeira Guerra, as mulheres precisaram assumir cargos de trabalho considerados masculinos. As mulheres do exército, que substituíram os homens no trabalho rural (Women’s Land Army) foram fundamentais para assegurar a continuidade da produção de alimentos. 20 Na história da moda atual, no ano de 1962, um jovem estilista chamado Yves Saint Laurent, sucessor de Dior, ganhou espaço e entrou para a história com uma coleção que tinha como carro-chefe os terninhos andróginos, que revelavam uma seminudez, e com seus trajes étnicos, inspirados na arte, na literatura e na música. Ao longo da carreira, Sant Laurent explorou elementos da vestimenta masculina para compor o guarda-roupa feminino. “Em 1966, ele criou o icônico e inovador le smoking, um conjunto com calças para mulheres inspirado no smoking masculino” (BLACKMAN, 2012, p.235). O estilo se espalhou, com diversos nomes de estilistas e também com o prêt-à-porter e lojas de departamento, atingindo principalmente as mulheres que trabalham fora de casa. Sant Laurent eternizou o conhecido “terninho feminino”, que é marca registrada da “mulher de negócios”. 2.2.3 A relação da mulher com a moda a partir da construção de identidade Na década de 1920, quatro nomes femininos dominavam Paris, no que se referia à evolução de estilo, moda e comportamento: Jeanne Lanvin5, Madeleine Vionnet6, Coco Chanel e Elsa Shiaparelli7. Quatro perfis de mulheres que merecem ser citados nessa pesquisa, pela importância no contexto histórico no mundo da moda e da mulher. Coco Chanel (1883-1971), por exemplo, ficou conhecida como um grande expoente do modernismo na moda e na vida. Em uma época em que as mulheres precisavam usar espartilho apertando a silhueta, vestidos enfeitados com penas e plumas e chapéus enormes, Chanel aparecia com seus trajes andróginos, adaptava o guarda roupas masculino e esportivo das calças, com peças fáceis de usar. Misturava bijuterias com joias, entre outras características, enfatizando simplicidade e elegância. Na vida, nunca se casou, não quis depender dos homens e contrariou diversos paradigmas da sociedade da época. Ela era a principal modelo de seu estilo, transformou o mundo da moda com peças ícones e mesmo que não tenha aderido ao feminismo, representava a mulher moderna e 5 Jeanne Lanvin (1867-1946) fez sucesso com uma proposta que contrariava as tendências dominantes. Era conhecida por seus vestidos românticos, baseados nos trajes do séculos XVIII e XIX, que trazia a estamparia étnica e definiu seu estilo único. Lanvin tinha habilidade em interpretar o que as mulheres queriam vestir, mas era considerada afastada das modernidades. 6 Madeleine Vionnet (1876-1975) possuía características marcantes nos seus trajes, que são preservados até hoje. Precursora do corte enviesado, do drapeado e do amarrado de tecidos flexíveis. Seus modelos aderentes e soltos alcançaram um status mítico e representaram o modernismo dos anos 1930. A estilista é lembrada também por garantir boas condições de trabalho aos funcionários e por proteger seus direitos autorais, o que a torna considerada por alguns como a “estilista dos estilistas”. 7 Elsa Schiaparelli (1890-1973) tornou-se referência por seus modelos divertidos e práticos e também elaborou roupas esportivas. “Sempre foi muito experimental, mas foi sua colaboração com os surrealistas, incluindo Salvador Dalí e Jean Cocteau, que produziu inovações na tentativa de fazer moda-arte e arte-moda. O desafio continua válido, apesar da dissociação entre as duas áreas, principalmente porque a moda tem uma dinâmica diferente” (BLACKMAN, 2012, p.13). Esse uso do surrealismo por Schiaparelli atingiu o ápice quando ela lançou o vestido Lobster, com uma estampa em forma de lagosta, em parceria com Salvador Dalí. Algumas criações da estilista podem ser consideradas ousadas e perturbadoras como um sapato com pelo de macaco ou luvas com unha de pele de cobra vermelha. 21 independente. Podemos dizer que Chanel serviu de inspiração para a nova mulher dos anos 1920 em diante. Estilistas influentes e consideradas a frente do seu tempo, como Chanel, fecharam suas maisons durante a guerra. Na França, lojas foram fechadas por venderem roupas com cores nacionais ou por desrespeitar a restrição de tecido. Chanel passou a guerra no famoso hotel Ritz, e logo após exilou-se na Suíça por dez anos. Quando voltou para Paris, já com 70 anos, continuou trabalhando no seu estilo próprio, mas foi ofuscada por outros nomes que vinham surgindo. Já no início dos anos 1950, nos Estados Unidos, os adolescentes começaram a ser considerados pelos sociólogos um segmentos social distinto, em que os indivíduos se vestiam de acordo com o grupo social ao qual pertenciam, sem seguir seus antepassados. Eram considerados estilos da subcultura da juventude americana, que tinham dinheiro e seguiam as tendências divulgadas pelo cinema e espalhadas para o mundo inteiro. “Uma nova vitalidade, repleta de entusiasmo, invadiu a arte, o design e a música, como na Paris do início do século XX, e foi substituindo a tristeza do pós-guerra: o establishment havia sido desafiado pela cultura jovem, na qual a moda desempenhava o papel de catalizador das mudanças.” (BLACKMAN, 2012, p.213). A recuperação econômica estava em pleno curso na Europa. Mesmo com cidades devastadas, os índices de emprego estavam subindo e, consequentemente, subia a renda da população e o tempo livre. O governo investia em cursos de educação, principalmente nas escolas de arte e design, o que contribuiu para o crescimento do conhecido Swinging London (“Londres Vibrante”). A cultura popular foi renovada em diversos âmbitos, mas foi na área da moda que essa revolução foi mais visível: as jovens não queriam mais se vestir como suas mães, mas queriam usar roupas que expressassem esse espírito iconoclasta e divertido. Era o Youthquake, o terremoto de juventude. Neste novo cenário aparece outra mulher influente no campo da moda: Mary Quant. Ela era empresária e designer de vanguarda em Londres de 1950. Mesmo admitindo que, no começo, não sabia nada sobre produção de moda, Quant conseguiu mesclar o estilo da subcultura modernista, com os uniformes escolares e as roupas usadas pelas garotas para dançar, trabalhando com construções simples e tecidos informais. Langeries, meias e cosméticos também foram feitos de maneira revolucionária pela estilista. Na primeira metade da década de 50, os Estados Unidos foi surpreendido pelo que chamamos de “invasão britânica”, que contou com a moda (o London Look) na abertura de uma boutique que vendia peças inglesas em Nova York, a Paraphenalia, e contou também com a música, com as turnês de novas bandas de música pop britânicas, como os Beatles e os Rolling Stones. Uma outra subcultura, ou contracultura, apareceu na costa oeste dos Estados Unidos e se espalhou por todo o mundo. O visual cigano-hippie, que eclodiu com o festival de Woodstock, 22 separava as mulheres das adeptas à estética metálica do Pop Art e as caracterizava com a iconografia psicodélica da droga, da música e da cultura comunitária, onde a ordem era: gastar pouco. Xales antigos, uniformes vintage, peças das lojas de instituições de caridade, barrados inspirados na roupagem dos índios americanos e esquisitos figurinos teatrais eram misturados e adaptados com a técnica do tie-dye, com bordados, crochês, sinos e miçangas exóticos trazidos pelos hippies das viagens à Índia (BLACKMAN,2012, p.217). Os estilistas até tentaram abraçar a estética hippie e psicodélica, mas o ritual do “faça você mesmo”, essencial dos adeptos ao estilo, era muito difícil de ser incorporado. Era (e ainda é) uma cultura que atravessa as fronteiras da moda e parte para o conceito de estilo de vida. Foi no ano de 1968, que a primeira modelo afro-americana estampou a capa da mais importante revista para mulheres, a Ladie’s Home Journal. A partir daí, Naomi Sims se tornou símbolo da beleza negra e se tornou embaixadora do movimento Black is Beautiful. Quarenta anos depois, a supermodelo Naomi Capbel é considerada esse símbolo, mesmo que admita que a discriminação ainda é vigente no mundo da moda. A partir dos anos 70, o mercado de roupa esportiva cresce, principalmente com a mania da “boa forma”, que se estende até hoje. O punk também entrou em cena, como a “primeira cultura underground a admitir direitos iguais no vestir, no comportamento e na credibilidade dada às mulheres.” A nova cultura, que tinha como nome Vivienne Westwood8, desafiou as regras de beleza feminina e liderou a luta pela liberdade e pela escolha da aparência. Era considerada uma aversão ao colorido do cigano-hippie. Também importante nesse cenário, é a cultura hip-hop e estilo de rua. Os jovens negros americanos tentam transmitir uma mensagem a partir da roupa que usam. O movimento iniciou nas periferias dos Estados Unidos, está intimamente ligado à cultura gangsta e tem sua principal representação em artistas musicais. A partir desses estudos sobre o papel social da mulher no âmbito da moda, considerando as diferentes compreensões históricas sobre feminino, trabalho e construção da identidade individual, focamos a continuação desse trabalho na representação dessas mulheres na mídia, mais especificamente, no jornalismo de revista feminina. 8 Vivienne Westwood (1941) é uma estilista inglesa responsável pela moda punk moderna, caracterizada pela excentricidade e irreverencia. Seu estilo é um dos centros da moda inglesa há 34 anos. 23 3. O JORNALISMO DE REVISTA E MODA O jornalismo está muito ligado ao campo da moda, comportamento e estilo, já que a mídia é o principal meio de disseminação desse universo. Atualmente, o consumo da moda é totalmente influenciado pelo que está sendo vinculado nos meios de comunicação, tanto nas propagandas comerciais, quanto nos produtos jornalísticos. Dentre todos os veículos de comunicação, a revista é a que possui um papel de maior destaque quando o assunto é moda e comportamento, mais especificamente, por meio da segmentação de revista feminina. Observamos então, a importância da mídia nessa difusão da área da moda, assim como, o surgimento do jornalismo de revista e jornalismo especializado. Além disso, é importante analisar como se dá a construção da narrativa nos textos jornalísticos de revista e qual o valor da escolha dos personagens que compõem essas produções. 3.1 A mídia e a moda Até o começo dos anos 1930, os estilos sofisticados das mulheres da sociedade eram influenciados pelo estilo das estrelas do cinema (o que, de certa maneira, ocorre até hoje). As atrizes de Hollywood apareciam em jornais, revistas ou nas telas, e suas peças eram imitadas por milhares de fãs. Era a Idade de Ouro do cinema, forma de entretenimento mais popular no período entre guerras e maior disseminador de moda na época. O mais importante dessa influência foi o fato de as grandes lojas de departamentos começarem a vender os modelos usados pelas famosas, o que facilitou o acesso para as mulheres da classe média. “O cinema democratizou o império da moda ao fazer do glamour algo acessível” (BLACKMAN, 2012, p.14). Também em meados dos anos 1930, iniciou-se a popularização dos cosméticos, que teve influência direta da mídia. As mulheres queriam, cada vez mais, aproximarem-se da aparência das atrizes e modelos que apareciam nas telas do cinema. Para isso, elas começaram a fazer uso de produtos de maquiagens, unhas e cílios postiços, que se tornaram cada vez mais acessíveis. Max Factor foi um precursor nessa área, começando como maquiador em um estúdio cinematográfico, até chegar a ser uma marca de maquiagens mundialmente conhecida. Mesmo com todas as privações, a moda, ao contrário do que se esperava, teve seu poder acentuado na época da Segunda Guerra. Como exemplo disso, as assinaturas da revista Vogue Americana se multiplicaram durante esse período, com a direção do renomado crítico Frank Crownshield. O termo New Look, destinado ao novo estilo desenvolvido por Christian Dior, em 1947, foi criado pela editora de moda da revista Harper’s Bazaar, Carmel Snow, e o estilo reverenciava as curvas femininas. 24 A imprensa sempre teve um papel primordial na expansão da moda. No caso do New Look ela foi fundamental para levar o estilo ao mundo todo, tornar estilistas e lojas de departamentos conhecidos e seus modelos copiados. Um exemplo disso é o vestido com estampa floral, que era uma peça indispensável no guarda-roupa da mulher inglesa de classe média, no fim dos anos 1950. Enfatizava a nova silhueta e tinha estampas de artistas plásticos conhecidos. As vendas dispararam depois que fotos de membros da família real inglesa, usando o modelo de vestido, foram publicadas na imprensa. O público jovem também era alvo importante dos criadores de moda. Duas revistas destinadas às meninas foram influentes nas décadas de 1940 e 1950. A Junior Bazaar, lançada em 1945, mostrava a importância dada ao mercado jovem por estilistas, editores e a mídia depois da Segunda Guerra. E a revista Seventeen, de 1944 e publicada até hoje no mundo todo, era dirigida às adolescentes com grande poder de compra no pós-guerra. O conteúdo da publicação mostrava o aumento do número de fabricantes americanos que faziam roupas para jovens, vendidas em seções específicas nas lojas de departamentos. O cinema e a televisão continuavam a mostrar o que era tendência. Símbolos como as modelos Twiggy, Jean Shrimpton, a apresentadora britânica Cathy McGowan, entre outras, ajudavam os estilistas a atingirem a grande maioria das mulheres. Patrimônio e tradição são as palavras-chave da moda atual. Prova disso, é a veneração de grandes casas de alta-costura, assim como a evocação do estilo de mulheres ícones, como Audrey Hepburn, Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, Jackie Kennedy, princesa Diana de Gales, e outras. “As celebridades sempre venderam moda, desde os ícones da realeza até as estrelas dos palcos, telas e mundo musical: isso não mudou desde o início do século XX, mas o alcance da mídia contemporânea garante a fama em uma escala completamente diferente e, com ela, uma disseminação mais ampla da moda.” (BLACKMAN, 2012, p.221). A cantora e atriz Cher, em carta citada na biografia de Audrey Hepburn, disse: “Eu queria tanto ficar como você em Bonequinha de Luxo que prendi os cabelos em duas maria-chiquinhas, comprei óculos de sol enormes e vesti a roupa que achei que pudesse me deixar o mais parecida possível com ‘você’. Fui suspensa da escola por causa dos óculos de sol...” (PARIS, 19889 apud BLACKMAN, 2012, p.371). Muitos estilistas de moda se tornaram grandes celebridades e ganharam fama e visibilidade, tornando-se símbolo de uma classe alta da sociedade. Na mídia, atrizes, cantoras e personalidades continuam representando (e “ditando”) as tendências dos maiores nomes da moda e, também, da moda de rua. Séries de televisão como Sex and the City e Mad Men, ilustram o interesse das mulheres no estilo icônico e influenciam na moda de maneira geral. “As fronteiras entre figurino, moda, mundodas celebridades e influência estão se 9 PARIS, Barry. Audrey Hepburn. Ed. Berkley Pub Group. 1988. 25 apagando” (BLACKMAN, 2012, p.221). Atualmente, além das grandes marcas, mulheres como Michelle Obama, Catherine Middleton, Madonna, Lady Gaga, atrizes nacionais e internacionais e modelos tornaram-se referência em moda, estilo e comportamento. Além da televisão e cinema, atualmente, as revistas tem um grande espaço nessa expansão do mercado de moda. Publicações como Elle, W, Harper’s Bazaar, V Magazine, Flaunt, Nylon, Love, I-D e, principalmente, a Vogue, possuem uma grande influência na disseminação das tendências, dos lançamentos, de comportamento feminino, de estilo e das personalidades do mundo da moda. Assim, partimos para o estudo dos modos como o jornalismo, mais especificamente o de revista, trabalha com a área do feminino e da moda. 3.2 O jornalismo de revista O jornalismo de revista tem sido debatido no contexto da pesquisa a partir de suas características específicas, em geral buscando as diferenciações deste para outros formatos, como o jornalismo impresso diário e o telejornalismo, por exemplo. Para falar do jornalismo de revista como objeto teórico, precisa-se ressaltar que esse é um tipo bastante específico de discurso, que constrói sentidos de forma lenta, fragmentada e emocional (BENETTI, 2013). Um dos conceitos que o jornalismo de revista propõe se relaciona aos processos produtivos dessas publicações, em especial com a sua periodicidade. Diferente do jornalismo diário, como diz Benetti (2013), o jornalismo deve oferecer o presente social e, no caso das revistas, a noção de presente é estendida, pois atual é sinônimo de contemporâneo, não de novo. “O sentido sobre o que é ser contemporâneo – e, portanto, sobre o que está ultrapassado e deve ser substituído – está poderosamente inscrito no jornalismo de revista. Ele diz o que importa saber agora e como deve agir, ou se imaginar agindo, o sujeito que está de acordo com o espírito de seu tempo” (BENETTI, 2013, p.46). Esse fazer jornalístico cria um outro sentido importante: o da experiência. O conhecimento é parte da construção da experiência do indivíduo e o jornalismo cumpre esse papel, de ajudar as pessoas a entender a si mesmas por meio das experiências dos personagens representados na publicação. Nesse sentido, o discurso jornalístico das revistas acontece a partir de um “contrato de comunicação” (CHARAUDEAU, 2007), que sugere que certos requisitos precisam ser cumpridos pelos sujeitos em interação (jornalistas/empresas e leitores, entre outros) para que possa ser reconhecido como tal. “São princípios e valores historicamente construídos e reafirmados de maneira constante para terem sua legitimidade reconhecida [...] O jornalismo cumpre as funções de narrar o presente social, oferecer guias sobre relevância e interesse público, estabelecer uma 26 ordem hermenêutica sobre o mundo – em suma, construir um modo de conhecimento a partir do qual o homem compreende a si mesmo e aos outros” (BENETTI, 2013, p. 49-50). É a partir dessa proposição, de um contrato de comunicação historicamente organizado em torno de um discurso socialmente reconhecido, que se organizam outros valores fundamentais do jornalismo de revista. Entre eles, valores como verdade e credibilidade se destacam: a credibilidade tem que ser percebida pelo leitor e sustentar a ideia de que o jornalismo mostra o que é verdadeiro. “A credibilidade percebida será resultado de uma intensa e permanente negociação de sentidos entre o jornalismo e seu público” (LISBOA, 201210 apud BENETTI, 2013, p.49). No jornalismo de revista, a relação entre esses conceito tem um papel particular. Ao se deparar com um universo de diferentes temas em uma banca de revista, por exemplo, o leitor encontra uma visão de seu próprio desconhecimento e o jornalismo se põe como um enunciador legítimo, apresentando os possíveis temas de interesse ao receptor (BENETTI, 2013). A fidelização do leitor depende, dentre outros fatores, da percepção de quanto a especialidade de certa revista interessa, identifica e traz informações desconhecidas a ele. Assim, as revistas são reconhecidas como veículo de comunicação, negócio, marca, objeto, conjunto de serviços, mistura de jornalismo e entretenimento. “Revista é também um encontro entre um editor e um leitor, um contato que se estabelece por um fio invisível que une um grupo de pessoas e, nesse sentido, ajuda a compor a personalidade, isto é, estabelece identificações, dando a sensação de pertencer a um determinado grupo” (SCALZO, 2011, p.12). As revistas dão conta de funções culturais mais complexas do que as notícias do dia-a-dia. As publicações devem entreter, aprofundar análises, reflexões e trazer experiências de leitura. Nesse sentido, o público é muito importante para a permanência de uma publicação no mercado. A relação de proximidade com o leitor deve estabelecer uma relação de fidelidade. “Ler certa revista transforma seus leitores em um grupo que tem interesses comuns” (BUITONI, 2013, p.111). Uma revista, na maioria das vezes, deve conhecer o seu leitor e falar diretamente com ele. No caso da revista Vogue por exemplo, o autor do texto dirige-se ao leitor por “você”, trazendo uma maior relação de afinidade entre eles. É preciso estabelecer um vínculo emocional, para que o leitor sinta a revista como parte de sua rotina. Essa relação direta com o leitor se organiza, na dinâmica das revistas, a partir de processos de especialização e segmentação. As revistas foram precursoras no processo de segmentação da produção jornalística. As primeiras publicações, mesmo trazendo temas variados, já definiam melhor seus temas e, principalmente, seu público. A discussão sobre segmentação traz fortemente uma lógica de mercado de consumo, mas, como diz Buitoni (2013), 10 LISBOA, S. S. M. Jornalismo e a credibilidade percebida pelo leitor: independência, imparcialidade, honestidade, objetividade e coerência. 2012. 112 f. Dissertação (Mestrado Comunicação e Informação) – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. 27 no âmbito jornalístico deve-se pensar mais em termos de processos comunicacionais, do que em termos de mercado. Para a segmentação, é imprescindível analisar a composição do público leitor. É aí que se pode diferenciar a segmentação da especialização. Há uma linha tênue entre essas duas lógicas, mas enquanto no jornalismo especializado as publicações se separam a partir do tema, na segmentação as publicações se singularizam baseando-se em definições mais específicas sobre as características do público. Estudos do jornalismo especializado trazem elementos para a discussão da segmentação, até mesmo quando se fala na relação com mercado, consumo e pesquisas de marketing. Mas ao conceito de segmentação pressupõe-se a possibilidade de desdobramentos editoriais, pelos perfis de público, de um mesmo universo temático. O desejo de se comunicar com o leitor fez com que a segmentação tomasse formas ainda mais específicas, havendo o que se denomina como uma segmentação da segmentação, ou seja, uma revista estipula um recorte de público e a partir dele se elabora um enfoque ainda mais particular. Esse é o caso das revistas de moda, destinadas ao público feminino, por exemplo. Podemos dizer que, entre as estratégias de segmentação das revistas femininas, é possível uma especialização não apenas temática, mas também vinculada a valores como faixa etária, nível econômico, posição social,profissão e/ou interesses de leitura (BUITONI, 2013). Para uma segmentação tão específica, o veículo deve conhecer muito bem o seu público. É a partir das necessidades ou dos desejos dos leitores que as revistas se constroem; é pelo refinamento dos interesses, das curiosidades e das potencialidades do consumo editorial que se efetiva a lógica da segmentação. As editoras investem em instrumentos de pesquisa que permitam às publicações o contato direto com leitores para o constante aprimoramento de seus produtos editoriais (ELMAN, STORCH, 2014, p.04). Em uma discussão mais aprofundada, Buitoni (2013) diz que a segmentação de revistas tem razões mais fortes e complexas. Alguns títulos que hoje chamaríamos de segmentados já eram bem definidos desde o século XIX; outros foram acompanhando os movimentos de temas e de públicos, que se congregaram e se aproximaram em função de características que foram isoladas e depois reunidas, de forma a distinguir um grupo interessado (BUITONI, 2013, p. 111). Como salienta Scalzo (2011), a segmentação entre as revistas, por um assunto e estudo do público, faz parte da própria essência do veículo: “[...] pensamos na segmentação como um processo interno dentro de um sistema jornalístico complexo, no qual nasce a decisão de segmentar, sem vir a reboque do marketing” (BUITONI, 2013, p.116). Do ponto de vista da comunicação, a segmentação é um processo que se constrói ao longo do tempo, junto com as 28 mudanças sociais, trabalhando com questões socioculturais, que vão muito além das lógicas de mercado e consumo. É um processo que vai contra a generalização e ajuda na criação de identidades culturais. 3.2.1 Revistas femininas e revistas de moda Estudando o surgimento do formato revista, observa-se que ela começa misturando elementos do almanaque, assuntos de interesses variados, informações sobre literatura, arte, moda, e se firma no século XIX, mostrando ilustrações, conhecimento e entretenimento. Desde o princípio, a revista inclui a imagem na sua composição e as primeiras publicações importantes foram da área de educação. A evolução da revista está diretamente ligada à crescente urbanização. No Brasil, esse desenvolvimento se confunde com a história econômica e industrial do país. Como exemplo da presença do mercado de consumo na criação dessas publicações, no princípio, elas tinham uma função quase que de “vitrine”, catálogo de produtos e serviços, o que muitas vezes permanece até hoje. “Na França e em países de língua inglesa, muitas revistas adotavam a denominação ‘magazine’, denotando a característica de exposição de mercadorias ou roupas em ligação com atividades comerciais” (BUITONI, 2013, p.108). O formato visual das revistas, cada vez mais especializado em divulgar cultura, hábitos e produtos, se juntou naturalmente às práticas comerciais, o que se tornou um contexto favorável para o desenvolvimento desse tipo de publicação. As primeiras publicações femininas apareceram no fim do século XVII, mas, nesta época, as revistas e os jornais eram direcionados sobretudo aos homens. O Lady’s Mercory, surgido na Inglaterra em 1693, é considerado o primeiro periódico feminino. Entre os principais temas que iniciam a produção do formato revista no mundo está justamente a moda. “A divulgação da moda europeia é outro importante fator no incremento do formato revista e é um elemento que ajuda a pensar sobre o fenômeno da segmentação” (BUITONI, 2013, p.109). A democratização na confecção e distribuição das vestimentas auxilia na descoberta desse mercado. Os primeiros “catálogos”, que mais tarde virariam revistas, exibiam peças de roupas de diversos estilistas. Em seguida, surgiram as revistas que traziam temas relacionados à moradia e decoração, que ganharam cada vez mais espaço nos periódicos femininos. O Lady’s Home Journal, de 1883, foi a pioneira e traz um importante nome para esse segmento. “Seu editor, Edward Bok, defendia que a mulher deveria ter ideias práticas, uma certa ambição, melhor aparência física e gosto mais apurado. Ele rompeu com a tradição de moralismo, sentimentalismo e piedade da maioria das publicações destinadas à mulher” (BUITONI, 2013, p.109). O editor pretendia mostrar uma nova imagem da mulher nas publicações, evidenciando a questão da beleza, que é uma das 29 principais áreas abordadas nas revistas femininas até hoje. Nas edições de sua revista, Bok apresentava também plantas residenciais para casas norte-americanas, o que influenciou na maneira de morar de milhares de pessoas na época. No Brasil, as revistas femininas existem desde que surgiu esse formato de publicação no país. Elas começaram a aparecer aqui e ali sem muito alarde, geralmente feitas e escritas por homens. Traziam as novidades da moda, importadas da Europa, dicas e conselhos culinários, artigos de interesse geral, ilustrações, pequenas notícias e anedotas. Esse modelo foi repetido, com pequenas diferenças, durante todo o século XIX e a primeira metade do século XX. É certo que houve, também, nesse período, publicações feitas de mulheres para mulheres, preocupadas com sua condição na sociedade e seus direitos, mas são poucas e a maioria tem vida curta (SCALZO, 2011, p.33). Um dos primeiros periódicos brasileiros direcionados para mulher foi a Revista Feminina, de 1914, que abordava áreas como moda e produtos de beleza. A imprensa feminina então, apontava os caminhos da segmentação. A mulher, a partir do século XX, começa a ser apontada como um mercado consumidor e público privilegiado de revistas. Seguem então as revistas de fotonovelas e, em 1959, é lançada a revista Manequim, que traz até hoje moldes de roupas para confeccionar em casa. Em 1961, surge a revista Claudia, que é atualmente uma das publicações direcionadas ao público feminino com maior distribuição no país. Como já dito anteriormente, o jornalismo especializado considera a profundidade em um determinado campo de conhecimento, um âmbito temático, direcionado a um público amplo, enquanto a segmentação possui uma maior relação com um público definido. A imprensa feminina, segundo Buitoni (2013), não é exatamente uma especialização, já que tem como objetivo atingir as leitoras mulheres, tratando de diversos assuntos. As revistas de moda podem ser identificadas como precursoras da segmentação de produção jornalística. Elas já mostravam um direcionamento temático antes mesmo de se começar as discussões acerca do conceito de segmentação, que é recente. Nova (1973), Marie Claire (1991), da Editora Globo, Elle (1988) e Vogue Brasil (1975), nascidas a partir de modelos estrangeiros, dirigem-se a milhares de estilos específicos. Vogue é identificada como o universo da moda, em classificações editoriais ou publicitárias, que inclusive usam a denominação “segmento de moda” (BUITONI, 2013, p.115). Os periódicos de moda atuais preocupam-se em estabelecer uma nova cultura da feminilidade. Eles buscam abordar um modo de vida mais artístico e a vontade de promover as expressões onde triunfam as mulheres (CIDREIRA, 2007). Renata Pitombo diz que o jornalismo 30 de moda, em geral, desempenha três funções principais: “coloca em evidência uma cultura diferente do corpo; descreve o dispositivo e os meios de um sistema de consumo essencialmente “vestimentar” que serve ao entretenimento; exibe um discurso de moral social alocado sobre a égide da moda triunfante” (CIDREIRA, 2007, p.01). Ressaltamos então a importância da mídia no que se refere à moda, feminino e cultura. Mais especificamente, o jornalismo de revista é o que melhor desenvolve esse tipo de produção, por seu caráter aprofundado, na maioriadas vezes informal e reflexivo a cerca dos assuntos. A relação de proximidade com o público gera uma relação de vínculo emocional entre publicação e leitor. Para isso, as revistas se organizam a partir de produções de especialização e segmentação. Muitas vezes, esse processo de se comunicar com o leitor torna a segmentação ainda mais específica, gerando o que chamamos como uma segmentação da segmentação, como é o caso das revistas femininas – de moda, por exemplo. Nesta construção de revistas segmentadas, é imprescindível a relação da publicação e do público leitor com os personagens expostos nos textos. O que essas figuras representam, o motivo pelos quais elas são mostradas e a forma da construção da narrativa dos textos jornalísticos são parte fundamental do processo para compreender o que uma revista representa culturalmente para o seu público. 3.3 Narrativa e personagem A narrativa é uma estratégia organizadora do discurso jornalístico e traduz conhecimento objetivo e subjetivo, a partir da produção textual. Narrar é “relatar eventos de interesse humano enunciados em um suceder temporal encaminhado a um desfecho” (MOTTA, 2013, p.71). Portanto, podemos entender uma narrativa como sendo uma sucessão de fatos responsáveis pelo sentido. Os seres humanos tem uma predisposição cultural de organizar e compreender a realidade, de um modo narrativo. A partir do ato de narrar, podemos estabelecer relações entre as coisas, em uma ordem e perspectiva, com sequências de continuidade, integrando ações de passado, presente e futuro em uma sequencia. “A narrativa põe naturalmente os acontecimentos em perspectiva, une pontos, ordena antecedentes e consequentes, relaciona coisas, cria o passado, o presente e o futuro, encaixa significados parciais em sucessões temporais, explicações e significações estáveis” (MOTTA, 2013, p.71). Para o jornalismo, essa é a forma de maior coerência para se relatar acontecimentos, não apenas nas representações da realidade, mas também como uma forma de organizar as ações em função de estratégias culturais em contexto (MOTTA, 2005). 31 O personagem é uma das formas possíveis para a construção da narrativa e são entendidas como fontes, na produção jornalística. “A construção de personagens e ações na narrativa é uma representação de condutas humanas que fornecem ao narrador a matéria-prima e os modelos” (MOTTA, 2013, p.72). Essas fontes sustentam os relatos sobre o cotidiano, nas condições de testemunha, especialista, autoridade, entre outras (STORCH, REGINATO, 2014). A escolha por esses personagens, na narrativa real, pode ser uma das tarefas mais difíceis para o jornalista que está contando a história. Essa seleção se dá a partir da linha editorial da publicação “[...] quando uma revista escolhe promover determinada fonte à função de personagem, ela está reconhecendo certa relação entre o perfil editorial da publicação e as representações sociais comumente associadas a essa figura” (STORCH, REGINATO, 2014, p.02). É importante ressaltar que a configuração da fonte como personagem se dá quando o jornalismo considera a representatividade social da fonte em relação ao acontecimento noticiado (STORCH, REGINATO, 2014). No caso do jornalismo de revista, o profissional que trabalha em uma redação precisa tomar várias decisões, como a escolha dos colaboradores, das imagens, das cores, das fontes, as imagens, da capa, etc. Em uma revista feminina, por exemplo, a escolha do casting de modelos, especialmente para a editoria de beleza, pode ser um momento até mesmo constrangedor, tanto para a modelo, quanto para os editores. Enquanto isso, nas editorias de comportamento, a parte complicada é escolher os personagens que serão mostrados nas reportagens. Segundo Silvia Amélia de Araújo (2013), para cada pauta de comportamento é necessário localizar pessoas com histórias inusitadas, exemplares e diversas. O personagem precisa estar disponível para contar algo íntimo. Essas disputas pelos espaços legitimados de fala no jornalismo se manifestam de modo concreto na narrativa das notícias, em que vislumbramos as relações entre o jornalista (enquanto narrador principal) e as personagens (que na apuração figuravam como fontes). As personagens ‘realizam funções na progressão da história’ e, guiadas pelo narrador principal, podem figurar em diferentes papeis narrativos, como heróis ou bandidos, vilões ou mocinhos, e assim por diante (STORCH, REGINATO, 2014, p.04). A seleção desses personagens para uma revista tem uma grande influência do público leitor, já que ele precisa se identificar com o que está sendo representado pela publicação, para gerar a relação de proximidade, já discutido aqui como um pressuposto do jornalismo de revista. Araújo (2013) diz que a aparição de um personagem em uma matéria de revista impressa, antigamente, tinha destaque apenas no mês em que a publicação estava nas bancas. Hoje em dia, com a internet e a disseminação das notícias, uma participação em uma matéria de revista pode ser republicada, comentada e compartilhada infinitas vezes na rede, para diferentes 32 públicos. Isso gera uma maior exposição dos personagens e, muitas vezes, uma maior dificuldade na busca por essas pessoas. Mas, em contrapartida, a internet auxilia muito os jornalistas na escolha por suas fontes. Identificar esses personagens é parte fundamental para se entender a composição da revista em questão. É através dos relatos, em conjunto com a intervenção do narrador, que as histórias são contadas. “A construção dos sentidos da narrativa, mais uma vez, é intersubjetiva, de modo que se mostra fundamental que o narrador seja capaz de deixar marcas no texto – fortes o suficiente para que o leitor possa reconstruir as personagens no momento da leitura.” (STORCH, REGINATO, 2014, p.04). No jornalismo de revista, principalmente se tratando de revista feminina, é comum encontrarmos celebridades ocupando lugares de destaque nessa construção de personagens. Isso pode ser compreendido como uma característica da própria cultura contemporânea. “[...] as celebridades funcionam como recursos de projeção ou transferência da sociedade, não sendo frutos apenas de uma construção unilateral feita por produtos midiáticos” (STORCH, REGINATO, 2014, p.05). Este trabalho, então, pretende identificar os modos de construção das personagens na narrativa do jornalismo da revista Vogue Brasil, para então entender quais os sentidos que essa narrativa estabelece. 33 4. AS CONSTRUÇÕES METODOLÓGICAS Como pergunta principal que norteia esse trabalho, temos: Quais são os sentidos construídos na revista Vogue sobre a mulher com mais de 40 anos? Para responder a essa questão, estabelecemos um percurso metodológico de análise, baseado na Análise de Discurso de linha francesa e delimitamos um recorte temporal, para que fosse possível observar a construção dos sentidos sobre as mulheres na revista. Então, foram escolhidos textos de caráter de perfil, que apresentam mulheres com mais de 40 anos como personagem, nas publicações dos meses de Janeiro a Junho do ano de 2014, totalizando seis edições da revista Vogue Brasil, que é o objeto dessa pesquisa. 4.1 A revista Vogue “Quem pensa em moda, pensa em Vogue” (Mídia Kit Digital Vogue 201411). A revista Vogue foi lançada em 1892, em Nova York a partir de um pequeno folhetim semanal de moda e design, criado por Athur Baldwin Turnure12. A publicação continha apenas 30 páginas e era direcionada ao público da elite nova-iorquina, do fim do século XII. O primeiro editor-chefe da revista foi Josephine Redding, que ficou no cargo até 1901. A revista
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