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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO SÉRGIO PEREIRA DOS SANTOS “OS ‘INTRUSOS’ E OS ‘OUTROS’ QUEBRANDO O AQUÁRIO E MUDANDO OS HORIZONTES”: AS RELAÇÕES DE RAÇA E CLASSE NA IMPLEMENTAÇÃO DAS COTAS SOCIAIS NO PROCESSO SELETIVO PARA CURSOS DE GRADUAÇÃO DA UFES – 2006-2012 VITÓRIA 2014 1 SÉRGIO PEREIRA DOS SANTOS “OS ‘INTRUSOS’ E OS ‘OUTROS’ QUEBRANDO O AQUÁRIO E MUDANDO OS HORIZONTES”: AS RELAÇÕES DE RAÇA E CLASSE NA IMPLEMENTAÇÃO DAS COTAS SOCIAIS NO PROCESSO SELETIVO PARA CURSOS DE GRADUAÇÃO DA UFES – 2006-2012 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para obtenção do grau de Doutor em Educação, na Linha de Pesquisa Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas, no semestre 2014/02. Orientadora: Profª. Drª. Ivone Martins de Oliveira VITÓRIA 2014 2 Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Setorial de Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) Santos, Sérgio Pereira dos, 1977- S237i Os ‘intrusos’ e os ‘outros’ quebrando o aquário e mudando os horizontes: as relações de raça e classe na implementação das cotas sociais no processo seletivo para cursos de graduação da UFES – 2006- 2012 / Sérgio Pereira dos Santos. – 2014. 390 f. : il. Orientador: Ivone Martins de Oliveira. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação. 1. Universidade Federal do Espírito Santo. 2. Direito à educação. 3. Discriminação racial. 4. Ensino superior. 5. Racismo. 6. Relações raciais. 7. Programas de ação afirmativa – Educação. I. Oliveira, Ivone Martins de, 1962-. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título. CDU: 37 3 4 À querida professora Drª. Maria Aparecida Santos Corrêa (in memoriam). Aos sujeitos desta pesquisa. 5 AGRADECIMENTOS Uma tese de doutorado representa um algo especial na vida de qualquer mortal que tenha ousado passar por esta aventura [...]. Enfim, dado que agora posso dizer ‘que bom que deu tudo certo’, falarei isso para encorajar os que seguem depois. Não desistam: é bonita a passagem daqui desta margem do rio (PAIXÃO, 2014, p. 21). Agradeço, com total carinho e consideração, a toda minha família, em especial à minha mãe, Maria, ao meu pai, João (in memoriam) pelo ensinamento do valor da escolarização. Ao meu Tio João Miguel e à sua família pela confiança e apoio na realização de meus sonhos acadêmicos, pessoais e profissionais. Agradeço à professora, grande amiga e orientadora, Drª. Maria Aparecida Santos Corrêa Barreto (in memoriam) por me ensinar a ser um humano melhor, um pesquisador competente e por me mostrar o valor da liberdade e da esperança por um mundo melhor, mais justo, mais democrático e mais igualitário. Sou eternamente grato a essa pessoa que iluminava a tudo e a todos. Por onde passava, tornava menos dura a vida e mais esperançoso o mundo. Agradeço à professora orientadora Drª. Ivone Martins de Oliveira, pelo acolhimento, confiança, competência e perspicácia profissional, acadêmica e humana. Suas orientações detalhadas e amplas, democráticas, sábias e pertinentes deram a este trabalho um brilhantismo especial e fundamental para o avanço da pesquisa científica. Aos meus grandes amigos e professores, Drª. Luiza Mitiko Y. Camacho e Drº. Thimoteo Camacho, grandes incentivadores na minha formação humano-profissional. Sábios orientadores da vida e da academia, ao me ensinarem a ser um ser humano mais preocupado com as agruras da sociedade. Eternamente agradecido também pelas suas pertinentes sugestões bibliográficas para esta tese. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela concessão da bolsa durante todo o período de realização deste doutorado. À professora Drª. Renísia Cristina Garcia Filice, da UnB, pela amizade que fizemos a partir da Anped e por suas pertinentes e valiosas contribuições teórico-práticas para esta tese. Ao professor Drº. Ahyas Siss pela sua acolhida, amizade e profundas orientações no decorrer de minha participação como aluno especial em disciplina sobre relações raciais e ensino 6 superior na UFRRJ, como também pela sua acuidade acadêmica no processo de construção desta tese. Ao professor Drº. Osvaldo Martins de Oliveira, pela amizade e sábias orientações para esta tese e pelo acolhimento em seu grupo de pesquisa sobre povos tradicionais, afro-brasileiros e cultura negra capixaba. À professora Drª. Regina Helena Silva Simões, grande e competente professora, amiga, pela sua confiança em meu trabalho e por ter sempre sonhado comigo na minha trajetória acadêmica na Ufes. Aos sujeitos desta pesquisa, atenciosos, solícitos e esperançosos com o sucesso deste trabalho, eternamente grato! Alunos, professores, servidores, pró-reitores e reitor, suas ricas, complexas e carinhosas falas foram fundamentais para o desenvolvimento da tese. Aos meus amigos Tânia Chisté, Lucimar Simon, Pablo Silva, Aline Loyola, Cláudia Nardoto, Daniel Ferreira, Geiza Martins e Diogo Duarte pela amizade e apoio na transcrição de alguns depoimentos dos sujeitos da pesquisa. A tod@s professores e funcionários do PPGE pela competência profissional-acadêmica e sensibilidade humana. À professora Drª. Andrea Bayerl Mongim pela amizade, acolhimento e experiências profícuas no seu competente grupo de pesquisa sobre Ações Afirmativas no Brasil e no Espírito Santo. Ao professor Drº. Amauri Mendes Pereira da UFRRJ pela sua atenção, amizade e ricas recomendações teóricas para esta tese. Ao professor Drº. Marcelo Paixão da UFRJ pela atenção, incentivo e valiosas sugestões bibliográficas sobre a temática das relações raciais brasileiras e norte-americanas. Aos membros do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Ufes pelas riquezas das pessoas, pela profundidade dos debates acadêmicos e pelas lindas amizades construídas nesse espaço. Em especial, à coordenadora do Núcleo, professora Drª. Cleyde Amorim, por sua amizade, competência profissional e confiança em meu trabalho. 7 À Maria Cristina Figueiredo, colega e grande amiga deste doutorado. Suas palavras ricas em momentos certos, seu respeito e competência me ajudaram entender realmente o sentido da amizade e do profissionalismo. Obrigado, Cris! Ao seu companheiro, Maurício, agradeço pela amizade e apoio constante em todas as fases do doutorado. À Turma 8 do Doutorado do PPGE, em especial aos colegas de Linha de Pesquisa “Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas”: Alessandro, Maria Cristina, João, Danielli, Rafael, Vagner, Madalena e Ana Marta. Ao professor Drº. Alexsandro Rodrigues pela rica amizade, recepção e proveitoso crescimento humano e acadêmico viabilizado no contexto do Estágio Docência deste doutorado em suas disciplinas de Currículo e Formação Docente em algumas Licenciaturasda Ufes. À professora Drª. Eliza Bartolozzi Ferreira pelo acolhimento e carinho a nós, alunos, assim como pela riqueza teórica produzida em sua disciplina “Tópicos em Políticas Educacionais”, por meio da qual possibilitou um pertinente e fértil diálogo com as relações raciais brasileiras. Ao professor Drº. Hiran Pinel pela amizade e pelas profícuas discussões teórico-práticas sobre a questão racial brasileira no campo educacional, muitas vezes regadas a um bom café, a uma dose cavalar de humor e a uma excelente indicação bibliográfica. À Marcia Iara Brito de Andrade, funcionária do Instituto Cândido Mendes do Rio de Janeiro, pela sua amizade e por sua solicitude constante na pesquisa e encaminhamentos da produção acadêmica deste instituto, em especial da Revista Afro-Asiáticos. Ao funcionário Cláudio França, do setor de periódicos da Biblioteca Central da Ufes, pela sua amizade, presteza e competência nas orientações das obras referentes à tese. Seu profissionalismo foi fundamental e imprescindível para esta pesquisa. Aos grandes amigos e debatedores eternos: Marluce Simões, Tânia Chisté, Sandra Machado, Gustavo Forde, Vanessa Rocha, Carly Cruz, Guanair Cunha, Charlini Sebim, Patrícia Rufino, Cleberson Silva, Bruno Pizzin, Cláudio Márcio, Vilmara Mendes e Andressa Colombi. Aos alun@s e professores da Faculdade Brasileira (Fabra) pela rica experiência docente e afetiva na construção do debate e da formação no campo das relações étnico-raciais. 8 A díade raça e classe tem se configurado uma tradição nas pesquisas sobre as relações raciais brasileiras. Em que pese a crise das grandes narrativas nas ciências sociais, esses conceitos parecem ainda desfrutar de grande poder explicativo quando se pretende analisar a situação social dos afro-brasileiros (FIGUEIREDO, 2002, p. 26). As explicações de dominação de raça e de classe que atribuem pesos diferentes aos aspectos coercitivo, remunerativo e moral das relações de poder não precisam ser necessariamente incompatíveis. Essas dimensões de poder podem estar diferentemente combinadas em épocas e lugares particulares (HASENBALG, 2005, p. 54). 9 RESUMO A pesquisa desta tese investiga as mediações das categorias de raça e de classe social no processo de implementação do modelo de cotas sociais da Ufes para ingresso nos cursos de graduação, entre 2006 a 2012, como parte das ações afirmativas dessa universidade. Tal modelo, para incluir a população afro-brasileira no ensino superior do Espírito Santo, respeitou estritamente os critérios de renda e de origem escolar pública, não adotando o critério étnico-racial que contemplaria especificamente os negros e os indígenas. Diante disso, o autor busca sustentar a tese de que, considerando o padrão das relações raciais brasileiras produtor de assimetrias entre grupos com marcas raciais distintas, no caso de negros e brancos, as desigualdades raciais têm na operacionalização do racismo seu mote ofensivo e poderoso, ao mesmo tempo em que a classe social isolada é insuficiente na compreensão e superação do problema racial do Brasil. Portanto, na adoção de políticas de combate às desigualdades raciais no ensino superior, caberia também a utilização de medidas etnicamente referenciadas. Autores como Hall (2008) e Fraser (2006), ao trazerem a dimensão articulada e bifocal das injustiças simbólicas e das injustiças econômicas, permitem entender a complementaridade e as dinâmicas entre ambas, deslocando-se de determinismos classistas que invisibilizam o racismo como instrumento opressor nas relações sociais. Como objetivos específicos, considera: compreender o processo de construção do modelo de cotas da Ufes, para ingresso nos cursos de graduação implementado em 2008, sob a perspectiva do debate da relação entre raça e classe; examinar as políticas de ações afirmativas como respostas às demandas históricas dos afro-brasileiros no contexto da sociedade brasileira; avaliar a posição de professores e alunos de cursos de graduação da Ufes diante do ingresso de alunos cotistas, sobretudo afro-brasileiros e pobres; e investigar a relação das políticas classistas, no caso específico das cotas sociais, na superação das assimetrias raciais. Adota como procedimentos metodológicos a metodologia dialética de pesquisa considerando todas as contradições entre raça e classe no processo de implementação de ações afirmativas na Ufes. Como instrumentos de pesquisa, utiliza entrevistas de professores e alunos cotistas e não cotistas de cursos variados da universidade, assim como documentos referentes à temática. Os resultados apontam para uma “oxigenação” da universidade depois de uma entrada maior de negros e pobres, principalmente nos cursos mais elitizados, pois as cotas operam uma dimensão pedagógica de ampliar a diversidade social na academia, trazendo outras demandas, outras 10 afetividades, outras lógicas de mundo e concepções de sociedade para a única universidade pública do Espírito Santo. Indica que os mecanismos discriminatórios e estigmatizantes interpessoais e institucionais, vividos no contexto das cotas sociais e explícitos na pesquisa, não inviabilizam a importância das ações afirmativas, pois apontam para a universidade repensar e ressignificar seus currículos e ações pedagógicas homogeneizantes no sentido de ampliar a ideia de inclusão e de democratização de seus espaços. Reitera que a raça, em seu viés político e cultural, é operante de forma relacional e independente com a classe social no contexto da produção das assimetrias raciais brasileiras, de maneira que a ação de uma não nega a ação da outra, mesmo na relação entre ambas. Enfatiza a importância do entendimento e da materialidade das ações afirmativas como políticas de reconhecimento que combateriam as desigualdades simbólicas na Ufes. Aponta a relevância das políticas de assistência estudantil, conjugadas às cotas, como políticas de redistribuição econômica, que lidariam com as dificuldades ou ausências materiais dos discentes, principalmente dos cotistas. Conclui que as cotas étnico-raciais nas universidades brasileiras são instrumentos legítimos de luta pela educação, um direito social de oportunidade dos grupos historicamente apartados de princípios constituidores da emancipação, da cidadania, dos direitos humanos, da justiça social, da igualdade e da diferença. Palavras-chave: Universidade Federal do Espírito Santo. Direito à educação. Discriminação racial. Ensino superior. Racismo. Relações raciais. Programas de ação afirmativa na educação. 11 ABSTRACT The research of this thesis investigates the mediations of the categories of race and class in the model of implementation of social quotas at UFES for assessing graduation courses between 2006 and 2012, as part of the affirmative actions of this university. Such model, as to include African-Brazilian population in university education in Espírito Santo, included strictly the criteria of income and public schools origin, not adopting the ethnic-racial criteria that contemplates specifically black people and Indians. Given this, the author means to support the theory that considering the pattern of the Brazilian racial relations that produce asymmetries among groups with distinct racial marks, in the case of black people and white people, racial differences have operationalization its offensive and powerful offensive motto, at the same time that the isolated class is insufficient in the overcome and understanding of Brazil'sracial problem. Therefore, in the adoption of policies that fight racial inequality in university education, it would also be relevant the use of measures ethnically referenced. Authors like Hall (2008) and Fraser (2006), when they bring the articulated and bifocal dimension of the symbolic and economical injustices; they allow the understanding of the complementarity and the dynamic between them, moving from classist determinisms that rend racism as oppressing instrument in social relations. As specific objectives, it considers: Understanding the process of construction of the model of quotas at Ufes, for entering graduation courses implemented in 2008, under the perspective of the debate of the relation between race and class; Analyzing the affirmative action’s policies in response to the historical demands of the African-Brazilian in the context of Brazilian society; Analyzing the position of the professors and students of the graduation course at Ufes facing the entrance of quota students, specially African-Brazilian; and analyzing the relation of the classist policies, in the specific case of social quotas, in the overcoming of racial asymmetries. It adopts the methodological procedures and dialectic methodology of research considering all the contradictions between race and class in the process of implementation of affirmative actions at Ufes. As a research tool, it uses interviews with faculty members and students, quota and non-quota, of the most various courses of the University, as to documents relating to the theme. The result aims at the “oxygenation” of the University after a larger entry of black people and poor people, especially in the courses considered as being more of the elite, because the quotas operate a pedagogical dimension of enlarging social bio diversity, bringing 12 other demands, other affections, other logics of world and conceptions of society to the only public University in the Espírito Santo. It indicates that the discriminatory mechanisms and interpersonal and institutional stigmatizers, living in the context of social quotas and explicit in the research do not derail the importance of the affirmative actions, because they aim at making the University rethink and give new meaning to its curriculums and homogenizing pedagogical actions with the purpose of enlarging the idea of inclusion and the democratization of its spaces. It reiterates that race, in its political and cultural edges; it is operative in a relational and independent way to the social class in the context of the creation of Brazilian´s racial asymmetries, in a manner that the action of one does not deny the action of the other, even ion the relation between them. It emphasizes the importance of the understanding and of the materiality of the affirmative actions as acknowledgement policies that would fight symbolic inequalities at Ufes. It points at the relevance of student assistance, coupled with the quotas, as an economic policy that would deal with the material difficulties or absences of the students, especially the quota students. It concludes that ethnic-racial quotas at Brazilian Universities are legitimate fighting tools for education. A social right of opportunity of the groups historically broken up from principles that constitute the emancipation, of citizenship, of human rights, of social justice, of equality and difference. Keywords: Federal University of Espirito Santo. Right to education. Racial discrimination. Higher education. Racism. Race relations. Affirmative action programs in education. 13 RESUMEN La investigación de esta tesis aborda las mediaciones de las categorías de rasa y clase social en el proceso de implementación del modelo de cuotas sociales de la Universidad Federal do Espírito Santo/UFES para el ingreso en los cursos de graduación entre 2006 a 2012, como parte de las acciones afirmativas de esta universidad. Tal modelo, para incluir a la población afro-brasileña en la enseñanza superior del estado de Espírito Santo, incluyó estrictamente los criterios de renta y de origen escolar pública, no adoptando el criterio étnico-racial que contemplaría específicamente los negros y los indígenas. Delante de esto, el autor busca sustentar la tesis de que, considerando el padrón de las relaciones raciales brasileñas, productor de asimetrías entre grupos con marcas raciales distintas, en el caso de negros y blancos, las desigualdades raciales tienen en la operación del racismo su lema ofensivo y poderoso, al mismo tiempo en que la clase social aislada es insuficiente en la comprensión y superación del problema racial en Brasil. Por lo tanto, en la adopción de políticas de combate a las desigualdades raciales en la enseñanza superior, hay espacio también para la utilización de medidas étnicamente referenciadas. Autores como Hall (2008) y Fraser (2006), al abordar la dimensión articulada y bifocal de las injusticias simbólicas y de las injusticias económicas, permiten entender la complementariedad y las dinámicas entre ambas, dislocándose de determinismo clasistas que dejan invisible el racismo como instrumento opresor en las relaciones sociales. Como objetivos específicos, considera: comprender el proceso de construcción del modelo de cuotas en la UFES frente al ingreso de negros y pardos en los cursos de graduación implementados en 2008, siguiendo la perspectiva del debate de la relación entre raza y clase; Analizar las políticas de acciones afirmativas como respuestas a las demandas históricas de los afro-brasileños pobres; Y analizar la relación de las políticas clasistas, en el caso específico de las cuotas sociales, en la superación de las asimetrías raciales. Adopta como procedimientos metodológicos la metodología dialéctica de investigación considerando todas las contradicciones entre raza y clase en el proceso de implementación de acciones afirmativas en la UFES. Como instrumentos de pesquisa, utiliza entrevistas de profesores y alumnos cuotitas y no cuotitas de cursos variados de la Universidad, así como documentos referentes a la temática. Los resultados apuntan para una “oxigenación” de la Universidad después de un ingreso mayor de negros y pobres, principalmente en los cursos de élite, pues las cuotas operan una dimensión pedagógica de 14 ampliar la diversidad social en la academia, trayendo otras demandas, otras afectividades, otras lógicas de mundo y concepciones de sociedad para la única Universidad pública del estado de Espírito Santo. Indica que los mecanismos de discriminación y de estigmatización interpersonales e institucionales, vividos en el contexto de las cuotas sociales y explícitos en la investigación, no inviabilizan la importancia de las acciones afirmativas, pues colocan a la Universidad frente a la posibilidad de repensar, resignificar sus currículos y acciones pedagógicas que homogeneizan, en el sentido de ampliar la idea de inclusión y de democratización de sus espacios. Reitera que la raza, en su línea política y cultural, es operante de forma relacional e independiente con la clase social en el contexto de la producción de las asimetrías raciales brasileñas, de manera que la acción de una no niega la acción de la otra, mismo en la relación entre ambas. Enfatiza la importancia del entendimiento y de la materialidad de las acciones afirmativas como políticas de reconocimiento que combatirían las desigualdades simbólicas en la UFES. Apunta la relevancia de las políticas de asistencia estudiantil, conjugada a las cuotas, como políticas de redistribución económica, que lidiarían con las dificultades o ausenciasmateriales de los discentes, principalmente de los cuotitas. Concluye que las cuotas étnicas raciales en las universidades brasileñas son instrumentos legítimos de lucha por la educación, un derecho social de oportunidad de los grupos históricamente apartados de principios constituidores de la emancipación, de la ciudadanía, de los derechos humanos, de la justicia social, de la igualdad y de la diferencia. Palabras clave: Universidad Federal de Espírito Santo. Derecho a la educación. Discriminación racial. Enseñanza superior. Racismo. Relaciones raciales. Programas de acción afirmativa en la educación. 15 LISTA DE SIGLAS ABPN Associação Brasileira de Pesquisadores Negros ADI Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADUFES Associação dos Docentes da Ufes CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CCE Centro de Ciências Exatas CCJE Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas CCV Comissão Coordenadora do Vestibular CE Centro de Educação CECUN Centro da Cultura Negra CEERT Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades CEPE Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão CF Constituição Federal CLT Consolidação das Leis Trabalhistas CONEUFES Congresso de Estudantes da Ufes CONFENEN Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino CPLP Comunidades dos Países de Língua Portuguesa CR Coeficiente de Rendimento CT Centro Tecnológico CUT Central Única dos Trabalhadores DCE Diretório Central dos Estudantes DEM Partido dos Democratas DIEESE Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sociais e Econômicos 16 EDUCAFRO Educação para Afrodescendentes EDUCAL Educação Alternativa ES Espírito Santo FHC Fernando Henrique Cardoso FNB Frente Negra Brasileira FNP Frente Negra Pelotense GELEDÉS Instituto da Mulher Negra GTEDEO Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação GTI Grupo de Trabalho Interministerial IAN Imprensa Alternativa Negra IBASE Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IES Instituições de Ensino Superior IETS Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade IFES Instituto Federal de Ensino Superior IPEA Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas IURD Igreja Universal do Reino de Deus LAESER Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC Ministério da Educação MNU Movimento Negro Unificado MP Ministério Público NAEG Núcleo de Apoio aos Estudos de Graduação NEABs Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros 17 NPE Nova Política Econômica OAB Ordem dos Advogados do Brasil OIT Organização Internacional do Trabalho ONGs Organizações Não Governamentais ONU Organização das Nações Unidas PCB Partido Comunista Brasileiro PC do B Partido Comunista do Brasil PCQC Programa Custe o Que o Custar PEC-G Programa de Estudantes-Convênio de Graduação PL Projetos de Leis PM Polícia Militar PME Pesquisa Mensal de Empregos PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAES Programa Nacional de Assistência Estudantil PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos PROAES Políticas de Assistência Estudantil PROGEP Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas PROGEPAES Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas e Assistência Estudantil PROGRAD Pró-Reitoria de Graduação PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados PT Partido dos Trabalhadores PUC-RJ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUPT Projeto Universidade Para Todos PVNC Pré-Vestibular para Negros e Carentes RE Recurso Extraordinário 18 SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade SEPPIR Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SESU Secretaria de Ensino Superior SINTUFES Sindicato dos Trabalhadores da Ufes SIS Secretaria de Inclusão Social STF Supremo Tribunal Federal do Brasil TEN Teatro Experimental do Negro TRF2 Tribunal Regional Federal da 2ª Região UENF Universidade Estadual Norte Fluminense UFBA Universidade Federal da Bahia UFES Universidade Federal do Espírito Santo UFF Universidade Federal Fluminense UFMT Universidade Federal de Mato Grosso UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UMNO United Malay Nationalist Organization UNB Universidade de Brasília UNE União Nacional dos Estudantes UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNIAFRO Programa de Ações Afirmativas para a População Negra UNICAMP Universidade de Campinas USP Universidade de São Paulo 19 SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ........................................................................... 23 2 “TENTÁCULOS” DA DIALÉTICA: O MÉTODO E OS PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DO ESTUDO ............................................................... 41 2.1 O MÉTODO ...................................................................................................................... 41 2.2 A PESQUISA DE CAMPO .............................................................................................. 55 3 AÇÕES AFIRMATIVAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA: ENTRE AS INJUSTIÇAS HISTÓRICAS E AS LUTAS PELO DIREITO À EDUCAÇÃO ..................................... 62 4 IGUALDADE E DIFERENÇA: POLÍTICAS DE REDISTRIBUIÇÃO E POLÍTICAS DE RECONHECIMENTO .................................................................................................. 96 4.1 A RELAÇÃO DO UNIVERSAL COM O PARTICULAR: SOMOS IGUAIS E DIFERENTES! ....................................................................................................................... 98 4.2 AÇÕES AFIRMATIVAS: CONCEITOS, HISTÓRICO E EXPERIÊNCIAS ................................................................................................................................................ 112 4.3 AS MATRIZES DISCURSIVAS E AS RETÓRICAS DA INTRANSIGÊNCIA: O DEBATE “PÚBLICO” BRASILEIRO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS PARA AFRO- BRASILEIROS NA IMPRENSA ......................................................................................... 124 4.3.1 Matrizes que interpretam as relações sociorraciais brasileiras ............................. 126 4.3.2 “De baixo para cima”: análise de textos veiculados na grande imprensa ............ 145 5 AS RELAÇÕES RACIAIS E A DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL ................. 167 20 5.1 A IDEIA DE RAÇA NAS RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL ................................................................................................................................................ 168 5.2 OS ESTUDOS DO NEGRO NA TEMÁTICA RAÇA E CLASSE NAS RELAÇÕES RACIAIS BRASILEIRAS .................................................................................................... 191 5.2.1 Donald Pierson e Thales de Azevedo: a primeira onda ..........................................195 5.2.2 Thales de Azevedo: ainda a primeira onda ............................................................. 199 5.2.3 Estudos críticos: Florestan Fernandes, Carlos Hasenbalg e Nelson Valle Silva: a segunda e terceira ondas ..................................................................................................... 203 6 RELAÇÕES ENTRE RAÇA E CLASSE NO CAMPO EPISTEMOLÓGICO ........ 209 6.1 O MARXISMO, A POLÍTICA E A QUESTÃO RACIAL: RANÇOS E AVANÇOS ................................................................................................................................................ 211 6.2 A QUESTÃO RACIAL NO CAMPO POLÍTICO ......................................................... 227 7 “ALIVIANDO A PRESSÃO”: O MOVIMENTO PELAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS NA UFES................................................................................................. 233 7.1 REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIAS POR AÇÕES AFIRMATIVAS NO ESPÍRITO SANTO ................................................................................................................................ 234 7.1.2 O debate e o acirramento de posições no processo de implementação das cotas na Ufes ....................................................................................................................................... 239 7.2 A CONFIGURAÇÃO DO SISTEMA DE RESERVAS DE VAGAS: AS COTAS SOCIAIS DA UFES .............................................................................................................. 248 21 7.3 “OS PONTOS FORA DA CURVA”: A RELAÇÃO ENTRE RAÇA E CLASSE NO CONTEXTO DAS COTAS SOCIAIS DA UFES ................................................................................................................................................ 258 7.4 RENDIMENTO DOS COTISTAS E DOS NÃO COTISTAS ....................................... 262 8 “OS ‘OUTROS’ E OS ‘INTRUSOS’ QUEBRANDO O ÁQUARIO”: A DINÂMICA RAÇA E CLASSE DAS COTAS DA UFES ................................................................................................................................................ 272 8.1 “TODO POBRE É NEGRO E TODO NEGRO É POBRE”: A PRETERIÇÃO DAS COTAS ÉTNICO-RACIAIS EM PROL DA ESCOLA PÚBLICA E DA RENDA NA INCLUSÃO NA UNIVERSIDADE ..................................................................................... 272 8.2 “IGUAIS, MAS SEPARADOS”: ALGUMAS PRÁTICAS DISCRIMINADORAS NA RELAÇÃO ENTRE ESTUDANTES COTISTAS E NÃO COTISTAS .............................. 307 8.3 “AS COTAS TÊM UM PAPEL PEDAGÓGICO PARA A SOCIEDADE...”: INDÍCIOS DE AVANÇOS NA DISCUSSÃO DA RELAÇÃO RAÇA E CLASSE SOCIAL NAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS DA UFES ............................................................................ 321 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS: “QUEBRANDO O AQUÁRIO DA UNIVERSIDADE E MUDANDO OS HORIZONTES” ..................................................................................... 345 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 354 APÊNCIDES ........................................................................................................................ 380 APÊNDICE A – Alunos cotistas e não cotistas da Ufes ................................................... 381 APÊNDICE B – Administrativo e segmentos da Ufes ..................................................... 382 APÊNDICE C – Professores da Ufes ................................................................................. 383 22 APÊNDICE D – Membro do Movimento Negro Capixaba ............................................ 384 ANEXOS .............................................................................................................................. 385 ANEXO A – Resolução nº. 23/2009 - Cotas Sociais ......................................................... 386 23 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Existe um nível de pobreza a partir do qual somos atingidos por uma espécie de indiferença que faz com que todas as coisas pareçam irreais: aqueles mais perto de nós se tornam meras sombras, pouco distinguíveis do fundo escuro de nossa vida quotidiana, e são facilmente perdidos de vista (VITOR HUGO, Os miseráveis, grifos nossos). Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como os que assombravam Edgar Allan Poe... Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos – talvez se possa até dizer que possuo uma mente. Sou invisível, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver. Minha invisibilidade também não é, digamos, o resultado de algum acidente bioquímico da minha epiderme. A invisibilidade à qual me refiro ocorre em função da disposição peculiar dos olhos das pessoas com quem entro em contato (RALPH ELLISON, O homem invisível, grifos nossos). O cinema, como um espaço de produção de conhecimentos, de linguagens e de mundos, tematiza variados assuntos de cunho político, social, econômico, étnico-racial, dentre outros, e se constitui como um potente mecanismo pedagógico de apreensão da realidade. Sobre a temática racial, há uma produção intensa, diversa e rica, apresentando muitos aspectos e matizes com que o assunto se relaciona. O filme Mãos talentosas: a história de Ben Carson, 1 por exemplo, é muito pertinente e significativo para se articular e entender a relação dos processos de desigualdades sociorraciais com a ascensão do negro pela universidade. O filme conta a história real de Ben Carson, um negro pobre que se forma em Medicina, especificamente em neurocirurgia. Ele é filho de mãe analfabeta e empregada doméstica, cuja família não tinha tradição de acesso à universidade, como é a história da maioria da população afro-brasileira. Há três passagens no longa metragem, ora em tela, que nos fazem pensar na trajetória identitária, na ascensão social e nos percalços que negros e negras passam tanto para alcançar os espaços de poder, prestígio, riqueza, privilégio e de autoridade da sociedade, quanto para permanecer nesses espaços. A primeira passagem representa a possibilidade ampla, rica e extraordinária do caminho universitário negado historicamente, principalmente, para a população afro-brasileira. Sendo o único negro na escola, Carson sofre racismo e estigmas. No entanto, quando responde ao professor de Química sobre o nome de uma pedra e sua origem de formação, depois de ninguém saber, além de a turma ficar embasbacada diante do fato e de todos olharem para ele, o professor avisa que quer conversar com ele no intervalo e, neste, fala algo ao aluno inteligente e depois lhe mostra o que se tinha no microscópio. O professor pergunta a Carson 1 Filme norte-americano intitulado, no original, Gifte Hands: The Ben Carson Story, de 2009. Foi dirigido por Thomas Carter, tendo como ator principal, interpretando Ben Carson, Cuba Gooding Jr., e Kimberly Elise como mãe de Carson. 24 no laboratório: “Sabe o que é isso, Ben?” “Não”, responde Ben. “Isso é outro mundo, Ben, você acaba de entrar noutro mundo”, responde o professor. A segunda passagem da película cinematográfica explicita o racismo que muitos de nós, afro- brasileiros, vivemos quando alcançamos louros, os espaços científicos e prestígio social, como abaixo evidenciado. Carson é agraciado com o prêmio de melhor rendimento acadêmico da oitava série. Nesse momento sua professora, branca, pega o microfone e fala ao público presente, composto por alunos, famílias, inclusive a de Carson: “Ben é um rapaz de cor. Não há pai na vidadele. Ele chegou a nós com grandes desvantagens, não há motivo para não fazer melhor do que ele. O que há com vocês, crianças, vocês não lutam o suficiente, deviam se envergonhar”. Já na terceira passagem, há a compreensão de uma mãe que, mesmo sendo analfabeta, sabe a importância da escola na sociedade e quer viabilizar esse caminho para seus filhos. Ao tirar nota baixa na escola e sofrer chacotas por parte de seus colegas de turmas, Ben é chamado de “maior burro do mundo” na sala e corredores. Ele bate num dos colegas que o humilhou assim. A presença de sua mãe é solicitada na escola e, na ida para casa, depois de conversar com o diretor, ela fala para seu filho: “Você não foi feito para fracassar, Ben, você pode. Você não é burro, apenas deve controlar sua raiva; é um menino inteligente. Escuta aqui: você não está usando essa inteligência, continue tirando notas baixas e vai passar a vida toda passando pano numa fábrica, não é essa vida que quero pra você”. O “outro mundo” que o professor de Ben indicou para ele, que é o espaço da universidade e da ciência, em razão dos processos históricos da escravidão, de uma abolição incompleta ou inexistente e de vários processos ressignificados de desigualdades raciais no presente, ainda se constitui numa escada difícil de acesso ou, em alguns momentos, inalcançável para nós, afro- brasileiros. E isso tolhe e impede a concretização de uma cidadania plena e de uma sociedade e vida democráticas dignas aos afro-brasileiros, como bem destacou Siss (2003). Ao longo da histórica luta por direitos, justiça social e por uma verdadeira democracia racial, a população afro-brasileira, tanto na escravidão, como depois desta, conviveu e convive com uma não cidadania, uma “cidadania de segunda classe”, como diz Nascimento (1982); uma “cidadania incompleta”, no dizer de Marshall (1988); ou quando Milton Santos (1998) indica que o negro no Brasil foi um “arremedo de cidadão”. Sob os auspícios e ancoragens de uma sociedade racista e conservadora, o grupo social e racial, as elites simbólicas (DIJK, 2008), 25 que sempre se apoderaram dos espaços políticos, de poder e de riqueza, enrijecem o processo de negociações sociais, em que a luta emancipatória, no olhar deles, vira o famoso racismo ao contrário, às avessas, e o sujeito coletivo vira um ameaça social. A população afro-brasileira tende ainda a conviver com a discriminação racial, mesmo quando alcança a mobilidade social vertical ascendente, como ficou evidenciado quando Ben foi estigmatizado por sua professora em público. A mãe de Ben, como a minha, que não alcançou os espaços da universidade em razão de seu trabalho braçal para sustentar a família, sabe da relevância da escola na vida social e constrói uma trajetória árdua e sofrida para concretizar tal caminho rumo à ascensão social. Tanto a mãe de Carson quanto a minha se reconhecem no processo ascensional de seus filhos, meio que efetivando a concretização de um projeto de vida que, por razões raciais, culturais, históricas, econômicas e políticas, foram impedidas de realizar. Assim, temos que, no caso da mãe “[...] em via de ascensão na trajetória interrompida, 2 a ascensão que leva seu filho a superá-l[a] é de certa forma sua própria conquista, a plena realização de um ‘projeto’ rompido3 que pode, assim, completar por procuração” (BOURDIEU, 1997, p. 6). A produção de uma pesquisa acadêmico-científica traz nesse processo uma relação direta entre a configuração total da existência de quem pesquisa e a temática pesquisada. Sou afro- brasileiro, oriundo da classe trabalhadora e estudante da escola pública no contexto social mais amplo marcado pela pobreza material e estigmas originados de práticas racistas e também pelo papel histórico que a escola pública tem assumido mais de exclusão do que de inclusão no processo de dualismo social. Sou o único e o último da família de cinco irmãos a ter, até o momento, passado pela universidade. E esse ser social que eu sou, produzido por relações de raça e de classe, conviveu e ainda o faz com o racismo tanto nas condições da pobreza quanto em meu processo de ascensão social via universidade. Uma das dificuldades de meu acesso à universidade ocorreu por uma precariedade material em razão de poucas 2 Uma exemplificação de uma trajetória interrompida pode ser encontrada no personagem Neil Perry, do filme norte-americano intitulado Sociedade dos poetas mortos, de 1989, dirigido por Peter Weir. Neil é internado pelo pai numa instituição militar ao rejeitar as predileções deste quanto à sua carreira. Era apaixonado por teatro, mas se suicida ao ver sua liberdade e seus sonhos caídos por terra. 3 Em outra situação quando o filho desconfigura a trajetória do pai em que não há a perpetuação da posição social deste, o filho, para Bourdieu (1997), transgrediria ou cometeria um assassinato paterno por meio da superação assassina. Mas, na dinâmica social pode ocorrer uma exceção, mesmo não sendo algo generalizado, por exemplo, quando um filho de pai que tenha uma função socialmente desprestigiada ou de baixo status cometa uma transgressão ou o “assassinato” do pai, numa perspectiva bourdieuriana. Nesse caso, isso ocorre porque o pai pode se orgulhar dessa função desvalorizada socialmente, considerando que seu papel social deu sustento a si e à sua família e ele quer que seu filho se espelhe nele e reproduza a herança paterna, que também é social, impedindo uma possível superação assassina. 26 condições econômicas, como também em razão da introjeção de processos racistas que nos imobilizam, subtraem nossa autoestima e nos estancam mentalmente em certa fixidez social. Condições econômicas deficitárias ou insuficientes foram grandes empecilhos no processo de ascensão social via educação, e isso me marcou muito, ao mesmo tempo não existindo como obstáculos definitivos de lograr algo diferente de minhas condições familiares e sociais. Muitos cursos, livros, viagens acadêmicas, equipamentos educativos a que não tive acesso até a metade da faculdade foram inviabilizados em razão das parcas condições econômicas. Além da precarização dos rendimentos, há a questão da inferioridade que nós, afro-brasileiros, vamos produzindo no contexto do racismo social que inculcamos no processo de socialização. Quando fui preencher o questionário socioeconômico do vestibular da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) para o Curso de Pedagogia no ano de 2000, tive receio de que seria inviabilizada a minha aprovação não necessariamente por falta de mérito, mas devido ao fato de que, quando os avaliadores verificassem minha foto e vissem um negro, iriam me reprovar por tal existência. E isso era uma tortura interna e eu não tinha forças de expressá-la para ninguém até certo ponto da minha vida. Passei pelo que Renzo Sereno chamou de criptomelanismo, que se constitui num processo que mascara a existência e as verdadeiras dimensões do problema racial, no caso, na dimensão individual. Aqui há “[...] o medo de confessar e o desejo de esconder a importância que realmente se dá à questão da raça e da cor, [ou um] dogma atrás do qual se esconde o ressentimento e o mal-estar gerado pela tensão racial” (COSTA PINTO, 1998, p. 282). E isso, para além de ser algo meramente vivido ou ser adstrito apenas aos afro-brasileiros, constitui-se em processos sociais mais amplos e institucionais, acadêmicos e políticos. Ao mesmo tempo em que se busca evitar a exposição de seu caráter excludente, mantêm-se os papéis definidos socialmente, condicionados pelo racismo, como veremos mais adiante. Durante o meu processo de ascensão social, o racismo que eu pensava que ira desaparecer,como socialmente se pensa, ficou mais evidente ou mais sentido. E isso fica muito escrachado quando se pensa, e eu pensava, que a compra de um tênis da Nike do mais caro, como fiz, bastaria para as pessoas pararem de me encarar e olhar enviezadamente para o meu pé. Mera ilusão e ledo engano, já que, por meio de uma mentalidade excludente 4 ou mentalidade 4 Os termos mentalidade excludente e mentalidade invisível foram criados a partir da minha percepção diante de fatos vividos por mim na realidade cotidiana marcada pelo racismo. Uma educação envenenada, como nos indica Munanga (2005), inculca nos processos de subjetivação, pela socialização do sujeito, parâmetros fixos do belo, do paupérrimo, do perigoso, do honesto, do inferior, do subalterno, do perfeito. A invisibilidade e a exclusão no âmbito social advêm de uma mentalidade produzida política, cultural e historicamente. 27 invisível, muitas pessoas, a maioria brancas, me excluem mesmo com roupa de marca e tênis da moda. Sempre há uma distinção no quotidiano oriundo do comportamento de alguém que, ao puxar a bolsa, celular ou bens que porta na mão, mantém sempre um olhar cabreiro e um medo avassalador, sofisticado ou sigiloso em razão da minha presença, visto que poderia ser um suposto “elemento suspeito” em potencial. Borges Pereira (1967) analisa as frustrações de radialistas afro-brasileiros em São Paulo que ascenderam na profissão e na escala socioeconômica, mas que ainda permaneceram vivendo o estigma social do que é ser negro num país racista como o Brasil. O autor chama a atenção para o fato de que os afro-brasileiros, ao se libertarem de injunções econômicas por meio de uma profissão que os transporta para novas situações de convívio, ainda são discriminados. Com a ascensão, o papel até então representado pela deficiência econômica passa a ser evidenciado pela cor e por tudo o que a questão racial simboliza em termos sociais e culturais. E isso ficou muito à mostra num dos depoimentos de um dos radialistas entrevistados pelo autor: Só depois que eu venci é que percebi que estava derrotado desde o começo. O prêto 5 comete um êrro grosseiro, quando imagina que o estudo, a roupa, a fama e o dinheiro fazem dêle alguém. Está certo, tudo isto melhora a vida da pessoa, dá muitas alegrias, mas em compensação mostra que aquilo que a gente pensa ser invencionice, ser boato, existe mesmo – é o preconceito racial. Antes a gente vive iludido, lutando para se livrar da pobreza. Depois... bem êste é um assunto que eu prefiro nem falar dele (BORGES PEREIRA, 1967, p. 261). Durante a coleta de dados desta pesquisa na Ufes, especificamente das narrativas dos sujeitos pesquisados, as tais invencionices ou ilusões de que o racismo não faz parte de nossa produção de mundo como afro-brasileiro num país racista são desmascaradas e caem por terra. No recinto do Curso de Psicologia, ao abordar uma professora sobre outra, que eu procurava, mesmo “bem-vestido”, com roupa social e sapato bico fino, ela me confundiu com “o cara do ar-condicionado”. No Curso de Medicina, quando cheguei num dos departamentos, a servidora a quem perguntei a respeito do chefe de tal Departamento, olha para mim e indaga: “Você é o chaveiro?”. É a clássica associação que se faz entre ser afro-brasileiro e pobre, ou com funções de pouco status, poder e privilégio, no caso específico, culminando no que Hasenbalg (1984) chamou de “confinamento ocupacional” ou “imobilismo ocupacional”. 5 Nesta tese, em respeito à linguagem escrita construída na época da produção de obras antigas ou clássicas, manterei a ortografia do contexto específico de cada autora ou autor. 28 As agruras do racismo, as desigualdades raciais, os “dissidentes étnicos” (DIJK, 2008) que acontecem na sociedade mais ampla, na América Latina, principalmente no Brasil, são difíceis até hoje de serem considerados temas de estudos ou até de serem legitimados como existentes nas delimitações da universidade, no espaço acadêmico científico. O holandês Teun A. van Dijk, organizador do livro Racismo e discurso na América Latina, em seu prefácio, indica que houve uma grande relutância acadêmica no contexto da América Latina, Europa e América do Norte, quanto à discussão da temática racial no âmbito escolar, constituindo-se, portanto, um interesse de estudos recente na academia. O autor traz cinco mecanismos que ainda pairam no campo da academia dificultando a ampliação da discussão da temática no espaço científico, perpetuando interesses conservadores e racistas da universidade, tese essa corroborada por Carvalho (2006). O primeiro seria a negação do racismo em razão de uma política ideológica e acadêmica da “democracia racial”, muito comum no Brasil, Venezuela e Chile; o segundo parte do pressuposto de que o racismo brasileiro seria benevolente, comparado com o norte-americano, tido como mais explícito, violento e legalizado; o terceiro pauta-se numa forte consideração de que as desigualdades raciais vividas por afro-brasileiros seriam explicadas única e exclusivamente por relações classistas, e não também por relações raciais; o quarto mecanismo entende que sempre houve uma ênfase aos estudos científicos desses países mais ligados a um interesse por propriedades étnicas desses grupos em vez das práticas diárias de racismo cometidas pelas elites (sobretudo a branca); já o quinto indica que a maior parte dos pesquisadores acadêmicos são originados dos mesmos grupos sociais e classes que sempre estiveram no poder. Estes tiveram pouco ou nenhum 6 contato com o racismo, o que acarreta menor motivação para investigar um sistema de desigualdades do qual foram e são beneficiados. Carvalho (2006, p. 95), ao fazer uma crítica incisiva à academia diante de seu relacionamento com a temática racial, indica que [...] no caso da academia, os mecanismos mais comumente ativados que acabam por dar continuidade à prática da segregação racial são: a postergação da discussão, o silêncio sobre os conflitos raciais, a censura discursiva quando o tema irrompe e o disfarce para evitar posicionamentos [explícitos]. Procura-se, assim, esvaziar ou desarmar os mecanismos de tensão racial do sistema (grifos nossos). 6 Há que se fazer uma ponderação quanto a essa questão. Há muitos pesquisadores brancos e brancas que, inclusive, já sofreram discriminação em razão da classe social, mas nunca por serem brancos, entretanto têm muita sensibilidade e competência com a temática étnico-racial. Administrador Realce Administrador Nota Texto para justificar a pesquisa sobre a temática étnico-racial corroborando com a pesquisa sobre classe sociais; 29 Indo ao encontro de alguns pontos elencados por Dijk sobre a relação da academia com a temática racial, Liv Sovik (2004) aponta que o preconceito no Brasil pode ser inequívoco, mas sua discussão frequentemente reverte para explicações baseadas em classe social e desigualdade socioeconômica, quando também se atenta para a questão da branquidade, deslocando-se para a afirmação do caráter mestiço da população brasileira. Diante disso, a autora indaga: se não existem brancos ou linhas raciais nítidas, como pode haver preconceito? Nessa linha, discutir a branquidade no Brasil seria importar conflitos estrangeiros e relações raciais perversas, já que no Brasil, desde a escravidão, que perdurou por mais de 350 anos, nossas relações raciais são pautadas em convivências harmoniosas, em uma forte permissão e um caminho aberto de ascensão social para os mestiços e para os afro-brasileiros, teses essas muitodifundidas por Freyre (1947), Pierson (1951, 1971) e Degler (1976). Contrário à tese da democracia étnica apontada por Freyre e muito creditada nos espaços sociais, inclusive na academia, como destacado acima, farei uma análise da relação raça e classe no contexto das Ações Afirmativas da Ufes, possibilitando uma análise “descendo aos infernos”, (RAMOS, 1979), “escovando a história a contra pelo” (BENJAMIN, 1986), ou ainda “fazer uma história de baixo para cima” (ANDREWS, 1998). Abordarei, no capítulo sobre as relações raciais (Capítulo 5) e no das Ações Afirmativas (Capítulo 3), a potência dos discursos, teorias e práticas sobre o não reconhecimento do problema racial no Brasil e a disseminação das teses contrárias as Ações Afirmativas. Para apontar, numa perspectiva dialética, a perversidade do racismo no Brasil e as consequências das desigualdades raciais para o ferimento dos princípios de uma cidadania plena, garantia de direitos e justiça social, farei como Guerreiro Ramos, que nos ensina a descer aos infernos que consiste em arguir, em pôr em dúvidas aquilo que parecia consagrado. Para ele, “[...] quem não estiver disposto a esse compromisso, arrisca-se a petrificar-se em vida, ou a falar sozinho, e ainda permanece na condição de matéria bruta do acontecer, em vez de tornar-se, como deveria, consciência militante desse acontecer, pela apropriação do seu significado profundo” (RAMOS, 1979, p. 63). Fazer uma História a contrapelo, como nos sugere Benjamin, seria identificar “ecos de vozes que emudeceram”, que encharcam a política com os desejos e riscos de emancipação que, em certa medida, se encontram letárgicos, adormecidos nas imagens de lutas e conflitos passados, constituidores de nossas memórias. Esses ecos não podem ficar submersos pelo triunfo das vitórias manufaturadas artificialmente da história oficial, que buscam apresentar-se como Administrador Realce 30 únicas, verdadeiras e fatalistas. Seria, ainda, possibilitar uma memória que tem os ecos de vozes que emudeceram que, no entanto, se afirmam numa positividade ética que ultrapassa as derrotas, destacando que houve lutas e sublinhando com letras maiúsculas que fizeram parte dela, de maneira que nos convocam para ressignificá-las com o nosso presente. Já em Andrews, fazer uma história de baixo para cima é uma tentativa de trazer à tona a história dos que haviam sido silenciosamente enganados ou distorcidos pela história dominante. Os afro-brasileiros, “os inarticulados”, majoritariamente, sempre foram vistos pelos “olhos dos outros”. Isso com referência a senhores de escravizados, empregadores, jornalistas, visitantes estrangeiros e a polícia, como atualmente ainda acontece. Permitir uma análise de baixo para cima, no âmbito desta pesquisa, é reconhecer que os “dominados” sempre participaram do processo de criação, e não somente como vítimas e pessoas desamparadas, pois, mesmo quando atuam a partir de uma posição de fraqueza e desvantagem, suas decisões e ações desempenham um papel fundamental na determinação do curso da transformação histórica. Descer aos infernos, escovar a história a contrapelo ou fazer uma história de baixo para cima no faz dialogar com a epígrafe dessa introdução de Vitor Hugo. Permite-nos subverter o nível de pobreza próximo da indiferença que nos força ver tudo como irreal, como o racismo, as desigualdades raciais e os sujeitos, como os afro-brasileiros que se tornam meras sombras, sem distinção no mundo da vida e são perdidos de vista da realidade social tanto no contexto de alocação de seus papéis socialmente construídos, quanto na definição de seus direitos como cidadãos, numa sociedade que se diz democrática. Esses processos analíticos possibilitam uma inversão ideal e prática de investigação de uma democracia racial que ainda se quer acreditar que, no entanto, está longe de se efetivar na vida coletiva e individual da maioria da população afro-brasileira. Tais conceitos nos possibilitam uma guinada epistemológica ao evidenciar os conflitos adstritos nas relações raciais brasileiras que chegam ao gargalo do acesso à universidade. Ou, como Sovik (2004, p. 263) nos diz: “[...] a alfândega intelectual só acende a luz vermelha quando algumas ideias atravessam a fronteira e as obriga a abrir a mala”. Então, parti da ideia de que a mala apenas será aberta quando, do ponto de vista científico, do Estado, das organizações sociais e civis, acenderem a luz vermelha reconhecendo, na sua totalidade, os processos de desigualdades raciais enraizados estruturalmente nas relações Administrador Realce Administrador Realce Administrador Realce 31 raciais que impedem o acesso de nós, afro-brasileiros, ao ensino superior, principalmente nos cursos de grande prestígio social. Um desses reconhecimentos é o de colocar a questão da raça, juntamente com a questão da classe, como um mecanismo específico de desigualdade para além de uma relação epifenomênica [de segunda ordem ou subordinada, determinada pela classe]. Para isso, nesta tese, trabalharei o conceito de Stuart Hall (2008) chamado de teoria da articulação ou de uma abordagem não redutiva. O autor jamaicano propõe a teoria da articulação, que seria uma conexão ou vínculo que não se dá necessariamente em todos os casos, como fato da vida ou lei, mas algo que requer condições particulares para sua emergência. Seria algo sustentado por processos específicos, que não são “eternos” e fixos, mas que sempre se renovam e podem, sob certas circunstâncias, desaparecer ou ser derrubados, culminando na dissolução de antigos vínculos e de novas dinâmicas que façam conexões e (re)articulações. A teoria da articulação pressupõe práticas específicas e articuladas em torno de contradições que não surgem da mesma forma, no momento e no mesmo ponto, e que podem, todavia, ser pensadas conjuntamente. Hall (2008) destaca que a articulação entre práticas distintas não significa que estas se tornam idênticas ou que uma se dissolve na outra, como se quer em algumas análises mecanicistas da relação entre raça e classe, mas sim que cada qual retém suas determinações distintas e suas condições de existência. Diante disso, as categorias de classe e raça no campo da inclusão do afro-brasileiro na pesquisa educacional, na prática política e na universidade devem ser ancoradas numa noção dinâmica e mutável de relação dessas categorias. Assim, as noções simbólicas e políticas de poder, ligadas à teoria da articulação, são inexoráveis para que os reais processos produtores de injustiças sociais não pairem exclusivamente numa única forma de exploração, ou em relações de categorias que se esmiúçam, se compilam ou se descaracterizam. E isso é salutar diante da ideia de que não se pode perder a noção de interdependências e da própria lógica da sociedade brasileira com seus entrecruzamentos e variadas maneiras de produção de exclusão e de invisibilidades. Assim, as análises teóricas e políticas das categorias de raça e classe, no contexto brasileiro que começa a discutir e implementar, relativamente recente, as medidas afirmativas de acesso Administrador Realce Administrador Nota Tese que justifica a metodologia analítica do autor. Administrador Realce Administrador Realce Administrador Realce 32 e permanência dos afro-brasileiros na universidade, devem ser imbricadas nas teias de poder, nas contradições e dinâmicas das formas de dominação, nas resistências dos sujeitos e nas transformações sociais referentes às estruturas sociais e aos jogos simbólicos e materiais da sociedade. A categoria raça nesta tese se desvincula de qualquer filiação a determinismos biológicos, ao mesmo tempoem que busca romper com abordagens reducionistas e simplistas de classe, que consideram a raça como epifenômeno, como vimos acima (GUIMARÃES, 2009; HANCHARD, 2001; SISS, 2003; SEGATO, 2006; d’ADESKY, 2006). A raça é entendida como mecanismo de estratificação social pautado na percepção da diversidade fenotípica, como cor da pele, textura do cabelo, formato da boca, nariz. Nessa perspectiva, raça se estrutura como mecanismo relevante e potente que opera determinando símbolo de distinções sociais, alocando indivíduos na estrutura estratificada socialmente. Sendo assim, as desigualdades sociais e raciais são historicamente produzidas, constituindo-se como frutos de relações de poder assimétricas, sociais e politicamente engendradas. Segato (2006) indica raça como signo, já que depende de contextos definidos e delimitados para obter significação, definida como aquilo que é socialmente relevante. Esses contextos são localizados e profundamente afetados e constituídos pelos processos históricos de cada nação. Nessa direção, [...] ‘Raça’ é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata- se, ao contrário, de um conceito que denota tão somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças limita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de ‘raça’ permite – ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos –, tal conceito tem uma realidade plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite (GUIMARÃES, 2009, p. 11, grifos nossos). Ou, então, [...] Cabe também destacar a existência da noção biológica e a evidência da raça simbólica, ou seja, a raça socialmente percebida e interpretada. Quaisquer que sejam as variações de sentido do termo ‘raça’, a desconstrução científica da raça biológica não fez desaparecerem as percepções comuns fundadas na aparência física, e, em primeiro lugar, na cor da pele. Culturalmente codificadas, essas percepções conduzem o homem comum [nas relações sociorraciais] a classificar os indivíduos que encontra segundo suas características visíveis e não de acordo com o conhecimento genético. Esse hiato entre a raça biológica e a categorização social fundada na aparência física e na cor da pele constitui um problema e um desafio para o anti-racismo. Portanto, não se trata de condenar em si a expressão democracia racial, mas de observar que o uso do adjetivo nesse contexto se refere social e culturalmente às três ‘raças’ formadoras do Brasil. Nesse ponto, cabe também Administrador Realce Administrador Nota Ler essa tese reducionista para compreender as justificativas para tal abordagem. Administrador Realce 33 reconhecer que, ao supor a existência de raças, misturadas ou não, o adjetivo introduz a possibilidade não apenas de distingui-las e classificá-las, mas também de hierarquizá-las. Nesse sentido, a expressão democracia racial configura uma contradição lexical ou, por outras palavras, um oximoro (D’ADESKY, 2005, p. 141- 142, grifos nossos). Nessa direção, no Brasil, a raça foi, e ainda é, um dos mecanismos históricos e políticos produtores de desigualdade raciais, tendo a universidade se constituído como mais um dos espaços da sociedade onde esse conceito é operacionalizado promovendo distinções e hierarquias sociais entre sujeitos de marcas raciais distintas. O racismo, nessa configuração, constitui-se como algo manifesto da raça na dinâmica das relações sociorraciais. Ele, como nos advertem Ratts e Cirqueira (2010), atuando como ideologia, tenta legitimar e naturalizar predisposições e diferenças hierarquizadas, individuais ou coletivas, entre os grupos sociais. Essa demarcação conceitual do termo raça, no âmbito epistemológico e político desta pesquisa, torna-se relevante, tendo em vista que a negação de tal direção faz parte, principalmente, dos fundamentos e discursos dos detratores das Ações Afirmativas no Brasil, assim como de análises que omitem e/ou negam as desigualdades raciais, cujo intento maior é a sua reprodução e a sua manutenção. Para Guimarães (2011), as desigualdades que interessam à Sociologia são aquelas que se produzem de modo duradouro e que são inscritas numa dada estrutura, ordem ou organizações sociais. Apropriando-se do conceito de Clarles Tilly, Guimarães aponta para as chamadas desigualdades duradouras, baseadas em pares de categorias binárias de oposição, sustentadas por mecanismos de reprodução, como a exploração, as barreiras de controle, a emulação e a adaptação. Branco/negro, pobre/rico, homem/mulher, cristão/judeus, nacional/estrangeiro, heterossexual/homossexual etc. são pares categoriais que sustentam desigualdades sociais duradouras, a partir dos mecanismos citados. Assim, ao considerar que no Brasil a relação branco/negro produziu desigualdades duradouras ao longo da História, principalmente no campo educacional, como veremos, as Ações Afirmativas seriam um modo de correção de mecanismos de exploração ou barreiras de controle. Tais Ações reequilibrariam a igualdade por meio da criação de contrabarreiras, revoluções como modo de instituir ordens mais igualitárias que anulem tais mecanismos de desigualdades. As políticas que se pautam na diversidade, destaca Guimarães (2011), configuram-se como maneiras de impedir que diferenças culturais sirvam para reproduzir categorias binárias de oposição. Administrador Realce Administrador Nota Como o termo democracia racial, por si já remete à compreensão de diferentes raças - o que por si só já exprime contradições dentro daquilo que a ciência moderna entende como equívoco - mas além, remete a uma determinação de hierarquia estrutural entre elas; Administrador Realce Administrador Nota essas são as desigualdades que interessam à sociologia; Quais são as que interessam ao SSO? Administrador Realce 34 Entretanto a diferença cultural no Brasil ainda se opera para produzir oposições e distribuições desiguais de direitos e de cidadania entre brancos e afro-brasileiros. Os indicativos de pesquisa referentes à escolarização da população afro-brasileira apontam que os avanços na educação produziram impactos diferenciados nos diversos grupos existentes no Brasil, principalmente para os afro-brasileiros. Há uma persistência da distância entre os níveis de escolaridade entre negros e brancos ao longo das décadas. De acordo com dados do Ministério da Educação (MEC), de 1987 a 2007, houve uma diferença de dois anos na média de escolaridade de brancos e negros, que persiste e não se reduz ao longo dos anos. Os dados de 2010 do MEC indicam que, em 1997, cerca de 3% dos jovens brancos com mais de 16 anos frequentavam o ensino superior; entre os jovens negros, esse percentual estava em torno de 1%; já em 2007, 5,6% dos jovens brancos frequentavam o ensino superior, e 2,8% dos jovens negros com 16 anos ou mais estavam nessa condição. O próprio aparato legal referente à educação no Brasil, em consonância com as questões macro ancoradas na historicidade brasileira no tocante à economia, à cultura e à política, produz o que Rosa Fátima de Souza (2008) chamou de dualismo escolar, ou o que Bourdieu e Passeron (1975) denominaram de diferenciação social da escola, uma escola de acordo com as classes sociais, culminando nas teses da reprodução, pressuposto do qual a escola reproduziria as estruturas e as relações da sociedade capitalista. Tanto a Constituição Federal(CF) de 1988, quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº. 9.394/1996 não indicam o acesso à universidade pública de forma universal e gratuita, como o faz na educação básica. A LDB, no que tange ao acesso à educação básica, no Título III, intitulado “Do Direito à Educação e do Dever de Educar”, em seu art. 4º, I, II, III, IV, VI, VII e VIII, ancorada na CF de 1988, Seção I, intitulada “Da Educação”, no art. 208, I, II, III, IV e VI, indica o dever do Estado quanto à garantia, à obrigatoriedade e à gratuidade da educação infantil, do ensino fundamental e médio, do atendimento educacional especializado para os sujeitos com necessidades educacionais especiais e do ensino regular noturno. No entanto, quanto à oferta do ensino superior público nos níveis municipal, estadual e federal, tanto a LDB, em seu art. 4º, V, quanto a CF de 1988, Capítulo III, art. 208, V nos dizem que o “[...] acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, [se dará] segundo a capacidade de cada um”. As questões que se colocam são: por que há essa diferenciação no que tange ao direito? A meritocracia considera as variadas Administrador Realce Administrador Nota Essa por ser uma boa forma de estabelecer, indicar, como o desenvolvimento econômico ou a redução da desigualdade, não necessariamente, alcance a redução da desigualdade entre negros e bbrancos. Administrador Nota Ver a dissertação do Guilherme, sobre trabalho, para poder utilizar dados mais recentes, e se for o caso, poder utilizá-los para a comparação; 35 desigualdades sociais e raciais que marcam a trajetória de muitos jovens? A competência dos cidadãos deve estar desconectada das condições materiais e imateriais de existência? Nesta pesquisa, utilizarei o termo afro-brasileiro para designar cidadãos e cidadãs descendentes de africanos nascidos no Brasil, remetendo também a um movimento de identificação étnica dos nascimentos na diáspora africana em outros lugares. Tal termo assim delimitado está em consonância com o Movimento Negro Nacional (HANCHARD, 2001; SISS, 2003). Mesmo considerando que o termo negro pode cair num essencialismo, numa coisa fixa e imutável, quando esse termo aparecer nesta tese, não o trato nessa dimensão, já que há variadas formas de ser negro brasileiro. Para Andrews (1998), o termo afro-brasileiro corresponde ao uso brasileiro atual, que tende a agrupar os pardos e pretos ao grupo de negros, mesmo considerando que muitos brasileiros continuam a distinguir pardos e pretos. Diferentemente de Andrews, considerarei nesta pesquisa o somatório de pretos e pardos como negros, como faz o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Movimento Negro Nacional. Assim, concordo com Hanchard (2001) quando indica que o emprego dos termos afro- brasileiros e negros sugere um reconhecimento crescente da bipolaridade da política racial brasileira que, a despeito do mito da democracia racial brasileira, passou a assemelhar à política racial de nações, como os Estados Unidos ou a África do Sul. Com base nessas considerações preliminares da temática, parto para a problemática e hipótese de estudo desenvolvidas nesta pesquisa de Doutorado em Educação dentro do PPGE/Ufes, iniciada em 2011, cujo objeto é a investigação das cotas sociais, pressupondo as negociações e mediações entre as categorias sociológicas de classe social e raça, tendo como pano de fundo o modelo de implementação das Ações Afirmativas da Ufes ocorrido a partir de 2006 7 e finalizado em 2012. Os critérios de acesso ao Ensino Superior da Ufes como foi instituído em 2008, por meio das cotas, são baseados no fato de o aluno ter estudado o Ensino Fundamental e Médio em escolas públicas e ter renda familiar de até sete salários mínimos. Sendo assim, por não se basear em critérios étnicos e raciais, intitulei as Ações Afirmativas da Ufes de cotas sociais, por abarcar exclusivamente os condicionantes ou atributos de cunho econômico e educacional. Se, por um 7 Como explicarei mais especificamente no capítulo 2 da Metodologia, o ano de 2006 foi considerado, dentro do marco temporal desta pesquisa, 2006-2012, em razão de marcar os debates das Ações Afirmativas na Ufes. 36 lado, essa prática política contempla em parte os afro-brasileiros, em razão de eles, em sua maioria, passarem pela escola pública e se inserirem no critério de renda, 8 por outro, as cotas sociais não tocam diretamente no problema racial, cujo racismo é o principal agente produtor das assimetrias raciais que se reproduzem tanto na escola pública quanto na exploração da classe trabalhadora, no mercado de trabalho, na produção da renda e em todas as classes sociais. Assim, mesmo considerando a importância também do recorte de renda e da origem escolar pública por meio das cotas sociais como critério de inclusão na universidade, tais práticas, concordando com Ghiraldelli Jr. (2010), trazem também em seu bojo uma carga ideológica, cuja ação recai na ausência de melhorias e de reconhecimentos sociais direcionados aos grupos minoritários, como os negros, os índios, os gays, as mulheres, os deficientes. O reconhecimento dessas diferenças requer práticas políticas que não se limitam à dimensão da pobreza ou da classe social. Políticas calcadas apenas nessas dimensões, de alguma maneira, camuflam ou reproduzem as especificidades das diferenças, por meio das quais são produzidas as desigualdades e exclusões dos grupos alijados das riquezas materiais e simbólicas, cujas diferenças são utilizadas como mecanismos produtores de desigualdades sociais, étnico-raciais, 9 sexuais, de gênero etc. Assim, no Brasil, país extremamente desigual racialmente, as cotas sociais, quando vêm diretamente para lidar com as desigualdades raciais, tornam-se uma “zona de conforto” que esconde, nas práticas políticas e no imaginário coletivo, os privilégios majoritariamente de uma elite econômica e branca que não dialogam com a presença igualitária de negros, índios e pobres nas universidades e nos postos de direção, de poder e de prestígio social do País. Nesse sentido, considerando a confluência do embate epistemológico, político, ideológico, cultural, econômico e simbólico subjacente ao processo deliberativo da implantação das cotas 10 da Ufes em 2006 e uma possível concretização num vindouro próximo de cotas étnico- 8 Segundo o Ipea (2005), o percentual de negros (pretos + pardos) no Ensino Fundamental e Médio públicos é, respectivamente, de 60% e 57%. Já a porcentagem de negros de pobres é próxima de 70%. 9 Diante da celeuma, no campo do pensamento social brasileiro e na própria sociedade, entre os usos de raça ou etnia como categorias explicativas do pertencimento racial dos afro-brasileiros e entre a classificação utilizada pelo IBGE e a construção identitária dos socialmente classificados como negros, nesta tese, adotamos em várias passagens a expressão “relações étnico-raciais” ou simplesmente relações raciais. Tal intento torna-se relevante para permitir uma articulação entre os aspectos culturais de ascendência africana recriados no Brasil e o peso social dos aspectos fenotípicos na classificação de cor e na identidade dos afro-brasileiros. 10 A proposta contida no documento da Comissão Pró-Cotas para negros da Ufes, no contexto do Vestibular de 2006, subjaz a defesa de um quinhão cujo eixo principal seria um recorte racial que abarcaria 26% das vagas reservadas para negros e indígenas autodeclarados e que poderiam ser tanto discentes egressos de escolas 37 raciais nessa instituição, há que se submeter essa questão
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