Buscar

Etnobiologia Vol 2

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 3, do total de 206 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 6, do total de 206 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 9, do total de 206 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Prévia do material em texto

1Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Ângelo Giuseppe Chaves Alves
Reinaldo Farias Paiva de Lucena
Ulysses Paulino de Albuquerque
(organizadores)
Recife
2005
Atualidades em
Etnobiologia e Etnoecologia
Volume 2
2 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Núcleo de Publicações em Ecologia e Etnobotânica
Aplicada – NUPEEA
Comissão Editorial
Ulysses Paulino de Albuquerque (Coordenador), Ângelo Giuseppe Chaves Alves, Elba
Lúcia Cavalcanti de Amorim, Elba Maria Nogueira Ferraz, Elcida Lima de Araújo, Laise de
Holanda Cavalcanti Andrade, Maria das Graças Pires Sablayrolles, Natália Hanazaki, Nivaldo
Peroni e Valdeline Atanázio da Silva.
Diagramação e Capa
Futura Design e Comunicação (81) 88549072 | 8855.4496
Fotos da Capa
Ângelo Giuseppe Chaves Alves
1. Boneco de mamulengo em fase de elaboração em Pombos (Pernambuco), com madeira de “mulungu” (Erithryna sp.)
2. Flor de “mulungu” (Erithryna velutina Willd.), encontrada no municipio de Areia, Paraíba.
3. Ceramista camponesa indicando seção vertical de solo em que se extrai o material denominado “barro de loiça”
em Areia (Paraíba).
4. Detalhe da pesca com rede de espera no Açude Bodocongó (Campina Grande, Paraíba).
5. Detalhe do uso de “pereiro” (Apocynaceae) no tratamento de superfície de vasos cerâmicos (“loiça de barro”)
em Areia (Paraíba).
Revisão
Dos autores
Os textos que compõem esta coletânea são da inteira responsabilidade de seus autores.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
Laboratório de Etnobotânica Aplicada, Departamento de Biologia
Rua Dom Manoel de Medeiros s/n
Dois Irmãos – Recife –Pernambuco - CEP.: 52171-030
www.ufrpe.br/lea
3Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Ângelo Giuseppe Chaves Alves
Reinaldo Farias Paiva de Lucena
Ulysses Paulino de Albuquerque
(organizadores)
Recife
2005
Atualidades em
Etnobiologia e Etnoecologia
Volume 2
4 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Gestão 2005-2006
Diretoria:
Presidente: Dr. Ulysses Paulino de Albuquerque (UFRPE)
Vice-Presidente: Dra. Natália Hanazaki (UFSC)
1º Secretário: MSc. Reinaldo Farias Paiva de Lucena (UFRPE)
2º Secretário: Dra. Gabriela Peixoto Coelho de Souza (ANAMA)
1º Tesoureiro: Dr. Nivaldo Peroni (UNICAMP)
2º Tesoureiro: MSc. Rumi Regina Kubi (UFRGS)
Conselho:
Dra. Edna Machado Guimarães (UFRJ)
Dra. Elaine Elisabetsky (UFRGS)
Dr. Eraldo Medeiros Costa Neto (UEFS)
Dr. José Wanderley Geraldo Marques (UEFS)
Dr. Marcio D’Olne Campos (UNICAMP)
Dra. Maria Christina de Mello Amorozo (UNESP - BOTUCATU)
Plácido Costa Júnior (GERA)
Dr.Virgílio Maurício Viana (ESALQ/USP)
Representantes Regionais:
Região Centro-Oeste: Dra. Maria de Fátima Coelho (UFMT)
Região Nordeste: Dr. Ângelo Giuseppe Chaves Alves (UFRPE)
Região Norte: Dra. Maria das Graças Pires Sablayrolles (UFPA)
 Biólogo Leonardo Pacheco (IBAMA-AM)
Região Sudeste: Dr. Lin Chau Ming (UNESP-BOTUCATU)
Região Sul: Bióloga Cristina Baldauf (UFSC)
SBEE
SOCIEDADE
BRASILEIRA
DE ETNOBIOLOGIA
E ETNOECOLOGIA
5Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Apresentação
O Nordeste Brasileiro vem se destacando na produção de
conhecimento etnobiológico e etnoecológico, conseqüência da diversidade
cultural e biológica da região e do esforço organizado de pesquisadores e
professores. Aos poucos, as etnociências passam a ocupar papel de
destaque no meio acadêmico nordestino e brasileiro. Essa experiência
manifesta-se por meio de uma crescente produção bibliográfica e da
realização de eventos etnobiológicos e etnoecológicos. Destacam-se, neste
sentido, o I Encontro Baiano de Etnobiologia e Etnoecologia (Universidade
Estadual de Feira de Santana, 1999), sucedido pelo II Encontro Regional de
Etnobiologia e Etnoecologia (Universidade Estadual de Santa Cruz, 2001).
Além dos simpósios de âmbito nacional (Feira de Santana em 1996, São
Carlos em 1998, Piracicaba em 2000, Recife 2002 e Chapada dos Guimarães
2004), a Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE) vem
se consolidando por meio da realização de eventos regionais, seguindo
uma tendência de fortalecimento do enfoque etnobiológico e etnoecológico
nas diversas regiões do país.
Assim, vamos deixando de representar um campo de conhecimento exótico
e marginal, para assumir um papel de vanguarda na geração e sistematização
de conhecimento sobre as interações dos grupos humanos com as demais
espécies biológicas e com os recursos naturais em geral. Nesse contexto,
aprofundam-se os contatos da SBEE com as demais sociedades científicas,
abre-se caminho para as etnociências junto aos órgãos de fomento à
pesquisa, fortalecem-se as nossas linhas de pesquisa junto aos programas
de pós-graduação e aumenta o número de disciplinas etnocientíficas
lecionadas em nível de graduação e pós-graduação.
Felizmente, ainda temos muito para elaborar, discutir e realizar em relação a
diversos aspectos como a repartição de benefícios com as populações
participantes nas pesquisas, o refinamento terminológico, as questões
metodológicas e as conexões com a educação. Afinal, não somos apenas
pesquisadores, mas agentes de Pesquisa e Desenvolvimento. O ensino de
etnociências, por exemplo, pode ser uma oportunidade para inserir a
diversidade cultural nos currículos dos cursos de ciências da natureza.
Pernambuco (“mar que arrebenta”) aparece como ancoradouro natural (e
cultural) para a discussão da experiência nordestina e brasileira nesse
campo, através da realização do III ENCONTRO NORDESTINO DE
ETNOBIOLOGIA E ETNOECOLOGIA. As discussões realizadas nas mesas-
6 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
redondas e palestras desse evento são aqui apresentadas, no intuito de
contribuir para o posicionamento dos etnocientistas da região e do país,
sobre o papel desempenhado pelas chamadas populações tradicionais no
desenvolvimento de estratégias culturalmente adequadas para o manejo e
conservação dos recursos naturais.
Os organizadores
7Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Autores
Alberto K. Nishida - Professor adjunto. Departamento de Sistemática e Ecologia –
DSE/CCEN/Universidade Federal da Paraiba. Programa de Pós-Graduação em
Ciências Biológicas/UFPB. Programa Regional de Pós-Graduação em
Desenvolvimento e Meio Ambiente – Sub-Programa UFPB/UEPB
Ana Lícia Patriota Feliciano - Professora adjunto. Departamento de Ciência
Florestal, Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Ângelo Giuseppe Chaves Alves - Professor adjunto. Laboratório de Etnoecologia,
Departamento de Biologia, Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Argus Vasconcelos de Almeida - Professor adjunto. Departamento de Biologia
da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Cecília de Fátima Castelo Branco Rangel de Almeida - Laboratório de Etnobotânica
Aplicada, Área de Botânica, Departamento de Biologia, Universidade Federal Rural
de Pernambuco. Doutoranda em Ciências Farmacêuticas.
Cláudia Sampaio de Andrade Lima - Professora adjunto. Departamento de Biofísica
e Radiobiologia, Universidade Federal de Pernambuco.
Cláudio Urbano B. Pinheiro - Professor Doutor do Departamento de Oceanografia
e Limnologia, Universidade Federal do Maranhão.
Conselho Pastoral dos Pescadores. Equipe Regional Nordeste II - End. Av. Gov.
Carlos de Lima Cavalcanti., 4688. Casa Caiada – Olinda/PE – Cep. 53.040-000.
Fone: 81 3432-0879 E-mail. cppne@hotmail.com
Elba Lucia Cavalcanti de Amorim - Professora adjunto. Laboratório de Química
Farmacêutica, Departamento de Ciências Farmacêuticas,Universidade Federal de
Pernambuco.
Elcida Lima Araújo - Professora adjunto. Departamento de Biologia, Área de
Botânica, Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Eliana Rodrigues - Doutora em Ciências. Departamento de Psicobiologia,
Universidade Federal de São Paulo.
Ernani Machado Freitas Lins-Neto - Laboratório de Etnobotânica Aplicada, Área
de Botânica, Departamento de Biologia, UniversidadeFederal Rural de
Pernambuco. Graduando em Ciências Biológicas.
Helder Farias Pereira de Araújo - Programa de pós-graduação em Zoologia,
Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Zoologia.
8 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
José da Silva Mourão - Professor Adjunto. Departamento de Biologia,
Universidade Estadual da Paraíba.
José Geraldo W. Marques - Professor Titular de Etnobiologia da Universidade
Estadual de Feira de Santana. Professor Credenciado de Etnoecologia na
UNICAMP.
José Serafim Feitosa Ferraz - Engenheiro Florestal, Departamento de Ciência
Florestal, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Mestre em Ciências
Florestais.
Julio Marcelino Monteiro - Laboratório de Etnobotânica Aplicada, Área de
Botânica, Departamento de Biologia, Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Doutorando em Botânica.
Isabelle Maria Jacqueline Meunier - Professora adjunto.Departamento de Ciência
Florestal, Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Izabel Cristina da Silva Almeida - Bacharel em Ciências Aquáticas; Mestranda -
Recursos Pesqueiros e Aqüicultura, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Melina Giorgetti - Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São
Paulo.
Perla Carvalho Romanus - Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal
de São Paulo. Mestranda em Psicobiologia.
Rafaela Denise Otsuka - Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal
de São Paulo.
Reinaldo Farias Paiva de Lucena - Laboratório de Etnobotânica Aplicada, Área
de Botânica, Departamento de Biologia, Universidade Federal Rural de
Pernambuco. Doutorando em Botânica.
Sandra Maria Andrade de Sá - Farmacêutica da Vigilância Sanitária de Camaragibe.
Especialista em Planejamento e Gestão de Serviços Farmacêuticos. Mestre em
Ciências Farmacêuticas.
Ulysses Paulino de Albuquerque - Professor adjunto. Laboratório de Etnobotânica
Aplicada, Área de Botânica, Departamento de Biologia, Universidade Federal
Rural de Pernambuco.
Valdeline Atanázio da Silva - Pesquisadora. Departamento de Botânica,
Universidade Federal de Alagoas. Doutora em Biologia Vegetal.
9Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Exorcizando termos em etnobiologia e etnoecologia.
Ângelo Giuseppe Chaves Alves & Ulysses Paulino de Albuquerque
“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”.
Etnoconservação e catolicismo popular no Brasil.
José Geraldo W. Marques
Prescrições zooterápicas indígenas brasileiras nas obras de
Guilherme Piso (1611-1678).
Argus Vasconcelos de Almeida
Uso do conhecimento tradicional na identificação de indicadores de
mudanças ecológicas nos ecossistemas aquáticos da região lacustre de
Penalva, Área de Proteção Ambiental da Baixada Maranhense – I.
Peixes. Izabel Cristina da Silva Almeida & Cláudio Urbano B.
Pinheiro
A Fragilidade das técnicas quantitativas usadas nos estudos
Etnobotânicos. Valdeline Atanázio da Silva
Testando a fidedignidade das informações populares sobre o uso de
plantas medicinais no semi-árido: implicações metodológicas.
Julio Marcelino Monteiro, Ulysses Paulino de Albuquerque, Ernani
Machado Freitas Lins-Neto, Elcida Lima Araújo & Elba Lucia
Cavalcanti de Amorim
A investigação de plantas medicinais a partir da etnofarmacologia.
Eliana Rodrigues, Perla Carvalho Romanus, Melina Giorgetti &
Rafaela Denise Otsuka
Usos populares de plantas medicinais – Um estudo com pacientes do
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco.
Sandra Maria Andrade de Sá, Cecília de Fátima Castelo Branco
Rangel de Almeida, Elba Lúcia Cavalcanti de Amorim, Cláudia
Sampaio de Andrade Lima & Ulysses Paulino de Albuquerque.
Impactos de uso de recursos de ecossistemas brasileiros. Caso de
estudo: Estação Ecológica de São Carlos, SP.
Ana Lícia Patriota Feliciano
SUMÁRIO
11
25
45
61
81
91
107
121
147
1 0 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Os usos medicinais da vegetação lenhosa das margens do Riacho do
Navio, Floresta, Pernambuco.
José Serafim Feitosa Ferraz, Isabelle Maria Jacqueline Meunier &
Ulysses Paulino de Albuquerque
A flor chegou, chuva avisou: metereologia popular no semi-árido
paraibano. Reinaldo Farias Paiva de Lucena, Helder Farias Pereira
de Araújo, José da Silva Mourão & Ulysses Paulino de Albuquerque
Etnoecologia de Manguezais.
Alberto K. Nishida
Carcinicultura x Populações Extrativistas.
Conselho Pastoral dos Pescadores
159
171
183
195
1 1Exorcizando termos em etnobiologia e etnoecologia.
Exorcizando termos em
etnobiologia e etnoecologia
Capítulo 1
Ângelo Giuseppe Chaves Alves
Ulysses Paulino de Albuquerque
1 2 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
1 3Exorcizando termos em etnobiologia e etnoecologia.
1. “Etno” o quê?
A popularização e a valorização crescentes das pesquisas
etnobiológicas e etnoecológicas têm provocado, a seu turno, um movimento
paralelo de verdadeira “inflação” da literatura onde a partícula “etno” surge
agregada aos campos de conhecimento previamente estabelecidos. Se, por um
lado, isso revela uma aparente aceitação das abordagens centradas nos
conhecimentos ditos “tradicionais”, por outro lado leva a um amálgama de
termos precariamente definidos. Além disso, alguns termos de uso consagrado
entre nós, etnobiólogos e etnoecólogos, são do mesmo modo confusos e, não
raro, ambíguos.
Sem sombra de dúvidas, expressões como “conhecimento tradicional”,
“comunidades locais”, estão tão bem incorporadas ao nosso discurso, por
força do hábito, que falta uma avaliação crítica e uma explicação precisa sobre
o entendimento que temos das palavras que empregamos em nossas publicações,
bem como de suas implicações éticas e ideológicas. Essa problemática,
epistemológica e conceitual, já havia sido apontada por McClatchey (2005), no
seu texto “exorcizing misleading terms from ethnobotany”, no qual nos
inspiramos para nomear este capítulo. Neste texto, a nossa abordagem partirá
exatamente dessas questões, num esforço de contribuir para orientar a discussão
terminológica entre os etnobiólogos e etnoecólogos brasileiros.
2. A etnociência
A chamada “nova etnografia”, “etnociência” ou ainda “etnografia
semântica” surgiu a partir de meados do século XX, propondo uma nova
abordagem antropológica, por meio da qual as culturas deixassem de ser vistas
como conjuntos de artefatos e comportamentos e passassem a ser consideradas
como sistemas de conhecimentos ou de aptidões mentais, tais como revelados
pelas estruturas lingüísticas. Os etnocientistas consideravam o saber como um
conjunto de aptidões possíveis de ser transmitidas entre pessoas e pretendiam
descobrir os princípios que organizavam as culturas e determinar até que ponto
eles seriam universais (Brown 1999).
Conforme resumiu Sturtevant (1964), o prefixo “etno” adquiriu, com
a etnociência, um sentido diferente, passando a referir-se ao “sistema de
conhecimento e cognição característico de uma determinada cultura”. Para
ele, “uma cultura congrega todas as classificações populares características
de uma sociedade, ou seja, toda a etnociência daquela sociedade, seus
modos particulares de classificar seu universo material e social”.
Exemplificando a visão dos etnocientistas de seu tempo, considerou que
1 4 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
“etno-história é a concepção compartilhada por membros de uma dada
cultura sobre eventos passados, ao invés (como seria mais comum) de ser a
historia (em nossos termos) de ‘grupos étnicos’; etnobotânica é uma
concepção cultural específica sobre o mundo vegetal, ao invés (como
também seria mais comum) de ser uma descrição e usos das plantas
organizada com base na nossa própria taxonomia binominal”. Essa idéia
implica em entender a etnozoologia, por exemplo, como os “conhecimentos
zoológicos” de uma cultura diferente daquela à qual pertence o pesquisador.
Todavia, uma interpretação mais aceita,recentemente, é que o procedimento
etnocientífico, deve ser visto como o procedimento científico que busca
descrever e analisar esses discursos e conhecimentos, estabelecendo,
eventualmente, comparações e articulações com o saber praticado e aceito
nos meios acadêmicos. A definição de Marques (2001) para etnoecologia é
exemplar neste sentido: “...o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar
que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças), sentimentos e
comportamentos que intermediam as interações entre as populações humanas
que os possuem e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem,
bem como os impactos ambientais daí decorrentes” [grifo nosso].
A etnociência perdeu importância relativa a partir do final dos anos
1960, criticada por antropólogos materialistas (Harris 1968) e
interpretativistas (Geertz 1973), mas a partir de meados dos anos 1980, tomou
outro impulso, com vários autores propondo adaptações, aplicações e
implicações, tais como Ribeiro (1986), Posey & Overall (1990), Toledo (1991,
1992), Warren et al. (1995), Marques (1995; 2001), Nazarea (1999) e Berkes
(1999), entre outros. Embora a etnociência tenha perdido apoio enquanto
teoria da cultura e/ou do conhecimento, seus métodos clássicos (ou
adaptações deles) continuam fornecendo modelos e representações
formalmente testáveis de alguns domínios do conhecimento e do
comportamento humano. Assim, o arcabouço metodológico etnocientífico
continua inspirando pesquisas e intervenções relacionadas às interfaces
da antropologia com as ciências da natureza, bem como às ligações entre
diversidade ecológica e cultural (Furbee 1989, 2002). Nos últimos anos, é
possível observar nas abordagens de diferentes pesquisadores (em especial
nos etnoecólogos) uma verdadeira mudança da perspectiva clássica da
etnociência (estudo dos conhecimentos e habilidades do “outro” em
diferentes domínios), para estender o campo de investigação para a nossa
própria sociedade (não apenas as sociedades designadas como “exóticas”,
“indígenas”, “tradicionais”), bem como encarando o conhecimento
“tradicional” não apenas como objeto de investigação, mas como
1 5Exorcizando termos em etnobiologia e etnoecologia.
conhecimento legítimo e cooperativo. Essa foi uma gigantesca mudança
que passou a valorizar, por exemplo, a experiência das comunidades
indígenas e quilombolas, incorporando-a como corolário nas agendas e
políticas governamentais. Todavia, essa valorização não acompanhou o
incentivo à produção de conhecimento científico sobre esses “saberes” e
“experiências”.
3. Gestação de “novas disciplinas”
Expressões do tipo etno+ciência são às vezes substituídas ou
acompanhadas, na literatura, por termos que qualificam os conhecimentos
(entre outros aspectos) característicos das populações pesquisadas, tais
como: local, indígena, tribal, popular, do povo, “folk” (que também se usa sem
tradução no Brasil), autóctone, tradicional, vernáculo, prático, coletivo,
situado, camponês, informal, nativo, rural, cotidiano, culturalmente específico,
étnico, oral, comunitário, endógeno, sustentável, comum, saber-fazer, entre
outros. Por exemplo, pode-se entender etnopedologia como “conhecimento
indígena sobre solos” (Pawluk 1992) “conhecimento das populações locais
sobre solos” (Barrera-Bassols & Zinck 2003a), ou ainda “conhecimento das
populações locais sobre solos e seu manejo” (Posey 2000). No nosso entender,
são incompletas essas definições que dão ênfase apenas ao conhecimento
possuído pelas populações locais (indígenas, caboclos, etc.), sem explicitar
as tentativas de comparar e articular esse conhecimento com aquele que é
produzido e aceito pelas instituições científicas formais. Campos como a
etnopedologia e etnobotânica exprimem o nosso olhar sobre as práticas e
conhecimentos de determinados povos, dentro de domínios específicos de
saber. Pode-se advogar, por outro lado, a idéia de que o termo “conhecimento
etnobotânico” aplica-se ao conhecimento produzido apenas pelo pesquisador
com instrução formal. Porém, se estamos usando nosso conhecimento para
estudar o do outro, então trata-se de uma conjunção de experiências, uma via
de sentido duplo (ou múltiplo!). Nesse sentido, implica dizer, para efeito de
análise, que quando usamos as expressões etnobotânica, etnopedologia,
estamos afirmando que o povo estudado possui um sistema de conhecimento
que pode ser, em maior ou menor grau, análogo ao nosso. Entretanto, podem
ocorrer discrepâncias em diversos campos da pesquisa etnocientífica, como
é o caso da etnoentomologia, que não se restringe apenas aos insetos, na
forma como são definidos pela classificação zoológica formal, uma vez que,
para muitas sociedades, o termo “inseto” inclui certos organismos que não
são classificados formalmente como tal (Posey 1987). Do mesmo modo algumas
populações rurais não compartilham a concepção academicamente aceita de
1 6 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
“solo”, embora possam eventualmente reconhecer diversos materiais ao longo
do perfil de solo (Ollier et al. 1971; Alves et al. 2005).
O recorte disciplinar no campo etnocientífico é problemático e
instigante, pois as diversas abordagens como etnobotânica, etnozoologia,
etnoecologia, etnopedologia, etc., não são, necessariamente, excludentes
entre si. A sobreposição de domínios conceituais é clara em alguns casos. O
termo etnofarmacobotânica, por exemplo, tem aparecido com freqüência na
literatura tendo sido referido como “um desdobramento da etnobotânica e
estuda os remédios vegetais, envolvendo sempre o objetivo de corrigir
problemas de saúde, tanto de ordem física, como mental ou espiritual,
conforme seja a cosmovisão médica do grupo pesquisado, nos diferentes
contextos sócio-culturais” (Camargo 2003). Por esse entendimento, tal
definição do campo poderia ser facilmente enquadrada dentro das clássicas
abordagens da própria etnobotânica ou da etnofarmacologia, dependendo
da análise pretendida. A etnopedologia, por sua vez, foi considerada por
Alves & Marques (2005) como “um dos possíveis focos da abordagem
etnoecológica”. Analisando o contexto histórico e epistemológico que
envolve o estudo etnocientífico dos solos, esses autores enfatizaram que a
etnopedologia não é uma “nova disciplina”. Por uma questão de cautela e
de rigor, entendemos que a gestação de novas denominações para
determinados campos de conhecimento deve vir acompanhada de uma
reflexão teórica e epistemológica sobre o objeto de investigação, tendo-se
o cuidado de oferecer, ao menos, uma conceituação provisória do termo
empregado. Do contrário, presenciaremos uma “inflação” terminológica que
pode contribuir para gerar equívocos e desenvolver um discurso acrítico. A
própria noção de “disciplina” também é algo a ser considerado com cuidado,
para que não se repita, no meio etnocientífico, a excessiva e rígida divisão
do saber em áreas estanques. Nesse sentido, Marques (2001) manifestou a
necessidade de “reconhecimento da etnoecologia como um campo de
cruzamento de saberes (no mínimo uma interdisciplina e não uma
disciplina a mais)”.
4. O saber do “outro”
Para Antweiler (1998) cada um dos termos usados para designar
o saber do “outro” tem suas implicações, na medida em que enfatizam
determinado aspecto das populações envolvidas nas pesquisas. A
expressão “saber camponês”, por exemplo, assinala um caráter oposto
ao saber da elite e chama atenção para a situação de dependência e
subordinação em que vivem os camponeses. “Saber indígena”, por sua
1 7Exorcizando termos em etnobiologia e etnoecologia.
vez, em contraste com o saber das sociedades nacionais envolventes,
pode denotar uma intenção política de promover grupos étnicos
minoritários, ameaçados pela marginalização e destruição de suas
culturas e habitats. Não se trata, portanto de termos meramente
descritivos, pois têm conotação ideológica. Neste contexto, o termo
“saber tradicional” é problemático, representauma visão estática do
conhecimento, com pouca possibilidade de mudança (Antweiler 1998).
Há que se considerar, ainda, algumas demonstrações de intolerância que
ocorrem no meio acadêmico, em relação a descobertas e métodos de
coleta de dados que sejam diferentes daqueles institucionalmente
aceitos, de modo a contrariar uma das principais características da ciência
ocidental, que é a possibilidade de negar ou de refutar o saber pré-
existente. Neste sentido, Agrawal (1995a,b) afirmou que é difícil (e talvez
inútil) tentar estabelecer uma diferenciação nítida entre o conhecimento
“indígena ou tradicional” e o “científico ou ocidental”, pois ambos os
tipos compartilham características comuns, ao mesmo tempo em que
apresentam muitas diferenças internas, de modo que faria mais sentido
referir-se a múltiplos domínios e tipos de conhecimento, com diferentes
lógicas e epistemologias. Alternativamente a expressão “saber
tradicional”, vários pesquisadores adotaram o termo “conhecimento
local”. Este, para Winkler Prins (1999) “baseia-se e se reproduz pela
experiência, diferentemente do científico, que se desenvolve por
experimentação controlada e se reproduz dentro de instituições formais”.
Ainda que essas diferenças sejam eventualmente válidas, não se deve
perder de vista que o conhecimento local não é um simples contraponto
do conhecimento “científico” (Oudwater & Martin 2003), pois também
inclui conhecimento cultural e técnico, e está interligado às habilidades
sociais e políticas dos povos. Deste modo, o adjetivo “local” satisfaz a
necessidade de levar em conta o ambiente local e a participação em
estratégias de desenvolvimento, valorizando as soluções técnicas locais,
as habilidades e as instituições locais, bem como os esforços para
conferir maior visibilidade e articular os problemas vividos por grupos
sociais minoritários e marginalizados (Antweiler 1998). Por outro lado,
em tal conceito pode estar implícita a idéia de que as pessoas conhecem
apenas sobre um meio muito restrito que habitam, e que esse saber não
tem aplicação para além de suas fronteiras (Santos et al. 2005). A tabela
1 lista a diversidade de termos para qualificar o conhecimento das
populações estudadas e o seu significado.
1 8 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Recentemente, tem aparecido na literatura o termo “etnoconhecimento”
como possível equivalente para “saber local”, “saber tradicional” ou
“conhecimento tradicional”. Este termo surge como conhecimento do
“observado”, em oposição ao do “observador”. Nessa perspectiva, dependendo
do referencial, é uma via de duplo sentido. Aparentemente, o termo
“etnoconhecimento” tem forte conteúdo generalista, buscando eliminar as
ambigüidades inerentes aos termos “conhecimento local” e “conhecimento
tradicional”.
Além dos termos já discutidos, chamamos atenção para a expressão
“comunidade” (como em “comunidade tradicional”, ou comunidade local”),
Tabela 1. Diversidade de termos para conhecimento local (e suas variações) e
as várias conotações. Adaptado a partir de uma compilação apresentada por
Antweiler (1998).
1 9Exorcizando termos em etnobiologia e etnoecologia.
salientando que se deve evitar o risco de carregar, implicitamente, a noção de
que esses grupos sociais sejam entidades naturalmente coesas, harmônicas e
estáticas, ignorando os conflitos econômicos, geopolíticos, culturais e
administrativos que permeiam essas sociedades.
5. Populações tradicionais
Considerando as implicações ideológicas e éticas envolvidas na
terminologia etnoecológica e etnobiológica, bem como a ambigüidade inerente
a determinadas expressões, é necessário que os pesquisadores explicitem em
suas publicações a sua posição e o contexto de aplicação dos termos usados.
O próprio termo “populações tradicionais”, apesar de ser bastante criticado, foi
incorporado, inclusive, à legislação ambiental brasileira, através da lei número
9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (www.mma.gov.br/port/sbf/dap/doc/snuc.pdf). Destaca-se, entre
os diversos objetivos desse Sistema (capítulo 2, artigo 4º da lei), o seguinte:
“proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações
tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e
promovendo-as social e economicamente” [grifo nosso]. O documento define
os tipos de unidade de conservação, as quais diferem entre si pela forma de
inserção das populações tradicionais, entre outros aspectos. Veja-se, por
exemplo os casos da Floresta Nacional e da Reserva de Desenvolvimento
Sustentável, conforme o texto da lei:
“Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações
tradicionais que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o
disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade” (Artigo 17, grifo
nosso).
“A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga
populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis
de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e
adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel
fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade
biológica” (Artigo 20, grifo nosso).
Uma vez que está incorporado à lei, o termo “tradicional” acaba sendo
usado em muitos outros documentos, para facilitar a comunicação entre os
diversos agentes de pesquisa desenvolvimento, mas isto não quer dizer que
devamos perder de vista a necessidade de ter uma visão critica sobre a questão.
2 0 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Também não se pode ignorar aqueles casos em que as próprias populações
estudadas vêem aspectos positivos na denominação “tradicional”, como
esclareceu Berkes (1999), em relação aos Inuit (Esquimó). Deste modo, o
importante não é apenas como nós vamos denominar os povos estudados, mas
também os esforços que eles mesmos exercem para se autodenominar e
autodeterminar.
Uma das definições de sociedades tradicionais, que mais tem influenciado
pesquisadores e gestores públicos é a apresentada por Diegues & Arruda (2001)
como sendo “grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que
reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada,
com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção
refere-se tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional,
que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos
ecológicos específicos”. E mais ainda: “exemplos empíricos de populações
tradicionais são as comunidades caiçaras, os sitiantes e roceiros, comunidades
quilombolas, comunidades ribeirinhas, os pescadores artesanais, os grupos
extrativistas e indígenas. Exemplos empíricos de populações não-tradicionais
são os fazendeiros, veranistas, comerciantes, servidores públicos, empresários,
empregados, donos de empresas de beneficiamento de palmito ou outros recursos
madeireiros”. Na verdade, tal delimitação tem um caráter mais operacional do
que teórico, tendo em vista as ambigüidades e a forte simplificação, pois tende a
ignorar a complexidade e a dinâmica própria em que se desenvolve cada grupo
humano. Por exemplo, comunidades rurais do semi-árido nordestino têm traços
muito particulares, mas se articulam em maior ou menor grau a sociedade
abrangente, sendo o isolamento mais uma exceção do que uma regra. A questão
do auto-reconhecimento também é complexa. Embora, para alguns, o
reconhecimento de uma cultura como particular é um fator determinante para
definir-se como “tradicional”, alguns grupos humanos (como indígenas da região
nordeste) lutam pela reconstrução de sua identidade e coesão social como grupos
diferenciados, atendendo a apelos de ordem política e ideológica. Nesse cenário,
muitos dos grupos indígenas, por exemplo, que já estabeleceram fortes laços de
dependência em relação à sociedade abrangente, e estão engajadosna luta pelo
território, forçaram-se a reinventarem suas práticas e relações com a natureza.
Uma situação emblemática é a revitalização e/ou incorporação, entre grupos
indígenas nordestinos, do culto da jurema como uma forma de legitimação da
condição de “ser índio”.
6. “Se correr o bicho pega, se ficar...”
Diante do quadro que delineamos, fica claro que as questões
2 1Exorcizando termos em etnobiologia e etnoecologia.
terminológicas na pesquisa etnobiológica e etnoecológica ainda se encontram
numa fase de questionamento e construção. Apesar disso, as dificuldades aqui
apresentadas podem ser contornadas com a adoção de dois princípios
operacionais: o da clareza e o da especificidade.
1. Criar uma “etno+ciência” implica em admitir a existência, na cultura estudada,
de um equivalente para um determinado campo de conhecimento acadêmico
previamente institucionalizado. Sugerimos evitar a inflação terminológica,
em favor da simplicidade. Caso seja necessário gestar uma “nova” disciplina
ou campo de conhecimento, que a sua “criação” seja acompanhada de uma
reflexão teórica e epistemológica sobre os seus limites e objeto de análise.
A literatura etnocientífica é vasta e muitos, sem proceder uma detalhada
revisão bibliográfica, podem incorrer em equívocos ou tornar-se repetitivos.
2. Assumir, claramente, os termos empregados nos textos. Isto implica em um
posicionamento do autor sobre o seu entendimento dos termos que utiliza.
3. Por fim, quando se referir à população humana estudada, ser específico,
mesmo que isso implique em mais palavras. Por exemplo: preferir
“população de ceramistas artesanais do semi-árido paraibano” a “população
local ou tradicional do semi-árido paraibano”. Além disso, acompanhando
o termo, uma descrição detalhada do grupo é necessária para permitir ao
leitor compor um quadro mental da realidade estudada pelo pesquisador.
Ao optar pelos termos “local” ou “tradicional”, ainda assim explicações
são necessárias, atentando para implicações ideológicas e políticas que se
podem desencadear a partir das publicações.
Referências Bibliográficas
Agrawal, A. 1995a. Dismantling the divide between indigenous and scientific
knowledge. Development and Change 26: 413-439.
Agrawal, A. 1995b. Indigenous and scientific knowledge. Indigenous Knowledge
and Development Monitor 3(3): 30-38.
Alves, A. G. C. & Marques, J. G. W. 2005. Etnopedologia: uma nova disciplina?
Tópicos em Ciência do Solo 4: 321-344.
Alves, A. G. C.; Marques, J. G. W.; Silva, I. F.; Queiroz, S. B.; Ribeiro, M. R. 2005.
Caracterização Etnopedológica de Planossolos Utilizados em Cerâmica
Artesanal no Agreste Paraibano. Revista Brasileira de Ciência do Solo 9(3):
379-388.
Antweiler, C. 1998. Local knowledge and local knowing: an anthropological anlaysis
of contested ‘cultural products’ in the context of development. Anthropos
93: 469-494.
Barrera Bassols, N. & Zinck, J.A. 2003. Ethnopedology: a worldwide view on the
2 2 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
soil knowledge of local people. In: Winkler Prins, A.M.G.A. & Sandor, J.A.,
eds. Ethnopedology. Geoderma 111: 171-195.
Berkes, F. 1999. Sacred ecology: traditional ecological knowledge and resource
management. Philadelphia, Taylor & Francis, 209 p.
Brown, P. 1999. Anthropologie Cognitive. Anthropologie Soc. 23: 91-120.
Camargo, M.T.L.A. 2003. Etnofarmacobotânica – conceituação e metodologia de
pesquisa. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP.
Diegues, A.C. & Arruda, R.S.V. (orgs). 2001. Saberes tradicionais e biodiversidade
no Brasil. Biodiversidade 4. Ministério do Meio Ambiente, Universidade de
São Paulo.
Furbee, N.L. 1989. A Folk expert system: soils classification in the Colca Valley,
Peru. Anthropological Quarterly 62: 83-102.
Furbee, N.L. 2002. Combinando el enfoque conductista y cognitivo en la
investigacion etnopedologica: restricciones en la construccion social de la
realidad. In Albuquerque, U.P.; Alves, A.G.C.; Silva, A.C.B. & Silva, V.A.(eds.).
Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia, Recife, Sociedade Brasileira de
Etnobiologia e Etnoecologia, 73-86.
Geertz, C. 1973. The interpretation of cultures. Nova Iorque, Basic Books.
Harris, M. 1968. The rise of anthropological theory. Nova Iorque, Thomas Crowell.
Marques, J.G.W. 2001. Pescando pescadores: ciência e etnociência em uma
perspectiva ecológica. 2. ed., São Paulo, NUPAUB/Fundação Ford, 304 p.
Marques, J.G.W. 1995. Pescando pescadores: uma etnoecologia abrangente no
baixo São Francisco. São Paulo, NUPAUB-USP, 304p.
McClatchey, W.C. Exorcizing misleading terms from ethnobotany. Ethnobotany
Research & Applications 3: 1-4, 2005.
Nazarea, V.D. (ed.) 1999. Ethnoecology. Tucson, University of Arizona, 299 p.
Ollier, C.D.; Drover, D.P. & Godelier, M. 1971. Soil knowledge amongst the Baruya
of Wonenara, New Guinea. Oceania 42:33-41.
Oudwater, N. & Martin, A. 2003. Methods and issues in exploring local knowledge
of soils. In: Winkler-Prins, A.M.G.A. & Sandor, J. A. (Eds). Ethnopedology.
Geoderma 111(3-4): 387-401.
Pawluk, R.R.; Sandor, J.A. & Tabor, J.A. 1992. The role of indigenous soil
knowledge in agricultural development. J. Soil Water Conserv. 47:289-302.
Posey, D.A. & Overall, W.L. (orgs.). 1990. Ethnobiology: implications and
applications. In: INTERNATIONAL CONGRESS OF ETHNOBIOLOGY, 1.,
Belém, 1988, Proceedings... Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 2v.
Posey, D.A. 2000. Introductory statements. In: Barrera Bassols, N. & Zinck J.A.,
eds. Ethnopedology in a worldwide perspective. Enschede, International
Institute for Aerospace and Earth Sciences (ITC).
Posey, D.A. 1987. Temas e inquirições em etnoentomologia: algumas sugestões
quanto à geração de hipóteses. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Série Antropológica 3(2): 99-134.
2 3Exorcizando termos em etnobiologia e etnoecologia.
Ribeiro, B. 1986. Suma Etnológica Brasileira. Vol.1, Etnobiologia. Petrópolis,
Vozes.
Santos, B.S.; Meneses, M.P. & Nunes, J.A. 2005. Introdução: Para ampliar o
canône da ciencia: a diversidade epistemológica do mundo. Pp. 21-101. In:
Santos, B.S. (org.). Semear outras práticas: os caminhos da biodiversidade
e dos conhecimentos rivais. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
Souza, M. R. 2004. Etnoconhecimento caiçara e uso de recursos pesqueiros por
pescadores artesanais e esportivos no Vale do Ribeira. Dissertação (Mestrado
em Ecologia de Agroecossistemas). Piracicaba, ESALQ/USP, 102 p. Disponível
em www.teses.usp.br/teses/disponiveis/91/91131/tde-13092004-143414
Sturtevant, W.C. 1964. Studies in ethnoscience. In: Romney, A.K. & D’Andrade,
R.G. Transcultural Studies in Cognition. American Anthropologist 66(3): 99-
131.
Toledo, V.M. 1991. El juego de la supervivencia: un manual para la investigación
etnoecológica en Latinoamérica. Berkeley, Consórcio Latinoamericano sobre
Agroecología y Desarrollo.75 p.
Toledo, V.M. 1992. What is Ethnoecology? Origins, scope and implications of a
rising discipline. Etnoecológica 1(1): 5-21.
Warren, D.M.; Slikkerveer, L.J. & Brokensha, D. 1995. The cultural dimensions of
development: indigenous knowledge systems. Londres, Intermediate
Technology Publications, 582 p.
Winkler-Prins, A.M.G.A. 1999. Local soil knowledge: a tool for sustainable land
management. Society and Natural Resources 12: 151-161.
2 4 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
2 5“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
“É pecado matar a esperança, mas todo
mundo quer matar o sariguê”.
Etnoconservação e catolicismo
popular no Brasil
José Geraldo W. Marques
Capítulo 2
2 6 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
2 7“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
“- Sr. Corregedor, Vossa Excelência já deve ter notado
que o Catolicismo Sertanejo tem suas leis e seus
mandamentos próprios!”
Ariano Suassuna in “O Romance d’A Pedra do
Reino”“Passarinho não se pode matar, porque pode
provocar a ira de Deus.”
Uma sertaneja baiana
A eficácia de uma ética tradicional e de ensinamentos religiosos na
conservação tem sido abundantemente documentada (Anderson, 1996).
Segundo este autor, sociedades tradicionais usam a religião para sancionar
suas estratégias de manejo de recursos e isto aparentemente é uma estratégia
bem-sucedida. Será que isto também aconteceria no catolicismo popular
brasileiro (CPB), “uma tradição judaico-cristã à moda da casa”?
Comecemos com um dos seus pecados, “o de matar a esperança”.
As esperanças (Orthoptera, Tettigoniidae) são insetos que ocupam um
espaço privilegiado na mente popularmente catolicizada de brasileiros, fato
especialmente documentado para os estados de Alagoas e Bahia. Neste estado,
obtivemos o relato seguinte:
“Meu avô contou a seguinte estória: diz que a
esperança foi assim: pois quando ela tava numa árvore
olhando Nossa Senhora, quando ela deu a dor pra ter
menino, ela tava doida pra vim visitar, mas com medo
do galo comer ela. Ela ficou de lá de cima, com o olho
cumprido, pulando lá de cima de alegria.”.
No sertão alagoano, a esperança é tida como alvissareira, mas isto
depende da sua coloração: verde, traz boa sorte e então alegra-se com a sua
presença; com “a boca preta”, traz azar e sentimentos negativos são gerados
por sua presença. Na Bahia, embora haja quem afirme que “nenhuma esperança
é ruim”, há também uma diferenciação sentimental quanto à coloração, que de
um modo geral assemelha-se ao que ocorre em Alagoas.
De um modo geral, porém, refere-se à esperança (implicitamente sem
coloração preta), em ambos os estados, como sendo “abençoada” (“a esperança
é abençoada: se ela tava rezando pra Nossa Senhora ter São Deus Menino, pra
2 8 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
ela ter ele em paz!...”, disse-se na Bahia). A preservação da sua vida é sempre
enfatizada e explicita-se um tabu do tipo “não matarás” muito forte: “ela é um
bichinho que ninguém mata, pois quem mata, perde a esperança” (em outra
expressão encontrada na Bahia). Ela integra-se, etnobiblicamente, a um vasto
elenco de animais cobertos pela maior abrangência que a mente catolicizada
popular dá ao bíblico mandamento do “não matarás” (Tab.1). Em termos do
Testamento popularizado, o ato consiste em um “grande pecado”. Com isto, é
possível hipotetisar que todo um conjunto de espécies de tetigonídeos possa
estar sendo biologicamente conservado através de mecanismos culturais, ou
seja, etnobiologicamente conservado, ou etnoconservado.
(2000). Aqui, o termo é empregado em acepção próxima à que Smith &
Wishnie (2000) usaram para definir conservação em sociedades de pequena
escala, ou seja, referindo-se a quaisquer ações ou práticas que previnam ou
mitiguem: a) a depleção de recursos, b) a extirpação de espécies, c) a degradação
de habitats.
Dentre as práticas etnoconservacionistas, incluir-se-iam tabus sociais,
com especial saliência as regras proibitivas de se comer determinados alimentos
constituídos por ou provenientes de determinadas espécies (Colding & Folke,
2001; Begossi et al., 2004). A proibição de se pescar em determinados dias
santos talvez também possa contribuir para reduzir a intensidade da coleta,
principalmente se as espécies estiverem em períodos críticos da sua estória de
vida. Com relação ao tabu piscatório de não se pescar no dia de Santo Antônio
na praia da Redinha – RN (Nomura, 1996a), por exemplo, deve-se levar em
consideração que este é comemorado no dia 13 de junho e provavelmente
corresponde, localmente, a período de migração genética das curimãs. Com
isto, pode-se considerar a possibilidade de uma função regulamentária
etnoconservacionista para o meme.
Souto (2004) encontrou exemplos dessas “pausas santas” nos
manguezais de Acupe (BA), onde, segundo depoentes, a maioria das pessoas
vivenciava um calendário pontuado por dias santificados, nos quais a pesca
ou a mariscagem poderiam implicar “castigo de Deus”. O medo deste tipo de
castigo, que levaria os amedrontados à observância deste “artigo” da
consuetudinária “lei geral do respeito” vigente em comunidades pesqueiras do
Brasil, talvez se constitua em motor emocional regulatório de recursos
pesqueiros.
Tabus vêm sendo abordados (e.g., Colding & Folke, 1997) como regras
sociais não escritas que regulariam o comportamento humano e como instituições
informais que limitariam e definiriam o uso de recursos em ecossistemas, o que,
em determinados contextos, poderia conferir-lhe um papel conservacionista.
2 9“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
Tabus sociais, assim, seriam sistemas “invisíveis” de manejo de recursos locais
e de conservação biológica. Colding & Folke (2001) ao proporem isto,
Tabela 1. Tabus sociais encontrados em populações praticantes do catolicismo
popular brasileiro relacionados com a proibição de comer, matar, maltratar, tocar
e prender animais (regras idealizadas na forma levítica).
3 0 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Continuação Tabela 1
3 1“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
consideraram seis categorias para enquadrá-los:
1- Tabus segmentares (regulariam a retirada de recursos)
2- Tabus temporários (regulariam o acesso aos recursos no tempo)
3- Tabus metódicos (regulariam os métodos de coleta dos recursos)
4- Tabus relacionados com histórias de vida (regulariam a retirada de
indivíduos em estágios vulneráveis na história de vida da espécie)
5- Tabus espécie-específicos (evitariam ou proibiriam qualquer uso
de uma espécie em particular e das suas populações)
6- Tabus relacionados com habitats (restringiriam o acesso e o uso
de recursos no tempo e no espaço)
No CPB, a proibição de comer carne nos períodos de abstinência
relacionados com o calendário oficial católico e a proibição de se pegar ninhos
de aves no período da Quaresma seriam exemplos de tabus temporários; a
proteção total às lavandeiras seria um exemplo de tabu espécie-específico; a
proibição de se caçar (e.g., nos “lugares dos encantados”) em determinados
espaços seria um exemplo de tabu relacionado com hábitats.
O acréscimo de uma sétima categoria às seis acima referidas seria
justificável. Poderia ser chamada de tabu táxon-protetor e diferiria dos tabus
espécie-específicos por protegerem mais de uma espécie, operando em nível
supra-específico. Determinados táxons, total ou parcialmente, poderiam ser
protegidos por tabus guarda-chuvas, que tanto poderiam proteger espécies-
chaves quanto funcionarem eles mesmos como tabus-chaves, ou seja, a sua
presença, indiretamente, repercutindo sobre populações de outros táxons. O
tabu de “não matar esperanças” poderia proteger membros de mais de um
gênero da família Tettigoniidae; o tabu de “não matar o cavalo-do-cão” poderia
proteger, pelo menos idealmente, todas as espécies de Pompilidae ocorrentes
na área de vigência e obediência do meme (Dawkins, 1979).
Particular atenção deve ser dada à função regulamentária de
componentes ecossistêmicos, notadamente os utilizados como recursos animais,
que seria exercida por seres mitológicos, com especial saliência para os que
“Deus botô pra protegê tudo que tá na mata” - conforme expressão de uma
moradora do município pernambucano de Gravatá sobre a “Cumade Fulôzinha”
(Cardoso, 2001). Esta, um “componente sobrenatural” de ecossistemas da
Mata Atlântica de Pernambuco, Alagoas e Paraíba, é vigilante e eficiente protetora
dos animais, permitindo alianças que resultam em reciprocidades, as pessoas
presenteando-a (e.g., com papas e fumo) e ela ofertando-lhes caça. Ai daquele
que infringir as suas regras de respeito e poupança dos animais! Seus castigos
são severos: desde o caçador ficar perdido na mata até o açoitamentos de
animais domésticos (“vimo ela dando uma surra de cabelo no cachorro, num
3 2 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologiavimo caça nenhuma”: Cardoso, 2001) . No caso de animais caçados com o auxílio
de cães, como soe acontecer com os tatus - animais que por não terem boa
audição ou boa visão tornam-se suas presas fáceis – pode ser que esta crença
esteja a exercer alguma função protetora.
 Conforme bem o diz Hoefle (1995), que fez pesquisa em Belém do São
Francisco e Parnamirim (PE) e em Chorrochó (BA), “o catolicismo popular do
Sertão nunca passou pelo processo de desencantamento”. Suas características,
diz o autor, incluiriam elementos típicos do cristianismo animista pré-Reforma,
como “a crença em espíritos do mato”. Estes elementos animistas, componentes
da biodiversidade encantada dos ecossistemas nordestinos, viveriam em lugares
distantes da habitação humana e se constituiriam em mestres dos animais
silvestres. Encontrados raramente, sê-lo-iam em um contexto de caça, devendo
ser tratados com respeito e reciprocidade.
Em ecossistemas de manguezais, usuários podem acreditar em seres
com possíveis funções patentes e latentes de proteção de recursos. Um exemplo
do primeiro tipo é a Vó-do-Mangue, componente sobrenatural localmente
indubitável do manguezal de Maragogipe (BA). Ela castigaria, inclusive, quem
retirasse caranguejos em excesso. Um exemplo do segundo tipo é a Biatatá,
componente registrado por Souto (2004) como integrante das crenças de
pescadores e marisqueiras do manguezal de Acupe (BA). O medo após a sua
aparição na forma de bolas-de-fogo (fenômeno bioquimicamente interpretável:
Marques, 2001) desencadearia reações de evitação de pesca e/ou coleta.
Um ser mitológico potente (“Depois de Deus é o dono dos bichos”) foi
documentado por Araújo (1998) entre moradores da Reserva Extrativista do Alto
Juruá (AC): o Caboclo da Mata que, em certos dias, não permite a morte de
qualquer animal. No local, fala-se também no Pai da Mata, possivelmente uma
outra entidade que guarda e protege os bichos: não gosta de caçadores
profissionais, proibindo a caça em dias de domingo e nos dias santos do calendário
do catolicismo oficial.
É comum entre habitantes do meio rural ou de pequenas cidades na
Amazônia brasileira uma identificação com o catolicismo, praticado e acreditado
porém à sua maneira, um daqueles matizes regionais do catolicismo popular de
que fala Brandão (2004). Sobre religiosidade popular amazônica há um estudo
clássico, o de Eduardo Galvão (Galvão, 1978) feito na comunidade que ele
pseudonominou de Itá. Smith (1983) reconheceu o fato de que a cosmovisão
entre populações de caboclos por ele estudadas – e que se diziam nominalmente
católicos – havia uma firme crença em seres sobrenaturais, espíritos e monstros
que habitavam densamente a floresta e que influenciavam o seu dia-a-dia,
notadamente regulando as suas atividades piscatórias e venatórias, ajudando
3 3“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
assim a conservar a floresta e os peixes. O autor, partindo do descritivo para o
prescritivo, sugeriu que as crenças folclóricas fossem incluídas nos esforços
para a conservação da biodiversidade regional. Segundo ele, “ciência e lore
podem trabalhar lado-a-lado para reforçar os esforços conservacionistas na região,
uma vez que, em última instância, a sobrevivência de qualquer reserva depende
da sua aceitação pelas populações vizinhas”. Essencialmente, a sua proposta diz
que, como a localização e o tamanho de parques são usualmente determinados
apenas com bases econômicas e ecológicas, isto faz com que as populações
locais percebam tais decisões como intrusões tecnocráticas no seu modo-de-
vida tradicional. Se critérios culturais também forem incluídos, diz ele, as pessoas
muito provavelmente respeitarão os limites das reservas. Por isso, as populações
locais deveriam ser consultadas sobre a localização de lugares encantados, bem
como sobre os rumorosos sítios habitados pelos sobrenaturais e o seu lore
deveria ser incorporado nos planejamentos. Tal sugestão vale a pena ser
ponderada, uma vez que, segundo ele, a Amazônia já possui vários parques
sobrenaturais e estes bem que poderiam servir de base para os parques naturais
que venham a ser propostos com base em princípios participativos.
Em revisita recente ao catolicismo popular amalgamado com xamanismo
na Amazônia (Região do Salgado, PA), Maués (2005) afirma que nas crenças e
representações do caboclo amazônico, existe uma homologia e uma
complementaridade entre os santos (do hagiológio oficial) e os encantados
localmente concebidos. Estes, constituem uma densa população de seres
sobrenaturais que, embora um dia tenham sido humanos de carne-e-osso... se
encantaram! Santos e encantados são seres vigilantes que castigam: aos
encantados, em particular, cabe castigar os pecados contra o meio ambiente. Eles
recebem domínios especiais, cabendo-lhes prioritariamente: a floresta, os rios e
igarapés, a terra firme, a várzea, o manguezal e as praias. Suas sanções contra os
violadores das “leis ambientais” podem ser severas, incluindo doenças. Sua função
regulamentária de recursos e seu papel na conservação de estoques populacionais
é bem evidente no caso dos ecossistemas florestais habitados e protegidos por
dois encantados das matas muito respeitados e temidos: Anhanga e Curupira.
Nas palavras de Maués, são seres perigosos, que podem provocar mau-olhado
nas pessoas, ou “mundiá-las”, isto é, fazê-las perder-se na mata. Isto acontece
com os caçadores que cometem “abusos”, sobretudo os que têm o costume de
caçar persistentemente um só tipo de caça.
 Há evidências de que crenças codificadas em mitos narrados no
catolicismo popular brasileiro, inclusive nas “narrativas pias populares” segundo
a expressão de Xidieh (1993), podem, pelo menos potencial e teoricamente,
conferir proteção conservacionista a determinadas espécies. Tal é o que
3 4 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
acontece com tiranídeos chamados de lavadeiras ou lava(n)deiras, muito
especialmente com a espécie Fluvicola nengeta, o pássaro sagrado prototípico
do Nordeste brasileiro. Esta espécie, graças inclusive à crença que a sacraliza,
deve estar entre as espécies que correm menos risco de extinção no Brasil.
No que diz respeito às duas lava(n)deiras congenéricas (F. nengeta e
F. albiventer, que ocorrem conjuntamente no Nordeste), valeria a pena investigar
o efeito protetor dos memes campesinos e a influência destes na dinâmica das
suas populações. Aparentemente, elas estão multiplamente protegidas pelo
que se poderia chamar de um “tabu total”, pois “não se pode pegar”, “não se
pode criar”, “não se pode matar”, “não se pode comer”: são sacralizadas (“é um
pássaro sagrado”; “é um passarinho de Nossa Senhora”; “matá-la (“Deus
proibiu”) ofenderia Nossa Senhora”).
O papel etnoconservacionista do meme (“a lavandeira ajudou Nossa
Senhora a lavar a roupinha de Nosso Senhor” e suas variantes) é muito patente:
trata-se de uma ave sacralizada sobre a qual há registros e depoimentos que
demonstram a incidência de fortes tabus. Em certas ocasiões, por exemplo,
estando ela no rio, sobre as pedras, ruflando as asas, não poderia sequer ser
tocada, sendo o seu ninho também bastante respeitado pelas crianças durante
todo o ano - ao contrário do que aconteceria com os das outras aves que
receberiam proteção apenas durante o período da quaresma (Cascudo, 1984).
A quebra dos tabus, no entanto, pode supostamente trazer várias
conseqüências (Tab. 1) e a esse respeito o caso de se matar as lavandeiras
(aves) é bastante exemplar, pois as sanções podem ser: econômicas (a pessoa
não prospera e regride: “não passa de uma camisa”), médicas (“a pessoa perde
o juízo”), sociais (a pessoa perde prestígio: “não fica bem vista”) e meteorológicas
(“não chove”). No caso do Nordeste semi-árido sujeito a secas periódicas, a
crença nesta sanção pode ser um componente adicional no estoque de temores
acumulados pelo sertanejo acerca dos invernos falhos, ausentes outardios.
Crenças e práticas católicas populares no Brasil podem repercutir sobre
várias espécies de aves, além dos tiranídeos. Servem de exemplo os catartídeos
(urubus, dentre eles Coragyps atratus) e o caradrídeo conhecido como quero-
quero (Vanellus chilensis).
Os urubus são muito respeitados. Temerosos devem ficar os caçadores
pobres se vierem a matá-los, pois, conseqüentemente, poderão vir a ter a sua
arma - possivelmente única - inutilizada. Na realidade, o medo deve ser
compartilhado pelos caçadores de um modo em geral, uma vez que, se matarem
o catartídeo, suas vidas poderão tornar-se “atrasadas” e infelizes. Como se
sabe, os urubus, devido a uma forte tendência para o status trófico de carniceiros,
têm um papel importante na remoção de restos orgânicos, inclusive cadáveres,
3 5“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
e esse papel positivo poderá ser mantido pela manutenção dos seus estoques
populacionais, para o quê o tabu de não matá-los poderá contribuir. Pelo menos
na periferia de pequenos aglomerados urbanos nordestinos o papel ecológico
dos urubus é sobremaneira importante.
Quanto ao quero-quero (V. chilensis), também conhecido como tetéu,
o “não matarás” é reforçado pelo “não comerás”, o tabu trófico sendo mais
forte do que o tabu cinegético, pelo menos em localidades do estado da Bahia.
De acordo com Sick (1997), tratar-se-ia de uma das aves mais estimadas nas
fazendas, o que já fora também afirmado por Zenaide (1953) para o semi-árido
paraibano. Este, escreveu que “poucas aves são tão estimadas no interior
quanto o tetéo, esse valente guardião dos páteos das fazendas sertanejas”. Tal
estima deve-se ao fato de que, ao inserirem-se conjuntamente com a ave na
trama informacional ecossistêmica, os territorialistas proprietários de terra
assumem um pacto cooperativo: o seu território será compartilhado, desde que
as aves o defendam, coisas que elas fazem muito bem ao identificá-lo como
também seu, passando então a evidenciar padrões característicos do seu
repertório etológico: com a sua vocalização estridente alertam sobre a
aproximação de qualquer intruso, seja humano, seja animal. A partilha do território
dá-se, normalmente, através de mudança nictemeral de habitat das aves que, de
dia preferem as lagoas e baixadas úmidas, mas à noite transferem suas atividades
para a vizinhança das vivendas humanas, exercendo aí sua vigilância, investindo
contra toda aparição em revoadas ameaçadoras e quase tocando o objeto
intruso. Trata-se, pois, de um serviço gratuito, seguro e com a vantagem adicional
de - no dizer de Zenaide (1953) - ser incorruptível, o qual é prestado por parceiros
cuja manutenção vale a pena: uma associação mutualística que poderá, inclusive,
aumentar a aptidão biológica de ambas as partes dos associados. A associação
é tão vantajosa para os humanos que, segundo Belton (1994), como as aves
associadas sempre gritam quando uma pessoa se aproxima, indivíduos com as
rêmiges cortadas algumas vezes são mantidos perto de casas de fazenda como
sentinelas.
As populações de V. chilensis são conspícuas em muitas paisagens
rurais, o que configura um quadro de não ameaça para a espécie e talvez permita
propor uma “hipótese do estoque” de caráter generalista: “em ecossistemas
rurais é eocnomicamente vantajoso manter uma conexão seres humanos/animais
do tipo “trabalhístico” através da manutenção de um estoque populacional
que é substitutivo a um conjunto de trabalhadores assalariados.”
No entanto, em espaços rurais proximamente povoados, populações
dentro de metapopulações podem estar sendo privilegiadas pela tendência
sinantrópica da espécie, estimulada pelos consentimentos e “convites” dos
3 6 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
humanos. Sua tendência à sinurbização também é muito evidente e o seu sucesso
como povoadora de ecossistemas urbanos é muito perceptível. Até em megalópoles
como São Paulo, seus gritos estridentes compõem a paisagem sonora noturna,
mesmo em espaços densamente habitados, nos quais campos de futebol e outras
áreas abertas tornam-se seus habitas de predileção. Nos ecossistemas urbanos,
há evidências de inversões de sentimentos em relação aos tetéus, os quais podem
passar de estimados a temidos, enquadrando-se na categoria dos animais aziagos.
Tal inversão, sem dúvida, poderá levar populações bem locais a serem extirpadas
na trama ecossistêmica, principalmente porque o serviço prestado no meio rural
agora é dispensável ou desconhecido e a “gritaria” noturna (portanto, soturna!)
recém-incorporada à paisagem sonora (soundscape) por um “bicho desconhecido”
poderá ser ouvida como novidade ameaçadora, um ruído a mais a invocar o
ancestral “medo do bicho”, remotamente inserido no estoque de sentimentos
humanos como possivelmente adaptativo, uma vez que, na realidade, trata-se do
medo mais geral do predador.
O fato de inserir-se no ecossistema rural pode não conferir proteção
absoluta à espécie. Pelo menos nos tempos de infância de Rodolpho von Ihering
(Ihering, 1968), quando o lúdico infantil poderia interferir na história de vida do
caradriídeo até em estágios absolutamente críticos, como durante a fase
reprodutiva, configurando-se um caso de predação com vínculo trófico
aparentemente dispensável e – do ponto de vista da presa – absolutamente
desvantajoso É dele a citação:
“Em criança, gostávamos de procurar-lhes os ninhos,
simples panela rasa, esgravatada em lugar seco, no
meio dos brejos - às vezes para roubar os ovos, aliás
gostosos, mas sempre com o fito de nos divertir à
custa da ave-mãe.Era uma variante do conhecido
brinquedo infantil: ‘está-frio - está quente’ “.
A gravidade maior do tabu trófico sobre o tabu cinegético não é
apanágio do quero-quero. Mesmo aves absolutamente não estimadas, mas
temidas e até mesmo odiadas, como chega a ser o caso da rasga-mortalha (Tyto
alba), também podem ser enquadradas nessa gradação de riscos. Neste caso,
talvez o reforço sirva exatamente para compensar o impulso inerente ao que
teme e odeia para que extermine o objeto das suas paixões, conferindo assim
uma paradoxal proteção à espécie. A matança da ave ficou magistralmente
documentada por Cascudo (1984) no seu clássico relato:
“(...) Uma espécie é mesmo denominada rasga-mortalha
3 7“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
(...). Menino, recordo-me do tiroteio promovido pelos
criados alarmados pelo insistente canto duma coruja,
estando meu pai acamado. Finalmente trouxeram a ave
morta, os grandes olhos abertos, par o próprio quarto
do doente, aos gritos de alívio: ‘Foi você quem morreu
agoureira!” Meu pai faleceu quarenta anos depois.”
A rasga-mortalha inclui-se no elenco de animais que podem (ou mesmo
devem) ser mortos. Para eles há regras sociais que, ao contrário dos tabus,
incentivam a matança (Tab. 2). A tal fenômeno poder-se-ia aplicar o conceito de
especismo, o qual, nos moldes de racismo e sexismo, foi definido por Férry
(1993) como sendo “um pré-conceito ou uma atitude pré-concebida a favor dos
interesses dos membros da sua própria espécie e de parti pris desfavorável em
relação aos membros de outras espécies”. Na realidade, a mente popularmente
catolicizada opõe binariamente “os animais que são da parte de Deus” e “os
animais que têm parte com o canhoto.” Além de proceder a essa oposição, ela
também hierarquiza, havendo assim animais inferiores a outros e que por isso
merecem tratamento diferenciado.
Tabela 2. Exemplos de regras sociais que incentivam a matança de animais
relacionados com o catolicismo popular brasileiro.
3 8 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Uma ave relacionada popularmente com a biografia de Jesus e que é
abundante em sua área de distribuição no Brasil e conspícua na paisagem urbana
de cidades brasileiras, é o bem-te-vi Pitangus sulphuratus, o qual, ao contrário
da proteção conferida pelo “tabu total”que incide sobre as lavandeiras, pode ser
pego, comercializado, engaiolado (embora ele morra com facilidade), morto e até
comido. Seu papel na biografia, embora preponderantemente negativo (“ele traiu
Jesus; entregou ele pros Judeus; gritou bem-te-vi pros soldados mostrando onde
Jesus estava quando iam fugindo pro Egito”), justifica o incentivo para que se o
mate, comum em alguns lugares do Brasil (e.g., Cáceres, MT). Tal incentivo, no
entanto, não é uma regra geral. Atualmente, o meme da traição, pelo menos no
estado da Bahia, tem uma distribuição muito menor que o meme das lavandeiras
e inclusive um meme-contra-meme parece emergir com potencial competitivo.
Montando-se, a partir de falas de sertanejos baianos um discurso “coletivizado”
e transcriado pelo modelo de união das diversas competências (Marques, 1991),
é possível obter a seguinte “colagem” - sem dúvida confirmadora da inteligência
emocional dos baianos:
“A maioria diz que ele traiu Jesus, mas há quem diga
que ele coroou Jesus. Assim, a coroa que ele tem na
cabeça, tanto pode ter sido o resultado de uma dor de
cabeça que ele teve como castigo porque traiu, como
pode ter sido também uma coroa que ele recebeu porque
coroou. Se matar ele, pode não acontecer nada, pois
Deus perdoa, mas a pessoa fica mal vista. Por via das
dúvidas, que come”.
Um exemplo de um possível meme parasita, um vírus da mente na
terminologia de Brodie (1996) seria a crença na inexauribilidade de recursos que
foi encontrada na região estuarina de Acupe (BA) por Souto (2004) que a
enquadrou no “meme da divina e infinita abundância”. Depoimentos por ele
recebidos demonstram que recursos pesqueiros locais, para os depoentes, não
se exauririam devido ao seu caráter de criação de Deus e à sua propriedade de
persistência por volição divina:
“Aqui é produção dada mesmo por Deus, né? Acaba
não! Enquanto vida existir no mundo, tem caranguejo”
“O marisco só acaba quando Jesus descer e dizer que o
mundo acabou!”
3 9“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
“Acabar de vez eu acho que num acaba não porque
Deus é nosso Pai poderoso e eu acho que não vai
permitir uma coisa dessa”.
“Eu acho que não acaba não. Sabe por que? Porque
Deus não deixa fazer isso com a gente. Ele não deixa
acabar não”.
Uma citação tipicamente “escristurística à moda da casa” e altamente
sugestiva de parasitismo mêmico também foi coletada por esse autor:
“Deus disse: ‘quanto mais tirar, mais multiplicar’. Quanto
mais nós tira, mais rende”.
Quanto à extinta pescaria do Dia da Hora em Alagoas, pode-se estar
diante de um fenômeno de causalidade múltipla, com implicações de reciprocidade.
Por isto, vale a pena deter-se sobre o significado e a temporalidade do Dia,
considerando-se, inclusive, o seu caráter religioso. Segundo Cascudo (1984),
este dia corresponde à Quinta-Feira da Ascensão, data móvel do calendário oficial
católico romano e que se comemora quarenta dias depois do Domingo da
Ressurreição. Tal data, hipoteticamente, pode corresponder a período crítico na
migração genética das curimãs e vale a pena hipotetisar alguma correlação causal
negativa entre a pescaria alagoana e a depleção do estoque local de M. liza, pois
tal pescaria tinha por objetivo a obtenção apenas das ovas, as quais, fritas, ainda
hoje constituem um prato característico da culinária alagoana. Há um depoimento
publicado por Otto Schubart (Schubart, 1936) dizendo que, após a captura dos
peixes e da abertura do seu abdome para retirada das ovas, restavam abandonados
na praia, impressionantes amontoados de peixes por cujo consumo não se tinha
interesse. Se tal hipótese for verdadeira, poder-se-ia estar diante de um
comportamento não-adaptativo, não previsível para um “forrageador ótimo” e de
uma atitude não-conservacionista que decorreria de um “meme parasita”, um
“vírus da mente”, de acordo com a teoria memética. Por outro lado, mesmo que
isto seja verdadeiro, o processo que quebrou a resiliência populacional dos peixes,
deve ter um caráter de extrema complexidade, sendo a implicação ritual apenas um
dos componentes. De qualquer modo, embora a pescaria do Dia da Hora não
corresponda exatamente à definição de ritual religioso empregada por Rappaport
(1967) para sua análise da função regulatória ritualística de relações ambientais, o
caso não deixa de ter alguma implicação religiosa, podendo o seu exemplo abrir
uma possibilidade para disfunção ritualística regulamentária de uso de recursos,
4 0 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
com o quê a universalidade de regulação positiva seria questionada.
O caso do consumo das “ovas” não seria apanágio dos alagoanos.
Diegues (2004) refere-se a um fato similar ocorrente no litoral fluminense, onde a
tainha (no caso deve corresponder a M. platanus), estando “ovada”, seria tida
por pescadores em Niterói como sendo de alto valor para venda, isto exatamente
por casa das suas “ovas”. Assim encontrada, incidiria sobre todo o restante do
corpo um tabu trófico de reima, não podendo ser o peixe consumido por ter a
carne muito oleosa. Os pescadores, na circunstância, diriam que a ova tem “valor
próprio”, mas a tainha não e explicariam o fato que “foi Deus que fez assim.” Um
tabu trófico segmentário sobre a tainha (no caso, M. platanus), incidindo sobre
“mulheres quando dão a luz”, foi encontrado por Hanazaki (2001) na região de
Iguape, litoral sul de São Paulo. Esta autora também relatou uma conexão do tipo
médico (indireto: etnoveterinário) com a tainha, cuja banha seria usada em
ferimentos de animais “para evitar que as moscas varejeiras produzissem o berne
ou para evitar a inflamação pela mordida dos morcegos”.
Para que se tenha uma idéia da complexidade histórica dos impactos
culturais sobre os estoques das tainhas, basta considerar-se que nos tempos
coloniais, segundo Cascudo (1984), elas corriam como dinheiro, pois era com
“pacotes de tainhas” que se pagava o funcionalismo público. O autor refere-se a
Mugil incilis como sendo a”espécie empacotada”, mas provavelmente esta
correspondia a M. liza e a M. platanus.
 “Ninguém deve matar a mulita (Dasypus sp.), porque ela foi abençoada
por Nossa Senhora” (Fagundes, 2000): este é um tabu sulino relacionado com o
papel positivo exercido pela mulita e pela tatua em uma das versões do mito
relacionado com a Fuga da Sagrada Família para o Egito. No entanto, a carne dos
tatus é considerada no meio popular e rural como altamente palatável e não é por
acaso que uma das espécies recebe o nome de tatu-galinha. Este, correspondente
a Dasypus novemcinctus (um dos possíveis mulitas), é espécie das mais comuns
no Brasil e tem sido caçado em toda sua área de distribuição, sendo a sua freqüência
relativamente baixa na caatinga e no cerrado atribuída à pressão cinegética
(Marinho-Filho, 1992). Portanto, a distância entre o crido e o dito e o praticado e
o feito, entre o comportamento real e o comportamento ideal, mais uma vez entra
em cena, pois o “não matarás”, no caso, é exemplar de um tabu que se constitui
em “mandamento” dos mais violados, sua violação incidindo sobre uma espécie
cujos estoques populacionais aparentemente decrescem em toda a sua área de
distribuição e que parece funcionar como controladora natural de pragas
(Marcesini, 2004).
A sacralização per se não é motivo suficiente para conseqüências
etnoconservacionistas. Isto fica evidente no caso da rolinha fogo-pagô
4 1“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
(Scardafella squamata), tão prestigiada pelo seu papel positivo durante a
migração da Sagrada Família para o Egito. Ela tanto pode ser caçada, quanto
comida. No sertão baiano chega-se a prescrever o seu consumo para mulheres
com problemas de saúde durante o período de gravidez. Em Boca da Mata/AL, de
acordo com Almeida (1997), embora as rolinhas caldo-de-feijão e papa-capim
possam ser conspícuas na paisagem, a “fogo-pagô tornou-seuma raridade”.
O caso do sariguê = gambá = timbu = cassaco (Didelphis spp.) é
claríssimo a respeito de não correlação entre sacralidade e ação conservacionista:
não é por ser abençoado por Nossa Senhora, que se deixa de matá-lo com interesse
e insistência (“o sariguê, todo mundo quer matar”, afirmou-se na Bahia). O motivo
geralmente alegado para a matança, qual seja, o de que o gambá preda pintos e
galinhas, pode também servir de motivo para justificar a sua sacralidade, uma vez
que um dos mitos no qual se insere o animal, relacionando-o com Nossa Senhora,
diz que ele roubou uma galinha e deu-a à Santa para que esta saciasse a sua fome.
A “razão prática” da predação do gambá pelos humanos (que chegam a comê-lo
e a considerá-lo altamente palatável, além de utilizá-lo largamente como animal
medicinal) talvez reflita um caso de predação competitiva (o predador virando
presa), possivelmente verdadeiro no ambiente rural e persistente na memória dos
citadinos migrados. Não obstante a sua matança socialmente sancionada e quase
obsessiva, as populações de gambás no Brasil parecem não estar sob depleção
acentuada, repetindo-se o mesmo fenômeno que Grimwood (apud Nowak, 1991)
relatou para D. marsupialis e D. albiventris no Peru. No caso das populações
urbanas, estas aparentemente são estáveis ou crescentes.
Referências Bibliográficas
Almeida, L. S. de. 1997. A história escrita no chão. Maceió, EDUFAL.
Almeida, R. 1965. Manual de coleta folclórica. Rio de Janeiro, Campanha de Defesa
do folclore Brasileiro.
Anderson, E. N. 1996. Ecology of the heart: emotion, belief, and the environment.
Oxford, Oxford University Press.
Araújo, M. G. J. de 1998. Entre almas, encantes e Cipó. Dissertação de Mestrado,
Depto. De Antropologia, IFCH/ UNICAMP.
Begossi, A, Hanazaki, N. & Ramos, R. M. 2004. Food chain and the reasons for fish
food taboos among Amazonian and Atlantic Forest Fishers (Brazil). Ecological
Applications 14 (5): 1334-1343.
Belton, W. 1994. Aves do Rio Grande do Sul: distribuição e biologia. São Leopoldo,
Editora da UNISINOS.
4 2 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
Cascudo, L. da C. 1984. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte, Editora
Itatiaia Ltda..
Cascudo, L. da C. 2004. Contos tradicionais do Brasil. 13a ed. São Paulo, Global
Editora.
Colding, J. & Folke, C. 1997. The relation among threatened species, their protection,
and taboos. Conservation Ecology 1(1): 6 .
Colding, J., C. Folke 2001. Social taboos: “invisible” systems of local resource
management and biological conservation. Ecological Applications 11 (2): 584-
600.
Dawkins, R. 1979. O Gene Egoísta. Belo Horizonte,Ed. Itatiaia.
Diegues, A. C. 2000. Etnoconservação. Novos rumos para a proteção da natureza
nos Trópicos. São Paulo, Editora HUCITEC.
Diegues, A. C. 2004. A Pesca construindo sociedades.São Paulo, NUPAUB/USP.
Fagundes, A. A. 2000. Mitos e lendas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Martins
Livreiro – Editor.
Férry, L. 1994. A nova ordem ecológica. A árvore, o animal e o Homem. São
Paulo,Editora Ensaio.
Galvão, E. 1978. Santos e Visagens, um estudo de caso na vida religiosa de Itá,
baixo Amazonas. São Paulo, Companhia Editora Nacional.
Hanazaki, N. 2001. Ecologia de caiçaras: uso de recursos e dieta. Tese
(Doutoramento), Instituto de Biologia / UNICAMP, Campinas.
Hoefle, S. W. 1995. Igreja, catolicismo popular e religião alternativa no sertão
nordestino. Revista de Ciências Sociais 26 (1/2): 24-47.
Ihering, R. von 1968. Dicionário dos animais do Brasil. Brasília, Editora da
Universidade de Brasília.
Marcesini, P. 2004. Tempi duri per l’armadillo. Airone 282: 46-54.
Marinho-Filho, J. 1992. Os mamíferos da Serra do Japi. In: L. P. C. Morellato (org.)
História Natural da Serra do Japi. Ecologia e preservação de uma área florestal
no Sudeste do Brasil. Campinas, Editora da UNICAMP/ FAPESP.
Marques, J. G. W. 1991. Aspectos ecológicos na etnoictiologia dos pescadores do
Complexo Estuarino-Lagunar Mundaú-Manguaba, Alagoas. Tese de
doutorado, Instituto de Biologia, UNICAMP, Campinas.
Marques, J. G. W. 1995. Etnoictiologia: pescando pescadores nas águas da
transdisciplinaridade. Monografia não publicada.
Marques, J. G. W. 2001. Pescando Pescadores: ciência e etnociência em uma
perspectiva ecológica. 2a. ed. São Paulo, NUPAUB-USP.
Maués, R. H. 2005. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a
religião. Estudos Avançados 19 (53): 259-274.
Nomura, H. 1996a. Usos, crendices e lendas sobre peixes. Mossoró, Fundação
4 3“É pecado matar a esperança, mas todo mundo quer matar o sariguê”...
Vingt-Um Rosado.
Nomura, H. 1999c. Usos e costumes dos animais. Fundação Vingt-Un-Rosado,
Mossoró, RN.
Nowak, R. M. 1991. Walker’s mammals of the world. Vol I. Baltimore, The John
Hopkins University Press.
Paiva, M. P. & Campos, E. 1995. Fauna do Nordeste do Brasil: conhecimento
científico e popular. Fortaleza, Banco do Nordeste.
Pimentel, C.R. & M, R.G. Lima 1983. As aves no folclore fluminense. Rio de Janeiro,
Secretaria de Estado de Educação e Cultura.
Pitt, D. 1985.Towards ethnoconservation. In: McNeely, J. Pitt, D. Culture and
conservation: the human dimension in environmental planning. Londres,
Croom Helm.
Rappaport, R. A. 1967. Ritual regulation of environmental relations among a New
Guinea people. Ethnology 6 (1): 17-29.
Schubart, O. 1936. Considerações preliminares sobre a desova da curimã. Boletim
S. A. I. C., 1(4): 395-399.
Sick, H. 1997. Ornitologia brasileira. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira.
Smith, N. 1983. Enchanted forest. Folk belief in fearsome has helped conserve the
resources of the Amazon jungle. Natural History 8: 14-20.
Smith, E. A. & Wishnie, M. 2000. Conservation in small-scale societies. Annual
Review of Anthropology. 29: 493-524.
Souto, F. J. B. (2004).A ciência que veio da lama: Uma abordagem etnoecológica
abrangente das relações ser humano/manguezal na comunidade pesqueira de
Acupe, Santo Amaro, Ba. Tese de doutorado, PPGERN-UFSCar.
Souza, D. 1998. Todas as aves do Brasil. Guia de campo para identificação. Feira de
Santana, Editora Dall.
Suassuna, A . 2004. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Vai-e-Volta. Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro.
Xidieh, O. E. 1993. Narrativas populares, estórias de Nossos Senhor Jesus Cristo
e mais São Pedro andando pelo mundo. Belo Horizonte, Itatiaia.
Zenaide, E. 1953.Aves da Paraíba. Editora Teone Ltda., João Pessoa.
4 4 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
4 5Prescrições zooterápicas indígenas brasileiras nas obras de Guilherme Piso
Prescrições zooterápicas indígenas
brasileiras nas obras de Guilherme Piso
(1611-1678)
Argus Vasconcelos de Almeida
Capítulo 3
4 6 Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia
4 7Prescrições zooterápicas indígenas brasileiras nas obras de Guilherme Piso
Introdução
Do ponto de vista histórico a zooterapia é tão antiga quanto a existência
da humanidade, o que reforça a chamada Hipótese da Universalidade Zooterápica
de Marques (1994) sustentando que todo o sistema médico desenvolvido pelas
sociedades humanas utiliza ou utilizou animais como remédio.
Segundo Costa-Neto (1999) o uso de recursos animais é um fenômeno
antigo e disseminado mundialmente entre os diversos povos: os remédios
elaborados a partir de partes ou produtos do metabolismo animal, tais como,
secreções corporais e excrementos ou mesmo de materiais construídos pelos
animais, como ninhos, teias e casulos, vem sendo utilizados desde a mais remota
antigüidade.
Tal fenômeno, ao contrário do que se pensa, não é exclusivo dos povos
primitivos ou de nações atrasadas cultural e economicamente. Muito pelo
contrário, a leitura dos médicos e filósofos da época clássica greco-romana, já
nos revela um sistema zooterápico naturalmente aceito e desenvolvido.
Como sugere Posey (1980), do ponto de vista da etnobiologia,

Outros materiais